Resumos
Analisa-se a experiência de ajuste econômico da América Latina nos anos 80 e inicios do anos 90. Os programas de ajuste aplicados pelas instituições financeiras internacionais corrigiram alguns problemas mas criaram novos. A grande maioria dos países apresenta crescimento mais lento e inflação mais elevada do que nos anos 60 e 70. Houve grande aumento na incidência da pobreza e a distribuição de renda se agravou. As evidências estatísticas mostram que a agenda de ajuste defendida pelo chamado "Consenso de Washington" mostrou-se ineficiente do ponto de vista técnico e politicamente inadequada.
This article presents a comprehensive analysis of the Latina American adjustment experience during the eighties and early nineties. The adjustment programs applied by the international financial institutions have solved some problems but created new ones. In the vast majority of countries, economic growth is slower and inflation is higher than in the sixties and seventies. Poverty showed a great increase and the income distribution became worse. An analysis of the statistical evidence showns that the adjustment agenda applied according to the "Washington consensus" is technically inefficient as well as politically inadequate.
DESENVOLVIMENTO SOCIAL
O ajustamento na América Latina: crítica ao modelo de Washington* * Este trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do CEMA (Centro de Análise Macroeconômica/FUNDAP) e concluída em julho de 1993.
The latin American adjustment
Petrônio Portella Filho
Consultor do Centro de Análise Macroeconômica (CEMA/FUNDAP) e assessor do Senado Federal
RESUMO
Analisa-se a experiência de ajuste econômico da América Latina nos anos 80 e inicios do anos 90. Os programas de ajuste aplicados pelas instituições financeiras internacionais corrigiram alguns problemas mas criaram novos. A grande maioria dos países apresenta crescimento mais lento e inflação mais elevada do que nos anos 60 e 70. Houve grande aumento na incidência da pobreza e a distribuição de renda se agravou. As evidências estatísticas mostram que a agenda de ajuste defendida pelo chamado "Consenso de Washington" mostrou-se ineficiente do ponto de vista técnico e politicamente inadequada.
ABSTRACT
This article presents a comprehensive analysis of the Latina American adjustment experience during the eighties and early nineties. The adjustment programs applied by the international financial institutions have solved some problems but created new ones. In the vast majority of countries, economic growth is slower and inflation is higher than in the sixties and seventies. Poverty showed a great increase and the income distribution became worse. An analysis of the statistical evidence showns that the adjustment agenda applied according to the "Washington consensus" is technically inefficient as well as politically inadequate.
Durante as primeiras décadas do pós-Guerra, os países da América Latina, especialmente o Brasil, experimentaram longo período de crescimento sustentado a partir de um modelo econômico intervencionista voltado, entre outras coisas, para a substituição de importações. Embora esse modelo econômico tenha gerado desajustes econômicos graves, como a concentração de renda e o fechamento externo da economia, ele manteve durante mais de trinta anos grandes aumentos da renda per capita e diminuição significativa dos níveis de pobreza da região.
De fato, os números do desempenho econômico da América Latina durante o período de pós-Guerra são impressionantes. O PIB da região cresceu em média 5, 0% ao ano na década de cinqüenta. Durante o período 1960-81, a taxa de crescimento do PIB se manteve em 5, 5% ao ano, o que significou 22 anos de crescimento robusto. Esse ritmo de crescimento esteve, por exemplo, bem acima da média dos países industrializados, cujo PIB cresceu em média 3, 8% ao ano durante o período 1960-81.1 1 A taxa média de crescimento dos anos 50 foi obtida da CEP AL (1966, quadro 1-1, p. 2). As taxas médias do período 1960-81 foram calculadas com base em dados primários obtidos de periódicos da CEPAL e do FMI.
A despeito da má distribuição de renda, essa fase de crescimento acelerado permitiu redução lenta mas substancial na incidência relativa da pobreza. A percentagem de famílias latino-americanas vivendo na pobreza diminuiu de 40% para 35% entre 1970 e 1980. No Brasil, essa percentagem caiu de 49% para 39% entre 1970 e 1979.2 2 CEPAL(1992A, P.45).
Essa fase de prosperidade econômica sofreu, no entanto, brusca interrupção a partir de 1982. Após a chamada crise da dívida externa, muitos países da América Latina foram compelidos a implantar programas de ajustamento e reformas que promoveram mudanças nos modelos econômicos. Essa política de ajustamento foi realizada com base nas doutrinas do chamado "Consenso de Washington".
Esse ensaio procura proporcionar uma visão genérica das conseqüências macroeconômicas dos programas de ajustamento implantados na América Latina. As estatísticas sobre o desempenho recente da região apontam problemas ainda maiores do que os existentes no modelo de substituição de importações. No primeiro triênio dos anos noventa, a maioria dos países da América Latina ainda se apresentava com taxas de crescimento muito inferiores às respectivas médias históricas e enormes pressões sociais. Segundo estimativas da CEPAL, o número de habitantes latino-americanos vivendo na pobreza e na indigência aumentou de 136 milhões (41% da população) em 1980 para aproximadamente 196 milhões (46% da população) em 1990, ao mesmo tempo em que a faixa dos 5% mais ricos não teve reduzida sua renda e até conseguiu aumentá-la em alguns países.3 3 CEPAL (1991b, p. 2) e CEPAL (1992b, p. 4).
O ensaio está dividido em quatro seções. Na primeira seção discutimos brevemente as causas da crise econômico-financeira que engolfou a América Latina em 1982, realçando os equívocos e lacunas do diagnóstico que serviu de base aos programas de ajustamento e às reformas econômicas.
A segunda seção apresenta o ajustamento recessivo dos anos oitenta da teoria à prática. Primeiro apresentamos a agenda de reformas econômicas neoliberais adotadas pelas instituições financeiras internacionais. Na segunda parte apresentamos os resultados empíricos do período 1982-88, a fase mais radical do tutelamento, quando os devedores foram pressionados a cumprir simultaneamente três exigências: realizar um programa de estabilização, liberalizar as economias e pagar a dívida externa in totum.
Na terceira seção fazemos uma análise da recuperação latino-americana. A partir do lançamento do Plano Brady em 1989, observou-se uma diminuição da exação da dívida externa. à medida que os juros internacionais entraram em queda, os países latino-americanos foram recuperando acesso aos empréstimos internacionais. Embora muitos países tenham conseguido estabilizar a economia durante o quadriênio do Plano Brady, a região como um todo continuou se atrasando economicamente em relação ao restante do mundo. As taxas de crescimento da maioria esmagadora dos países ajustados foram muito inferiores às taxas observadas no período anterior ao ajustamento. Aparentemente o padrão de crescimento das economias "ajustadas" se tornou mais lento, mais frágil e mais concentrador de renda do que antes.
Na quarta e última seção apresentamos as conclusões finais. Acreditamos que o modelo de ajustamento adotado pelas instituições financeiras multilaterais é ineficiente do ponto de vista técnico e anacrônico do ponto de vista político. O artigo conclui pela defesa de uma agenda de ajustamento menos dogmática e mais equilibrada para a América Latina.
I. DIAGNÓSTICOS DA CRISE
O diagnóstico da crise econômica que prevaleceu na formulação das políticas de ajustamento atribuiu pouca importância aos choques econômicos e ao problema das dívidas externas. Os programas de ajustamento foram elaborados partindo aparentemente do pressuposto de que a crise da dívida externa se originara basicamente de erros de política econômica cometidos pelos países devedores. As dívidas externas poderiam ser pagas desde que os governos dos países endividados corrigissem as respectivas políticas macroeconômicas e realizassem reformas sob orientação do FMI e do BIRD.
Segundo o Consenso de Washington, as raízes dos problemas latino-americanos estavam na estratégia de desenvolvimento adotada no período de pós-Guerra, baseada no modelo de industrialização via substituição de importações. Esta estratégia teria resultado em um padrão de crescimento introvertido e em más alocações de recursos. O cerne das críticas foi centralizado no papel do Estado, visto como sufocante. Investimentos públicos excessivos teriam provocado escassez na poupança disponível para o setor privado. Empresas públicas assumiram setores que poderiam ter sido ocupados pelo setor privado. A proteção do Estado às empresas nacionais teria reduzido sua competitividade externa, desestimulando as exportações. A América Latina passou a ter pouca moeda estrangeira para financiar seu desenvolvimento.4 4 Uma amostra representativa dessas críticas pode ser encontrada em Balassa et alli (1986.)
Este diagnóstico apresenta lacunas graves. Os doutrinadores de Washington não só esqueceram de atribuir o devido peso aos fatores externos, como fizeram um diagnóstico impreciso dos problemas econômicos locais. Uma revisão menos dogmática dos fatores causais da crise financeira de 1982 teria apontado tanto fatores externos como fatores internos. Hoje parece haver pouca dúvida de que a América Latina foi atingida por violentos choques externos durante os anos setenta e início dos anos oitenta, choques esses que foram amplificados por erros de política econômica dos governos locais.
Salvo raras exceções, os críticos de Washington costumam exagerar nas críticas à industrialização da América Latina, ao mesmo tempo em que deixam de fora as distorções do setor financeiro e a exação da dívida externa. Na verdade, quando ocorreu a crise da dívida externa, a política econômica dos países latinos já não era tão nacionalista ou estatizante como no passado. Muitos projetos industriais contavam com apoio e participação de empresas multinacionais, organismos internacionais e bancos estrangeiros. No Brasil, por exemplo, a industrialização se processava com elevada transnacionalização do capital, algo relativamente distante do modelo nacionalista atacado pelos críticos.
Quando ocorreu a crise da dívida externa, o processo de substituição de importações já havia perdido importância na maioria dos países latino-americanos. Acreditamos que as distorções econômicas que tiveram influência maior na crise estavam relacionadas ao setor financeiro. Ao final dos anos setenta, os países latino-americanos eram, na sua maioria, comercialmente introvertidos e financeiramente extrovertidos.5 5 Para uma análise do modelo de substituição de importações, ver Tavares (1976). As instituições financeiras locais vinham de um sofisticado processo de crescimento e internacionalização que lhes amplificara o poder econômico e a influência política. As políticas de endividamento dos países latino-americanos nem sempre se adequaram tecnicamente às necessidades de financiamento do modelo de industrialização. Embora parte substancial das dívidas externas tenha, de fato, servido ao financiamento de programas de investimentos e gastos públicos, elas tiveram também um importante componente especulativo.
Existem evidências empíricas de que grande parte da dívida externa se originou de brechas nas legislações financeiras, que permitiram a transferência para o exterior de poupança nacional. Embora a fuga de capital não possa ser medida diretamente, ela pode ser estimada a partir das estatísticas do balanço de pagamentos. Existem indícios de fuga de capital quando o setor público contrai empréstimos que não são dirigidos nem ao financiamento de déficits em conta corrente, nem ao aumento das reservas internacionais.6 6 O BIRD define a fuga ou evasão de capital como a soma dos influxos brutos de capital e do déficit em conta corrente, menos o aumento das reservas oficiais de divisas. Os influxos brutos de capital foram definidos como a soma das variações da dívida externa bruta (pública e privada) e dos investimentos estrangeiros diretos líquidos. Ver BIRD (1985, p. 69). Quando isto ocorre, são geradas dívidas especulativas que oneram o setor público sem proporcionar benefícios à maioria da população e sem ampliar a capacidade de pagamento do país devedor.
A Tabela 1 apresenta dados sobre o endividamento dos quatro maiores devedores da América Latina durante o período anterior à crise. Brasil, Argentina, México e Venezuela representavam 77, 8% da dívida externa da região em 1982.7 7 CEPAL (1987b, p. 23). Os dados da Tabela 1 indicam que, nos anos de endividamento acelerado, mais de 60% da dívida externa desses países foram desviados para fuga de capital. ... surpreendente que uma fuga de capital de tal magnitude tenha permanecido praticamente à margem do diagnóstico de Washington.
Além de ter um forte componente improdutivo, as dívidas latino-americanas foram contraídas, em sua maior parte, através de títulos de médio e longo prazos que levavam taxas de juros flutuantes. Essa política de endividamento imprudente tornou os países devedores extremamente vulneráveis às flutuações do ciclo econômico. O caráter instável do processo de endividamento se tornou evidente no início da década de oitenta, quando o Federal Reserve adotou uma política monetária restritiva ao mesmo tempo em que o governo Reagan aumentava os déficits fiscais para financiar uma corrida armamentista. No novo sistema de taxas flutuantes, a elevação dos juros efetuou o prodígio de contrair a oferta de crédito e ao mesmo tempo aumentar o serviço das dívidas e seu tamanho, invertendo por completo o processo clássico de ajustamento. Os países devedores se tornaram reféns de gigantescas dividas externas especulativas que cresciam na proporção inversa de suas exportações e de suas rendas.
O diagnóstico de Washington não só minimizou as distorções associadas ao endividamento externo como atribuiu ao modelo de industrialização e ao setor público a responsabilidade maior pela crise. Na ausência de uma visão crítica do processo de endividamento, os países devedores foram induzidos a pagar as dívidas externas a qualquer preço. Os programas de ajustamento e as reformas econômicas da década de oitenta passaram ao largo das distorções financeiras e sacrificaram pesadamente os setores produtivos dos países tutelados.
Talvez a maior falha do diagnóstico de Washington tenha sido o não reconhecimento da necessidade de reduzir as dívidas externas. Este erro teve, na verdade, um forte viés político-ideológico. A crise financeira de 1982 ameaçava proporcionar grandes prejuízos aos bancos privados internacionais, especialmente aos grandes bancos americanos, que haviam emprestado à América Latina quase 180% de seu capital.8 8 Em junho de 1982 o grupo dos nove maiores bancos americanos tinha emprestado à América Latina 179, 8% de seu capital, enquanto o restante dos bancos americanos tinha emprestado 85, 3%. Ver CEPAL (1990a, p. 43). Como as políticas dos organismos multilaterais são muito influenciadas por pressões do governo americano, o FMI e o BIRD foram induzidos a atuar, ao longo da crise, não só como executores dos programas de ajustamento, mas também (ainda que de forma extra-oficial) como cobradores dos títulos dos bancos privados. Até abril de 1989, o FMI costumava exigir que os países devedores acertassem os juros em atraso com os bancos comerciais antes de dar seu aval a um programa de ajustamento.
Na próxima seção iremos mostrar que o uso político das instituições multilaterais como instrumentos de cobrança da dívida reduziu a viabilidade técnica dos programas de ajustamento. A despeito de os países tutelados passarem a maior parte da década de oitenta sob estrangulamento externo, tanto o FMI como o BIRD pressionavam sistematicamente os governos locais a fechar acordos desvantajosos com os comitês bancários. Somente em 1989, após o lançamento do Plano Brady, o FMI e o BIRD adotaram políticas oficiais de apoio à redução da dívida externa e de seu serviço. O Consenso de Washington demorou quase 7 anos para reconhecer oficialmente a necessidade de reduzir as dívidas externas dos países devedores.
II. O AJUSTAMENTO DOS ANOS OITENTA
A. A Agenda de Washington
O termo "Consenso de Washington" foi usado por John Williamson para descrever o conjunto de propostas econômicas defendidas pelos políticos e tecnocratas residentes na capital americana. Ele definiu o consenso de forma ampla, abrangendo tanto o Washington político, onde residem congressistas e membros da administração federal, como também o Washington tecnocrático das instituições financeiras internacionais e do Federal Reserve Board.9 9 Williamson (1990, p. 9).
Durante a maior parte dos anos oitenta, as recomendações do Consenso de Washington para o ajustamento da América Latina pareciam tomar por base, grosso modo, três premissas:
(i) Os desajustes econômicos resultam sempre de excesso de demanda oriunda dos gastos do setor público;
(ii) A liberalização da economia durante a fase de estabilização não irá criar desequilíbrios econômicos explosivos nem aumentar o fardo do ajustamento;
(iii) As dívidas externas devem ser pagas in totum para incentivar a volta dos empréstimos bancários voluntários.
Os devedores latino-americanos foram encorajados a tentar realizar simultaneamente a estabilização, a liberalização e o pagamento in totum das dívidas. A perseguição simultânea das três metas significou uma trajetória de ajustamento de difícil execução técnica e política. As políticas de ajustamento eram quase sempre drásticas e deveriam apresentar resultados a curto prazo. O país endividado negociava um programa de ajustamento contendo políticas macroeconômicas do FMI e reformas setoriais orientadas pelo BIRD.
Os programas de ajustamento do FMI mudaram pouco desde o início da crise da dívida até os dias de hoje. Eles tentavam e continuam tentando reduzir o déficit do balanço de pagamento via contenção da demanda interna. O peso dos sacrifícios é concentrado no governo e nas estatais. As chamadas "necessidades de financiamento do setor público" devem ser cortadas ao meio, de preferência mediante redução de gastos e não aumento de receitas. Ao mesmo tempo, o governo precisa liberalizar a economia. Os controles de preços precisam ser relaxados ou abolidos (mesmo os de setores oligopolizados) para melhorar a alocação de recursos. Normalmente, o único preço que os técnicos do Fundo julgam necessário controlar é o da mão-de-obra. Na maioria dos programas de ajustamento o arrocho salarial é incluído de forma muito discreta, porém firme, com base na crença de que contenções salariais permitem redução mais rápida da inflação e aumento na competitividade das exportações.10 10 Para uma análise crítica dos programas do FMI, ver Pastor (1987).
Os programas de estabilização do FMI vêm normalmente acompanhados de reformas econômicas de cunho neoliberal, que contam com o apoio técnico e financeiro do BIRD. Embora, dependendo do país tutelado, exista uma certa variância entre os tipos de reforma, todas elas se movem no sentido de desregulamentar a economia, reduzir o tamanho do setor estatal e aumentar a abertura para o exterior. Em um estudo sobre o ajustamento da América Latina, John Williamson listou 10 tipos de políticas e reformas econômicas que foram objeto de consenso entre os doutrinadores de Washington durante os anos oitenta:
(1) Disciplina fiscal;
(2) Reordenamento nas prioridades dos gastos públicos;
(3) Reforma tributária;
(4) Liberalização do setor financeiro (livre determinação das taxas de juros pelo mercado e abolição dos controles de câmbio);
(5) Manutenção de taxas de câmbio competitivas;
(6) Liberalização comercial;
(7) Atração de investimentos diretos estrangeiros;
(8) Privatização de empresas estatais;
(9) Desregulamentação da economia;
(10) Proteção a direitos autorais;
Esta foi, basicamente, a agenda das reformas sugeridas à América Latina e Caribe durante os anos oitenta pelo FMI e pelo BIRD. Segundo avaliação de Williamson, os países da região marcaram grandes progressos na implantação dessas políticas. Dos 21 países pesquisados, 13 tinham implantado reformas completas (Bolívia, Chile, Costa Rica, México, Uruguai. Venezuela, Argentina, Jamaica, Trinidad e Tobago, Paraguai, El Salvador, Equador e Guiana) e 3 haviam realizado reformas parciais (Colômbia, Guatemala e Barbados) antes de 1990.11 11 Williamson (1990, pp. 66-67).
Embora muitas dessas reformas sejam sensatas, a agenda contém algumas lacunas. A listagem não inclui, por exemplo, a prevenção da fuga de capital, o combate ao flagelo da pobreza, a melhoria da distribuição de renda ou quaisquer medidas de repressão aos abusos do poder econômico. Na última seção deste trabalho fazemos uma avaliação crítica dessa agenda.
B. Impacto macroeconômico do ajustamento
A crise financeira internacional teve um efeito misto sobre o ajustamento da América Latina. Se, por um lado, a crise tornou as reformas mais dolorosas, ela foi o principal elemento catalisador da mudança. O súbito racionamento de crédito inviabilizou o modelo de crescimento acelerado com endividamento que vinha sendo seguido por muitos países. Os países devedores tiveram que aceitar o tutelamento estrangeiro e a implantar reformas neoliberais, em alguns casos por absoluta falta de opção. A influência do modelo de Washington, que já era grande no Cone Sul, se espalhou por toda a América Latina durante os anos oitenta.
A fase do tutelamento mais rigoroso se estendeu de 1982 até o fim do governo Ronald Reagan em 1988. Durante este período os credores e as instituições oficiais praticamente se recusaram a discutir propostas de redução das dívidas externas. Os devedores foram mantidos quase sempre sob rédeas curtas. A maior parte da América Latina teve durante o período crescimento negativo da renda per capita e inflação ascendente.
A Tabela 2 apresenta os principais indicadores econômicos da América Latina e Caribe durante o período 1980-88. As políticas de ajustamento do FMI priorizaram o ajustamento do setor externo. A região realizou um draconiano ajustamento da balança comercial, que saltou de um déficit de US$ 1, 3 bilhão em 1980 para um superávit de US$ 31, 5 bilhões em 1983.0 saldo comercial se manteve na média anual de US$ 27 bilhões até 1988. Esses superávits resultaram sobretudo de cortes nas importações. As exportações, cujo valor nominal tinha mais que triplicado durante os anos setenta, cresceram apenas 9, 8% entre 1980 e 1988.
Os vultosos superávits comerciais transformaram os países latino-americanos em exportadores líquidos de capital. O ajustamento externo foi conduzido de forma a maximizar tanto a massa de recursos transferidos quanto a rapidez do processo. As transferências líquidas de recursos se tornaram negativas em US$ 24, 2 bilhões ao ano no período 1982-88, o equivalente a 3, 7% do PIB regional. Esse resultado representou uma inversão brusca em relação ao período anterior. Entre 1974 e 1981, essas transferências tinham registrado um superávit anual médio de US$15, 8 bilhões, o equivalente a 2, 2% do PIB regional. O ajustamento foi, portanto, violentíssimo. Embora a América Latina tenha mantido transferências líquidas negativas durante os anos cinqüenta e sessenta, o impacto representava apenas 0, 5% do PIB regional.12 12 Os dados sobre as transferências líquidas de recursos foram elaborados pela CEPAL com base nas estatísticas de 18 países da América Latina e convertidos em dólares de 1987. Ver CEPAL (1990b, pp. 149-152).
O efeito dessas transferências líquidas ao exterior foi objeto de muita controvérsia na época. Muitos especialistas não reconheciam a gravidade do problema e afirmavam que países como o Brasil poderiam compatibilizar crescimento econômico com elevadas transferências de recursos ao exterior. Do outro lado, Paulo Nogueira Batista Jr., entre outros, alertava que a recuperação do crescimento era incompatível com a manutenção de transferências de recursos ao exterior nos montantes então observados.13 13 Batista (1986, p. 19). A evolução posterior da crise veio a confirmar amplamente os efeitos deletérios das transferências sobre o crescimento. O PIB per capita da região, que crescera 3, 2% ao ano durante a década de setenta, regrediu em média 0, 7% durante o período 1982-88.
Além de lento, o padrão de crescimento se tornou mais concentrador de renda do que o de outrora. Observou-se em quase todos os países diminuição nos níveis de emprego, queda nos salários médios e aumento na percentagem da população economicamente marginalizada. O mercado de trabalho informal se expandiu consideravelmente durante a crise da dívida e, ao final da década de oitenta, estava absorvendo em média 25% da força de trabalho.14 14 CEPAL(1992c, p.71).
O ajustamento provocou uma formidável pressão sobre a capacidade de financiamento do setor público. Em vista do aumento dos custos de rolagem das dívidas e do estreitamento das fontes de crédito, os governos dos países tutelados geravam sistematicamente déficits superiores às suas possibilidades de financiamento. A crescente dificuldade de financiar os déficits públicos provocou, na maioria dos países tutelados, aceleração nas taxas de inflação. O índice de preços ao consumidor agregado da América Latina foi aumentando ano a ano durante praticamente toda a década (o único ano em que houve desaceleração foi 1986, ano de congelamentos de preços) até atingir em 1989 o recorde histórico de 1.205, 0%.
Esses sacrifícios não impediram que a dívida externa bruta crescesse a uma ritmo acelerado durante os anos oitenta. A Tabela 2 mostra que o índice da dívida externa bruta (base: 1980=100) aumentou para 182, 7% em 1988, enquanto o índice das exportações fechou o período em 109, 8% e o do PIB em 110, 8%. Após sete anos de violenta exação financeira, os principais indicadores da dívida externa (Dívida/ Exportações e Dívida/PIB) permaneciam piores do que em 1982. O setor produtivo foi pesadamente sacrificado sem que se corrigisse o problema da hipertrofia da dívida externa. Essa foi talvez a grande distorção do ajustamento latino-americano.
É interessante traçar um paralelo com as crises financeiras tradicionais, como a da década de trinta. As crises tradicionais permitiam que o setor financeiro se ajustasse ao setor real. O súbito aumento das taxas de juros produzia uma desvalorização dos títulos velhos (que levavam taxas de juros fixas). Além disso, ocorriam negociações de redução das dívidas de devedores soberanos superendividados. Os principais credores da época governos estrangeiros e investidores privados em bônus permitiam que os países devedores negociassem a redução de seus encargos financeiros. Os bancos de investimentos que emitiam os bônus e que eram apenas intermediários entre a massa de investidores anônimos e os devedores do Terceiro Mundo tampouco se opunham à redução do valor contábil dos títulos, que se ajustavam à capacidade de pagamento do devedor. As desvalorizações das dívidas diminuíam o fardo do ajustamento e permitiam uma recuperação mais rápida dos devedores.
III. PERSPECTIVAS DOS ANOS NOVENTA
A. Panorama econômico da recuperação
Só em 1989, após o término do governo Ronald Reagan, começaram a surgir os primeiros sinais de mudança na política de tutelamento dos devedores. No primeiro semestre do ano foi lançado o Plano Brady, uma iniciativa do governo George Bush que, a despeito de suas limitações, representou o reconhecimento pelo governo americano da necessidade de reduzir os encargos financeiros dos países severamente endividados de renda média. Em maio de 1989 o FMI abandonou parcialmente as funções extra-oficiais de cobrador da dívida dos bancos comerciais e adotou uma posição mais equidistante nas negociações entre devedores e credores.15 15 Em maio de 1989 o FMI anunciou uma mudança em sua política de concessão de financiamento e permitiu que, durante a vigência do Plano Brady, vários países superendividados celebrassem acordos com o Fundo enquanto mantinham grandes atrasos nos pagamentos aos bancos comerciais. Alguns países, no entanto, continuaram sendo discriminados. Ver Portella (1989, pp. 8-9).
Embora a contribuição do Plano Brady não seja desprezível, o estrangulamento financeiro da América Latina foi levantado principalmente em decorrência de um fator exógeno a queda das taxas de juros internacionais. A LIBOR semestral para empréstimos em dólar foi diminuindo gradualmente no início da nova década: 8, 32% em 1990, 6, 08% em 1991 e 3, 93% em 1992 . Essa mudança proporcionou redução substancial do serviço da dívida externa, ao mesmo tempo em que permitiu aos países latinos maior acesso ao crédito internacional.
A Tabela 3 apresenta os principais indicadores econômicos da América Latina e Caribe durante 1989-9216 16 BACEN(1992, p. 112). , o período de vigência do Plano Brady. Os números indicam uma recuperação gradual do estrangulamento financeiro. O aumento da entrada de capitais e a diminuição das taxas de juros internacionais fizeram com que as transferências líquidas de recursos passassem de um déficit de US$ 28, 0 bilhões em 1989 para um superávit de US$ 27, 4 bilhões em 1992. O crescimento da dívida externa se tomou mais lento e passou a ser superado pelas exportações.
A partir de 1991, observou-se uma recuperação nas taxas de crescimento da maioria dos países da América Latina. Após três anos de diminuição do PIB per capita, foram registrados aumentos modestos em 1991 e 1992. Mas, como alguns países importantes ainda permaneceram em recessão, a taxa de crescimento média da região continuou baixíssima. Tão baixa que, ao final de 1992, o índice do PIB per capita representava apenas 92, 7% do nível registrado em 1980.
O índice de preços ao consumidor da América Latina, que vinha aumentando ano a ano praticamente desde 1981, entrou em ritmo descendente durante o período 1990-91, depois sofreu nova aceleração em 1992, aumentando para 410, 7%. A taxa de inflação média dos primeiros três anos da década ficou em 598% ao ano. Após onze anos de ajustamento econômico, a América Latina ainda não apresentava, na média, resultados satisfatórios quanto à estabilização econômica.
Por outro lado, as estatísticas globais da América Latina descrevem tão-somente o comportamento médio das economias nacionais que formam a região. Os números agregados ocultam as enormes disparidades entre os países individuais. A Tabela 4 apresenta as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos 20 principais países da região (a única exceção é Cuba) durante o período de vigência do Plano Brady. Cuba foi excluída da relação porque adota uma contabilidade macroeconômica diferente que não inclui o PIB. Entre os países médios e grandes, apenas o Brasil atravessou o quadriênio do Plano Brady na contramão da recuperação econômica. Enquanto o PIB regional cresceu em média 1, 8% ao ano, o PIB brasileiro diminuiu em média 0, 4% ao ano. Ao final de 1992, a economia brasileira era um dos casos raros de inflação de quatro dígitos. Como o Brasil responde por aproximadamente um terço do PIB regional, sua crise interna tem ofuscado parcialmente os progressos dos demais países da região.
Excluindo o Brasil das estatísticas, a CEPAL obteve taxas bem mais elevadas para o PIB da América Latina e Caribe: 3% em 1990, 5% em 1991 e 4, 3% em 1992. A inflação média global (excluindo o Brasil) se situou em 49% em 1991 e 22% em 199217 17 CEPAL(1992d, pp.2-3). . Contudo, não há como ignorar o fato de que o desempenho da maioria dos países "ajustados" é muito inferior às taxas médias históricas do pós-Guerra. A Tabela 4 mostra que a maioria esmagadora dos países cresce em ritmo muito mais lento do que no período 1965-80. Os casos de crescimento robusto sustentado tornaram-se raros. Entre os 20 países relacionados na Tabela 4, apenas o Chile (um país que representa menos de 3% do PIB regional) apresentou taxa média de crescimento acima de 4, 5% ao ano durante o período do Plano Brady. Os 19 países restantes apresentaram taxas de crescimento médias em torno de 1, 8% ao ano, menos de um terço da taxa média de longo prazo observada no período 1965-80. O México, país freqüentemente apresentado como uma vitrina do ajustamento bem-sucedido, cresceu apenas 3, 5% ao ano em média, um desempenho muito aquém dos 6, 5% ao ano observados no período anterior à crise.
A Tabela 5 apresenta as taxas de inflação dos 20 países durante o período do Plano Brady. Embora distantes do quadro superinflacionário do final dos anos oitenta, as taxas de inflação médias do período 1989-92 ainda são muito superiores às taxas médias do período anterior ao tutelamento. Neste ponto é importante fazer uma digressão para lembrar que, antes das duas crises do petróleo, a inflação da América Latina não era tão elevada. A elevação anual média do índice de Preços ao Consumidor foi de 17, 7% durante a década de sessenta e de 18, 6% durante o primeiro quadriênio dos anos setenta.18 18 CEPAL (1990b, quadro 2, p. 148). Até 1973 os casos de inflação de três ou mais dígitos estavam praticamente restritos a Chile e Argentina.19 19 Excluindo Chile e Argentina, a inflação da América Latina era relativamente baixa antes da crise do petróleo: 10, 3% em 1970, 10, 4% em 1971 e 11, 2% em 1972. Ver CEPAL (1978, p. 12). A Tabela 5 mostra que, durante o período 1965-80, apesar dos choques externos, a inflação média foi de 31, 4% ao ano, uma taxa que chega a ser baixa comparada com a taxa média de 749, 9% registrados durante o quadriênio do Plano Brady. Embora muitos países tenham conseguido reduzir as taxas de inflação nos últimos anos, o fenômeno se deu à custa de grande valorização cambial20 20 No início de 1992, a valorização do câmbio era um fenômeno relativamente generalizado na América Latina. Ver Calvo et alli (1992, pp. 5-7, especialmente os gráficos Chart 3 e Chart 4). , uma situação de difícil sustentação.
A principal conclusão que se pode tirar da Tabela 5 é que, em plena vigência do modelo "inflacionário" de substituição de importações, Brasil, México, Argentina, Venezuela, Uruguai, Colômbia, Paraguai, Equador, Peru, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, Nicarágua e República Dominicana exibiam índices médios de inflação muito inferiores aos do período do Plano Brady. Apenas três países apresentaram comportamento inverso: Chile, Panamá e Trinidad e Tobago. A Bolívia manteve praticamente as mesmas taxas de inflação.
O baixo desempenho macroeconômico da maioria dos países da América Latina e Caribe se deve em grande parte às políticas de ajustamento executadas pelos credores. Mostramos na seção III que, dos 20 países relacionados na Tabela 4 e na Tabela 5, a maioria implantou, segundo a orientação do Consenso de Washington, reformas econômicas completas (13 países) ou parciais (2 países) durante os anos oitenta. Mais tarde surgiram reformadores tardios, como Brasil e Peru, países onde a resistência política se mostrou muito severa. Em praticamente todos os países da América Latina e Caribe, mesmo os mais resistentes ao tutelamento, observou-se grande encolhimento do setor público durante a crise econômica, um fator que, a julgar pelo doutrinário neoliberal, deveria se fazer acompanhar de aumentos na eficiência da economia.
B. Perspectivas do pós-ajustamento
Em seu World Development Report 1991, o Banco Mundial projetou para a América Latina e Caribe uma taxa de crescimento do PIB per capita variando entre 1, 3 e 2, 0% ao ano durante a década de noventa. Levando em conta os mesmos cenários, foi projetado para o conjunto dos países em desenvolvimento uma taxa entre 2, 2 e 2, 9%. No caso dos países industrializados, a taxa foi estimada entre 1, 8 e 2, 5 %21 21 BIRD(1991a, p.3). . Essas projeções são importantes porque representam o reconhecimento por parte do Banco Mundial, instituição co-autora dos programas de modernização econômica, de que a América Latina ainda apresenta um potencial de crescimento muito inferior à média dos países subdesenvolvidos. A serem confirmados os prognóstico do BIRD, a região deve permanecer mais uma década se atrasando em relação ao restante do mundo.
Aparentemente, a crise da dívida externa e o "ajustamento econômico" que a ela se seguiu tiveram um prolongado efeito deletério sobre o potencial de crescimento da América Latina. Por enquanto os prognósticos do BIRD estão se mostrando até otimistas: o PIB per capita da Região cresceu apenas 0, 2% ao ano durante o primeiro triênio dos anos 90.
Embora o retomo dos empréstimos internacionais tenha dado vazão a muita euforia, ele aconteceu com grande atraso (em comparação com as crises anteriores) e está tendo um impacto modesto sobre o nível de investimento da região. A CEPAL estima em apenas 16, 4% o coeficiente regional de formação bruta de capital fixo sobre o PIB em 1991. A média do período 1989-91 ficou em apenas 16%, um nível muito distante dos 23% registrados em 1979-81, período que antecedeu a crise financeira. 22 22 CEPAL (1992c, p. 38 e p. 46).
Existem dois motivos para o baixo aproveitamento dos empréstimos. Em primeiro lugar, grande parte dos fluxos de capitais são de natureza volátil ou especulativa, e não representam investimentos novos. Em segundo lugar, ainda não se verificou na maioria dos países uma recuperação do financiamento externo do setor público. As transferências financeiras líquidas referente à dívida sob responsabilidade do setor público permaneceram fortemente negativas na América Latina e Caribe durante o quadriênio do Plano Brady: -17, 6 bilhões em 1989, -11, 4 bilhões em 1990, -17, 5 bilhões em 1991 e -12, 8 bilhões em 1992.23 23 Os dados referentes a 1992 são apenas projeções. Ver BIRD (1992b, volume 1, p. 178). Os governos ainda permanecem, em sua grande maioria, constrangidos pelo fardo das respectivas dívidas externas com os bancos comerciais, sem condições de financiar o crescimento econômico. Pode-se dizer que, embora os fluxos de capitais tenham proporcionado um grande alívio na restrição cambial, ainda não se verificou uma recuperação equivalente na restrição fiscal.
O problema da diminuição do crescimento, apesar de sério, não parece ser o maior dos desafios de política econômica enfrentados pelos países "ajustados" da região. A década de oitenta foi marcada por um processo de marginalização econômica que agravou a distribuição de renda de países cujos níveis de desigualdade já estavam entre os piores do mundo. Ao final de 1992, os salários mínimos reais de países importantes como Brasil, Argentina, México, Equador, Peru e Uruguai ainda permaneciam muito distantes dos níveis registrados em 1980.24 24 A CEP AL elaborou estimativas cobrindo 11 países. Apenas três, Colômbia, Costa Rica e Paraguai, registraram aumentos nos salários mínimos reais (de 3, 2% , 11, 8% e 15, 0% respectivamente) entre 1980 e 1992. Os países mais importantes, Brasil, Argentina e México registraram reduções superiores a 40%. CEPAL (1992d, p. 47). O número de habitantes da América Latina vivendo na pobreza e na indigência aumentou de 136 milhões (41% da população) em 1980 para 195, 9 milhões (46% da população) em 1990.25 25 CEPAL (1991b, p.2) e CEPAL (1992b, p. 4).
O padrão de crescimento dos anos noventa, por enquanto, não apresenta sinais de estar revertendo este processo. Na maioria dos países, os salários sofrem profunda deterioração durante o ajustamento, depois apresentam crescimento menos que proporcional durante as fases expansivas. Tomando os casos de Chile e Colômbia os dois países de melhor desempenho no período 1987-90 verifica-se que os salários médios não acompanharam o ritmo do crescimento da renda per capita. Durante esse quadriênio, os produtos per capita de Chile e Colômbia cresceram a taxas anuais médias de 4, 0% e 2, 3% respectivamente. Enquanto isto, as remunerações salariais médias cresceram apenas 2, 5% ao ano no Chile e diminuíram 0, 9% ao ano na Colômbia.26 26 CEPAL (1992b, p. 15).
O ajustamento neoliberal deixou como seqüela um enfraquecimento dos governos locais, que tiveram diminuída a capacidade de executar política econômica, seja desenvolvimentista, seja antiinflacionária. A estabilização da maioria dos países parece se assentar em bases mais frágeis do que nas décadas de sessenta e setenta. Ao final de 1992, os programas de estabilização do México e da Argentina, entre outros, estavam se fazendo acompanhar de forte apreciação das taxas de câmbio. A sobrevalorização do câmbio destruiu os superávits comerciais da maior parte dos países. A Tabela 2 mostra que a balança comercial da região passou de um superávit de US$ 27, 4 bilhões em 1990 para um déficit de US$ 5, 9 bilhões em 1992. Esses déficits podem no futuro exercer pressão sobre o balanço de pagamentos. E, como muitos países adotaram medidas de liberalização financeira e cambial (conforme a agenda do Consenso de Washington), as economias estão mais vulneráveis às marés do capital financeiro internacional.
C. O novo padrão de endividamento
Embora as políticas de liberalização financeira e cambial estejam por enquanto facilitando a atração de capitais, é importante lembrar que, no hemisfério Sul, elas se tomam insustentáveis durante os choques externos. Na iminência de um choque externo, as expectativas dos agentes econômicos se direcionam para a desvalorização acelerada da moeda. Se o país não tem controles de capital, as grandes empresas e os grandes poupa-dores passam a trocar ativos em moeda local por aplicações em dólar no exterior, na expectativa de auferirem lucros com a desvalorização cambial. A maré especulativa obriga o banco central local a vender as reservas em dólar para tentar sustentar a taxa de câmbio. Ao final do processo, os especuladores conseguem transferir suas poupanças para o exterior, enquanto o governo é forçado a desvalorizar a moeda.
Casos deste tipo foram comuns na história recente da América Latina. Vimos na seção I que, antes da crise de 1982, ocorreram fugas de capital maciças nos países que liberalizaram os mercados financeiros. Esse processo de fuga de capital foi altamente nocivo às economias locais porque além de envolver endividamento acelerado e perda de poupança doméstica, teve efeito devastador sobre as finanças públicas. Os governos tiveram que se endividar para financiar a fuga de capital, que significava a evasão de riqueza taxável. E depois, quando ocorreram as desvalorizações cambiais, o peso relativo das dívidas públicas aumentou em igual proporção.27 27 Ver Dornbusch (1987, pp. 147-148).
Existem evidências de que a América Latina está iniciando novo ciclo de endividamento sem haver corrigido as distorções herdadas do ciclo anterior. Embora a atitude predominante em relação às recentes entradas de capitais seja de otimismo, alguns pesquisadores tem manifestado preocupações. Recente estudo de técnicos do FMI apresenta uma análise realista dos efeitos desses fluxos. Os autores defendem a hipótese de que os fluxos atendem mais a um padrão regional do que ao comportamento dos países individuais. Estaria ocorrendo no iníco dos anos noventa um choque externo semelhante ao que ocorreu nos anos setenta, com a desvantagem de que o endividamento recente apresenta uma vulnerabilidade maior. Os autores temem que possa se repetir a má experiência de 1982, quando o financiamento externo sofreu reversão brusca.28 28 Calvo et alli (1992, p. 15 e p. 20).
De fato, os indicadores da dívida externa no início dos anos noventa não melhoraram o suficiente para justificar grandes aumentos no endividamento. A Tabela 3 mostra que entre 1980 e 1992 o índice da dívida externa bruta (base 1980=100) cresceu para 195, 7%, enquanto o índice das exportações aumentou para 137, 1% e o índice do PIB aumentou apenas para 118, 8%.
É importante não confundir o recente acesso dos países devedores ao mercado internacional com a solução do problema da dívida externa. Até o final de 1992 ainda não tinha se verificado o retorno dos empréstimos bancários voluntários.29 29 "Las entradas de capitales registradas en 1992 continuaron siendo essencialmente de fuentes privadas no bancarias y consistieron en inversiones de variada índole. Los flujos más importantes correspondieron a colocaciones financieras y créditos de corto plazo." CEPAL (1992d, p.4). Vimos na seção II que a principal justificativa para a rigorosa cobrança da dívida externa estava na expectativa da volta dos empréstimos de longo prazo dos bancos comerciais. No Economic Report of the President de 1984, o governo americano tentou apresentar a retração dos bancos como um fenômeno temporário.30 30 Ver United States Government (1984, pp 72-78). Os países que fossem bons pagadores seriam recompensados, no futuro próximo, com novos empréstimos. Essa posição foi eloqüentemente apoiada por vários especialistas, entre os quais William Cline, que apresentou trabalho econométrico para demonstrar que o retorno dos empréstimos voluntários se daria, na hipótese mais pessimista, no biênio 1985-86.31 31 Cbne (1984, pp. 100-103).
No entanto, onze anos se passaram e o que se observou foi aumento ano a ano da retração dos bancos comerciais. Mesmo em 1992, ano em que a América Latina foi beneficiada por uma onda eufórica de capitais internacionais, os bancos comerciais se mantiveram irredutíveis na recusa em oferecer empréstimos voluntários ou em refinanciar a conta de juros das dívidas velhas. Na verdade, a grande limitação da atual reentrada dos países latino-americanos está no fato de que as dívidas bancárias públicas permanecem um peso morto, sem perspectiva de rolagem, subtraindo recursos fiscais dos orçamentos governamentais. O Plano Brady permitiu que as dívidas bancárias de alguns países fossem securitizadas com baixo desconto, mas não propiciou uma reativação da oferta de empréstimos de longo prazo. O comportamento dos bancos comerciais veio confirmar parecer técnico divulgado em minha tese doutorai, defendida em 1987, de que os bancos comerciais haviam perdido o interesse pelos países latino-americanos.32 32 poitella(1988, pp. 141-142).
Uma fonte alternativa de financiamento externo da América Latina estaria nos investimentos estrangeiros. As transferências líquidas dos investimentos (entradas líquidas de investimentos menos remessas de lucros) para os países em desenvolvimento foram negativas ou marginalmente positivas entre 1965 e 1986, mas aumentaram muito a partir de 1987. Embora esta fonte de capital seja freqüentemente citada como uma possível compensação para o estrangulamento financeiro dos países endividados, o Banco Mundial adverte para o fato de que à medida que os novos investimentos gerarem lucros, as transferências líquidas dos investimentos podem e devem tornar-se novamente negativas. O principal benefício de longo prazo dos investimentos estrangeiros estaria na transferência de tecnologia e capacidade gerencial, e não tanto na oferta de financiamento externo.33 33 BIRD (1992b, p. 20).
Como conclusão desta seção, podemos dizer que, no início de 1993, a recuperação da América Latina ainda não apresentava sinais do retorno à fase de crescimento robusto com inflação moderada do período 1950-80. Na ausência de mudanças drásticas, a região deve permanecer por mais uma década se atrasando economicamente em relação ao restante do mundo. O recente acesso ao crédito internacional não eliminou a restrição fiscal que pesa sobre muitos países nem assegurou, por enquanto, fontes amplas de financiamento de longo prazo. No caso de alguns países importantes, a estabilização e o crescimento recente estão se fazendo acompanhar de desequilíbrios graves, que levantam dúvidas preocupantes sobre o fôlego da retomada.
IV. OBSERVAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES
Os maus resultados dos programas de ajustamento da América Latina tornam importante a rediscussão do modelo de Washington. Por que o ajustamento foi tão difícil e tão sacrificado? Por que as perspectivas ex-post são tão medíocres? Esta seção está dividida em duas partes. Na primeira parte fazemos observações gerais sobre os erros e acertos do ajustamento latino-americano, ressaltando os excessos causados pelo sectarismo ideológico. Na segunda e última parte apresentamos sugestões para uma abordagem mais justa e eficiente para o problema.
A. Erros e acertos do ajustamento neoliberal
Existem erros e acertos no diagnóstico do Consenso de Washington sobre a América Latina. Não resta dúvida de que em grande parte os problemas econômicos da região decorreram do modelo de desenvolvimento e de erros de política econômica. A substituição de importações foi, de fato, uma estratégia de desenvolvimento desequilibrada. Ela contribuiu para que a economia acumulasse distorções como o fechamento do mercado interno e a deterioração das contas do setor público. Durante os anos do pós-Guerra, os subsídios a investimentos industriais representaram uma fonte de pressão sobre o orçamento público. A proteção comercial excessiva desincentivou a modernização de alguns setores34 34 As deficiências do modelo de substituição de importações já eram do conhecimento de alguns de seus defensores. Ver Tavares (1976, pp. 53-58). . Não se pode negar que um padrão de industrialização orientado para as exportações teria sido mais equilibrado e mais eficiente.
Por outro lado, são muitas as deficiências e inadequações do modelo de ajustamento de Washington. Além de muito desequilibrado do ponto de vista social, ele toma por base um diagnóstico exageradamente dogmático em relação ao papel do Estado e do mercado. Os programas de ajustamento e as reformas econômicas realizadas durante a era Ronald Reagan denotavam uma patente desconfiança em relação à atuação governamental, como se a liberdade dos mercados tivesse que se sustentar no desmonte do aparato regulador estatal.
Segundo se deduz das propostas do Consenso de Washington, quase todas as intervenções do Estado na economia são desnecessárias ou prejudiciais. Daí a desregulamentação e a desestatização nunca poderem ser problemáticas. Em princípio, o encolhimento do setor produtivo estatal e dos financiamentos governamentais sempre resultarão em crescimento compensatório do setor privado. A desregulamentação da economia e a liberalização do mercado financeiro sempre tornarão a economia mais eficiente e mais equilibrada.
Não foi isto o que se viu na América Latina. Os pesados custos econômicos e sociais das experiências de ajustamento mostraram que a relação entre o mercado e o Estado nem sempre é antagônica. No mundo real os mercados não operam só através da mão invisível. Eles necessitam também de um padrão monetário estável, de uma infra-estrutura de leis e regulamentos e de uma autoridade central que administre os conflitos de interesse entre agentes econômicos. Esses são requisitos que só o Estado pode fornecer com eficiência. As experiências econômicas radicais da era Reagan mostraram, entre outras coisas, que o enfraquecimento do Estado durante uma crise econômica pode levar à hiperinflação, que significa a completa desorganização do mercado.
O desmonte dos aparatos de intervenção estatal foi realizado, na maioria dos casos, tomando por base um enfoque genérico que não levava em conta as peculiaridades locais. Na maioria dos países latino-americanos, os cortes nos investimentos públicos e as demissões de funcionários não foram conduzidas de acordo com um programa de longo prazo de reforma do Estado. A abordagem do FMI foi quase sempre de curto prazo. A regra utilizada na elaboração dos programas de ajustamento parece ter sido a de obter resultados rápidos em termos de fluxos de caixa e minimizar os conflitos políticos. Isto fez com que os investimentos públicos fossem desproporcionalmente afetados.
A redução dos investimentos públicos, ao contrário do que os conselheiros de Washington asseguravam, raramente se fez acompanhar de aumentos compensatórios nos investimentos privados. Quase todos os países tutelados sofreram quedas acentuadas nos níveis de investimento privado, o que provocou redução brusca da taxa de crescimento do PIB e das exportações. As exportações de bens da América Latina, que haviam mais que triplicado durante os anos setenta, cresceram apenas 20, 8% durante os anos oitenta apesar das maxidesvalorizações cambiais. Na virada da década de noventa, o único caso relevante de estabilização com aceleração do crescimento foi observado no Chile, país onde os investimentos públicos aumentaram substancialmente durante a fase de ajustamento.35 35 Ver Frenkel et alli (1990, p. 26).
Embora a desregulamentação da economia seja um tipo de política recomendável a alguns países, ela foi adotada na maioria dos casos de forma apressada e radical. A despeito dos altos riscos, a maioria dos programas de ajustamento propunham a realização simultânea do ajustamento econômico e das reformas liberalizantes. O BIRD defende a tese de que as reformas aceleradas são mais recomendáveis porque, entre outras coisas, minimizam a resistência política:
"In general, the analytical case for speed is strong. Often erring on the side of speed appears to be best because swift actions bring the benefits of reform more quickly. Speed also makes sense if the political opportunity for reform is unlikely to last. Gradualism may not be feasible for economies in acute crisis or for governments with limited credibility."36 36 BIRD (1991a, p. 117).
Na prática, a liberalização econômica acelerada se revelou tecnicamente difícil e gerou impasses políticos em vários países. Na maioria dos casos, a exigência da desregulamentação econômica tornou mais pesado o fardo do ajustamento. Países que possuíam desequilíbrios graves de balanço de pagamentos foram pressionados a remover os controles de importações e ao mesmo tempo gerar superávits comerciais gigantescos. Países que já estavam sofrendo fuga de capital foram encorajados a manter relaxados os controles de câmbio. Em nome da liberdade do mercado foram implantadas políticas econômicas de alto risco e de baixa racionalidade.
Além dos erros de diagnóstico e dos problemas gerados pelo extremismo reformador, os críticos do Consenso de Washington costumam apresentar uma série de inconsistências e lacunas em seu modelo de ajustamento. A agenda de Washington dos anos oitenta atribuiu, por exemplo, pouca ou nenhuma importância a tópicos fundamentais como a questão da distribuição de renda, o problema da fuga de capital, a redução do fardo da dívida externa e a viabilidade política das reformas econômicas. As numerosas experiências fracassadas e os custos sociais das experiências bem-sucedidas tornam necessária a discussão de uma abordagem mais equilibrada e mais humana para o ajustamento econômico latino-americano.
B. Em defesa de uma nova agenda
Acreditamos que o problema do ajustamento econômico deva ser equacionado em dois níveis. Há um problema técnico que trata da correção dos desequilíbrios no balanço de pagamentos e do equilíbrio do orçamento do setor público. E existe um problema político que está na negociação do apoio necessário à execução de um programa de ajustamento de longo prazo. Acreditamos que o modelo de Washington é ineficiente na parte técnica e anacrônico na parte política. Nesta seção apresentamos sugestões para uma abordagem mais equilibrada para o problema do ajustamento latino-americano.
B.1 A questão da negociação política
As reformas econômicas defendido pelo Consenso de Washington tomam por base um modelo econômico diferente do que se pratica hoje nos países desenvolvidos. Elas não incluem, por exemplo, propostas de organização de sistemas de bem-estar social, como os do Primeiro Mundo, que sirvam para arrefecer os conflitos de classe. Embora os Estados Unidos tenham há muito tempo legislações reprimindo práticas oligopolistas e defendendo os direitos dos consumidores, o BIRD e o FMI continuam se espelhando no liberalismo do século passado. O ajustamento do Consenso de Washington tenta basicamente implantar no Terceiro Mundo uma proposta de modernização incompleta que não incorpora os progressos sociais do século XX.
O típico programa do FMI impõe grandes sacrifícios aos países tutelados e não distribui o fardo do ajustamento de forma equilibrada. As evidências empíricas indicam que as classes assalariadas são afetadas de forma desproporcional. As fases de ajustamento estão estatisticamente relacionadas com diminuições da parcela da renda apropriada pelos salários.37 37 Manuel Pastor realizou um trabalho empírico verificando os resultados dos programas de ajustamento do FMI em 18 países latino-americanos. Dentre os efeitos macroeconômicos observados, a diminuição da parcela da renda apropriada pelos salários obteve a mais alta significancia estatística. Ver Pastor (1987, p. 91). Devido aos efeitos redistributivos negativos, os programas de austeridade tendem a agravar a concentração de renda dos países devedores e, portanto, são altamente impopulares.
A aplicação de um programa de ajustamento com tais características requer, na prática, não necessariamente um pacto social e sim repressão política a sindicatos e a setores representativos das classes médias. A implantação dos programas tende a ser relativamente fácil nos países que possuem regimes políticos arcaicos, como o Chile de Pinochet e o México do PRI. Nos países democráticos o ajustamento pode representar um dilema político. Os governos que se mostram dispostos a aplicar na íntegra a receita do FMI dificilmente conseguem a reeleição.
As inadequações políticas começam pelo sistema de negociação. Os programas de ajustamento são normalmente negociados a portas fechadas entre técnicos do FMI e representantes do governo federal. Os protocolos de negociação raramente são divulgados na íntegra ou submetidos à votação do respectivo congresso. Como as metas de desempenho envolvem não só variáveis controladas pelo setor público, como também variáveis que dependem do comportamento de terceiros (como, por exemplo, política salarial, superávit comercial, metas de inflação, etc), seria aconselhável que elas fossem discutidas por todas as partes envolvidas, como congressistas, sindicatos, instituições financeiras, empresas exportadoras, etc.
Em termos ideais, os programas de ajustamento deveriam tomar por base uma agenda de pacto social em que os sacrifícios fossem divididos entre todos os setores da economia. Os progressos na estabilização econômica da América Latina foram lentos devido em parte a uma resistência muito grande das instituições internacionais à adoção de políticas de renda. Em vez de insistir no arrocho salarial, o FMI deveria propor a adoção de políticas de renda que removam a inércia inflacionaria. é importante que o fardo da estabilização seja suportado por todos os agentes econômicos.38 38 Dornbusch acusa o FMI de malpractice por levar quase uma década para aceitar o conceito de inflação inercial e concordar com a necessidade de utilizar políticas de renda nos programas de estabilização. Segundo Dornbusch, "sem orçamento equilibrado uma tentativa de estabilização não se sustenta; sem política de rendas ela talvez nem comece.". Citado em Williamson (1990, p. 71).
A questão do papel do Estado na economia não deveria ser objeto de uma cruzada dogmática por parte das instituições internacionais. Ele deveria ser livremente definido pelos habitantes do país tutelado de acordo com as características sócio-econômicas nacionais. Em termos ideais, o grau de estatização de cada economia deveria se adequar ao respectivo projeto nacional de desenvolvimento.
Talvez a dificuldade maior do ajustamento de países democráticos como o Brasil esteja na alternância de políticas ortodoxas e políticas populistas. Os elevados custos sociais das experiências de ajustamento ortodoxas incentivam os governantes a abandoná-las em favor de políticas populistas que aliviam o arrocho salarial à custa de novos desequilíbrios na balança de pagamentos.39 39 Jeffrey Sachs acredita que as políticas populistas da América Latina, embora tecnicamente incorretas, são politicamente legítimas porque refletem situações de radicalização política decorrentes da má distribuição da renda e da marginalização de grandes parcelas da população. Ver Sachs (1990). Acreditamos que esta alternância de políticas poderia ter sido evitada por um modelo de ajustamento politicamente negociado. Na medida em que os programas de ajustamento se tornassem menos drásticos, haveria uma diminuição da resistência política. E a estabilização poderia finalmente servir de base à elaboração de projetos econômicos nacionais de longo prazo.
B.2 As vantagens do ajustamento gradual
As teses do Consenso de Washington sobre ajustamento radical com aplicação simultânea de liberalização econômica têm sido amplamente contestadas no meio científico. Os críticos alegam que este tipo de ajustamento carece de fundamentação técnica e possui, a nível empírico, um retrospecto altamente negativo.
Recente trabalho do CEDES aponta lacunas teóricas no modelo de ajustamento de Washington.40 40 Frenkel et alli (1990, pp.13-16). Os autores observam que existem problemas operacionais de ajustamento que não são sequer abordados como, por exemplo, a seqüência certa das políticas econômicas, ou a forma como as reformas estruturais devem ser feitas. Como a teoria do livre mercado oferece pouca orientação sobre a seqüência correta da remoção das intervenções do governo no mercado, não se pode a priori excluir a hipótese de que a dinâmica do processo de liberalização seja explosiva. Eles lembram que erros de seqüência na implementação das políticas de liberalização financeira e comercial implantadas em países do Cone Sul durante os anos setenta tiveram custos de bilhões de dólares em termos de aumento de endividamento externo.
Jeffrey Sachs observa que a liberalização econômica é um tipo de política que requer prazo longo e cenário favorável para apresentar resultados. Por se tratar de uma política de difícil implantação, ele sugere que a liberalização econômica deva ser realizada após (e não durante) a fase de estabilização. Segundo Sachs, as dificuldades de realizar a aplicação simultânea das duas políticas são tão gigantescas que é difícil encontrar um único caso de país que tenha conseguido estabilizar a economia e liberalizá-la ao mesmo tempo.41 41 The historical experiences with liberalization alone, and with stabilization alone, are not very encouraging. The difficulties of combining the two policy initiatives are formidable. The historical record suggests that it is virtually impossible to bring inflation under control, while simultaneously trying to liberalize the economy. One is hard pressed to find an example of an economy which stabilized, liberalized and improved the external position all at the same time". Sachs (1989, p. 283).
As dificuldades de ajustamento vividas pelos países latino-americanos durante os anos oitenta evidenciaram a inadequação técnica e política do modelo de Washington. Vimos na seção 2 que, em plena execução dos "programas de estabilização", a taxa de inflação média da região seguiu aumentando durante quase todos os anos da década. A experiência da Colômbia país que realizou um programa de ajustamento gradual, sem medidas drásticas, e atravessou a década sem sofrer quedas no PIB ou aceleração inflacionária sugere menos pressa e maior cautela na elaboração e implantação das reformas econômicas.
B.3 A prevenção da fuga de capital
Vimos na seção 1 que os números referentes à fuga de capital são suficientemente elevados para justificar medidas preventivas rigorosas. Apesar de aproximadamente 50% da dívida externa latino-americana ter-se originado de fuga de capital, não se observa muita preocupação dos reformadores de Washington em incentivar a adoção de medidas repressivas. A interpretação do Consenso de Washington é a de que a fuga de capital é sintoma e não causa dos desajustes econômicos. Os organismos internacionais defendem inclusive a revogação dos controles de capital em nome da liberalização financeira. O Banco Mundial acredita que apenas erros de política econômica cometidos pelo governo local podem provocar fuga de capital.42 42 Ver BIRD (1985, pp. 69-70).
Nunca é demais repetir que os países latino-americano, como a maioria das nações periféricas, são vulneráveis a choques externos, momentos em que sofrem deterioração nos termos de intercâmbio, diminuição nos fluxos de entrada de capital e, conseqüentemente, problemas de balanço de pagamento. A experiência das décadas de setenta e oitenta mostrou que é muito difícil, praticamente impossível, um país subdesenvolvido atravessar um choque externo severo mantendo políticas de liberalização financeira e não sofrer fuga maciça de capital.
Rudiger Dornbush acredita que nem sempre as fugas de capital decorrem de erros de política econômica. Ele lembra que em 1986 o governo mexicano tinha ajustado o orçamento e vinha mantendo taxas de juros elevadas quando sofreu fuga de capital. Embora o México tivesse adotado as medidas ortodoxas recomendadas pelo BIRD, ocorreu um choque externo queda brusca no preço internacional do petróleo, principal produto local de exportação que provocou uma maré especulativa contra a moeda nacional. O capital fugiu do México antecipando a depreciação do câmbio e a deterioração das contas públicas.43 43 Dombusch(1987, p. 146).
Acreditamos que a fuga de capital é um fenômeno antigo que se agravou muito após a internacionalização financeira das últimas décadas. Nas economias do Terceiro Mundo, a fuga de capital pode ocorrer com ímpeto devastador em razão da vulnerabilidade a choques externos e de problemas crônicos de instabilidade política. Embora o fenômeno raramente se manifeste durante as fases expansivas do capital internacional, ele permanece latente, ameaçando a estabilidade financeira e cambial do típico país subdesenvolvido. Independentemente de ser causa ou sintoma dos desajustes econômicos, há que se atuar pragmáticamente em sua prevenção. Se as "causas" não podem ser eliminados no curto e médio prazos, já que são inerentes à própria condição do subdesenvolvimento, é razoável que se tente minimizar os "sintomas" do problema.
No entanto, existem evidências de que o ajustamento dos anos oitenta trouxe aumento e não diminuição das medidas preventivas. A agenda de reformas econômicas de Washington defende dogmaticamente a revogação dos controles de câmbio durante o processo de ajustamento. E, ao final de 1992, países importantes da região estavam adotando políticas de ampla liberalização financeira a despeito da persistência de desequilíbrios econômicos graves. Trata-se de uma tendência preocupante, pois há na história latino-americana uma enorme coincidência entre relaxamento de controles de câmbio e fuga de capital:
"Among the Latin American countries, at least, there is an exact correspondence between the countries that had no exchange control at the turn of the decade and those that suffered capital flight on a massive scale. Argentina, Mexico, Uruguay, and Venezuela all experienced massive outflows; in all of them the outflows were perfectly legal. In contrast, outflows were relatively modest from Brazil, Chile, Colombia, and Peru, all of which maintained restrictions on capital outflows that made the accumulation of foreign assets illegal."44 44 Lessard & Williamson (1987, p. 233).
A fuga de capital costuma ter efeito fortemente regressivo sobre a distribuição de renda. Ela permite que os cidadãos mais ricos do país transfiram riqueza para fora, aproveitando o subsídio implícito do dólar desvalorizado, e coloquem sua riqueza em paraísos fiscais livres de impostos. A grande maioria da população que recebe em moeda local sofre queda nos salários reais quando ocorre a inevitável desvalorização cambial, seguida de aceleração inflacionaria. Esse processo caracteriza uma distribuição regressiva da renda de trabalhadores e firmas com rendas em moeda local para a minoria envolvida na fuga de capital.45 45 Para um análise dos efeitos da fuga de capital sobre a distribuição da renda, ver Rodriguez (1987).
Sendo a fuga de capital um fenômeno socialmente improdutivo, moralmente condenável (já que envolve na maior parte dos casos sonegação ou fraude fiscal) e nocivo às economias do Terceiro Mundo, seria importante uma mudança na atitude dos países desenvolvidos. é urgente o reconhecimento oficial por parte do FMI e do BIRD de que os países subdesenvolvidos, por serem vulneráveis a choques externos, não podem abrir mão dos controles de capital. A revogação dos controles de capital é uma política de alto risco que só deveria ser adotada por economias maduras, capazes de absorver choques externos sem desequilíbrios fiscais e cambiais.
É também importante a revogação das políticas de proteção ao capital em fuga adotadas por vários países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos. Além de não permitir que os bancos reportem aos governos locais os rendimentos auferidos por residentes da América Latina, a legislação de importantes países isenta de impostos as aplicações financeiras de cidadãos estrangeiros. Rodriguez observa que, na prática, os membros da OCDE estão estimulando as elites latino-americanas a adotarem um comportamento que, nos países desenvolvidos, é considerado criminoso e sujeito a severa punição. A conivência com a fuga de capital tende a prejudicar parte das populações do Primeiro Mundo, na medida em que o fenômeno gera dívidas improdutivas que são normalmente pagas mediante cortes nas importações de mercadorias européias e norte-americanas.
B.4 A não-interferência nas negociações da dívida
Após a crise financeira de 1982, os organismos internacionais passaram a exercer forte pressão sobre os países devedores que atrasavam pagamentos aos bancos comerciais. A interferência do FMI e BIRD contribuiu para tornar as negociações distorcidas em favor dos bancos, que submeteram os devedores latino-americanos a uma exação financeira massacrante. Enquanto os devedores tiveram que arcar com grandes sacrifícios econômicos, os bancos privados auferiram, em quase todos os anos da década de oitenta, lucros elevados.47 47 CEP AL (1990a, 39-46).
Vimos na seção II que o uso político das instituições multilaterais como instrumentos de cobrança da dívida prejudicou muito o processo de ajustamento econômico. Alguns dos programas de ajustamento visavam menos a estabilização econômica do que a geração dos superávits comerciais que interessavam aos bancos comerciais.
Acreditamos que o ajustamento da América Latina teria sido mais fácil e menos sacrificado se as instituições internacionais tivessem se mantido equidistantes das negociações entre bancos e governos. A experiência da década de trinta, quando os países puderam negociar diretamente com os credores privados reduções nos encargos financeiros, se mostrou bem mais adequada a um ajustamento econômico bem-sucedido.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Abr 1994