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Novas democracias: Que democracias?

NOVAS DEMOCRACIAS E VELHO PROGRESSO

Novas democracias. Que democracias?1 1 Este capitulo é tradução da primeira parte de um ensaio que escrevi para o East-South System Transformations Seminar, coordenado por Adam Przeworski. Agradeço a Guillermo 0'Donnell, José Maria Maravall, Luiz Carlos Bresser Pereira, Phillippe Schmitter, Joseph Tulchin, Regis de Castro Andrade e Samuel Valenzuela, que leram versões preliminares e me ajudaram muito, com suas críticas e comentários. O ensaio foi iniciado no Instituto Helen Kellogg, da Universidade de Notre Dame, em 1991, e concluído, em inícios de 1992, no The Woodrow Wilson Center. Agradeço a ambas as instituições pelo apoio.

Francisco Weffort

Pesquisador do CEDEC e professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo

O que são as "novas democracias"? A expressão suscita alguma discussão, de sorte que uma definição descritiva pode valer a pena, pelo menos como ponto de partida. Eu entendo como "novas" as democracias que vêm surgindo desde os anos 70, a primeira das quais veio com a "revolução das cravos" em 1974, em Portugal. Teve início ali uma grande onda histórica, que passou pela Europa do Sul nos anos 70, e pela América Latina nos 80, e cujas últimas manifestações se acham nas mudanças políticas recentes da Europa Oriental (1989) e da União Soviética (1991)2 2 Schmitter, Philippe and Karl, Terry, "What Democracy Is... and Is Not", Journal of Democracy, Summer 1991, pág. 75. . Acredito que a expressão se aplique a regimes políticos tais como os que existem atualmente, por exemplo, na Espanha, Brasil e Polônia. É que, apesar de suas muitas diferenças, eles têm pelo menos uma condição em comum: a recente derrubada das ditaduras, conduzindo à restauração de uma democracia que nunca foi realmente sólida, nas suas tentativas anteriores de implantação3 3 Samuel Valenzuela, em seus comentários à primeira versão deste texto, sugeriu-me a seguinte definição: "novas democracias" são "casos de transição democrática em países que não têm um passado de democracia consolidada." Neste sentido, o Brasil, a Polônia e a Espanha são "novas democracias", mas não o Chile, ou Uruguai. . Esta circunstância comum é o que importa, do meu ponto de vista, à definição descritiva que menciono acima.

Meu principal argumento é que as "novas democracias" são democracias em construção, nas condições políticas de um processo de transição que tornou inevitável uma mistura com importantes heranças do passado autoritário. Estão em construção também nas circunstâncias criadas por uma época de crise social e econômica que acentua a influência de situações de desigualdade social extrema bem como de crescente desigualdade social. Em tais circunstâncias, novas democracias estão tomando formas institucionais peculiares que colocam mais ênfase na delegação do que na representação (ou na participação).

Em correspondência com essas idéias, pretendo também argumentar aqui em favor da idéia que a liderança é revelante para a consolidação da democracia. Do mesmo modo, são relevantes as instituições e atributos correlatos à liderança, como a competência política, minha tradução para isso que autores como Juan Linz e Alfred Stepan chamam de "political craftsmanship". Finalmente, acredito que deveríamos estar preparados para admitir que a consolidação das "novas democracias" é um processo muito mais difícil do que foram os processos de transição pelos quais elas chegaram ao que são.

VELHAS DEMOCRACIAS E NOVAS DEMOCRACIAS

Se nos anos 60 e 70, a América Latina ofereceu numerosos exemplos de regimes autoritários, nos anos 80 ela passou a oferecer muitos exemplos de "novas democracias". Algumas destas, particularmente as da Argentina, Brasil, Guatemala e Peru, são tomadas aqui como referências, mas pretendo considerar também, embora de modo não-sistemático, alguns casos da Europa Oriental, como a Rússia, Polônia e Hungria. Nos tempos que correm, alguma comparação das transições da América Latina com países da Europa do Leste é não apenas inevitável mas também desejável.

Além desses casos, pretendo abrir algum espaço para uma "velha democracia" latino-americana. Refiro-me ao caso do Chile, provavelmente o mais conspícuo (e também o mais dramático) caso de democracia consolidada que se conhece na região latino-americana. Assim como a do Uruguai, também a democracia chilena falhou em algum momento dos anos 70, abrindo desse modo aquele país ao mesmo ciclo de autoritarismo-transição-democracia que teve vigência na região nas últimas décadas. Felizmente, como se sabe, o Chile e o Uruguai estão hoje entre nossos bons exemplos de restauração democrática, voltando a formar, com a permanente exceção da Costa Rica, entre os poucos exemplos de democracia consolidada na região.

A referência ao Chile torna obrigatório retomar aqui algumas sugestões de Juan Linz em seus comentários sobre o estudo de Karl Dietrich Bracher a respeito da queda da República de Weimar4 4 Linz, Juan, The Breakdown of Democratic Regimes – Crisis, Breakdown & Reequilibration, The John Hopkins University Press, 1987, 3ª edição, Baltimore and London. O mesmo argumento foi revisitado por Linz e Alfred Stepan em "Political Crafting of Democratic Consolidation or Destruction: European and South American Comparisons", in Pastor, Robert, Democracy in the Americas – Stopping the Pendulum, Holmes & Meier, New York-London, 1989. . Embora sempre lamentáveis, os casos de fracasso de democracias consolidadas são muito mais sugestivas para fins de comparação com os processos que se observam nas democracias mais recentes. Os fracassos das "velhas democracias" ressoam, ou deveriam ressoar, como uma advertência para os líderes das atuais transições democráticas. Eles sugerem, em primeiro lugar, que algumas das fraquezas que vemos hoje nas novas democracias podem também ser encontradas em democracias consolidadas. Neste sentido, as circunstâncias que cercam o golpe de Estado de 1973 no Chile adquirem uma relevância especial, aliás inteiramente justificada, na imaginação política latino-americana. Mas há uma segunda razão: a experiência histórica das "velhas democracias" também inspira motivos de esperança.

As novas democracias, quando ainda não consolidadas, são politicamente instáveis e institucionalmente frágeis. Mas quando estudamos, em conjunto, democracias que falharam, as diferenças entre democracias "velhas" e "novas" aparecem sob uma luz diferente. Estes estudos nos lembram que isso que os cientistas políticos chamam de estabilidade e solidez institucional implica, de fato, uma preocupação permanente dos líderes com o aperfeiçoamento dos processos democráticos5 5 Evidentemente, estabilidade implica mais do que isso. Implica também, por exemplo, como Seymour M. Lipset mostrou, mesmo com o risco de algum determinismo, em Political Man (The John Hopkins University Press, Baltimore, 1981), um nível mais elevado de desenvolvimento econômico e um certo nível de eficácia de um regime democrático. Voltarei às condições sociais mais adiante. A importância de enfatizar a "political craftsmanship" aqui é que, à parte umas poucas exceções, as "novas democracias" parecem não vir alcançando muito êxito nem em eficácia nem em desenvolvimento econômico. . É certo que em algumas democracias consolidadas, o entusiasmo democrático das lideranças é, às vezes, substituído pelo simples automatismo e por hábitos mais ou menos mecânicos. Mas o funcionamento da democracia desenvolve também seus próprios antídotos contra tais males gerados pela estabilidade e pela acomodação. Antídotos, que, uma vez mais, ressaltam o papel das lideranças.

Como sugere Dankwart Rustow, o processo democrático, por ser competitivo por definição, "institui um duplo processo de (...) seletividade em favor dos democratas convictos: um entre partidos nas eleições gerais e o outro entre políticos disputando a liderança dentro dos partidos"6 6 Rustow, Dankwart A., "Transitions to Democracy", Comparative Politics, Volume 2, Número 3, Abril 1970. . A despeito de uma ênfase corrente nas ondas de "desencanto" que caracterizariam hoje as democracias estáveis, creio que permanece nos líderes bastante consciência e informação. E isso é parte necessária da explicação de uma tendência permanente, observável nas velhas democracias, no sentido de uma reafirmação das instituições e de seu funcionamento equilibrado.

Em todo caso, o certo é que a distância existente entre uma democracia nova e instável e uma velha democracia consolidada pode ser menor do que muitos pensam. Velhas ou novas, o essencial na democracia é uma textura de relações e de instituições políticas que, evidentemente, uma liderança anti-democrática (ou incompetente) pode talvez destruir. Mas essa é também uma textura que líderes democráticos e competentes podem restaurar e reconstruir. Esta perspectiva analítica, desenvolvida sobretudo por Juan Linz, tem muito a ver com as perspectivas de consolidação democrática.

Ainda a propósito de "novas" e "velhas" democracias, creio necessário mencionar aqui um segundo ponto. Se as novas democracias são democracias em construção, a sua consolidação tem que ser entendida como algo mais o que a mera restauração de um regime democrático previamente existente. A democracia espanhola, que se pode considerar consolidada - depois do trabalho do liberal Adolfo Suarez na transição e, agora, com a direção do socialista Felipe Gonzales e a discreta mas eficaz presença da monarquia, - é muito mais do que a mera restauração da democracia que, com vestes republicanas, caiu ao peso da Guerra Civil nos anos 30.

Se a história, em sentido geral, implica permanência e continuidade, seu sentido específico está na mudança. Evidentemente, casos de puro renascimento de regimes políticos são excepcionais, se é que existe algum. Em todo caso, no que se refere à democracia, a mudança é a regra. É por isso que podemos falar, por exemplo, de democracia censitária, democracia de massas, democracia liberal, democracia social, etc, cada uma dessas designações representando critérios diferentes usados para descrever diferentes períodos da história democrática. Pode-se admitir que uma idéia geral de democracia permanece em cada um desses tipos. De outro modo, não poderíamos falar de democracia em sentido nenhum. Mas como em qualquer apreciação histórica, ao falarmos de períodos da democracia, sempre falamos de mudanças em torno de uma tendência central.

E aqui, passo a um terceiro ponto relevante nestes comentários preliminares a respeito de velhas e novas democracias. Se podemos falar de diferentes períodos da democracia, por que não falarmos também de diferentes tipos de democracia? A idéia de uma tipologia da democracia deveria ser óbvia, tornando desnecessária uma apresentação. Talvez se encontre aqui a ressonância de um velho e complicado problema político e histórico. É que já se cometeu tanto erro (na verdade, foi mais do que isso, seria melhor dizer que já se cometeu tanto crime) a partir de distorções em torno de concepções sobre a democracia que mesmo o óbvio precisa ser explicado. Para resumir uma discussão que poderia ser demorada, limito-me a dizer que não foram poucos os que adjetivando a democracia acabaram, na verdade, por contribuir para sua supressão. Chegou-se assim a um compreensível temor que afeta qualquer tentativa de descrição tipológica, mesmo inicial como esta que tento apresentar aqui.

Fique claro, portanto, desde logo, que acredito que o conceito de democracia envolve um conteúdo geral e limites muito definidos, dos quais falarei mais adiante. Mas acredito também que isso não deveria excluir a possibilidade de uma tipologia. Ao contrário, o primeiro passo para uma tipologia consiste precisamente nisso: um conceito estrito, rigorosamente definido, e que, no nosso caso, coincide com o que se chama em geral de democracia política.

Mas uma tipologia requer ainda um segundo passo. Requer critérios que assegurem ao pesquisador uma ampla flexibilidade quando tem que estudar situações diferentes. Isso pode aumentar o trabalho do pesquisador para entender situações concretas mas também aumentar o progresso do conhecimento. De fato, seria mais fácil evitar falar de tipos (ou de períodos) e entender o conceito de democracia na base de uma medida estrita da moderna experiência da Europa ocidental (ou dos Estados Unidos). De acordo com tal perspectiva, o próximo passo, no nosso caso, seria verificar se as "novas democracias" se ajustam àquela medida. Seria fácil antecipar a conclusão: em muitos casos, as "novas democracias" teriam que ser entendidas não só como "não-consolidadas", mas também como "não-democracias".

A idéia de que estamos diante de democracias em construção, abrindo passo a uma tipologia, implica uma crítica desse procedimento, digamos, "negativo" no estudo da consolidação. Mas, evidentemente, ainda não oferece uma resposta "positiva" ao nosso problema. Na verdade, temos muito a caminhar antes de chegarmos à construção de uma tipologia consistente e persuasiva. Entretanto, um bom ponto de partida seria considerar as novas democracias do ponto de vista de um conjunto de fatores passíveis de observação comparada. Penso em especial nos seguintes: estruturas institucionais, liderança (e processos de recrutamento de lideranças), participação de massas, e o contexto econômico. Não pretendo que tais categorias sejam exclusivas, mas creio que podem ser úteis para começar. É disso que tratarei a seguir.

INSTITUIÇÕES: REGIMES MISTOS

Para começar pelo primeiro dos critérios relacionados acima, o das estruturas institucionais, pretendo sugerir aqui a hipótese segundo a qual as "novas democracias" têm que ser consideradas como "regimes mistos". Vem a seguir a pergunta: a que tipo de regimes mistos pertencem?

Misturas de mecanismos institucionais não são uma novidade em política, pelo contrário são muito freqüentes. A maior parte dos regimes políticos são mistos em alguma medida. De fato, alguns dos mais modernos sistemas representativos combinam-se a mecanismos de participação direta e/ou mecanismos corporativos. Em alguns sistemas de governos, regimes presidencialistas misturam-se com procedimentos parlamentaristas de modo a tornar difícil determinar se estamos falando de um "parlamentarismo modificado" ou de um "presidencialismo modificado". Em um sentido mais geral, poder-se-ia dizer que a liberal-democracia é uma mistura institucional – aliás, uma mistura que foi muito difícil realizar na história e que tomou muito tempo para evoluir até atingir a forma que nós conhecemos hoje. Outros exemplos de mistura poderiam ser apresentados aqui.

Para responder à nossa pergunta, tomarei uma sugestão de Phillipe Schmitter: se você deseja conhecer as possibilidades de consolidação presente (ou futura) da democracia, dê uma olhada no passado, isto é, observe as transições de onde vieram7 7 Estou tomando de Schmitter apenas a perspectiva geral sobre as relações entre transição e consolidação. Ele desenvolve esta idéia em Schmitter, P., "The Consolidation of Democracy and the Choice of Institutions", East South System Transformations Working Paper # 7, Department of Political Science, University of Chicago, Chicago, Illinois, Setembro 1991. . A minha hipótese geral é que as "novas democracias" são regimes políticos nos quais a transição levou a uma mistura das instituições democráticas com importantes heranças de um passado autoritário recente. Estas heranças dizem respeito pelo menos aos seguintes pontos: primeiro, a estruturas estatais do regime autoritário previamente existente; e segundo, a relativa permanência (ou "conversão") de líderes do regime anteriormente existente.

O primeiro ponto se refere a instituições tais como o Exército (em alguns casos incluindo a "comunidade de inteligência"), bancos estatais e outras empresas públicas. Incluem-se ainda diversos tipos de instituições ligadas à intervenção econômica do Estado ou que servem para reafirmar a preeminência dos Executivos sobre os Parlamentos, bem como a subordinação das associações da sociedade civil ao aparato do Estado. O segundo ponto, que se refere a líderes (e instituições correlatas), será examinado mais adiante.

A discussão sobre as instituições deve começar pela explicitação de um princípio democrático. Refiro-me ao princípio clássico que diz respeito à autonomia da sociedade civil em relação ao aparato do Estado. Trata-se, evidentemente, de uma idéia democrática que é, na origem, uma idéia liberal. Mas seria uma interpretação demasiado estrita reduzir o seu significado às suas raízes. Como outras idéias democráticas, esta também tomou uma forma (e legitimidade) geral, adquirindo um sentido que supera aquele definido em suas origens. Além do liberalismo, podemos encontrar exemplos de idéias gerais sobre a autonomia da sociedade civil em face do Estado, também no anarquismo e em alguns ramos do pensamento socialista ("controle operário", "sociedade auto-regulada", etc.) Diferentes tendências do pensamento político consideram que não há democracia onde não há autonomia da sociedade civil (e da sociedade política) em face do aparato de Estado. Isso tudo quer dizer que a autonomia teria que ser considerada uma condição necessária para a democracia, embora não suficiente.

Embora acredite que tenhamos aí um princípio necessário às democracias, creio também que ele deveria ser considerado em um contexto mais definido. O fato é que situações de completa autonomia da sociedade civil diante do Estado são pouco comuns. Uma vez mais, o mais freqüente são situações mistas, de signo às vezes contraditório. Além disso, as pessoas diretamente envolvidas na tensão política entre a sociedade civil e o Estado têm visões diferentes sobre os graus relativos de autonomia de que desfrutam em tais situações.

Em casos concretos, as pessoas diretamente envolvidas podem considerar as situações "mistas" nas quais se acham, não apenas como uma possível perda para a democracia, mas também como. um possível ganho. Este não é, evidentemente, o caso dos regimes totalitários, mas é provavelmente o caso de diferentes tipos de regime que ainda se acham muito distantes de serem considerados democracias consolidadas. Por exemplo, certos "regimes mistos", apenas precariamente democráticos e uma pesada carga de heranças autoritárias, deveriam ser considerados uma vitória para a democracia quando comparados com as ditaduras totalitárias que foram capazes de substituir. Este é provavelmente o caso de alguns dos países da Europa do Leste, e o exemplo mais significativo é certamente o da Rússia. Também é o caso de muitos países latino-americanos, tais como o Brasil de 1978 a 1984, quando o país entrou no chamado período da "abertura". Embora duramente controlada de cima para baixo, a "abertura" tinha claros sinais de progresso democrático em relação ao período anterior, tendo sido considerada por muitos uma passagem necessária para o período democrático atual, e que se abriu com a Constituição de 1988.

O ponto fundamental aqui é o seguinte:.se se trata de examinar "misturas" não há como adotar uma ótica estrita, de preto ou branco. Mais relevante aqui são as variações da cor, o espectro possível das situações. E para distinguir entre tais possibilidades, se requer alguma habilidade analítica para desvendar variedades e níveis de mistura. Para ilustrar este ponto, tomarei na história do Brasil, um exemplo bem conhecido de mistura institucional - a subordinação dos sindicatos ao Estado durante o período da democracia populista (1945-1964) e durante a "nova democracia" (depois de 1984). Como é bem conhecido pelos estudiosos, a subordinação dos sindicatos ao Estado não se explica apenas pela existência mais ou menos generalizada de padrões de comportamento dependente por parte dos trabalhadores em relação ao Estado. Explica-se também pela existência de constrangimentos institucionais, que resultam de uma estrutura institucional construída depois de 1945, para preservar heranças do Estado Novo (1937-1945), que criaram um conjunto específico de instituições legais, incluindo definições constitucionais, o Ministério do Trabalho, a previdência social, a estrutura sindical e um "imposto sindical" que o Estado recolhia (e ainda recolhe) com a finalidade específica de financiar as atividades sindicais8 8 Esta complexa estrutura é muito bem conhecida no Brasil, depois dos estudos sociológicos e políticos que começaram com Evaristo de Moraes Filho, O Problema do Sindicato Único no Brasil, e Azis Simão, Estado e sindicato. Há uma impressionante lista de artigos e livros sobre o tema, merecendo especial atenção os de Leôncio Martins Rodrigues e José Albertino Rodrigues. Em inglês, a melhor análise do corporativismo brasileiro é a de Schmitter, Phillipe, Interest, Conflict and Political Change in Brazil, Stanford University Press, 1971. Uma boa análise da história e da estrutura sindical pode ser encontrada em Erickson, Kenneth, The Brazilian Corporative State and the Working Class Politics, Berkely and Los Angeles, University of California Press, 1977. .

A Constituição de 1988 - a principal base institucional da "nova democracia" brasileira - preservou muitas daquelas instituições autoritárias. É verdade, porém, que não ficou apenas nisso. Introduziu também algumas mudanças democráticas significativas, tais como o reconhecimento do direito de greve, a independência dos sindicatos em face do Ministério do Trabalho e o reconhecimento das centrais sindicais, até então proibidas por lei. Embora se possa considerar estes progressos como limitados, é difícil negar as melhoras havidas na autonomia de um segmento específico da sociedade civil, neste caso os trabalhadores organizados, em face do Estado. É evidente que continuam existindo tensões entre os constrangimentos do Estado e as pressões do movimento sindical. Mas o progresso na autonomia da capacidade de organização dos trabalhadores é muito claro.

Um outro exemplo de mistura institucional aparece nos países nos quais os políticos civis, mesmo tendo conseguido pôr fim ao regime militar anterior, não parecem ser ainda capazes de fazer valer o princípio da soberania do poder civil sobre os militares. O caso do Brasil, no qual cada governo que se venha a formar deve contar com a "herança" de seis ministros militares, é um exemplo claríssimo. Mas não é menos impressionante o caso do Chile, onde todo o progresso da democracia política, evidente nas eleições que abriram caminho à formação do governo Patrício Aylwin, foi porém, incapaz de eliminar a presença do General Augusto Pinochet como Comandante em Chefe das Forças Armadas. Pinochet foi expulso do governo, mas não do Estado (ou não de todo o poder que ele detinha no Estado). Na transição democrática chilena, outras disposições foram tomadas com relação à "estabilidade" de centenas de autoridades públicas. Isso quer dizer que o governo democraticamente eleito está obrigado a trabalhar com parte do aparato administrativo da ditadura previamente existente e que se acha impossibilitado, por algum tempo, para exercer o procedimento democrático normal de indicar novas autoridades para as mesmas posições9 9 Estou seguindo minhas notas da conferência de Genaro Arriagada sobre a transição chilena, apresentada no Instituto Kellogg, 1990. .

Um outro exemplo de mistura institucional é o fenômeno do "decretismo", ou o uso de "medidas de emergência" pelo poder executivo de alguns países, como medida administrativa de rotina. Pela prática do governo por decreto, o sistema político implica uma subordinação do Congresso, e por extensão, também uma subordinação dos partidos políticos e das elites políticas. O "decretismo" é visível, por exemplo, no Brasil, onde o executivo pratica, com muita freqüencia, uma distorção da Constituição. Esta permite o uso de "medidas provisórias" em situações excepcionais, críticas, e com um caráter temporário. Na realidade, elas têm sido usadas quase de um modo permanente: o Presidente Sarney emitiu 142 "medidas provisórias" durante os 525 dias nos quais governou sob a vigência da Constituição de 1988. Isso é o equivalente a uma "medida provisória" a cada quatro dias. Em 1990, o governo Collor emitiu 150 "medidas", isto é, aproximadamente uma a cada dois dias10 10 Power, Timothy, "Politicized Democracy: Competition, Institutions, and 'Civic Fatigue, in Brazil", mimeo., Dept. of Government, Universidade de Notre Dame, 1991. .

LIDERANÇAS: CONTINUISMO E CONVERSÃO

Se nosso primeiro ponto se refere a instituições, nosso segundo ponto se refere às lideranças, o que não deve ser entendido com se devêssemos falar apenas de pessoas. Também deve-se dar atenção aqui aos partidos, sindicatos, jornais, escolas, igrejas e outras organizações da sociedade civil. Isso significa que esse segundo ponto se relaciona com o primeiro (instituições) pelo menos no seguinte sentido: o momento mais eloqüente de uma liderança democrática é o da construção de instituições democráticas. Em nosso caso, diríamos que o momento mais expressivo de uma liderança democrática é aquele no qual ela contribui para a consolidação das instituições democráticas. Assim, pelo menos uma parte do problema de criar uma liderança democrática é um problema de como criar (e consolidar) novas instituições democráticas.

A propósito, é oportuno tornar explícito aqui que, em geral, as novas democracias desenvolveram uma estratégia de reformas institucionais, que contam a crédito das lideranças democráticas existentes, e nas quais estas alcançaram considerável sucesso. Quero me referir às reformas constitucionais (incluindo a elaboração de novas Constituições) e ao estabelecimento de novas leis sobre eleições, partidos políticos, associações, etc. Embora se possa dizer que as novas democracias não alcançaram um sucesso completo nas reformas institucionais desse tipo - já que o tema permanece em aberto no Brasil, Chile, Argentina, Polônia, etc, suscitando a idéia de que os problemas institucionais permanecem - este é o campo no qual importantes realizações foram feitas.

Entretanto, o papel dos líderes se refere ainda a outro campo de reformas, igualmente decisivo para a construção de instituições democráticas (e de lideranças democráticas). E, contudo, neste outro caminho de reformas, as "novas democracias" não tiveram sucesso. Quero me referir às políticas que visavam reformas econômicas e sociais. Os sucessivos fracassos nesta área vêm servindo para diminuir a Confiança nas instituições políticas e desmoralizar os líderes políticos. Este ponto será retomado mais adiante.

Também me parece necessário tornar explícita a hipótese geral que orienta a nossa discussão nesse ponto. E essa é que os líderes - bem como as instituições correlatas, como partidos, escolas, jornais, sindicatos, igrejas, etc. - desempenham papel relevante na consolidação da democracia. Primeiro, as possibilidades de consolidação democrática são maiores se os líderes são democraticamente conscientes11 11 Para usar os termos de Rustow, estou adotando neste ensaio uma perspectiva "genética", focalizando as origens da democracia política, diferente de uma abordagem "funcional", que se ocuparia do funcionamento das democracias estabelecidas. Veja Rustow, Dankwart, op. cit. Como já sugerido por Rustow, em uma abordagem funcional, líderes democráticos têm maiores possibilidades de sucesso do que líderes autoritários em uma democracia consolidada. Minha hipótese aqui, de caráter genético, é que as situações nas quais a democracia ainda não está consolidada, acrescentam relevância ao papel dos líderes democraticamente conscientes. . Segundo, as chances de consolidação democrática são menores se os líderes são autoritários. Terceiro, as possibilidades são apenas um pouco melhores, comparadas com o caso anterior, se os líderes, embora sendo democráticos, não são conscientes do papel que desempenham na consolidação da democracia; ou se são parte de um aglomerado difuso de pessoas capazes apenas de jogos pessoais ou setoriais. A título de exemplificação, creio que a primeira hipótese se aplica amplamente ao caso do Chile, a segunda se aplica, certamente, ao caso da Rússia, e a terceira se aproxima do caso do Brasil. É evidente, porém, que todos os casos concretos "misturam" todas as hipóteses mencionadas, de tal modo que esta exemplificação é apenas relativa.

Para leitores de Maquiavel, eu diria que a consolidação democrática não é apenas uma questão de fortuna, mas também de virtú. Neste caso, de uma virtú democrática da liderança, onde esta existe com ampla consciência do seu papel. Deveria ser evidente que mesmo políticos democráticos serão incapazes de construir (ou consolidar) a democracia, se lhes faltarem condições para tal. Mas é também óbvio que qualquer definição das condições apropriadas para a democracia, deveria incluir a presença de uma liderança democrática. Esta é, talvez, a primeira das condições da democracia. Não existe em lugar nenhum nada de parecido a uma consolidação democrática por "geração espontânea".

Com isso, não pretendo sugerir que as condições apropriadas para a democratização tenham que ser necessariamente as mais claras, transparentes e agradáveis. Na verdade, as "misturas" de que tenho falado, tanto de regimes e de instituições quanto de líderes, têm algo a ver com a dureza e com a opacidade da transição. Frequentemente, os processos de democratização implicam um alto grau de conflito, e mesmo de violência, como nos lembram as teorias modernas da democracia bem como as teorias clássicas da formação do Estado. Como diz o axioma teórico básico de Dahl, uma democracia é o fruto de uma situação na qual os adversários consideram a coexistência menos custosa do que a destruição recíproca. Vai num sentido semelhante a proposição básica de Przeworski de que a democracia é resultado de conflitos. Aliás, nesse passo, as modernas teorias da democracia apenas reatualizam, num grau mais elevado de sofisticação, as teorias clássicas do Estado.

Engels e Weber, a despeito de se filiarem a diferentes tradições filosóficas, descreveram a violência que se acha nas origens do Estado e que deveria ser suprimida, pelo menos na forma de violência privada, se o Estado devesse ser considerado como tal. O Estado é necessário, diz Engels, porque sem ele, a sociedade se divide em dois campos incompatíveis em luta; assim, a função primária do Estado é a de manter a coesão da sociedade12 12 Ver de Engels, principalmente The Origins of the Family, the Private Property and the State. . Weber diz algo semelhante: o Estado é um conglomerado de indivíduos que reivindica com sucesso o exercício legítimo da violência em um dado território. Isso quer dizer que a violência (considerada como violência legal, ou seja submetida ao império da lei) é um "privilégio" do Estado. Assim, a construção do Estado é um processo de centralização da violência, e "expropriação" da capacidade de violência exercida pelas pessoas (ou grupos) particulares13 13 A definição weberiana pode ser encontrada em Politics as a Vocation, in Gerth, Hans and Mills, C. Wright, From Max Weber: Essays in Sociology, New York, Oxford University Press, 1958. .

Eis a diferença maior entre as teorias do Estado e as teorias da democracia, tais como propostas por Dahl e Przeworski: a construção do Estado é um processo de supressão da violência privada, enquanto a construção da democracia é um processo, não de supressão, mas de institucionalização do conflito. Nos dois casos, porém, servem a várias funções, uma das quais é a de nos lembrar que cenários de construção da democracia ou de construção do Estado não são necessariamente limpos e transparentes. Quem tenha dúvidas sobre esse ponto, não deveria fazer mais do que dar uma olhada no que vem ocorrendo em países como a Romênia ou a Geórgia, ou, mais tragicamente, a Iugoslávia.

Mesmo quando se estudam transições onde se assistem a progressos reais no rumo da liberdade e da participação popular, são freqüentes as situações obscuras. Por exemplo, são freqüentes as situações nas quais as lideranças das transições democráticas obviamente não nasceram democráticas. Se as democracias nascem do conflito e da violência, muitos dos seus líderes nascem da ditadura. Neste sentido, Havei da Tchecoslováquia e Walesa da Polônia, são exceções a uma regra geral que é definida por Gorbachev, Yeltsin, etc. Embora uns poucos líderes bem conhecidos tenham vindo diretamente dos movimentos dissidentes, a maioria vai-se tornando democrática durante o próprio processo de transição. Esta tem sido até aqui a regra geral e, em todo caso, a esperança. Porque não se pode esquecer que alguns líderes, como Fujimori, do Peru, já começam a fazer exatamente o caminho inverso.

A presença de líderes da oposição democrática - como Raul Alfonsin e Carlos Menem, na Argentina, Patrício Aylwin e Ricardo Lagos, no Chile, ou, no caso do Brasil, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva - é talvez mais importante no processo de transição da América Latina do que na Europa Oriental. Alguns dos líderes latino-americanos foram formados nos regimes democráticos anteriores ao regime autoritário. Outros tiveram alguma possibilidade de carreira dentro do "pluralismo limitado" (Linz) dos regimes autoritários. Os regimes totalitários da Europa Oriental duraram muito mais tempo, e durante esse longo período não deram qualquer oportunidade ao pluralismo.

Mas mesmo na América Latina, as novas democracias contam com um número significativo de líderes democráticos recém-convertidos, tais como por exemplo José Sarney e Fernando Collor, no Brasil. O Brasil é apenas um exemplo entre outros nos quais líderes antes conhecidos como "homens do sistema", isto é do sistema autoritário anterior, ganharam uma nova identidade política na transição. Nós podemos supor que eles mudaram, ou estão mudando, suas perspectivas sobre o Estado e a sociedade. A propósito, isso ocorreu, ou vem ocorrendo, também em áreas da antiga oposição aos regimes militares, em especial as áreas de esquerda que no passado recente se dedicaram à guerrilha. Mas não está aí a questão mais relevante. No caso da liderança brasileira como em qualquer outra - por exemplo, no caso russo - a questão fundamental é a de saber da profundidade dessa mudança e a de prever que influência terá no comportamento da elite política prevalescente e na cultura política do país. Essa questão pode ser proposta nos seguintes termos: além de trabalhar em benefício dos seus legítimos interesses políticos pessoais ou de grupo, estão os líderes das novas democracias também trabalhando em benefício de objetivos gerais que poderiam ajudar a consolidar a democracia política como um todo?

A discussão sobre as lideranças é um exemplo do argumento de que se continuidade e ruptura são, na história, matérias diferentes e contrastantes, não são, porém, sempre excludentes. Não pelo menos quando se referem a estruturas de Estado e política. Em certas situações, é, por certo, difícil distinguir entre o que permanece do passado autoritário (ou totalitário) e o que é realmente democrático e novo14 14 Deve estar, a estas alturas, evidente que, no texto, estamos nos referindo aos "velhos" autoritarismos que antecedem às novas democracias. Em todo caso, anoto que, nestas, também existem exemplos de velhas instituições democráticas. Embora sejam poucos, existem como testemunho de uma tradição democrática que vem de há mais tempo. É óbvio que o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) é uma.velha instituição democrática, na Espanha, muito anterior ao regime de Franco. Tem algo mais de um século de existência. No Brasil, um bom exemplo, embora mais recente, datando de 1930, é a Justiça Eleitoral. No Chile, pode-se mencionar o exemplo de todo o sistema partidário que é anterior ao regime de Pinochet e que a ele sobreviveu. . Para propósitos comparativos, o que é relevante é o grau relativo de continuidade (ou, alternativamente, de ruptura) encontrado em um dado processo de transição, quando comparado com outros. Por exemplo, se deseja-mos entender diferenças importantes entre as transições latino-americanas e as da Europa do Leste, creio que se pode afirmar que a ruptura relativa é (especialmente no plano social e econômico) mais típica das transições da Europa Oriental, e a relativa continuidade (especialmente no plano político) é mais típica das transições latino-americanas.

Em que pesem as diferenças esboçadas acima, permanece relevante considerar algumas experiências da Europa Oriental de um ângulo latino-americano. O sociólogo húngaro Elemer Hankiss fala de uma "conversão" de membros da velha elite comunista na Hungria para um novo tipo de classe dominante15 15 Hankiss, Elemer, "A Grande Coalizão (As Mudanças na Hungria)", Lua Nova, nº 22, Dezembro 1990, págs. 35-68. É o capítulo 9 de Hankiss, East European Alternatives: Are There Any, publicado em 1991 pela Oxford University Press. . Evidentemente, esta idéia representa uma forma de continuidade da classe dominante em um regime econômico e político que passa por importante processo de mudança ou de ruptura. Não fosse este o caso e a "conversão" como tal não seria necessária. De acordo com esta interessante sugestão conceituai, deveríamos abrir espaço para claras distinções mesmo dentro da área do "continuísmo" latino-americano. Aqui, não apenas existem diferentes formas de continuísmo, como algumas delas estão muito próximas ao conceito sugerido por Hankiss.

Na transição brasileira, por exemplo, o continuísmo foi não apenas uma imposição de grupos militares que deixavam o poder mas também uma escolha política de muitas forças democráticas que o assumiam. Foi um compromisso entre moderados de ambos os lados e, neste sentido, uma expressão da realidade do poder dominante no país. Rejeitado apenas por pequenos grupos da esquerda, este compromisso desvenda a real natureza da "nova República" no Brasil como o resultado de uma "transição conservadora". Uma transição conservadora que combinou "conversão", no sentido definido por Hankiss, e o "continuísmo" no sentido latino-americano mais tradicional, para estabelecer a maioria dos líderes nos quais hoje se sustenta a "nova República" brasileira. Não creio que o Brasil seja o único caso no gênero, dentre os "regimes mistos" da América Latina.

DEMOCRACIA POLÍTICA E DESIGUALDADES SOCIAIS

Em todas as suas possíveis e diferentes "misturas", os "regimes mistos" são uma questão de discussão empírica. Assim, tão importante quanto a idéia de "regimes mistos" possa ser, ela não abre para nenhuma novidade (ou dificuldade) teórica. Questões teóricas importantes só aparecem quando, depois de descrevermos regimes políticos diferentes, temos que decidir quais deles são verdadeiras democracias, em que pesem todas as suas debilidades, e não apenas ditaduras que "importaram" algumas formas e símbolos democráticos. Isso significa que antes de aceitar, para um dado caso nacional, descrições baseadas, como tenho feito até aqui, em continuidades, conversões, misturas, etc, temos que nos valer de alguns critérios teóricos que possam servir como um limite ao relativismo conceitual.

Estes critérios são, de acordo com Norberto Bobbio, as "regras do jogo". Ou seja, são o miolo das regras institucionais que dão sentido à democracia representativa16 16 Bobbio, Norberto, The Future of Democracy - A Defense of the Rules of the Game, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1987, pp. 24, 25. . Robert Dahl, em seu clássico Poliarchy, chamou a estas regras, "requirements for democracy"17 17 Dahl, Robert, Poliarchy - Participation and Opposition, Yale University Press, New Haven, 1971, ch. 1. . Elas estão explícitas na definição dos procedimentos que os cientistas políticos chamam de "definição mínima" da democracia: voto secreto, sufrágio universal, eleições regulares, competição partidária, direito de associação e responsabilidade dos executivos18 18 "O'Donnell, Guillermo and Schmitter, Philippe, Transitions from Authoritarian Rule – Tentative Conclusions about Uncertain Democracies. The John Hopkins University Press, Baltimore and London, 1989 (2ª edição). A definição de Dahl, inspiradora de muitas das "definições mínimas" atuais de democracia, pode ser encontrada neste livro, no capítulo 1, página 9, nota 6. . Com pequenas diferenças, podemos encontrar os mesmos critérios na obra de muitos cientistas políticos, que formam a corrente dominante do pensamento democrático contemporâneo. No essencial, eles são herdeiros das críticas fundamentais de Joseph Schumpeter (no mui celebrado Capitalismo, socialismo e democracia, publicado pela primeira vez em 1942) ao conceito clássico de democracia. E apóiam, às vezes com importantes acréscimos, sua idéia básica de que a democracia é um método de adquirir poder com base na competição pacífica entre as elites19 19 Schumpeter, Joseph, Capitalism, Socialism and Democracy, Harper & Row, Publishers, New York, 1975, Chaps, XXI e XXII. . Isso não faz deles, pelo menos não necessariamente, adeptos do elitismo político. Alguns, pelo menos, são democratas radicais e outros são socialistas democráticos. Mas certamente os afasta de uma concepção clássica, instrumental, da democracia, na qual esta é vista, para usar os termos de Schumpeter, a serviço do bem comum.

Como se aplicam tais critérios a uma dada situação política? Talvez um exemplo da história brasileira possa ajudar. Como já vimos, a democracia brasileira, de 1946 a 1964, herdou muitas heranças autoritárias da ditadura pré-existente, de 1937 a 1945. Mas isso está longe de limitar-se apenas ao plano das instituições sindicais, atingindo níveis bem mais elevados. O General Eurico Gaspar Dutra, o primeiro Ministro da Guerra durante a ditadura, foi eleito Presidente em 1945, com uma maioria de voto popular. Ele tinha o apoio de Getúlio Vargas, o ditador no regime anterior. O próprio Getúlio Vargas, que fundou em 1945 dois dos maiores partidos do país, foi eleito em 1950. E mesmo depois de sua morte em 1954, permaneceu como uma influência político-ideológica importante na política brasileira até 1964. Não era apenas o regime democrático de 1946 que era misto, a própria cultura política do regime de 1946 a 1964 era uma mistura de democracia e de autoritarismo.

E, contudo, chamamos a este regime uma democracia porque, a despeito de todas as continuidades, conversões e outras possíveis "misturas", os líderes brasileiros experimentaram esta "organização da incerteza" (Przeworski) que caracteriza uma democracia representativa. O regime brasileiro de 1945-64 foi provavelmente uma "democracia instável", na acepção de Lipset20 20 Ver Lipset, Political Man, op. cit. . Foi caracterizado por intervenções militares intermitentes na política, através de "pronunciamentos" e, eventualmente ameaças de golpes de Estado, as quais afinal conduziram ao golpe que instaurou o regime militar em 1964. Foi uma democracia frágil mas foi, de algum modo, uma democracia de acordo com a definição mínima que menciono acima. Uma definição mínima cujo maior valor é precisamente a de permitir reconhecer a democracia sobrevivendo no meio da confusão, da violência, e disso que Fernando Henrique Cardoso chamou, certa vez, com o olho na transição brasileira, de "entulho autoritário".

Em minha opinião, entretanto, a definição mínima exige alguma discussão teórica. Não se trata de propor qualquer mudança à definição como tal, mas creio que se faz necessário acrescentar, pelo menos, um ponto de certo alcance interpretativo. É o seguinte: o funcionamento das regras mínimas de procedimento de uma democracia política implica a existência de certas condições sociais mínimas. Este é um ponto claramente estabelecido pelos cientistas políticos desde fins dos anos 50, como Dahl, bem como por sociólogos, como Lipset. Mas este aspecto, que me parece decisivo para se compreender o drama das novas democracias, foi provavelmente esquecido por muitos cientistas sociais que passaram a estudar as novas democracias nos anos 8021 21 A Poliarchy de Dahl tem três capítulos sobre questões sócio-econômicas. O clássico de Seymour M. Lipset, Political Man, The John Hopkins University Press, Baltimore, 1981, tem a intenção explícita de ser uma "sociologia da política"; vale a pena lembrar que o subtítulo de Polictical Man é The Social Bases of Politics. . Muitos deles aceitam a definição mínima de democracia como se as "regras do jogo" fossem apenas formas, digamos vazias, desprovidas de qualquer conteúdo social. De modo paradoxal, eles se comportam como estranhos companheiros de viagem de outros que rejeitam a definição mínima de democracia com base no mesmo argumento, ou seja o de que se trataria apenas de uma definição formal de regras institucionais.

Eu me ponho aqui a rejeitar a proposição que concebe as formas como vazias, para submeter a debate o argumento de que elas são sempre formas de algum conteúdo. Neste caso, são sempre formas de algum conteúdo social. Isto parece especialmente apropriado para o estudo das transições, particularmente quando consideramos que muitas novas democracias estão emergindo em sociedades caracterizadas por fortes pressões sociais. Países como o Brasil, a Guatemala e o Peru, foram tradicionalmente caracterizados por fortes desigualdades sociais. Outros, como a Argentina, estão atualmente passando por processos de crescentes desigualdades sociais, ou de "desigualização"22 22 O'Donnell, Guillermo, "Democracia Delegativa?", Revista Novos Estudos CEBRAP, 31, Outubro de 1991, São Paulo. . É evidente que, em ambos os casos, se sente o peso de uma prolongada estagnação econômica23 23 Uma boa análise do peso da desigualdade social no caso brasileiro pode ser encontrada em Lamounier, Bolivar, "Brasil: Inequality Against Democracy", in Lany Diamond, Juan Linz and Seymóur M. Iipset, Politics in Developing Countries - Comparing Experiences with Democracy, Lynne Rienner Publishers, Boulder 8c London, 1990. .

Quando mudamos a observação para o Leste, fica claro que embora as circunstâncias econômicas sejam diferentes, no sentido de que as novas democracias têm toda uma estrutura econômica a mudar, os processos de aumento da desigualdade parecem ter efeitos ainda mais fortes. Recentes reações eleitorais na Polônia, diminuindo ò peso político da liderança de Walesa e multiplicando os partidos, bem como as manifestas resistências que vem encontrando o programa econômico de Yeltsin na Rússia, podem ser tomados como sinais das tendências de "desigualização" embutidas nas políticas econômicas em curso. Pretendo sugerir com estes exemplos, neste ponto muito semelhante a outros que se podem encontrar na América Latina, que seria simples ingenuidade imaginar que a transição política pudesse passar incólume por uma crise econômica e social de tamanha profundidade.

Há uma premissa da definição mínima de democracia que é habitualmente passada por alto pelos sociólogos e cientistas políticos e que deve ser explicitada daqui. Quero me referir à premissa segundo a qual os requisitos mínimos de participação democrática se aplicam à população adulta das nações24 24 A explicitação desta premissa está em Valenzuela, Samuel, "Democratic Consolidation in Post-Transitional Settings: Notion, Process, and Facilitating Conditions", mimeo., Kellogg Institute, 1990. . Esta proposição parece a muitos tão óbvia que eles acabam por se esquecer de seu significado básico. Esquece-se com freqüência que a participação da população adulta é a maior diferença entre democracias modernas, que se realizam no contexto do Estado-nação, e os sistemas políticos anteriores, a começar pelas democracias da antiga cidade-estado25 25 Na época atual do Estado-nação, poderíamos admitir que esteja surgindo um tipo supra-nacional de cidadania (por exemplo, a cidadania Europeia, associada com a perspectiva de uma Europa unificada, a partir de 1993). Mas parece claro que tal possibilidade não está presente quando examinamos as "novas democracias". .

Quando nos referimos ao conceito mínimo de democracia, também é certo que não estamos falando de democracias que se desenvolvem no solo de sociedades escravocratas (Antiguidade). Também é certo que não nos referimos aos regimes políticos típicos da Idade Média, apoiados na relação de servidão. Ao contrário, estamos nos referindo a regimes nos quais se entende que os cidadãos estejam preparados para usar as regras mínimas da participação democrática; significa dizer que se supõe que são portadores daqueles atributos sociais básicos que definem a individualidade. Na Antiguidade, a identidade individual estava dada no contexto da definição do cidadão, entendido este primariamente como membro da cidade-estado. Na Idade Média, a participação era concebida, tipicamente, não na base do indivíduo ou do cidadão, mas na base de diferentes tipos de privilégios associados a status. No moderno Estado-Nação, a cidadania é uma realidade política (institucional), por certo distinta da realidade social do indivíduo, mas apoiada nesta.

O que acontece a um regime democrático quando faltam à cidadania algumas das suas condições sociais? O que acontece a um regime democrático quando faltam ao suposto cidadão os atributos sociais do indivíduo?

Se nos lembrarmos dos clássicos da teoria democrática, nos lembraremos também de que uma teoria do desenvolvimento da democracia não pode negligenciar a teoria do desenvolvimento da sociedade. A premissa nacional que se pode desvendar debaixo da definição "mínima" de democracia sugere um ponto importante sobre as relações entre condições políticas e sociais. Nenhuma teoria política clássica nos autoriza a ser tão formalista a ponto de sermos levados a acreditar que a definição mínima de democracia seria operativa em qualquer contexto social, de modo inteiramente independente de certas condições sociais básicas. Assim como a realidade política dos cidadãos nos Estados-nação modernos requer um mínimo de condições institucionais, requer também um mínimo de condições sociais. E este mínimo se refere ao fenômeno da individualização, à formação social dos indivíduos, na sociedade moderna.

Uma teoria da democracia exige uma teoria da sociedade, pelo menos no sentido de que a igualdade democrática dos cidadãos requer a suposição de algum nível de igualdade social entre os indivíduos. Não estou me referindo aqui à igualdade social no sentido de Marx mas no sentido de Tocqueville, para quem a igualdade social não é a igualdade de poder ou de riqueza mas é, no essencial, a igualdade dos indivíduos como tais26 26 Tocqueville é minha referência clássica para a relação entre igualdade social e liberdade política. Discussões contemporâneas sobre o assunto podem ser encontradas em Dahl, Robert, Poliarchy, op. cit., ch. 6, "Equalities and Inequalities"; e Sartori, Giovanni, The Theory of Democracy Revisited, Chatham House Publishers, Inc., Chatham, New Jersey, 1987, ch. 12, "Equality". . Mesmo quando Tocqueville pensa sobre a democracia como um tipo de sociedade, como oposto à aristocracia (sociedade aristocrática), a individualização típica das sociedades modernas é vista como uma condição necessária para o funcionamento da democracia política. A definição oferecida por Giovanni Sartori sobre "igualdade social" vai direto ao que me parece ser o ponto central das perspectivas tocquevilleanas: "igualdade social, entendida como igualdade de status e de consideração, o que implica que distinções de classe e riqueza não envolvem distinção"27 27 Sartori, op. cit., pág. 343. Lembremos que Sartori define tipos diferentes de igualdade: igualdade jurídico-política, igualdade social, igualdade de oportunidade, "igualdade" (sameness) econômica. A igualdade social significa também "a cada um a mesma importância social, isto é o poder de resistir à discriminação social" 645). .

Em contraste com Marx, a idéia fundamental de Tocqueville sobre a "igualdade social" significa "egalité de condition", isto é a oportunidade para um indivíduo ser tratado como tal pelos outros. Tão moderada quanto esta noção de igualdade possa ser, ela é suficiente para os meus propósitos aqui. Se há uma revolução tocquevilleana, ela é a revolução da igualdade como tendência universal, constrastando com situações nas quais a deferência é o significado primário dos padrões - predominantes de comportamento, como por exemplo, nas sociedades aristocráticas ou nas situações onde as relações clientelísticas prevalecem. Contrasta também com situações de preeminência de status, típicas de sociedades hierárquicas, bem como de situações de extremas desigualdades sociais ou processos de crescente desigualdade, tão freqüentes nas novas democracias.

Esta explicação poderia ser ainda desenvolvida, mas por enquanto penso ser apropriado tirar dela pelo menos uma conclusão28 28 Seria apropriado mencionar aqui o seminal ensaio de T. H. Marshall sobre "Citizenship and Social Class", in Marshall, T. H., Cíass, Citizenship and Social Development, Anchor Books, Londres, 1965- Mas evitemos confusões. A teoria de Marshall sobre o desenvolvimento da democracia (para ser sumário: dos direitos civis aos direitos políticos e destes aos direitos sociais) sugere uma discussão diferente daquele que pretendo realizar acima. Tocqueville via uma tendência à igualdade de condições nos EUA, em uma época muito anterior, nas primeiras décadas do século XIX, quando nenhuma discussão sobre direitos sociais parecia sequer possível. A referência de Marshall aos direitos sociais é, de fato, uma referência ao Estado de bem-estar social, o qual, na Inglaterra, se forma depois da Segunda Grande Guerra. É uma referência importante em si mesma, mas que vai muito além do que pretendo nesse texto. . Para além das suspeitas de Tocqueville em face da democracia, seu conceito de igualdade social permanece, de qualquer modo, como um pré-requisito para a igualdade política dos cidadãos nas sociedades modernas. Entretanto, esta condição social "mínima" está ausente em muitas dentre as novas democracias. No que se refere ao passado, creio que é essa ausência que pode ajudar a explicar a típica instabilidade democrática e algumas de suas experiências políticas características: Vargas e a tradição varguista no Brasil, Peron e a tradição peronista na Argentina, o regime mexicano baseado no papel dominante do Partido Revolucionário Institucional (PRI), a liderança peruana de Haya de Ia Torre e o APRA, a experiência do regime de Velascõ Alvarado, etc.

Contudo, tudo isso é o passado, ou parte do passado. As conseqüências políticas de situações de extrema desigualdade e de crescentes desigualdades, tornam as situações atuais um pouco mais complicadas. Não creio que as "novas democracias" repetirão as experiências populistas. Estas, tão diferentes quanto possam ter sido de país para país, foram sempre alimentadas por algum momento relevante de desenvolvimento econômico, como na Argentina durante o primeiro governo peronista, ou por um longo período de crescimento econômico, como no Brasil entre os anos 30 e os anos 60. Este é também o caso do México, se a história política deste país puder ser pensada dentro do paradigma populista. Com menor ênfase, o mesmo argumento se ajusta ao caso do Peru e a outros países latino-americanos até os anos 6029 29 Sobre populismo, ver meu "Estado y Masas en Brasil", Revista Latinoamericana de Sociologia, Buenos Aires, 1965; publicado também como "State and Masses in Brazil", in Horowitz, Irving Louis, ed, Masses in Latin América, Oxford Univ. Press, 1970. Ver também Di Telia, Torcuato, "Populism and Reform in Latin América", in Cláudio Velliz, ed., Obstacles to Change in Latin America, New York, Oxford University Press, 1965; e Ianni, Octávio, La formacion dei Estado Populista en America Latina, México, Ediciones Era, 1975. .

Regimes populistas ocorreram em países onde setores massivos das classes populares, tradicionalmente dependentes experimentaram processos de progresso social. Experimentaram processos de crescente igualdade social, principalmente conquistando novas posições na sociedade, mesmo se tais posições significassem apenas um passo a mais nos escalões ocupacionais mais baixos. Assim, para muitas pessoas, os regimes populistas eram experiências que se associavam com a obtenção de mais independência individual no nível social, mesmo se elas permaneciam dependentes no nível político. É difícil dizer o mesmo, ou seja, que as pessoas ganharam maior independência social nos países da Europa oriental durante os períodos em que passaram por experiências políticas totalitárias. Mas não se pode ter dúvidas sobre a natureza radical de suas experiências igualizadoras. Neste sentido, embora de modo muito mais radical, tiveram algo de comum com o populismo.

Nos anos 80, o processo de democratização política que libertou tantos países das trevas do autoritarismo, ocorreu no mesmo momento em que eles entraram em profunda e prolongada crise econômica. A longa e severa crise abriu condições de exclusão social e pobreza massiva, diminuindo o sentido básico de independência dos indivíduos. A premissa básica de uma igualdade social mínima dos indivíduos foi desacreditada, com sérios efeitos para o funcionamento da democracia política. Não há exagero em se dizer que alguns daqueles países estão construindo uma democracia política sobre o campo minado de um apartheid social. O Brasil, o Peru e a Guatemala são casos típicos desse fenômeno. Outros países, como a Argentina, o Chile e o Uruguai, estão experimentando a construção de uma democracia política sobre o terreno, talvez apenas um pouco menos difícil, de uma desigualdade social crescente. Este parece ser também o caso dos países da Europa Oriental, embora nestes últimos as dificuldades se prenunciem muito maiores. Contudo, não creio que necessitamos retornar a teorias deterministas, quer sejam de inspiração econômica ou sociológica. Tais teorias levariam, quase inevitavelmente, a conclusões pessimistas, com respeito às possibilidades de sucesso da democracia política. Além disso, como a insuficiência básica de todo determinismo é a de não captar a autonomia da cultura e da política, seríamos conduzidos ao equívoco adicional de não vermos explicado o crescimento da democracia política durante os anos 80, isto é especificamente no contexto da crise econômica. Teríamos obscurecidas as perspectivas de ação democrática tanto quanto as de um melhor conhecimento das novas democracias.

Uma das funções da política comparada é ajudar-nos a ver uma variedade onde, a olho nu, só víamos duas cores. Mesmo se as comparações não nos oferecem imagens altamente otimistas (isso seria pedir muito!), elas podem manter o pessimismo sob controle. Neste sentido, é útil lembrar que foi possível aos EUA ter uma democracia consolidada mesmo em períodos de dura crise econômica, como nos anos 30, ou em regiões de apartheid racial e social, como no sul até os anos 50. Se comparações com os EUA podem parecer exageradas, talvez o caso da índia nos sirva melhor. É aceito facilmente que a índia é um caso muito especial de democracia consolidada, em uma sociedade hierárquica, que enfrenta situações de apartheid social e racial. Exemplos como este sugerem que as relações entre sociedade, economia e política são mais complexas do que podem parecer à primeira vista.

Para resumir meus argumentos referentes a estas relações, tratarei aqui com duas questões básicas. A primeira é a seguinte: a democracia política é possível em sociedade marcadas por um alto grau de desigualdade (Brasil, Peru, Guatemala) ou por processos de crescente desigualdade social (Argentina, Chile, Uruguai)? Minha resposta é sim. Entretanto, esta resposta implica uma grande quantidade de constrangimentos reais quanto ao tipo de democracia que é possível construir em tais condições. Há uma contradição entre um sistema institucional baseado na igualdade política dos cidadãos (e, assim, na igualdade social básica dos indivíduos como indivíduos) e sociedades caracterizadas por processos de extrema desigualdade social ou processos de créscente desigualdade. Embora eu não creia que esta contradição deva levar, não pelo menos necessariamente, as novas democracias ao desastre, ela abre um campo de tensões, distorções institucionais, instabilidade, violência, etc. Desigualdades extrema e "desigualização" não anulam as possibilidades da democracia política. Mas fazem uma diferença, uma grande diferença.

A segunda questão: sob tais condições, a consolidação da democracia é possível? Minha resposta é não. De acordo com muitos conceitos de consolidação, o Brasil que é hoje, certamente, uma democracia, não é uma democracia consolidada. Segundo me parece, esta consideração se aplica também à democracia brasileira de 1945-1964. Alguns dos fatores institucionais que caracterizam a não-consolidação da democracia naquela época continuam em ação nos dias de hoje, com algumas diferenças de grau. Entre esses fatores se encontram os seguintes: baixa institucionalização partidária (esta condição é hoje pior do que em 1945-64); impasses intermitentes entre a Presidência e o Congresso (esta condição também é pior hoje que antes); presença militar como herança do regime autoritário anterior (esta condição é menos importante hoje que em 1945-64). Há, porém, algo mais a considerar do que apenas o nível institucional e, como já observei antes, no nível social, a situação atual é muito pior.

  • 2 Schmitter, Philippe and Karl, Terry, "What Democracy Is... and Is Not", Journal of Democracy, Summer 1991, pág. 75.
  • 4 Linz, Juan, The Breakdown of Democratic Regimes Crisis, Breakdown & Reequilibration, The John Hopkins University Press, 1987, 3Ş edição, Baltimore and London.
  • O mesmo argumento foi revisitado por Linz e Alfred Stepan em "Political Crafting of Democratic Consolidation or Destruction: European and South American Comparisons", in Pastor, Robert, Democracy in the Americas Stopping the Pendulum, Holmes & Meier, New York-London, 1989.
  • 5 Evidentemente, estabilidade implica mais do que isso. Implica também, por exemplo, como Seymour M. Lipset mostrou, mesmo com o risco de algum determinismo, em Political Man (The John Hopkins University Press, Baltimore, 1981),
  • 6 Rustow, Dankwart A., "Transitions to Democracy", Comparative Politics, Volume 2, Número 3, Abril 1970.
  • 7 Estou tomando de Schmitter apenas a perspectiva geral sobre as relações entre transição e consolidação. Ele desenvolve esta idéia em Schmitter, P., "The Consolidation of Democracy and the Choice of Institutions", East South System Transformations Working Paper # 7, Department of Political Science, University of Chicago, Chicago, Illinois, Setembro 1991.
  • 8 Esta complexa estrutura é muito bem conhecida no Brasil, depois dos estudos sociológicos e políticos que começaram com Evaristo de Moraes Filho, O Problema do Sindicato Único no Brasil,
  • e Azis Simão, Estado e sindicato.
  • Em inglês, a melhor análise do corporativismo brasileiro é a de Schmitter, Phillipe, Interest, Conflict and Political Change in Brazil, Stanford University Press, 1971.
  • Uma boa análise da história e da estrutura sindical pode ser encontrada em Erickson, Kenneth, The Brazilian Corporative State and the Working Class Politics, Berkely and Los Angeles, University of California Press, 1977.
  • 10 Power, Timothy, "Politicized Democracy: Competition, Institutions, and 'Civic Fatigue, in Brazil", mimeo., Dept. of Government, Universidade de Notre Dame, 1991.
  • 12 Ver de Engels, principalmente The Origins of the Family, the Private Property and the State.
  • 13 A definição weberiana pode ser encontrada em Politics as a Vocation, in Gerth, Hans and Mills, C. Wright, From Max Weber: Essays in Sociology, New York, Oxford University Press, 1958.
  • 15 Hankiss, Elemer, "A Grande Coalizão (As Mudanças na Hungria)", Lua Nova, nş 22, Dezembro 1990, págs. 35-68.
  • É o capítulo 9 de Hankiss, East European Alternatives: Are There Any, publicado em 1991 pela Oxford University Press.
  • 16 Bobbio, Norberto, The Future of Democracy - A Defense of the Rules of the Game, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1987, pp. 24, 25.
  • 17 Dahl, Robert, Poliarchy - Participation and Opposition, Yale University Press, New Haven, 1971, ch. 1.
  • 18 "O'Donnell, Guillermo and Schmitter, Philippe, Transitions from Authoritarian Rule Tentative Conclusions about Uncertain Democracies. The John Hopkins University Press, Baltimore and London, 1989 (2Ş edição).
  • 19 Schumpeter, Joseph, Capitalism, Socialism and Democracy, Harper & Row, Publishers, New York, 1975, Chaps, XXI e XXII.
  • 21A Poliarchy de Dahl tem três capítulos sobre questões sócio-econômicas. O clássico de Seymour M. Lipset, Political Man, The John Hopkins University Press, Baltimore, 1981,
  • 22 O'Donnell, Guillermo, "Democracia Delegativa?", Revista Novos Estudos CEBRAP, 31, Outubro de 1991, São Paulo.
  • 23 Uma boa análise do peso da desigualdade social no caso brasileiro pode ser encontrada em Lamounier, Bolivar, "Brasil: Inequality Against Democracy", in Lany Diamond, Juan Linz and Seymóur M. Iipset, Politics in Developing Countries - Comparing Experiences with Democracy, Lynne Rienner Publishers, Boulder 8c London, 1990.
  • 24 A explicitação desta premissa está em Valenzuela, Samuel, "Democratic Consolidation in Post-Transitional Settings: Notion, Process, and Facilitating Conditions", mimeo., Kellogg Institute, 1990.
  • 26 Tocqueville é minha referência clássica para a relação entre igualdade social e liberdade política. Discussões contemporâneas sobre o assunto podem ser encontradas em Dahl, Robert, Poliarchy, op. cit., ch. 6, "Equalities and Inequalities"; e Sartori, Giovanni, The Theory of Democracy Revisited, Chatham House Publishers, Inc., Chatham, New Jersey, 1987, ch. 12,
  • 28 Seria apropriado mencionar aqui o seminal ensaio de T. H. Marshall sobre "Citizenship and Social Class", in Marshall, T. H., Cíass, Citizenship and Social Development, Anchor Books, Londres, 1965-
  • 29 Sobre populismo, ver meu "Estado y Masas en Brasil", Revista Latinoamericana de Sociologia, Buenos Aires, 1965;
  • publicado também como "State and Masses in Brazil", in Horowitz, Irving Louis, ed, Masses in Latin América, Oxford Univ. Press, 1970.
  • Ver também Di Telia, Torcuato, "Populism and Reform in Latin América", in Cláudio Velliz, ed., Obstacles to Change in Latin America, New York, Oxford University Press, 1965;
  • e Ianni, Octávio, La formacion dei Estado Populista en America Latina, México, Ediciones Era, 1975.
  • 1
    Este capitulo é tradução da primeira parte de um ensaio que escrevi para o East-South System Transformations Seminar, coordenado por Adam Przeworski. Agradeço a Guillermo 0'Donnell, José Maria Maravall, Luiz Carlos Bresser Pereira, Phillippe Schmitter, Joseph Tulchin, Regis de Castro Andrade e Samuel Valenzuela, que leram versões preliminares e me ajudaram muito, com suas críticas e comentários. O ensaio foi iniciado no Instituto Helen Kellogg, da Universidade de Notre Dame, em 1991, e concluído, em inícios de 1992, no The Woodrow Wilson Center. Agradeço a ambas as instituições pelo apoio.
  • 2
    Schmitter, Philippe and Karl, Terry, "What Democracy Is... and Is Not",
    Journal of Democracy, Summer 1991, pág. 75.
  • 3
    Samuel Valenzuela, em seus comentários à primeira versão deste texto, sugeriu-me a seguinte definição: "novas democracias" são "casos de transição democrática em países que não têm um passado de democracia consolidada." Neste sentido, o Brasil, a Polônia e a Espanha são "novas democracias", mas não o Chile, ou Uruguai.
  • 4
    Linz, Juan,
    The Breakdown of Democratic Regimes – Crisis, Breakdown & Reequilibration, The John Hopkins University Press, 1987, 3ª edição, Baltimore and London. O mesmo argumento foi revisitado por Linz e Alfred Stepan em "Political Crafting of Democratic Consolidation or Destruction: European and South American Comparisons", in Pastor, Robert,
    Democracy in the Americas – Stopping the Pendulum, Holmes & Meier, New York-London, 1989.
  • 5
    Evidentemente, estabilidade implica mais do que isso. Implica também, por exemplo, como Seymour M. Lipset mostrou, mesmo com o risco de algum determinismo, em
    Political Man (The John Hopkins University Press, Baltimore, 1981), um nível mais elevado de desenvolvimento econômico e um certo nível de eficácia de um regime democrático. Voltarei às condições sociais mais adiante. A importância de enfatizar a "political craftsmanship" aqui é que, à parte umas poucas exceções, as "novas democracias" parecem não vir alcançando muito êxito nem em eficácia nem em desenvolvimento econômico.
  • 6
    Rustow, Dankwart A., "Transitions to Democracy",
    Comparative Politics, Volume 2, Número 3, Abril 1970.
  • 7
    Estou tomando de Schmitter apenas a perspectiva geral sobre as relações entre transição e consolidação. Ele desenvolve esta idéia em Schmitter, P., "The Consolidation of Democracy and the Choice of Institutions",
    East South System Transformations Working Paper # 7, Department of Political Science, University of Chicago, Chicago, Illinois, Setembro 1991.
  • 8
    Esta complexa estrutura é muito bem conhecida no Brasil, depois dos estudos sociológicos e políticos que começaram com Evaristo de Moraes Filho, O
    Problema do Sindicato Único no Brasil, e Azis Simão,
    Estado e sindicato. Há uma impressionante lista de artigos e livros sobre o tema, merecendo especial atenção os de Leôncio Martins Rodrigues e José Albertino Rodrigues.
    Em inglês, a melhor análise do corporativismo brasileiro é a de Schmitter, Phillipe,
    Interest, Conflict and Political Change in Brazil, Stanford University Press, 1971. Uma boa análise da história e da estrutura sindical pode ser encontrada em Erickson, Kenneth,
    The Brazilian Corporative State and the Working Class Politics, Berkely and Los Angeles, University of California Press, 1977.
  • 9
    Estou seguindo minhas notas da conferência de Genaro Arriagada sobre a transição chilena, apresentada no Instituto Kellogg, 1990.
  • 10
    Power, Timothy, "Politicized Democracy: Competition, Institutions, and 'Civic Fatigue, in Brazil", mimeo., Dept. of Government, Universidade de Notre Dame, 1991.
  • 11
    Para usar os termos de Rustow, estou adotando neste ensaio uma perspectiva "genética", focalizando as origens da democracia política, diferente de uma abordagem "funcional", que se ocuparia do funcionamento das democracias estabelecidas. Veja Rustow, Dankwart, op. cit. Como já sugerido por Rustow, em uma abordagem funcional, líderes democráticos têm maiores possibilidades de sucesso do que líderes autoritários em uma democracia consolidada. Minha hipótese aqui, de caráter genético, é que as situações nas quais a democracia ainda não está consolidada, acrescentam relevância ao papel dos líderes democraticamente conscientes.
  • 12
    Ver de Engels, principalmente
    The Origins of the Family, the Private Property and the State.
  • 13
    A definição weberiana pode ser encontrada em
    Politics as a Vocation, in Gerth, Hans and Mills, C. Wright,
    From Max Weber: Essays in Sociology, New York, Oxford University Press, 1958.
  • 14
    Deve estar, a estas alturas, evidente que, no texto, estamos nos referindo aos "velhos" autoritarismos que antecedem às novas democracias. Em todo caso, anoto que, nestas, também existem exemplos de velhas instituições democráticas. Embora sejam poucos, existem como testemunho de uma tradição democrática que vem de há mais tempo. É óbvio que o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) é uma.velha instituição democrática, na Espanha, muito anterior ao regime de Franco. Tem algo mais de um século de existência. No Brasil, um bom exemplo, embora mais recente, datando de 1930, é a Justiça Eleitoral. No Chile, pode-se mencionar o exemplo de todo o sistema partidário que é anterior ao regime de Pinochet e que a ele sobreviveu.
  • 15
    Hankiss, Elemer, "A Grande Coalizão (As Mudanças na Hungria)",
    Lua Nova, nº 22, Dezembro 1990, págs. 35-68. É o capítulo 9 de Hankiss,
    East European Alternatives: Are There Any, publicado em 1991 pela Oxford University Press.
  • 16
    Bobbio, Norberto,
    The Future of Democracy - A Defense of the Rules of the Game, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1987, pp. 24, 25.
  • 17
    Dahl, Robert,
    Poliarchy -
    Participation and Opposition, Yale University Press, New Haven, 1971, ch. 1.
  • 18
    "O'Donnell, Guillermo and Schmitter, Philippe,
    Transitions from Authoritarian Rule – Tentative Conclusions about Uncertain Democracies. The John Hopkins University Press, Baltimore and London, 1989 (2ª edição).
    A definição de Dahl, inspiradora de muitas das "definições mínimas" atuais de democracia, pode ser encontrada neste livro, no capítulo 1, página 9, nota 6.
  • 19
    Schumpeter, Joseph,
    Capitalism, Socialism and Democracy, Harper & Row, Publishers, New York, 1975, Chaps, XXI e XXII.
  • 20
    Ver Lipset,
    Political Man, op. cit.
  • 21
    A Poliarchy de Dahl tem três capítulos sobre questões sócio-econômicas. O clássico de Seymour M. Lipset,
    Political Man, The John Hopkins University Press, Baltimore, 1981, tem a intenção explícita de ser uma "sociologia da política"; vale a pena lembrar que o subtítulo de
    Polictical Man é
    The Social Bases of Politics.
  • 22
    O'Donnell, Guillermo, "Democracia Delegativa?", Revista
    Novos Estudos CEBRAP, 31, Outubro de 1991, São Paulo.
  • 23
    Uma boa análise do peso da desigualdade social no caso brasileiro pode ser encontrada em Lamounier, Bolivar, "Brasil: Inequality Against Democracy", in Lany Diamond, Juan Linz and Seymóur M. Iipset,
    Politics in Developing Countries - Comparing Experiences with Democracy, Lynne Rienner Publishers, Boulder
    8c London, 1990.
  • 24
    A explicitação desta premissa está em Valenzuela, Samuel, "Democratic Consolidation in Post-Transitional Settings: Notion, Process, and Facilitating Conditions", mimeo., Kellogg Institute, 1990.
  • 25
    Na época atual do Estado-nação, poderíamos admitir que esteja surgindo um tipo supra-nacional de cidadania (por exemplo, a cidadania Europeia, associada com a perspectiva de uma Europa unificada, a partir de 1993). Mas parece claro que tal possibilidade não está presente quando examinamos as "novas democracias".
  • 26
    Tocqueville é minha referência clássica para a relação entre igualdade social e liberdade política. Discussões contemporâneas sobre o assunto podem ser encontradas em Dahl, Robert,
    Poliarchy, op. cit., ch. 6, "Equalities and Inequalities"; e Sartori, Giovanni,
    The Theory of Democracy Revisited, Chatham House Publishers, Inc., Chatham, New Jersey, 1987, ch. 12, "Equality".
  • 27
    Sartori, op. cit., pág. 343. Lembremos que Sartori define tipos diferentes de igualdade: igualdade jurídico-política, igualdade social, igualdade de oportunidade, "igualdade" (sameness) econômica. A igualdade social significa também "a cada um a mesma importância social, isto é o poder de resistir à discriminação social" 645).
  • 28
    Seria apropriado mencionar aqui o seminal ensaio de T. H. Marshall sobre "Citizenship and Social Class", in Marshall, T. H.,
    Cíass, Citizenship and Social Development, Anchor Books, Londres, 1965- Mas evitemos confusões. A teoria de Marshall sobre o desenvolvimento da democracia (para ser sumário: dos direitos civis aos direitos políticos e destes aos direitos sociais) sugere uma discussão diferente daquele que pretendo realizar acima. Tocqueville via uma tendência à igualdade de condições nos EUA, em uma época muito anterior, nas primeiras décadas do século XIX, quando nenhuma discussão sobre direitos sociais parecia sequer possível. A referência de Marshall aos direitos sociais é, de fato, uma referência ao Estado de bem-estar social, o qual, na Inglaterra, se forma depois da Segunda Grande Guerra. É uma referência importante em si mesma, mas que vai muito além do que pretendo nesse texto.
  • 29
    Sobre populismo, ver meu "Estado y Masas en Brasil", Revista Latinoamericana de Sociologia, Buenos Aires, 1965; publicado também como "State and Masses in Brazil", in Horowitz, Irving Louis, ed,
    Masses in Latin América, Oxford Univ. Press, 1970. Ver também Di Telia, Torcuato, "Populism and Reform in Latin América", in Cláudio Velliz, ed.,
    Obstacles to Change in Latin America, New York, Oxford University Press, 1965; e Ianni, Octávio,
    La formacion dei Estado Populista en America Latina, México, Ediciones Era, 1975.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1992
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