Acessibilidade / Reportar erro

Globalização e refugo humano

ORDEM MUNDIAL

Globalização e refugo humano*

Luis Carlos Fridman

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Prepara, para Lua Nova, uma análise mais longa de Bauman e Giddens

Émile Durkheim dizia que a prisão servia mais para os que estavam fora dela pois o encarceramento de alguns reforçava vida moral de todos. Zygmunt Bauman, em seu atordoante Globalização - as conseqüências humanas, sugere que nos tempos atuais a prisão serve mesmo é para estocar o refugo da sociedade. Na pós-modernidade a prisão não funciona mais como ameaça punitiva para a correção moral dos "de fora", é um dispositivo de exclusão dos "consumidores falhos". Segundo a definição de Bauman em O mal-estar da pós-modernidade (Jorge Zahar Editor, 1998), estes são "pessoas incapazes de ser 'indivíduos livres' conforme o senso de 'liberdade' definido em função do poder de escolha do consumidor...a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redundantes - verdadeiramente 'objetos fora do lugar' Em suma, uma gente que não consome e que não realiza desejos".

Mas por quê se ater à prisão e ao encarceramento quando o assunto é globalização? Porque no extremo oposto do capital volátil e sem fronteiras, da impressionante revolução tecnológica em curso, da comunicação instantânea e das possibilidades imensas abertas por essas novas condições está uma grande parcela da população mundial que não participa devidamente deste arranjo, os excluídos globais. Segundo Bauman, esse contingente progressivamente estará sob a tutela dos sistemas penais e desta vez apenas para definhar.

Bauman considera que o descarte e a ¡mobilização de parcelas crescentes da população mundial é um dos limites trágicos da globalização. Se na obra mais recente de Anthony Giddens pode-se ler que a reflexividade, o acesso aos estoques mundiais de informação e a cultura da indagação racional permanente caracteriza o nosso tempo, Bauman é quase um anti-Giddens. Enquanto o sociólogo inglês concebe a globalização como uma profunda alteração das estruturas sociais e a emergência de processos novos pela intensificação de relações sociais em escala mundial onde acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a milhares de quilômetros de distância e vice-versa, Bauman vê, nas mesmas condições, o aumento do fosso entre quem participa e quem apenas é atingido pela globalização. Os dois mantêm um vivo e carinhoso diálogo intelectual; Giddens considera Bauman o teórico da pós-modernidade e Bauman agradece em seus livros o permanente estímulo do colega inglês. Um belo exemplo de divergência leal e de vaidades postas de lado.

Esse debate ajuda a situar Globalização - as conseqüências humanas. Giddens mostra-se mais impressionado com realidades em que os indivíduos solicitam, filtram e interpretam a informação, o que o leva à afirmação de que "um mundo de reflexividade intensificada é um mundo de pessoas inteligentes". Elas se movem em uma cultura de desacordo e de crítica, tudo está submetido a exame e indagação racional: psicoterapias, condução de políticas econômicas, tratamentos para dores de coluna, dietas, educação das crianças, imagens de violência na televisão, relações familiares, tabagismo ou mesmo o amor. Giddens constrói a imagem de uma sociedade altamente energética em que os indivíduos fazem uso permanente de conhecimentos para lidarem com sua prática cotidiana, o que provoca evidentes alterações na atividade. Assim, quanto mais se expande a solicitação e a filtragem de informações mais os indivíduos se tornam aptos a refletir sobre suas vidas e sobre as estruturas sociais, com resultados ainda incertos.

Giddens, porém, não reforça uma credulidade ingênua de que a vida na "modernidade reflexiva" está destinada a um final feliz. Para ele, aumentaram os perigos derivados da utilização humana do conhecimento, veja-se a ameaça nuclear da destruição da espécie e de todo o ambiente natural, algo que nenhum estado-nação é capaz de enfrentar sozinho. Os riscos globais são muito maiores do que aqueles experimentados anteriormente na história humana como resultado da radicalização das forças despertadas na modernidade e que alcançam agora um grau extremo de perigo. Mesmo assim Giddens supõe que os homens poderão mudar a política e a sociedade, algo que ele mesmo, a seu jeito, põe em prática na assessoria direta que dá a Tony Blair.

Bauman olha para outro lado da globalização, que é o da transformação da força de trabalho, dos pobres e dos desabilitados em refugo humano. A globalização pós-moderna é marcada pela compressão do tempo e do espaço pois, nos mais variados planos, as iniciativas se coordenam através da comunicação instantânea, a atividade econômica dispensa raízes firmemente fincadas nas localidades e, segundo as palavras de Bauman, "o capital teria pouca dificuldade em desmontar as suas tendas". Na linguagem da Sociologia clássica, a produção da riqueza tende a prescindir da força humana de trabalho. O contraste é flagrante com o período da segunda revolução industrial e do espetacular desenvolvimento econômico da segunda metade do século XIX na Europa e nos Estados Unidos, quando as massas pobres e deslocadas faziam parte do "exército industrial de reserva". Atualmente tornaram-se refugo humano mesmo. Gente dispensável, pobres e famintos que contribuem com nada, apenas tiram o dinheiro do contribuinte para financiar políticas sociais que não diminuem o incômodo de vê-los "poluindo" a visão da classe média e dos ricos. Esses "consumidores falhos" não serão reabilitados para o mundo do trabalho porque a sociedade não precisa deles. O refugo global está nas ruas das cidades brasileiras, nas gangues de adolescentes que queimam carros nos subúrbios de Paris, nos soldados das redes de distribuição de drogas na América, nos refugiados albaneses na Itália ou nos massacres em Ruanda.

A globalização da "anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais" garante ampla liberdade de movimentos e capacidade de agir a distância para alguns e reserva aos "consumidores falhos" o lugar de platéia desqualificada. É uma nova estratificação social, segundo capacidades de movimento no tempo e no espaço, que definem, segundo Bauman, "a extraterritorialidade da nova elite e a territorialidade forçada do resto". Nesse quadro, os consumidores atiram-se nos bancos de dados mundiais e os descartáveis da humanidade são submetidos a novas formas de controle social. A globalização aumenta o fosso entre os que estão "dentro" e os de "fora", que tanto podem estar nas economias mais sólidas, nos países vulneráveis à especulação ou nas nações que sucumbiram na nova divisão internacional do trabalho. Há mais semelhanças entre guetos negros da América e a periferia de nossas metrópoles do que com a vida em Manhattan.

Os privilegiados vivem reclusos em condomínios fechados, carros blindados, casas guardadas por pequenos exércitos de seguranças e portões eletrônicos. Estende-se a vigilância às ruas, aos lugares de concentração pública e cidades inteiras sofrem monitoramento. Na outra ponta, segundo os dados apresentados em Globalização - as conseqüências humanas, há um aumento considerável de indivíduos atingidos pela legislação criminal e destinados às prisões. Entre 1979 e 1997, nos E.U.A., a proporção de prisioneiros ou sob a tutela da lei para cada 100 mil habitantes subiu de 230 para 649 (2% da população estava sob controle do sistema penal). Do início da década de 60 até hoje, esse número subiu de 40 para 64 na Noruega e de 30 para 86 na Holanda. Atualmente, na Inglaterra e em Gales 114 para cada 100 mil habitantes têm suas mazelas com o sistema penal. Da leitura do livro de Bauman, surge a pergunta: quando a Nigéria, a Tailândia, o Brasil, a Chechênia, o Haiti ou a Albânia consolidarem suas instituições e completarem sua marcha em direção à "modernidade avançada" quantos estarão confinados?

Os "de dentro", cercados por aparatos de segurança, acreditam respirar um ar de intensa liberdade com a globalização. Os "de fora", segundo a frase de Zygmunt Bauman, "observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés". O funcionamento institucional daí derivado envolve uma distribuição de controles sociais que não é mais panóptico, segundo a consagrada interpretação de Michel Foucault. Na modernidade a prisão estava associada à domesticação dos cidadãos para o mundo do trabalho, ou seja, à fixação de normas e comportamentos dirigidos à laboriosidade, à produtividade e à disciplina. Atualmente, segundo Bauman, o panoptismo e suas instituições totais -que metaforicamente controlavam os indivíduos de um ponto de onde se via todos os demais - cedeu lugar à iniciativa voluntária dos consumidores que se prestam ao controle dos bancos de dados mundiais, que não estão em lugar nenhum.

Além disso, Bauman recolhe o exemplo da prisão de Pelican Bay, na ensolarada Califórnia, como o novo tratamento dos "consumidores falhos". Ali se faz a experiência pioneira do encarceramento high-tech. Os prisioneiros ficam em celas sem janelas, não trabalham, não têm acesso a recreação, os guardas comunicam-se através de alto-falantes e raramente são vistos. Segundo Bauman, "se não fosse pelo fato de que os prisioneiros ainda comem e defecam, as celas poderiam ser tidas como caixões". Na exclusão absoluta os presos não são submetidos a nada, não há qualquer intenção de correção, integração, manutenção ou reforço de mínimos laços humanos e sociais. Este é o laboratório de processamento do refugo humano em teste, já que a sociedade não tem mais interesse em reeducar para o trabalho, para a produtividade ou para a disciplina. Com a globalização, a ação à distância, a invisibilidade dos atores econômicos, a ausência de territorialidade na produção da riqueza e a erosão de laços sociais duradouros, o modelo não é mais o da supervisão. Processa-se agora a "limpeza", a "higiene social", ou seja, a eliminação da "impureza social" através das prisões-caixões high tech. O destino dos "consumidores falhos" é o lixo, assim como eletrodomésticos cujo reparo dos defeitos é mais caro que um novo exemplar. Vigiar e punir? Não, deixar desaparecer ou imobilizar. Essa é a idéia principal de Globalização - as conseqüências humanas. O alerta do livro de Bauman é trágico: quantos sumirão?

No prefácio do livro, Bauman acentua que não se dispôs a encontrar respostas para essas questões. Quis radicalizar perguntas e inquietações. Porém, sente-se falta da localização de contra-forças a essas tendências, algo indissociado da discussão na medida em que nas próprias condições do capitalismo vitorioso a institucionalidade democrática não é apenas um adorno dispensável. Ainda assim, pela acentuação unilateral de possibilidades aterrorizantes, Zygmunt Bauman explora limites que não podem ser cancelados na reflexão contemporânea.

  • * Comentário de Zygmunt Bauman, Globalização - As Conseqüências Humanas. Tradução de Marcus Pechel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    1999
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br