Open-access RECONSTRUINDO ALGUNS TEMAS DA TEORIA CRÍTICA: CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE SOBRE O FASCISMO

RECONSTRUCTING SOME TOPICS IN CRITICAL THEORY: CONTRIBUTION TO THE DEBATE ON FASCISM

Resumo

O artigo discute alguns aspectos abordados pela teoria crítica sobre o desenvolvimento do fascismo, em contraposição a interpretações marxistas tradicionais a respeito dos autores frankfurtianos. Por um lado, o artigo mostra como o exame da teoria crítica sobre o fascismo não se reduz a considerações psicológicas nem desconsidera as relações de classe para a evolução do fenômeno. Em contrapartida, o texto indica que a maneira como as relações entre indivíduo e sociedade e as transformações nas classes são peças-chave das análises da teoria crítica sobre o fascismo. Por fim, são discutidas algumas possibilidades de análise da atual situação brasileira a partir da reconstrução de aspectos da teoria crítica.

Palavras-chave: Teoria crítica; Fascismo; Marxismo

Abstract

This article discusses some aspects developed by Critical Theory on the evolution of fascism in opposition to traditional Marxist interpretations of Frankfurtian authors. It shows how Critical Theory’s examination of fascism is not reduced to psychological considerations on the subject, nor does it disregard class relations for the development of the phenomenon. Conversely, the paper indicates how the relations between the individual and society and transformations within class relations are essential elements of Critical Theory’s analyses of fascism. Finally, the article proposes an analysis of the current Brazilian scenario based on the reexamination of these aspects.

Keywords: Critical Theory; Fascism; Marxism

No final do século XX, o debate sobre o fascismo parecia consistir em uma discussão do passado. O suposto triunfo da democracia liberal, especialmente após o colapso da União Soviética (URRS), indicaria um período de paz e tranquilidade pelas décadas seguintes, sem que o capitalismo pudesse sofrer qualquer abalo ou ameaças à ordem. Contudo, essa imagem da sociedade burguesa foi desfeita a partir da crise de 2008 e com a ascensão de novos movimentos e governos de direita e extrema-direita. No Brasil, a eleição de Bolsonaro em 2018 alarmou a muitos e chamou atenção para a possiblidade de processos fascistas em curso no país. Apesar do cuidado necessário em relação às correspondências sociais e históricas entre diferentes épocas e lugares, Bolsonaro e seus seguidores compartilhariam muitos dos traços com os movimentos e regimes da primeira metade do século XX. Essa semelhança apontaria para processos sociais e políticos com causas análogas, como a recorrência de ideias conspiratórias, a busca pela aniquilação dos adversários políticos, sobretudo partidos e organizações de esquerda, e o culto à violência.

Para explicar esses traços e a evolução política recente, teorias marxistas sobre o fascismo “clássico” têm sido recuperadas. As incertezas quanto ao desenrolar dos acontecimentos e das tensões políticas no Brasil contemporâneo ajudam a entender por que esse resgate tem sido feito. As crises variadas nos últimos anos, a recente vaga das extremas-direitas e a fragilidade de movimentos anticapitalistas e de trabalhadores em responder a essa ascensão, além do apoio a práticas racistas, xenofóbicas e misóginas, encontram muitos paralelos com a situação histórica de quase um século atrás. A ideia do presente artigo é retomar e reconstruir uma outra análise do campo marxista que pode contribuir para a compreensão dos processos sociais e históricos que dão vazão à discussão sobre o fascismo no Brasil e no mundo: a teoria crítica. Neste texto, ela é encarada como uma modalidade de reflexão do marxismo sobre si mesmo diante dos problemas suscitados pela crise da sociedade burguesa e de movimentos de contestação ao capitalismo. Seus autores foram instigados tanto à busca dos limites e possibilidades de uma teoria e prática em direção à reorganização emancipatória da humanidade, quanto à concepção de novos instrumentos teóricos e de pesquisa para a compreensão do tema.

Sem dúvida, as questões que se colocam hoje não são as mesmas de quase um século atrás. Alguns dos próprios continuadores da teoria crítica buscam outros conceitos e formas de se apropriar da realidade atual, questionando a pertinência de se falar em fascismo hoje em dia (Demirović, 2021a; Bonefeld, 2021). Mesmo assim, vale a pena resgatar essa corrente e suas análises do tema, uma vez que as tendências da sociedade burguesa que levaram à constituição do fascismo permanecem presentes na atualidade. Além disso, apesar dos autores da teoria crítica a considerarem como uma corrente no interior do marxismo, suas investigações e conceitos são vistos com certa desconfiança, sobretudo pelo afastamento de autores, como Horkheimer e Adorno, das práticas políticas usuais dos movimentos e partidos anticapitalistas. Essa relação tensa entre marxistas e a teoria crítica também contribuiu para que o exame dos fenômenos fascistas, feitas pelos representantes desta última, fossem colocados fora da alçada de problemas “clássicos” das análises marxistas tradicionais.

Sintetizo neste artigo algumas questões que me parecem importantes para as considerações sobre o fascismo, tanto em sua fase “clássica” quanto atualmente, em contraposição a algumas teses do marxismo e visões a respeito da teoria crítica. Inicialmente, faço uma breve reconstrução de algumas interpretações frequentes que autores marxistas têm a respeito da teoria crítica, especialmente suas apreciações sobre o fascismo. Posteriormente, mostro como dois conjuntos de problemas analisados pela teoria se distanciam de visões recorrentes a respeito de suas investigações, a saber, a ideia de que o sucesso do fascismo seria explicado por ela com base em uma teoria psicológica e a ausência de um exame das relações de classe em seus trabalhos. Em divergência a tais opiniões, indico que tanto a análise da relação entre indivíduo e sociedade, quanto as sugestões dos frankfurtianos sobre uma teoria de classes no fascismo, partem do desenvolvimento de algumas das categorias da crítica da economia política. Por fim, enuncio algumas possiblidades de compreender problemas contemporâneos, com atenção especial às circunstâncias brasileiras, apoiado na discussão anterior sobre a teoria crítica.

Teorias marxistas sobre o fascismo e teoria crítica

A atual retomada das teorias marxistas sobre o fascismo remete ao significado que este adquire para a história dos movimentos socialistas e de trabalhadores. As derrotas em muitas insurreições e tentativas de revolução no início do século XX - como os casos da Alemanha, da Itália, da Hungria e da Espanha - e o aniquilamento das organizações operárias pelos grupos fascistas representaram uma guinada no marxismo (Wörsching, 2020, p. 40). Os autores da teoria crítica se inserem nessa reflexão que se caracterizou pela necessidade de rever os problemas da organização dos trabalhadores e os motivos dos revezes, simbolizados pela ascensão de Mussolini. Assim, as ponderações da teoria crítica a respeito da necessidade de se aprofundar a crítica de Marx e, ao mesmo tempo, compreender o que deveria ser modificado em razão das transformações da sociedade burguesa, aproximam as preocupações de Horkheimer e seus colegas de Instituto de Pesquisa Social a figuras como Antonio Gramsci.

Porém, muitos marxistas consideram este momento de inflexão da teoria como um desvio de rota. A vitória dos movimentos e regimes fascistas, assim como a impossibilidade momentânea de uma reconstrução das organizações dos trabalhadores, implicaria um afastamento de um grupo de intelectuais de questões políticas imediatas e um recuo para problemas relativos à cultura, filosofia e ciência. Esta imagem do assim chamado marxismo ocidental ficaria famosa por conta das análises do historiador inglês Perry Anderson (2004). Enquanto um exemplar dessa corrente, a teoria crítica não apenas se afastaria dos temas clássicos do marxismo, como a análise econômica e os problemas relacionadas ao poder e ao estado, mas também revelaria um distanciamento das questões relativas à estratégia do movimento operário para derrubar o capitalismo.

Reconstruções e coletâneas marxistas sobre o fascismo compartilham os pressupostos lançados por Anderson para tratar da teoria crítica como uma vertente de análise do problema. Mesmo reconhecendo que suas investigações sobre autoridade e família, a indústria cultural ou o antissemitismo consistam em elementos interessantes para a análise do fascismo, é frequente resumi-las ao plano da cultura e da psicanálise. Por um lado, Horkheimer e seus colegas apontariam para aspectos que interessavam pouco às análises tradicionais, sobretudo para processos sociopsicológicos envolvidos no apelo de massa de fascismo. Muitas das teorias marxistas sobre o fascismo seriam incapazes de entender como o apoio a suas lideranças não passava exclusivamente pela manipulação. Desse modo, a teoria crítica contribuiria para entender em que medida esse ideário encontrou apoio nas massas populares. Por outro lado, ela se afastaria do centro de uma análise marxista, já que deixaria de usar paulatinamente as categorias da economia política, como se o fascismo tivesse libertado o capitalismo da lei do valor (Beetham, 2019, pp. 58-59). As análises da teoria crítica, especialmente os trabalhos de Adorno sobre a personalidade autoritária, constituiriam um exemplar específico de uma teoria sociopsicológica do tema - o que aproximaria os frankfurtianos de exames do nazismo, feitos por psicanalistas como Wilhelm Reich e Erich Fromm (Renton, 1999, pp. 80-88; Wörsching, 2020, p. 123-137). Um historiador marxista especializado no nazismo, Tim Mason (2016, p. 209), chegou a dizer que a relação estabelecida entre tipos de personalidade autoritária e diferentes estruturas familiares, marcos dos estudos do Instituto de Pesquisa Social, não ajudaria a entender as motivações políticas dos fascistas.

Nos últimos anos, a retomada das teorias marxistas diante da ascensão dos movimentos e governos de extrema-direita em muitos países reforça aquela visão sobre a teoria crítica. No Brasil, esse é o caso, em particular, de Armando Boito Junior. Sem dúvida, Boito tem se destacado publicamente como intelectual que aponta para os riscos que a vitória de Bolsonaro e seu governo representam. Ele sobressai não apenas pelo exame atento do bolsonarismo e sua relação com a configuração do capitalismo e das classes sociais brasileiras, mas também por desenvolver uma teoria do fascismo. No entanto, ele compartilha certas noções comuns a respeito da teoria crítica com aquelas visões marxistas descritas anteriormente.

Com base na ideia de que o fascismo representa uma tentativa de impor uma solução violenta às crises políticas da sociedade burguesa e do atual cenário brasileiro, ele reconstrói alguns dos argumentos clássicos sobre o fascismo. Ao indicar a necessidade de um conceito geral e teórico, em contraposição a análises historicistas e que reduzem o fenômeno ao momento em que existiram, Boito define o fascismo como um “movimento político reacionário das camadas intermediárias da sociedade capitalista e um tipo específico de ditadura burguesa” (Boito Junior, 2020, p. 113), além de consistir na ideologia que mobiliza aquele movimento. Por conseguinte, o autor se esforça por mostrar que no centro de uma teoria do fascismo deve residir uma teoria sobre as classes e sobre o estado capitalista, de modo a orientar as análises do fenômeno. A especificidade dos movimentos e da ideologia como próprias das classes intermediárias corresponde a estudos marxistas clássicos, como os de Togliatti, Gramsci, Trotsky, Guérin e Poulantzas. É verdade que os movimentos fascistas tiveram adesão em outras classes, como as trabalhadoras. Mas, segundo Boito, não se pode cometer o erro de acreditar que essa ideologia atinge diferentes classes sociais de maneira uniforme, ainda que se deva reconhecer seu impacto sobre camadas populares. O discurso aparentemente crítico da ideologia fascista, contra os grandes capitais e a especulação financeira, se origina na posição social de pequenos proprietários e, no caso brasileiro, nas classes médias. Análises, como a de Adorno, incorreriam no equívoco de acreditar que indivíduos de diferentes classes foram “igualmente atraídos por Hitler ou Mussolini” (Boito Junior, 2021, p. 6). Essa equiparação corresponderia, por um lado, ao recurso à teoria freudiana para explicar o fascismo. O apelo de Hitler e o sucesso político desse ideário estariam relacionados à carência de um pai protetor. Por outro lado, a referência à psicanálise levaria Adorno a ignorar o caráter de classe dos fenômenos fascistas.

Reavaliando algumas questões da teoria crítica sobre o fascismo

Embora seja citado como autor de uma teoria sociopsicológica do fascismo, ou alguém que reduz o apoio a este a termos individuais e psicológicos, Adorno se opôs a essa caracterização. Para ele, não se tratava de explicar aquela adesão ao ideário e às práticas fascistas em termos de pré-disposições individuais: “eu quero dizer expressamente que minha própria posição filosófica, como alguns de vocês sabem, é frontalmente oposta àquela psicologizante - ainda que os momentos psicológicos sejam difíceis de colocar na balança” (Adorno, 2019a, p. 241, tradução livre). O fascismo deveria ser entendido mais a partir do contexto geral da sociedade burguesa do que segundo uma psicopatologia. De maneira ainda mais enfática, Adorno afirmou que a presença de movimentos fascistas no pós-guerra e a sobrevivência do próprio fascismo “devem-se à persistência dos pressupostos sociais objetivos” que o geraram. “O perigo é objetivo e não se localiza em primeira instância nas pessoas” (Adorno, 2008, pp. 43-44).

Para a teoria crítica, esses pressupostos objetivos dizem respeito ao fato de que as relações entre os indivíduos assumem para eles uma forma que se impõe sobre suas vontades. Se as pessoas quiserem sobreviver no interior dessa sociedade, elas têm de agir como se trabalhar em troca de um salário fosse algo evidente, por exemplo. Elas devem, assim, se adaptar às formas pelas quais a sociedade burguesa se realiza. Essa adaptação requer a renúncia a uma subjetividade autônoma, capaz de colocar em xeque a forma burguesa de existência. As considerações sobre o indivíduo e a psicanálise ajudam a entender como a naturalização das formas sociais capitalistas, processo que ocorre por conta dessas próprias formas, torna as pessoas suscetíveis a aceitar a sociedade como ela é. A possibilidade de tomar o indivíduo como ponto de partida de uma análise sobre os problemas da sociedade burguesa expressa o fato de que essa figura é um produto dessa forma de organização social. “Marx não se aventurou na psicologia da classe trabalhadora. Ela pressupõe a individualidade, um tipo de autarquia dos nexos motivacionais no indivíduo. Essa individualidade mesma é um conceito socialmente produzido que se enquadra na crítica da economia política” (Adorno, 2020, p. 271). Isso significa que a sociedade burguesa produz uma forma de sujeito adequada às suas relações. Uma vez que se trata de entender como existem indivíduos que aderem a fins irracionais e destrutivos, é preciso se perguntar, nesse caso, como tais pessoas são produzidas pela sociedade burguesa (Adorno, 1971, p. 466).

Obviamente, o recurso a uma análise do indivíduo não substitui o exame do desenvolvimento das formas burguesas ou de sua expressão histórica. Aquele é apenas uma parte do esforço da teoria crítica para entender as transformações do capitalismo e o fascismo. A sociedade burguesa é contraditória em suas relações mais essenciais e na sua evolução. Trata-se de entender, então, como essas contradições resultam não em uma outra forma de organização social, mas na reiteração da barbárie. Esse é o ponto de partida histórico e o núcleo dos resultados da investigação a que Horkheimer e Adorno chegam na Dialética do Esclarecimento e anunciam logo no prefácio da obra (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 11). O recurso à psicanálise, por parte de uma teoria da sociedade, se explica porque muitos de seus fenômenos não podem ser elucidados simplesmente com base em motivos racionais ou apenas nas intenções de indivíduos. Se suas relações não são reguladas conscientemente, a análise das tendências desta sociedade não pode se basear exclusivamente numa racionalidade levada a cabo intencionalmente pelos agentes. As elaborações de Freud são importantes na medida em que ele foi capaz de expor algumas das irracionalidades da sociedade burguesa, mesmo que suas próprias teses sobre esta sociedade fossem bastante discutíveis. Enquanto culminância dessa irracionalidade, a ascensão e a consolidação do fascismo não poderiam ser analisadas apenas por motivos racionais.

Também é recorrente descuidar que as pesquisas a respeito da susceptibilidade de pessoas para aderir ao fascismo, tema central de A personalidade autoritária, recuperam uma série de argumentos desenvolvidos anteriormente pela teoria crítica. Tanto a pesquisa liderada por Erich Fromm (1984) a respeito dos trabalhadores alemães no final dos anos 1920, quanto aquela encabeçada por Horkheimer (1987a) a respeito da relação entre autoridade e família, almejavam entender por que uma parcela deles apresentava traços autoritários. A pesquisa de Horkheimer, em particular, procurava desenvolver algumas hipóteses apresentadas anteriormente por ele, divergindo de algumas das formulações de Fromm (Horkheimer, 1990; 1999). Elas indicavam que não haveria uma relação imediata entre a classe à qual pertencia um indivíduo e suas representações da realidade, como se trabalhadores fossem os portadores de um ponto de vista antiautoritário. Um trabalhador poderia tanto se filiar aos partidos socialdemocrata ou comunista, como uma parte significativa dos operários alemães fazia antes de 1933, quanto apresentar opiniões autoritárias, como mostraram as respostas aos questionários.1 Essa defasagem entre a consciência de classe esperada por muitos intelectuais marxistas, inclusive Horkheimer, e a manifestação de atitudes e valores autoritários encontrava na contribuição da psicanálise uma importante ferramenta para sua compreensão. Por esse motivo, Horkheimer apresentou um argumento que seria recuperado posteriormente por ele e por Adorno: as transformações na forma de organização social implicam que a estrutura psíquica acompanhe tais mudanças (Horkheimer, 1987a, p. 20). O peso das determinações das relações capitalistas sobre os indivíduos, incluindo trabalhadores, é tão decisivo que um esforço mental é necessário para lidar criticamente com essa realidade. Isso explica por que muitos aderiam às práticas fascistas. Além de expressar representações autoritárias das relações sociais, tal adesão envolve uma adaptação do indivíduo à estrutura psíquica acarretada pela sociedade burguesa.

Analisadas em conjunto, essas tendências mostram que indivíduos percebem de alguma maneira as contradições da sociedade capitalista, mas encontram dificuldades para refletir sobre elas e organizar suas vidas de outra forma. Tais dificuldades são impostas pelo próprio desenvolvimento das relações capitalistas, como atesta a constituição da indústria cultural e da indistinção crescente entre tempo de trabalho e tempo livre (Adorno, 1995). Se é difícil às pessoas entenderem as causas objetivas de sua miséria e de seu trabalho alienante, muitas vezes elas tendem a personalizar essas causas, uma vez que se apresentam de forma obscura e abstrata. Daí que as figuras de lideranças fascistas e autoritárias possam ser alvo de identificação. Elas seriam capazes de trazer de volta o sentido de uma ordem social, baseada em contradições e crises cuja apreensão imediata é difícil.2

Os problemas da compreensão e das expressões particulares dos indivíduos são manifestações dos antagonismos da sociedade burguesa, e as tendências psicológicas funcionam como uma compensação dos problemas nas relações entre indivíduos (Adorno, 2019b, p. 369). Assim, os conceitos psicanalíticos são um meio de acesso a problemas da forma capitalista de organização social, não o elemento central das considerações da teoria crítica sobre o fascismo. Na esteira de seus trabalhos sobre a personalidade autoritária, Adorno destacou algumas vezes em que medida esse ideário pode ser analisado como uma revolta contra os resultados do próprio processo social, que afeta decisivamente a vida dos indivíduos. “Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a recorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela própria civilização” (Adorno, 2015, p. 162). A tarefa à teoria crítica consistiria, então, em desvendar as causas dessa revolta a partir do caráter antagônico da sociedade burguesa.

A opinião segundo a qual a teoria crítica analisa o fascismo em termos psicológicos corresponde àquela a respeito da ausência de uma avaliação das relações de classe sob o fascismo. É verdade que o domínio nazista na Alemanha e o início da Segunda Guerra Mundial provocariam alterações significativas na teoria crítica, sobretudo a guinada de Adorno e Horkheimer para um exame crítico da razão ocidental. Mas a mudança de enfoque de suas análises não significou um abandono nem das categorias da crítica da economia política, nem de uma análise das relações de classes. Horkheimer e seus colegas examinaram em que medida o fascismo evidenciava um momento de inflexão naqueles conflitos e nas formas burguesas de dominação. Se os interesses de uma minoria se impõem sobre a maioria dos indivíduos, em vista da divisão objetiva da sociedade capitalista entre aqueles que dispõem de trabalho alheio e aqueles que apenas contam com sua própria força de trabalho, então a questão consiste justamente em entender como e por quê a imposição daqueles interesses acontece não a despeito, mas mobilizando parte daquela maioria. Na medida em que para a teoria crítica as tendências imanentes de desenvolvimento da sociedade burguesa apontavam para o fascismo como sua forma consequente (Horkheimer 1988a, p. 278, 1988b, pp. 308-309; Adorno, 2020, p. 261), o exame das transformações das classes deveria fazer parte da análise. Ou seja, suas considerações sobre o nazismo como uma consequência do capitalismo contêm tanto uma discussão sobre as feições adquiridas pelas classes com os processos de concentração e centralização do capital, quanto uma reflexão sobre o significado daquele momento histórico para as relações de dominação. Esse conjunto de problemas foi apresentado no que veio a ser descrito como “teoria dos rackets”.

Em comparação com as análises da teoria crítica no final dos anos 1930 e início da década de 1940, como aquelas sobre a indústria cultural e o antissemitismo, a teoria dos rackets não resultou em um conjunto de pesquisas conduzidas no Instituto de Frankfurt, tampouco em textos exclusivamente dedicados ao assunto e publicados em vida por Adorno ou Horkheimer, seu principal expoente. Embora este pretendesse estimular seus colaboradores a tratar do assunto, investigações sobre o tema nunca foram iniciadas (Fuchshuber, 2021, pp. 42-43). Assim, a teoria dos rackets limitou-se a fragmentos, o que contribuiu para que a discussão não tivesse seguimento pelos continuadores da teoria crítica. Só muito recentemente ela voltou a ser objeto de debate.3

A discussão sobre os rackets remonta à organização de grupos de proteção e máfias em indústrias e sindicatos, tanto na Alemanha da República de Weimar quanto nos Estados Unidos do entreguerras. O termo foi inspirado nas acusações que capitalistas americanos lançavam a seus concorrentes. Tais queixas alegavam que lideranças sindicais tinham o objetivo de criar e manter posições favoráveis, tanto nos negócios quanto no controle da força de trabalho, em conluio com outros empresários, parlamentares e criminosos, e de modo ilícito (Regatieri, 2019, p. 139-192). Ao usarem a expressão, Horkheimer e Adorno destacam as circunstâncias envolvendo as burguesias alemãs e o estado nazista. Em alusão à descrição de Franz Neumann em sua obra Behemoth (Neumann, 2009), que apresenta a Alemanha daquele período como uma sociedade que beirava a guerra civil, os autores da Dialética do Esclarecimento pretendiam entender por qual motivo o nazismo e a luta selvagem entre grupos burgueses pelo controle do estado alemão tendiam a se assemelhar à disputa entre grupos mafiosos. O ponto de partida da descrição de Neumann é a articulação entre a expansão da indústria alemã e os interesses dos membros do partido nazista. O autor chega a se referir ao caso de Herman Göring, responsável pela criação da Gestapo (Neumann, 2009, p. 298-302). Göring teve uma rápida ascensão política na Alemanha nazista, em boa parte por conta de suas atividades ilegais. Mediante elas, conseguiu o controle de algumas indústrias e, assim, entrar no círculo das atividades econômicas legais. É possível interpretar tal aproximação dos monopólios com formas de organização criminosas como resultado dos processos de centralização e concentração do capital.

A concorrência entre os capitalistas pressiona cada um deles a conseguir uma fatia maior de mais-valor, assim como obter mais-valor extraordinário, o que os impele a usar de todos os meios possíveis para sua sobrevivência, enquanto portadores de capital. Certamente, a vitória na concorrência depende do tamanho dos capitais. Quanto maior o capital individual, maior a capacidade deste em reinvestir o mais-valor obtido. Porém, os capitais individuais passam a depender paulatinamente de outros elementos para alcançar uma fatia maior do trabalho excedente: “do poder político e social que representam; das novas e velhas rapinas dos conquistadores; da filiação à propriedade feudal, que a economia concorrencial nunca liquidou seriamente; e da relação com o aparato militar de dominação imediata” (Adorno, 2020, p. 263). Nesse sentido, a teoria crítica procurava entender como as disputas internas das burguesias eram uma chave de compreensão do fascismo. “A classe dominante, unida pelo interesse comum em seu modo específico de exploração, foi desde sempre caracterizada por lutas internas, pelos esforços de uma de suas partes para garantir para si os espólios de que outros poderiam se apropriar” (Horkheimer, 2021, pp. 142-143). A transição da sociedade burguesa liberal para o capitalismo monopolista assistiu ao crescimento de práticas dos burgueses que lhes garantissem vantagens na luta concorrencial: formação de grupos mafiosos, uso de violência contra adversários e, claro, uso de força direta e crescente contra trabalhadores. Não deveria espantar o fato de que o aparato estatal fosse tomado por grupos cujas ações assumiam feições próximas ao banditismo. O recurso à espoliação, à extorsão e à violência não é um ponto fora da curva do andamento da sociedade burguesa, mas faz parte dela. O caso de Göring, examinado por Neumann, também mostra que a formação de grupos que agem à margem das leis é um meio para acumulação de dinheiro que pode circular novamente e ser reinvestido em negócios legítimos.

Uma das ideias centrais da teoria dos rackets era mostrar que o desenvolvimento do capitalismo levaria ao uso de formas de violência direta sobre os dominados, em contradição com a regulação das relações entre indivíduos pelo contrato, sem formas de coerção imediata, já que aqueles vínculos são mediados pelos processos de troca. Como destacam Klein e Regatieri (2018), o fascismo é visto pela teoria crítica como uma forma limite do capitalismo, a qual retornaria às práticas de violência que estão presentes em sua origem. A fase liberal representaria apenas um interstício entre momentos em que a dominação se impõe mais diretamente. Além disso, Horkheimer estava interessado em discutir em que medida as relações burguesas de dominação haviam passado por uma modificação substancial e, mesmo assim, permaneciam essencialmente as mesmas (Fuchshuber, 2019). “A nova ordem indica um salto na transformação da dominação burguesa em dominação imediata e, contudo, ela continua com a dominação burguesa” (Horkheimer, 1987b, p. 332, tradução livre).

A teoria dos rackets remete, então, a um problema apresentado por Marx em O Capital. As descrições de Horkheimer acerca do retorno de formas imediatas de coerção na sociedade burguesa, e em que medida elas são resultado do próprio desenvolvimento das tendências do capital, correspondem à exposição do capítulo sobre a jornada de trabalho. Quando Marx (1983, p. 188-190) mostra que o uso da força pelos capitalistas é colocado em cena para resolver os impasses a respeito da extensão da jornada de trabalho, ele revela que a própria forma pela qual os indivíduos se relacionam na sociedade burguesa - no caso, o contrato ente dois possuidores de mercadorias formalmente iguais - gera outra forma que a contradiz, o emprego de violência. Nesse sentido, a relação entre formas de dominação mediadas e o desenvolvimento de formas diretas de dominação a partir daquelas é manifesta no fascismo e exacerbada por ele.

Essas transformações nas formas burguesas de dominação e no caráter das burguesias tiveram efeitos importantes para as classes trabalhadores e suas organizações. A centralização e a concentração do capital não só intensificaram disputas internas às classes dominantes, mas também tornaram o reconhecimento das relações de exploração menos imediatas. “A classe dominante desaparece por detrás da concentração do capital” (Adorno, 2020, p. 264), isto é, torna-se mais difícil a um trabalhador reconhecer objetivamente quem são seus patrões. O próprio conceito de classe deveria passar por uma análise dialética diante dessas circunstâncias, o que significava sua simultânea permanência e transformação. Por um lado, a divisão entre exploradores e explorados se intensifica com o desenvolvimento do capitalismo, tornando-se mais coercitiva e consistente. Por outro lado, os indivíduos de uma mesma classe não conseguem ter a experiência de constituir uma só. “O pertencimento à mesma classe há muito tempo não se converte em igualdade de interesses e ações” (Adorno, 2020, p. 263). Isso não acontece apenas porque o capital se torna cada vez mais um poder objetivo sobre os trabalhadores, que detêm cada vez menos o controle sobre o processo de produção e seus resultados - que, por sua vez, aparecem cada vez mais como atribuição do capital e seus portadores. Conforme os capitalistas se organizaram em bandos para se contrapor à concorrência, organizações de trabalhadores emularam essa forma de organização, de modo a se adaptar às transformações da sociedade burguesa. Assim, a relação entre lideranças sindicais e partidárias com os operários também assumiria um caráter mercantil.

Horkheimer e Adorno assinalaram à época que o desenvolvimento daquelas organizações passava a depender, em sua própria existência, de relações de monopolização e proteção, tal como os rackets capitalistas. Essa reflexão se baseava nas circunstâncias do sindicalismo americano e nas organizações de trabalhadores alemãs das primeiras décadas do século XX. Elas passaram a ter um interesse na existência das relações entre capital e trabalho, já que seus rendimentos eram obtidos a partir das relações de exploração. “O mesmo processo que, tanto na realidade como em ideologia, fez do Trabalho um sujeito econômico, transformou o trabalhador, que já era o objeto do empresário, também no objeto da sua organização” (Horkheimer, 2021, p. 150). Em contrapartida, elas contribuíram para que as formas burguesas de exploração e dominação fossem aceitas como naturais. Aqueles que fizessem parte delas poderiam obter benefícios e melhorar seu nível de vida. Quem não estivesse sob sua proteção, arcaria com a violência direta e indireta que um indivíduo enfrenta nas relações de trabalho. Dessa maneira, Horkheimer e Adorno indicaram que parte da vitória do fascismo no período residiria no acolhimento das formas de organização dos capitalistas por parte dos trabalhadores, além, é claro, das derrotas e massacres a que foram submetidas suas associações.

Em resumo, as circunstâncias e transformações que resultaram na ascensão de movimentos e regimes fascistas na primeira metade do século XX correspondem aos impasses a que levaram as mudanças nas relações entre classes e no perfil destas, assim como nos desafios postos à organização dos trabalhadores para que se associem como indivíduos livres. “A esperança do proletariado atualmente não consiste em se apegar aos padrões tradicionais do partido e da guerra civil. Em vez disso, deve reconhecer e combater a configuração monopolista da sociedade que se infiltra nas próprias organizações proletárias e infesta as mentes dos seus indivíduos” (Horkheimer, 2021, p. 149).

Sugestões para a análise de problemas contemporâneos a partir da teoria crítica

As análises da teoria crítica aqui discutidas podem constituir um ponto de partida frutífero para a reflexão de problemas contemporâneos, desde que observado o caráter histórico de seus conceitos e investigações. Se estes visavam explicar, a partir de uma reflexão acerca do próprio marxismo, as mudanças históricas pelas quais a sociedade burguesa passou, então eles estão ligados a um momento determinado da existência do capitalismo. Alguns aspectos revistos neste artigo contribuem para uma discussão sobre a pertinência da expressão “fascismo” diante das circunstâncias históricas atuais, levando-se em conta as diferenças entre momentos históricos distintos, ao mesmo tempo em que relações e formas sociais burguesas permanecem determinando a vida dos indivíduos. Em especial, as mudanças nas relações de classe e a referência a processos sociais irracionais, observados pelos frankfurtianos, contribuem para elucidar aspectos complexos da crise brasileira e a influência do bolsonarismo.

No Brasil, as transformações no processo de acumulação de capital nas últimas décadas levaram a uma reconfiguração das classes e das relações entre elas. A queda da lucratividade a partir dos anos 1980, em sintonia com o declínio das taxas globais de acumulação, indicou uma reorganização interna dos investimentos capitalistas (Marquetti et al., 2018; Prado, 2017). O papel da indústria perdeu gradativamente a importância e deu lugar a formas de acumulação voltadas à financeirização, em simbiose com a intensificação das atividades agrícolas, pecuárias e extrativistas com alto investimento tecnológico. Diante desse processo, há uma reconfiguração das disputas internas às burguesias brasileiras (Boito, 2018). A política institucional expressou e deu forma a esses conflitos. Nas duas décadas seguintes, a competição entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) expressou a luta entre diferentes representantes do capital no Brasil. Mas a crise de 2008 alteraria esse cenário. Por um lado, ela acentuaria as dificuldades da acumulação capitalista depois de um breve e incipiente momento de expansão nos mandatos de Lula. Por outro lado, o segundo governo de Dilma Rousseff assistiria a um aumento da tensão política e do acirramento do conflito entre diferentes setores burgueses, que passaram cada vez mais a contestar a capacidade das administrações petistas em gerir a acumulação de capital. O golpe de 2016 e a posterior eleição de Bolsonaro ocorreram na sequência desses processos.

O apoio em 2018 ao candidato de inclinações fascistas, ainda que tenha se realizado às vésperas do segundo turno, representou um momento de inflexão entre as classes dominantes. Diante das dificuldades em sustentar as taxas de lucro depois da crise de 2008, a escolha por Bolsonaro representou uma tentativa de resolver a crise política que se arrasta desde 2013 e rebaixar ainda mais as condições de vida da maior parte da população, no empenho de recuperar os lucros mediante arrocho salarial, carestia e insegurança no trabalho. Ao mesmo tempo, ela revelou a disposição de grupos de empresários para agir com violência e por quaisquer meios ilegais de se apropriar de uma fatia disponível do excedente econômico. O acesso aos fundos estatais também se revelou alvo dessa disputa.

A ascensão do juiz Sérgio Moro e seus métodos à margem do sistema legal mostraram que os grupos políticos burgueses estariam dispostos a tudo para eliminar da concorrência seus adversários mais importantes, Lula e o Partido dos Trabalhadores. Enquanto isso, as altas patentes militares foram aos poucos voltando ao proscênio e de forma articulada com o poder judiciário, como as relações entre oficiais e o ministro Dias Toffoli apontam. Já no governo Bolsonaro, eles não só ocuparam cargos de primeiro escalão da administração federal, mas também passaram a disputar uma fatia maior do orçamento público. Por fim, setores obscuros do empresariado, como Luciano Hang e proprietários de terras, prosperaram sob a suspeita de negócios ilegais, violência contra populações locais e degradação ambiental sem limites. Eles ganharam destaque depois que os representantes das “campeãs nacionais”, empresários favorecidos pelas políticas de investimento estatal, foram alvos da justiça. O país assistiu, então, a prisões de capitalistas, o que indica uma disputa fratricida entre os burgueses brasileiros e que não se furtou ao uso de dispositivos jurídicos duvidosos como as delações premiadas.

A descrição desse cenário se assemelha, em parte, às da teoria crítica sobre os rackets. Se no período “clássico” do fascismo os grupos burgueses se organizaram como mafiosos e se enfrentaram violentamente, resultado da concentração e centralização do capital, no Brasil contemporâneo as relações entre as classes dominantes denotam uma solução quase improvisada perante as tendências de estagnação econômica e o descontentamento da maioria das pessoas. As burguesias brasileiras seguem à sua maneira as inclinações de suas semelhantes mundo afora. A crise de 2008 fez explodir uma série de revoltas que marcam a insatisfação com as condições de vida e com as soluções institucionais para o aumento da miséria e do desemprego, expressas na crise das formas de representação política e do afastamento dos parlamentos e governos em relação a seus representados. Diante desse cenário, a ascensão e a escolha de partidos e políticos de extrema-direita buscaram resolver esses impasses (Demirović, 2021b). À semelhança de Salvini, Le Pen, Orbán, Duterte e Trump, a eleição de Bolsonaro mostrou que o recurso a violência é uma solução avistada no horizonte de possibilidades da crise brasileira, mesmo que isso represente um risco aos diferentes grupos capitalistas. Paralelamente, o discurso contrário à política não apenas se revelou um ideário e práticas contrários à democracia representativa (Boito, 2020, p. 115). Estes também são resultado das próprias limitações das formas institucionais da sociedade burguesa em resolver suas contradições. A insatisfação com a política, expressão desses limites, foi apropriada pelos movimentos da extrema-direita.

A referência ao sentimento difuso e generalizado de revolta a que assistimos no Brasil e no mundo também permite aprofundar o exame sobre as classes trabalhadoras, as transformações em suas condições de existência e suas formas de organização, a exemplo da teoria dos rackets e das considerações da teoria crítica a respeito das dificuldades dos indivíduos em compreender a realidade. As manifestações que aderem às práticas e ideias preconizadas por Bolsonaro possuem, sem dúvida, um forte apelo entre indivíduos das classes médias brasileiras, e com raízes nas manifestações contra a corrupção que se avolumaram desde 2015 (Boito Junior, 2020; 2021; Cavalcante, 2020). Mas além de entender as motivações dessas camadas para esse apoio, também poderíamos nos questionar sobre o apoio a Bolsonaro entre trabalhadores. Embora a eleição do atual presidente e a aprovação a seu mandato contem com uma porcentagem menor entre trabalhadores (Singer e Venturi, 2019; DataFolha, 2022), é preciso se perguntar por que parte deles consente a violência e a barbárie simbolizadas por ele.

As análises e levantamentos sobre a estratificação do voto e do apoio a Bolsonaro mostram que os setores populares que o aprovam são ligados a manifestações de conservadorismo entre trabalhadores, relacionados, em particular, a denominações religiosas neopentecostais. Uma vez que se reconhece que há um apoio ao bolsonarismo entre camadas de trabalhadores, ainda que esse número não seja tão significativo em comparação com outras classes, é necessário entender por que há essa relação entre o suposto conservadorismo daqueles estratos e o apoio a um ideário baseado no culto à violência e na resolução dos problemas da sociedade por lideranças autoritárias. Parte da resposta se encontra nas mudanças do perfil dos trabalhadores brasileiros nas últimas décadas, que acompanharam as transformações provocadas pelas tendências contemporâneas da acumulação de capital.

Elas sugerem que a adesão, ainda que momentânea, ao representante da extrema-direita não foi apenas resultado da ocultação dos reais interesses das classes dominantes, disfarçados pela retórica conservadora (Boito, 2021). Também seria importante levar em conta como o apoio de setores dos grupos e classes subalternas envolve a identificação com partes da ideologia neoliberal e com as formas do sujeito burguês. Tais considerações podem abrir novas perspectivas de análise e crítica, uma vez que a tomada de valores como empreendedorismo, individualismo, competição, ainda que contraditória, só é possível porque as relações nas quais os trabalhadores se encontram e o modo de sua existência como classe mudaram significativamente no Brasil nas últimas décadas. Traços como informalização acentuada do emprego, financeirização da vida cotidiana, aumento das dívidas e desemprego permanente ajudam a entender como as dificuldades de trabalhadores em se ver como tais se referem à própria reorganização do processo de produção capitalista.

Um exemplo significativo dessas tendências reside no fato de que trabalhadores de aplicativo como o Uber vejam a empresa como uma colaboradora, e não como uma agência de sua exploração. Sob a pressão de sair do exército de desempregados, esses trabalhadores colocam sua força de trabalho à disposição em todas as horas do dia e, mesmo assim, podem se enxergar como autônomos em busca de um bônus e em competição com seus colegas. Tais características também se associam a um processo de desorganização política, já que a experiência de se constituir uma classe torna-se menos inteligível, e que tem como contrapartida a associação a grupos religiosos conservadores e reacionários. A religião funcionaria como um lugar onde as pessoas ainda podem manter laços comunitários e de vizinhança, um contrapeso à brutalização da realidade da maioria daqueles que só tem sua força de trabalho para sobreviver.

Além disso, não há uma relação causal simples entre posição social e apoio aos fascistas, e nem a classe trabalhadora é imune à propaganda fascista. Do contrário, se o fascismo é encabeçado pelas pequenas-burguesias, ele não teria sido capaz de angariar apoio em todas as classes sociais (Wörsching, 2020, p. 71; Fuchs, 2018, p. 44-54). O exame da teoria crítica sobre os rackets sugere que as formas de organização dos trabalhadores, especialmente se elas se adequam à organização da produção capitalista, é um aspecto importante a ser levado em conta. No caso brasileiro, a mistura entre adesão a valores neoliberais, manifestações religiosas com fortes traços patriarcalistas, mudanças no perfil da força de trabalho, enfraquecimento das organizações autônomas de trabalhadores e a paralela adaptação de muitas delas aos processos produtivos e políticos institucionais - como o PT e os sindicatos ligados ao partido evidenciam -, fez com que experiências de lutas não tivessem continuidade e forte enraizamento.

Quando revisitamos as pesquisas e textos da teoria crítica sobre o fascismo ou a personalidade autoritária, uma das questões centrais era não só a dificuldade dos assalariados em se organizar e confrontar as instituições e relações burguesas, mas também a possibilidade de um tipo de experiência sobre a realidade que se contraponha à atual forma de organização social. O asselvajamento da experiência cotidiana no Brasil se intensificou nos últimos anos e atinge consideravelmente as classes trabalhadoras. Assim, elas também podem se transformar em sujeitos brutalizados e que aderem a soluções violentas para as crises atuais. Quanto mais os problemas econômicos e políticos se arrastam, quanto menos as pessoas conseguem estabilidade em suas vidas e quanto menor é o controle e o acesso às decisões que as afetam, mais a violência direta parece ser uma solução razoável diante da incapacidade da acumulação de capital trazer de volta os empregos perdidos ou diante do fechamento das instituições políticas em relação à vontade dos eleitores e representados. A escolha por Bolsonaro pode ser vista como exemplo desse conjunto de problemas.

As pesquisas eleitorais apontam que ele sairá derrotado das eleições presidenciais de 2022, se o rito eleitoral for respeitado. No entanto, isso não representa necessariamente o fim das articulações dos movimentos da extrema-direita brasileira. Não só há um fantasma de um novo golpe pairando no ar. Além disso, é preciso levar em conta a insistência de Adorno a respeito das causas objetivas do fascismo. A situação de “salve-se quem puder” a que estão submetidas a maioria das pessoas no país, a persistência de uma solução pela política institucional - quando a acumulação de capital dá pouca margem de manobra - e a limitação das forças em busca de formas de organização que reconfigurem radicalmente o modo de vida indicam que soluções violentas e irracionais ainda são uma possiblidade. As práticas sociais burguesas e suas formas de representação encontram ampla aderência, ao mesmo tempo em que os indivíduos se defrontam com sua irracionalidade, o que reforça o delírio da sociedade capitalista. Enquanto tais problemas permanecerem presentes, uma saída fascista para a crise brasileira e no resto do mundo persistirá no horizonte.

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  • 1
    Embora a pesquisa coordenada por Fromm não tenha sido concluída porque muitos dos questionários não foram respondidos, 20% dos apoiadores dos partidos operários expressavam em suas opiniões e sentimentos uma clara tendência autoritária, assim como muitos mostraram atitudes ambíguas em relação ao tema. Cf. Fromm (1984, p. 209).
  • 2
    Boito (2021, p. 6) aponta, em seu comentário crítico sobre Adorno e o ensaio sobre a propaganda fascista, a referência deste a Hitler como alguém que “recusou o papel tradicional do pai amoroso e o substituiu integralmente pelo negativo da autoridade ameaçadora” (Adorno, 2015, p. 163). Mas, diferentemente do que o brasileiro afirma, essa citação não consiste em uma explicação do sucesso político do fascismo em virtude da mobilização de uma suposta carência dos indivíduos em relação a um pai protetor, ou que Adorno ignorasse os aspectos de classe do fascismo. A referência a Freud serviu para entender como se estabelecem os vínculos libidinais entre lideranças fascistas e seus apoiadores, e como esses vínculos são explorados pela propaganda fascista. A reanimação da “ideia do pai primitivo onipotente e ameaçador” estaria na raiz da “personalização da propaganda fascista, sua incessante reiteração de nomes e de supostos grandes homens, em vez da discussão de causas objetivas” (Adorno, 2015, p. 165, grifos originais).
  • 3
    Quanto ao caráter inconclusivo das teses de Horkheimer, que pretendia implementar um plano de pesquisa sobre o assunto no Instituto, cf. Regatieri (2019, p. 139-192) e Fuchshuber (2019; 2021). São duas reconstruções minuciosas das condições e das possíveis implicações para uma análise das atuais sociedades. A principal formulação de Horkheimer a respeito do problema, “Sobre a sociologia das relações de classe” (Horkheimer, 2021), nunca foi publicada em vida - ainda que o texto tivesse sido reformulado e divulgado parcialmente em um dos capítulos de Eclipse da Razão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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