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Vida nova, numa sociedade "enrijecida"

POLÊMICA - URSS: 70 ANOS DEPOIS DA REVOLUÇÃO

Vida nova, numa sociedade "enrijecida"

Alberto Sendic

Jornalista uruguaio residente em Paris

A campanha de modernização e de reestruturação que sacode a sociedade soviética põe em evidência a existência de forças e de camadas sociais com suficiente importância, peso e autoridade para enfrentar os corpos estabelecidos, cristalizados, infalíveis do partido e do governo, do aparato do Estado e da economia, dos sindicatos e da Komsomol, da KGB e das forças armadas.

Por detrás da fachada de monolitismo, tem-se desenvolvido na sociedade e no próprio partido esta audácia, objetividade, este projeto que tem emergido com tanto vigor nestes últimos tempos. As idéias, as críticas, as proposições que irrompem hoje, faz tempo que são debatidas, formuladas por grupos de economistas, sociólogos, pesquisadores, escritores, artistas e inclusive por dirigentes do partido, e que penetram amplas camadas da sociedade. Os reestruturadores atuais reconhecem uma filiação com o XXº Congresso, com as tentativas de Kruschev e os esboços reformistas da primeira época de Brejnev. Livros e filmes, ainda proibidos, haviam sido o produto de uma reflexão e de uma tentativa de comunicação, de debate.

A revolução científica e tecnológica, com seus êxitos no domínio espacial e atômico, nos novos materiais e combustíveis, na eletrônica, na biologia, na medicina e na investigação fundamental, vai transformando as forças produtivas e as mentalidades, gerando camadas sociais modernas e modernizadoras. O desenvolvimento da complexidade da economia moderna choca com os bloqueios do sistema de planificação enrijecidos. Como nos países desenvolvidos do Ocidente, as relações sociais do período anterior envelhecem rapidamente e se vão desintegrando. E ainda antes que as relações novas se tenham estruturado, se desenvolvem setores renovadores.

A luta social e política está se intensificando na URSS. As camadas ligadas às novas tecnologias e ciências, à produção moderna complexa, à investigação, à indústria, aos estudos ou simplesmente ao consumo, ainda que minoritárias, são sustentadas, impulsionadas pelo prestígio dos êxitos científicos, pelas inovações e invenções no país ou internacionalmente, pela lógica do enfrentamento com o Ocidente, que confere a cada progresso ou retardo uma dimensão estratégica. Todas as mudanças têm um efeito multiplicador, um prestígio crescente ante as novas gerações, transformando preocupações e aspirações.

As próprias forças armadas, um dos sustentáculos do autoritarismo e imobilismo, e um dos principais beneficiários do desenvolvimento tecnológico, são sacudidas. "Atualmente não são somente certos descobrimentos e inovações, mas sobretudo o nível geral do progresso científico e tecnológico e sua base material que influem cada vez mais e de maneira mais intensa sobre o desenvolvimento do exército", escreve o general V. Chabanov. A relação entre as tecnologias e os técnicos e os velhos oficiais e ofícios de guerra têm mudado, e as recentes proposições de desarmamento têm certa relação com esta evolução.

As camadas sociais modernas que vão engendrando este desenvolvimento atual não estão no poder na União Soviética. Como no Ocidente, devem contemporizar com as estruturas sócio-políticas existentes, mas influenciam profundamente a evolução atual, exercem uma função desgastante sobre as velhas formas e relações na produção e na sociedade. A eficácia enfrenta a pesadez administrativa.

O desenvolvimento tecnológico e sua aplicação — O descompasso existente entre o desenvolvimento científico e o tecnológico conseguidos no domínio militar e outros, em relação a seus efeitos na produção civil e ao consumo, além de ser insuportável é, agora, evidente.

Em um discurso em Praga, de 10 de abril de 1987, Gorbatchev se refere a esse desequilíbrio: "Nossas sondas espaciais são assombrosamente precisas quando se trata de encontrar o cometa Halley, e de ir ao encontro do planeta Vênus (...) quando o mais simples de nossos aparelhos domésticos apresenta defeitos realmente desagradáveis". O mesmo discurso dá outros exemplos: "A formidável produção de aço, de matérias-primas e de energia" não corresponde à "penúria que deriva de sua aplicação ineficaz e desordenada". A URSS ocupa "um dos primeiros lugares mundiais na produção de trigo e necessita recorrer todos os anos à compra de milhões de toneladas de grãos e cereais para alimento de gado". "Temos o maior número de médicos, de leitos de hospital por mil habitantes, entretanto, a qualidade da assistência médica deixa a desejar."

Em seu informe para o comitê central do Partido Comunista em 27 de janeiro, o mesmo Gorbatchev havia definido o conteúdo da reestruturação:"A idéia dominante de nossa estratégia é a de aliar o processo da revolução científica e técnica com a economia planificada e de mobilizar o potencial do socialismo". Para alcançar este objetivo não é só necessário desenvolver a produção, mas revisar "as relações de produção socialistas petrificadas (...) em relação com o desenvolvimento das forças produtivas". "No socialismo esta operação deve ser permanente. Se as transformações que estão amadurecendo não são realizadas (...) os problemas se acumulam, e então tem-se que recorrer a meios mais radicais, utilizar métodos revolucionários."

Prioridade das ciências sociais sobre o discurso político — Na Estônia, em 21 de fevereiro de 1987, Gorbatchev estendia "a linha de aceleração do desenvolvimento social e econômico do país, a necessidade de reestruturação (...) aos fundamentos de nossa economia, de nossa política social, do funcionamento do sistema político, da democracia socialista, dos métodos de gestão, ao estado espiritual da sociedade e, enfim, à vida e atividade do partido inclusive".

Se bem que "o próprio partido" segue exercendo uma função fundamental, o vigoroso questionamento de que é objeto não responde a uma simples vontade política. Na concepção leninista, o partido representa o saber, a ciência, a organização que o proletariado não pode adquirir espontaneamente. Na prática stalinista o partido substitui o proletariado; basta olhar a hipertrofia atual!

Hoje se tem desenvolvido uma camada que tende a unir o trabalho intelectual com o manual, surgida do desenvolvimento das forças produtivas, mais próxima da ciência moderna que o materialismo científico oficial, mais integrada para a evolução e a mudança que a dialética cristalizada nas academias, mais aproximada da organização econômica e social que os organismos do partido.

Sua função social não depende do partido, não passa por ele, porém depende da relação com a produção e com o desenvolvimento científico, com a organização da economia moderna, em toda a sua complexidade. As estruturas do partido têm deixado de constituir os canais necessários ou, em todo caso, inevitáveis para mover o conhecimento, a decisão.

A reestruturação não combate somente algumas deformações e abusos, mas também tende a diminuir o peso tentacular do partido, abrir outras vias para a iniciativa e a criatividade."Um comitê de distrito (do partido) não pode atuar como órgão de gestão econômica. Não é sua função, é a função dos órgãos de gestão", esclarece Gorbatchev na Estônia.

No debate atual, na defesa e na explicação das reformas, a palavra é menos dos documentos do partido e mais dos investigadores científicos, economistas, sociólogos, psicólogos, escritores e cineastas.

Estes elaboram seu pensamento e sua decisão mais nos centros de investigação, nos meios artísticos, na atividade econômica, do que nos organismos do partido. Os métodos tradicionais são submetidos a uma crítica científica.

"O enfoque tecnocrático de numerosos problemas, alguns meramente sociais, se origina no menosprezo da função e do alcance das ciências sociais. Ainda hoje não suprimimos o enfoque que tem sua origem no economismo vulgar. A interpretação dos problemas econômicos, industriais e técnicos substitui a dos problemas sociais. O sistema de direção da economia recebe às vezes mais prioridade que o sistema global de direção da sociedade...", diz A. Yakovlev, novo secretário e membro do burô político do partido, aos investigadores e escritores em Tajikistão. E acrescenta este apelo, surpreendente na boca de um dirigente do partido: "Temos necessidade de explicações teóricas sólidas sobre os interesses de classe, de camadas sociais, de coletivos (...) estudar as origens e a natureza de toda sorte de desvios no seio do regime socialista".

Por outro lado, pode-se observar que os pontos de referência do discurso modernizador são menos as tradicionais citações de Lênin e de Marx, e mais as conquistas da ciência, "o nível mundial". As performances tecnológicas, a eficácia industrial e a produtividade do trabalho interpelam menos os textos do marxismo-leninismo escolástico vigente na academia soviética do que a organização da produção no Japão ou na Alemanha Ocidental, e a qualidade de seus produtos.

A dimensão internacional — A organização moderna da economia e a inovação científico-tecnológica não é concebível em um só país. A necessidade de informação, de intercâmbio, de conhecimentos, de inovações e descobrimentos, as técnicas, os métodos, a organização econômica só se concebem num marco transnacional. Há uma interdependência crescente e uma "mundialização" da economia neste nível de desenvolvimento. Os países capitalistas desenvolvidos avançaram mais na revolução científica e tecnológica. O discurso oficial atual na União Soviética reconhece-o. Esta revolução se produz ali onde as forças produtivas eram mais desenvolvidas e não onde a distribuição social era mais justa: talvez Marx não se surpreendesse com esta simples constatação.

Não somente o equilíbrio de forças, nem os imperativos da produção, mas simplesmente o consumo ou a aspiração ao consumo de artigos sofisticados, eletrodomésticos ou audiovisuais têm criado uma demanda, uma pressão na sociedade soviética, que sua economia não pode satisfazer. Junto com o intercâmbio crescente de conhecimentos e técnicas, tem-se criado uma comunicação crescente com as camadas sociais equivalentes do Ocidente. Alguns setores inclusive idealizam os países capitalistas desenvolvidos, atribuindo-lhes a mesma qualidade que seus produtos.

Podemos acrescentar que a crítica à União Soviética das camadas "modernistas" do Ocidente não se referia tanto ao "Império do Mal" nem ao "perigo comunista", mas simplesmente à ineficácia de seu regime. A expectativa, interesse e certa simpatia com que se vê a política da equipe de Gorbatchev indicam que há uma linguagem e preocupações que podem ser comuns. A nuvem atômica de Chernobyl, como as proposições de supressão de foguetes atômicos — produtos também das novas tecnologias de ambos os lados — o confirmam.

A aliança que no pós-guerra se havia selado com os trabalhadores e intelectuais ocidentais na luta contra o fascismo e pela reconstrução se enfraqueceu. Uma nova comunicação sócio-política parece desenvolver-se neste cenário científico e modernista. Trata-se de uma comunicação mais contraditória, dinâmica e exigente que as dos tradicionais comunicados entre os partidos irmãos. Ao mesmo tempo há, em certas camadas, um debilitamento relativo do interesse pelos processos revolucionários no terceiro mundo. O voluntarismo militar, ineficaz e caro, tem pouco que ver com o apelo à mobilização social, à responsabilidade em todos os níveis. Muitos economistas pensam que é melhor apoiar projetos concretos, que estimulam a participação das forças locais, sem substituir seu próprio amadurecimento. É certo que no fundo a imaginação das camadas mais modernas está mais atraída pelos progressos e pelas inovações do mundo desenvolvido que pelos movimentos nacionalistas do terceiro mundo, pelo menos na parte européia da URSS.

A geração desconhecida — "Numa parte dos soviéticos, particularmente nos jovens, a fé em nossos ideais revolucionários e socialistas está debilitada, enfraquecida." Esta frase de P. Voluhuiev, no Pravda, é repetida freqüentemente em artigos e discursos. Gorbatchev afirma que as deformações do regime têm tido uma influência nefasta sobre as novas gerações.

A imprensa soviética publica cada vez mais informações sobre os "fenômenos negativos", os bandos de jovens, a violência, o vandalismo, a toxicomania. Além destes fenômenos marginais, ainda que sintomáticos, manifesta-se uma presença autônoma e uma ruptura em setores importantes de jovens.

Por trás do "culto ao consumo" que denunciam os periódicos, há uma exigência de artigos, de espetáculos, de uma maior satisfação das necessidades individuais. E, sobretudo, decidir mais sobre a própria vida, resistir aos canais traçados e fixados pelo mecanismo do ensino e da economia.

Os ritmos, os gostos, o vestuário e as sensibilidades recebem a influência de outras juventudes através da música, dos filmes, dos contatos, dos movimentos ecológicos e pacifistas. Segundo cifras do Komsomol, há trezentos grupos de rock profissionais e o triplo de simpatizantes em Moscou.

Os jovens operários parecem afastar-se dos canais sindicais e políticos, não recorrem aos funcionários que administram as leis sociais. Informando sobre uma greve que houve numa fábrica de Moscou depois de um acidente de trabalho, um jornalista escreve: "Examinando os rostos destes jovens compreendi que seus atos eram ditados mais pelos sentimentos do que pela razão". Não buscaram fazer o sindicato intervir nem apelaram para a aplicação da lei. Não queriam discutir: protestavam. Em que nível da reestruturação a razão encontrará uma linguagem comum com os sentimentos?

A juventude está movendo a estrutura dessa sociedade, participa na desintegração das velhas relações sociais e do próprio papel do partido. Assim, é uma das forças que ajuda a abrir o caminho às reformas.

E. Ambartsumov, com o título "A Geração Desconhecida", escreve em Notícias de Moscou: "Sejamos justos. Nossos jovens estão melhor informados e instruídos que a geração precedente (graças aos sacrifícios desta última, não nos esqueçamos), seu pensamento é mais aberto e livre de dogmas e fetiches. É aí que reside seu imenso potencial criativo. São, parece, mais honestos, ou ao menos preferíveis a esses burocratas do Ministério da Educação que buscam esconder suas responsabilidades. É verdade que nossos jovens não sabem sempre muito bem o que querem, mas em troca sabem muito bem o que não querem — a falsidade, a retórica, a mentira".

Em todo caso, chocam com a imobilidade social e econômica. Numa declaração a Yunost, E. Velijov, vice-presidente da Academia de Ciências, refere-se aos obstáculos para o acesso dos jovens à investigação científica, que está "quantitativamente saturada". "A diminuição do interesse da indústria pela inovação científica tem dado como resultado que certos ramos da ciência foram pouco solicitados. Houve certa desvalorização do prestígio da ciência (...) desvalorização devida à busca da quantidade. Durante certo período a indústria encontrava o que necessitava no Ocidente. Resultado: não se recorria a certos ramos da ciência soviética."

Esperando a classe operária — Contra o que é habitual na linguagem comunista oficial, a classe operária não é invocada neste movimento de reestruturação, este não se faz em seu nome. As camadas modernas que animam a mobilização atual não buscam nela sua legitimidade. A campanha de reativação social é dirigida em grande parte aos operários como uma maneira de sacudir as empresas, os métodos administrativos na economia. Busca-se estimular sua intervenção ante as hierarquias burocráticas que em seu nome haviam confiscado todos os poderes. A eleição direta de diretores e capatazes vai nesse sentido.

Sobre nenhum setor social houve uma ofensiva, uma pressão ideológica tão desestruturadora como sobre a "classe operária", "classe dirigente", função que já tinha antes de desenvolver-se. O partido, os sindicatos e os sovietes exerciam essa função em seu nome. A industrialização voluntarista, em grandes unidades da indústria pesada, não favorecia sua integração gradual no tecido social.

A falta de mecanismos de comunicação e funcionamento horizontal pode conferir à aceleração das reformas um caráter tecnocrático, administrativo, e podem acumular-se conflitos e resistências em terrenos como: a intensificação do trabalho, a supressão de cargos, a produtividade, as exigências de capacidade, o absenteísmo e outras formas de "retenção da força trabalho" para aplicá-la à produção informal. Os próprios"roubos" de materiais são muitas vezes a única forma de ter acesso a artigos e serviços que não existem suficientemente no mercado. Muitas destas deformações se incorporaram à vida de todos os dias como compensação às dificuldades estruturais.

As camadas ligadas ao desenvolvimento tecnológico, que fazem parte da "nova classe operária", desenvolveram sua tomada de consciência na produção e na informação social, muito mais que através de organismos tradicionais da classe operária, com exceção do partido, órgão de poder.

Não esqueçamos que a irrupção do "Solidariedade" na Polônia constitui um fato revelador e foi um dos fatores que acelerou a reflexão e a decisão das reformas na URSS. O acadêmico Smirnov escreve no Pravda que os dirigentes soviéticos precedentes não haviam percebido a tempo "o caráter indispensável das mudanças e o perigo de uma crise social" na URSS. Gorbatchev convida, frente aos operários da fábrica CKD, de Praga, em 10 de abril, a "reter os ensinamentos da crise de 1968, resultado de uma contenção do desenvolvimento do socialismo nos anos que a precederam". E em Praga mesmo recorda que numa viagem precedente, em 1969, os operários de uma fábrica lhe viraram as costas...

Resistências e ceticismo — A principal resistência à reestruturação e à transparência não provém da oposição declarada. "Uma parte resiste ativamente, ainda que sustentando verbalmente o processo de mudança. A outra, mais numerosa, resiste, passivamente. É impossível ignorá-la", diz Tatiana Zalavskaia, economista e socióloga de Novossibirsk, uma das animadoras da reestruturação. Gorbatchev repete, em seus últimos discursos, que "nossos melhores dirigentes ainda estão longe de haver compreendido que seu trabalho vai entrar em uma nova etapa".

Tudo o que podia ser corrigido utilizando métodos administrativos se fez, com resultados positivos: luta contra o alcoolismo, contra o absenteísmo, a intensificação do trabalho, repressão aos roubos, condenações, destituições, processos contra os responsáveis. Mas, segundo os dirigentes comunistas de Moscou, onde estas mudanças têm ido mais longe, as pessoas não notam ainda resultados apreciáveis.

"Tudo o que ouvimos são socos na mesa. Eis aí o que chamam de métodos econômicos", diz um diretor de fábrica. "Se me convocam diante de todas as instâncias imagináveis para censurar-me, repreender, exigir, pensamos com isto estimular a economia?, manipulando alavancas puramente administrativas? Houve-se falar de reestruturação das mentalidades. Fica para quando a das relações humanas?".

Uma sovkhoziana (trabalhadora de fazenda estatal) do Casaquistão que quis aplicar os novos métodos explica ao Trud, órgão dos sindicatos, as razões de seu fracasso: em razão dos métodos de gestão, puramente administrativos, que se formaram durante anos! É difícil mudá-los ao nível do sovkhoz, e mesmo em níveis mais altos.

E. Jarikov, que dirige a cátedra de psicologia da Academia de Economia junto ao Conselho de Ministros, considera que "o sistema atual se ergue como um obstáculo (...) frente à impossibilidade de mudar algo com medidas isoladas, tem-se que mudar o conjunto ". "A força das instruções atrasadas em relação à realidade é tal que ameaça causar um prejuízo à economia muito mais importante que uma empresa que não cumpre o plano. Noventa por cento dos documentos normativos não exercem nenhuma influência positiva sobre a produção." Para que serve a iniciativa, se toda iniciativa choca-se com uma instrução?, pergunta-se o mesmo Jarikov?

O próprio marechal Sokolov, ex-ministro da Defesa, denuncia o "burocratismo" do aparato central do exército, que naufraga sob uma avalanche de papéis e multiplica toda ordem de"verificações" e de"inspeções": com uma ironia amarga que é bastante generalizada, D. Kazutin escreve em Notícias de Moscou: "Se atualmente se julga aqui um funcionário por roubo, não conheço nenhum caso em que alguém seja julgado por burocratismo".

A inércia social, a resistência passiva às mudanças provém em grande parte do pessoal intermediário: funcionários do partido e do Estado, das repúblicas, dos sindicatos, da economia e de centenas de organismos. É o tecido de interesses locais, de laços estabelecidos entre si e com sua base, fatos de cumplicidades, tolerâncias mútuas amparadas pela opacidade, pela impunidade, pelas vantagens da função, das pequenas parcelas de poder. Como combater aí os "métodos administrativos", o imobilismo, pedir-lhes audácia? A reestruturação é aceita. Mas a transparência! A direção direta e secreta! A pluralidade de candidatos!

É o que leva Yakovlev a dizer em seu discurso em Tajiquistão: "Este período foi tão longo que instalou-se uma geração que apresenta características profissionais e humanas deformadas pelo impacto do estancamento". E leva G. Smirnov, no Pravda, a perguntar-se: "Como pôde manter-se a influência dominante da ideologia socialista?"

Fazer participar o povo — Muita gente compartilha estas inquietudes, o que envolve a reestruturação num ambiente de certa descrença. "Um setor reestruturado vale dois não-reestruturados e são muitos os que captaram isto", comenta L. Lijodeev em Notícias de Moscou. Em seu discurso de 19 de fevereiro de 1987 na Letônia, Gorbatchev faz-se eco dessas preocupações: "Formula-se sempre a mesma pergunta: não existe o risco de que tudo se paralise? (...) as pessoas estão ainda inquietas, o que dá substância de reflexão aos responsáveis do partido. Por que esta inquietude, se existe uma política aceita pelo povo, se existe um amplo apoio na população? Evidentemente cada um observa a situação em seu coletivo, em sua aldeia, em sua cidade. Talvez nem todos os nossos responsáveis e dirigentes nos diversos níveis se tenham lançado a grandes passos no caminho das mudanças. É fundamental que não se produza uma ruptura entre o que temos dito, entre nossa política e seus efeitos práticos. Seria uma desgraça (...) tanto é, que se tem acumulado muita decepção na população a este propósito".

"Para fazer avançar realmente a reestruturação — continua Gorbatchev — e para que a tentativa não se limite a uma campanha que fracasse em um ou dois anos — inclusive antes —, deve-se fazer algo essencial: fazer o povo participar nela, fazer dele o principal ator desta reestruturação (...). Como lográ-lo? Só abrindo todas as portas a uma ampla democratização em todas as esferas da vida da sociedade soviética."

Além das proposições mais espetaculares desta política, tais como a eleição direta, secreta e com vários candidatos, está a concepção do indivíduo na sociedade que está evoluindo. Tatiana Zalavskaia expressa algo disto: "Desde os últimos tempos se interpretavam as necessidades humanas como as dos produtos de primeira necessidade, de habitação, etc." O novo enfoque não ignora essas necessidades, "mas coloca, igualmente, em primeiro plano, uma informação sócio-política verdadeira e completa, a democracia política e econômica, o respeito social, uma vida social intensa (...). Entramos não somente no mundo dos computadores, da eletrônica, dos robôs, da informática e das biotecnologías, mas também no desenvolvimento pleno do homem: seu cérebro e seu humanismo".

Uma sociedade que tolhe às pessoas, desde sua infância, as possibilidades de escolher, de optar, que tende a evitar-lhes a contradição, a polêmica, na qual as carreiras estão traçadas de antemão, tem necessidade agora, para modernizar-se, de desenvolver a iniciativa individual, a criatividade, o espírito de inovação, a capacidade de optar, de escolher entre várias alternativas, de julgar, incluindo o direito a errar. A criatividade exige uma revalorização do conhecimento e das capacidades individuais, necessita de animadores, de trabalho em equipe. A compartimentação dos conhecimentos, a especialização extrema devem ceder o passo para a circulação de idéias e a polivalência. "A criatividade passa pela democracia, pela liberdade, pela confrontação de idéias e pela comunicação", diz S. Pisar em Lê Monde , referindo-se ao processo que vive a União Soviética.

Criatividade e democracia. A. Yakovlev também os une:"A criatividade histórica consciente estabelece o problema da direção do processo, incluindo a necessidade de elaborar e enraizar na sociedade um sistema eficaz que permita a retroação. No momento as reações têm essencialmente um caráter espontâneo, com alto custo humano e moral". Os organismos verticais e enrijecidos já não podem ser os canais de intervenção do povo, e sua reestruturação em muitos casos será impossível. A veemência das denuncias do povo, para as quais se abrem a televisão e os jornais, a confrontação com os responsáveis — que também são convocados para responder — indicam a falta de canais normais e a explosividade crescente deste enfrentamento que tende mais a marginalizar que a regenerar os organismos intermediários.

Criatividade, cinema e literatura — A criatividade, a circulação de idéias e informações traz ao primeiro plano a literatura, o cinema, o teatro, a criação artística, as canções, e com isto a disponibilidade dos meios materiais, a televisão, as salas de espetáculo e de exposição, as publicações.

O trabalho é árduo. A "apresentação da realidade na qual os problemas são escondidos", a "informação pintada de cor-de-rosa", "arredondando os ângulos", para utilizar uma vez mais expressões de Gorbatchev, tem provocado esse "desdobramento" , essa "dupla linguagem"que "alterou nossa moral, tem repercutido no estado de espírito, na atitude para com as atividades profissionais" (discurso na Letônia).

"Tomemos o problema da cultura, da política cultural — diz A. Yakovlev —, em nenhum outro terreno talvez tenhamos tido tantos prejuízos dogmáticos como neste. Era com indiferença burocrática que se decidia o que podia ou não ser levado ao conhecimento público através dos livros, apresentações, filmes e espetáculos. Resultado: as restrições artificiais, o círculo fechado em que eram decididas consagrou o monopólio de certos indivíduos, grupos, em detrimento dos outros."

Não é só a política cultural, mas o conteúdo mesmo é questionado: "Nossa literatura nos últimos anos parecia não perceber que na vida se levantavam barreiras hierárquicas, que se propagava no país o espírito burocrático, antidemocrático, que se acumulavam imensas forças criativas do povo que ninguém utilizava", escreve o crítico I. Dedkov.

Obras literárias, pintura não-oficial e filmes proibidos de serem apresentados saem dos arquivos, são publicados, expostos, projetados. As revistas e os cinemas aumentam seu público. As reações são também cortantes: "Penso que o processo tem ido demasiadamente longe: há revistas que buscam causar sensação em seus leitores", disse o novo primeiro-secretário da União dos Escritores em 28 de abril de 1987, ao mesmo tempo em que fala de "uma moda" e de "interesses escusos".

Contudo, o processo parece acelerar-se e precipitam-se forças há muito tempo contidas, reprimidas. Mais próximo da vida cotidiana do que o realismo socialista, mais preocupados com a realidade histórica do que os historiadores oficiais, muitos escritores e cineastas estão abrindo os túmulos nos quais se havia enterrado tanto a realidade histórica quanto a realidade imediata.

Comentando uma novela de Boris Majaiev, Os Mujiques e suas Mulheres, em que aparece a "arbitrariedade fanática" na coletivização forçada de 1929-30, o crítico I. Dedkov escreve: "Se poderia raciocinar desta forma: por que Majaiev recomeça o relato da coletivização quando estamos tão bem ilustrados, principalmente no plano político? Tudo é claro há muito tempo, digo e repito mil vezes, e os que não estão aborrecidos podem ler, por exemplo, o tomo II da História do Campesinato da URSS (Moscou, 1986), onde tudo está definitivamente calculado, equilibrado, resumido, que mais se pode querer"?

Em O Desaparecimento , Yuri Trifonov procura averiguar os mecanismos que levaram os velhos revolucionários a desejarem ser engolidos pelo aparato burocrático ascendente. Por outro lado, o cineasta N. Chatrov, cuja série de filmes Retoques ao Retrato de Lênin havia esperado até agora para serem projetados, acaba de publicar uma obra de teatro: A Paz de Brest-Litovsk. Nela põe em cena Trotski , Bukharin, Zinoviev e outros velhos dirigentes condenados, executados, ignorados pela história oficial. Ao correspondente do La Stampa de Turim, que o entrevista em 25 de março de 1987 sobre esta "reabilitação", Chatrov responde: "Prefiro dizer que voltam a ocupar um lugar legítimo graças a eles mesmos (...). Não se pode expulsar ninguém da história. Não se pode matar nem a idéia nem o conhecimento".

Através deste debate público, desta recuperação de sua memória, da circulação da informação, diversas camadas da população vão se identificando, articulando e estabelecendo uma comunicação horizontal.

Pode este processo ultrapassar o prazo de uma campanha de um ou dois anos? Seguramente se sucederam fases de aceleração e de recuos. Além da vontade política, a decisão virá do lado do desenvolvimento — ou não —, da modernização da indústria, da ciência, da tecnologia, dos problemas novos de uma economia moderna. A ação dissolvente sobre as velhas relações sociais e sobre suas hierarquias continuará se acentuando.

As novas forças poderão também encontrar, através de uma série de reformas, ainda parciais, um quadro mais aceitável — ainda sem ser suficiente — para sua expansão e estabilizar um novo bloco de poder, frente ao perigo de movimentos incontrolados provenientes das profundidades da sociedade ou de uma ameaça exterior esmagadora.

Gorbatchev e a nova equipe contam com o fato de que o socialismo criou uma nova etapa histórica para a expansão das forças produtivas e para uma sociedade mais igualitária. Já é um grande passo que a sociedade soviética possa medir com mais objetividade suas forças e seus limites, suas possibilidades e suas resistências e que circulem as idéias e iniciativas e se estabeleçam canais internacionais de intercâmbio mais solidos.

Trad. Luiz Eduardo P. Barreiro F.º

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1987
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