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A angústia republicana

The republican anguish

REPÚBLICA

A angústia republicana

The republican anguish

Entrevista com J. G. A. Pocock* * Apresentação e entrevista por Cícero Araújo.

RESUMO

Entrevista com o historiador do pensamento político J. G. A. Pocock, realizada por Cicero Araújo.

ABSTRACT

Interview with the historian of political thought J. G. A. Pocock, made by Cicero Araújo.

John Greville Agard Pocock ensinou durante muitos anos nos Estados Unidos, vinte e cinco dos quais na renomada Johns Hopkins University, em Baltimore, onde é agora aposentado como professor emérito. Apesar disso, sempre que pode lembra seus leitores de que suas pesquisas são, em parte, devedoras do fato de ser um cidadão britânico, e não americano. E isso por uma razão muito simples: seus trabalhos sempre procuram salientar a continuidade de padrões de pensamento politico aparentemente muito remotos - no caso, o passado britânico - mesmo em rupturas históricas como a que levou as colônias americanas à independência.

Não por acaso, quando Pocock publicou, em 1975, The Machiavellian Moment (O Momento Maquiaveliano) - no qual procurou traçar as origens do pensamento revolucionário americano numa longa história do republicanismo, italiano e depois inglês, desde os tempos do Renascimento -, o livro, apesar de extensamente aclamado, também foi objeto de pesadas críticas de alguns historiadores americanos. Havia, e ainda há, um costume entre americanos de pensar suas origens como uma espécie de marco zero, a partir do qual uma história completamente diferente de tudo o que existiu antes começou, e ao qual é associado um certo tipo de "liberalismo" - uma certa visão das relações entre o privado e o público, cujo acento recai no privado. (O sentido de privado, aqui, sendo bastante vago para incluir vários tipos de liberdades individuais, mas nem sempre a de propriedade; digo, vago o bastante para atrair uma pluridade de críticos indignados, do socialista ao conservador, passando ate mesmo pelo liberal clássico, europeu.)

Fala-se então das "origens liberais" dos Estados Unidos. Esse liberalismo, curiosamente, é visto ou como a redenção ou como a praga que assola o país desde então. Historiador rigoroso, Pocock vem tentando mostrar que o termo, e todas as idéias a ele associadas hoje, é extemporâneo ao pensamento revolucionário americano nos anos da independência. Mais do que isso: a inspiração ideológica dos que lutaram pela independência veio da própria metrópole, via o pensamento de oposição ao sistema político que emergiu na Inglaterra a partir da Revolução Gloriosa, de 1688. Esse pensamento de oposição, por sua vez, constituía um resgate do que se havia produzido intelectualmente nos tempos dourados do humanismo cívico cultivado pelas repúblicas italianas do Renascimento (especialmente Florença) e durante os anos do governo Cromwell, os anos da primeira e única experiência republicana na Inglaterra. Sua tese é que essa tradição atravessou o Atlântico e encontrou abrigo entre os habitantes das treze colônias. Não há, portanto, algo como as origens liberais dos Estados Unidos, embora os chamados "pais fundadores" do país estivessem empenhados em adaptar a herança republicana às circunstâncias inéditas que tinham diante de si.

E daí se entende a ira daqueles historiadores, particularmente dos que pensam que tal liberalismo é o pecado original do país. Porque se não há liberalismo na raiz, uma boa parte da questão de se erradicar ou não suas origens liberais perde sentido. No mínimo, todo o lado histórico da questão - que continua, como uma espécie de big bang politico, a exercer sua influência tanto nas instituições políticas quanto no debate contemporâneo - tem de ser rearranjado. Sem que isso seja bem percebido, contudo, as freqüentes jeremiadas antiliberais de porções significativas dos intelectuais americanos nada mais são do que convulsões do contraditório estado de consciência republicana que, segundo Pocock, "atormenta" as cabeças dos cidadãos desse país desde sempre. Aqui vale a pena chamar a atenção, agora deixando de lado seu traço polêmico, para um aspecto analítico dos estudos de Pocock, e que constitui o pano de fundo das respostas dadas à entrevista abaixo.

A oposição política ao sistema de governo inglês nascido da Revolução Gloriosa - a que nosso entrevistado chama de "o sistema Hanoveriano" ou "da Corte" (Hanover é o nome da dinastia que detém a coroa britânica a partir de 1714) - se ergue contra as formas que o rei, o chefe do poder Executivo, passa a privilegiar para controlar o Parlamento, então reconhecido definitivamente como o poder Legislativo, e soberano, do país. Tais formas constituíam um tripé cujo vértice era o esquema de sustentação financeira do aparato governamental montado a partir do Banco da Inglaterra, fundado em meados dos anos 1690. Esse esquema, chamado de "a dívida nacional" ou "o crédito público", era ancorado numa espécie de penhora das arrecadações futuras dos impostos e, portanto, indiretamente nos bens reais dos súditos, isto é, suas terras, em troca das quais agentes privados emprestavam dinheiro à Coroa. A dívida nacional, por sua vez, primeiro dava ao rei a capacidade material para garantir o suporte político do Parlamento, através da "patronagem real" - a oferta de cargos, pensões e uma série de outros privilégios aos representantes dos cidadãos no Parlamento -, em troca de irrestrito apoio ao projetos da Corte; e, segundo, viabilizava a sustentação de um "exército permanente", necessário à expansão colonial e às incursões militares no continente europeu, as quais se tornavam cada vez mais freqüentes em virtude da competição com a França.

A oposição ao sistema Hanoveriano ergueu-se precisamente contra este tripé - a dívida nacional, a patronagem e o exército permanente -que era visto como uma ameaça a dois fundamentos da "liberdade dos súditos". Primeiro, a "balança da Constituição", isto é, o equilíbrio de poderes entre os três componentes do governo: o rei, os lordes e os comuns. Segundo, os meios de independência política dos simples cidadãos, os quais eram associados à propriedade da terra. O crescimento da dívida nacional tornava precária a segurança da propriedade da terra e a hipertrofia da Coroa ameaçava a balança constitucional, a qual, ao se combinar com a existência de um exército permanente sob controle direto da Corte, punha o país sob o fantasma de uma tirania militar. Quando os colonos no outro lado do Atlântico se revoltaram contra o Império Britânico, eles não fizeram outra coisa senão se apropriar desse arsenal ideológico acumulado pela oposição que surgiu na própria metrópole. Essa herança deixou marcas inconfundíveis nos documentos fundadores dos Estados Unidos - entre os quais a Declaração da Independência, de 1776, e a Constituição Federal, de 1787 - e que são até hoje as balizas quase sagradas de sua política.

Posto nesses termos, o ataque ao governo britânico foi construído a partir de elementos clássicos do discurso republicano renascentista: a idéia de que todas as formas de governo estão sujeitas à "corrupção", que a "virtude cívica" dos súditos é a grande barreira contra a corrupção dos governos e que o civismo não pode ser cultivado sem que haja meios de independência dos governados em relação aos governantes, cujo pressuposto é a. propriedade da terra. Um discurso, ademais, que parecia colocar em questão recentes desenvolvimentos da economia política moderna: a crescente substituição da propriedade imóvel pela móvel - a economia monetária e seus desdobramentos na forma do mercado de crédito e outros - e a expansão sem precedentes das trocas comerciais e da divisão do trabalho.

A preservação da propriedade da terra era associada à unidade da personalidade moral do súdito, enfim, sua integridade como cidadão; enquanto seu envolvimento crescente com esse mundo da economia política moderna representava uma ameaça a essa mesma integridade. Chegamos aqui ao ponto crucial da análise de Pocock. A apropriação do discurso republicano clássico pela oposição ao sistema Hanoveriano e, depois, pelos colonos americanos, colocava-os sob uma tremenda tensão ideológica. Pois eles estavam dispostos a admitir a necessidade, e até a inevitabilidade, da economia monetária, do comércio e da divisão do trabalho. Mas ao mesmo tempo lutavam, furiosamente, para estabelecer limites ao seu uso, para evitar que atingissem o coração da "nobre atividade da política". Daí o ataque, não à economia monetária em si, mas à dívida nacional, e não à divisão do trabalho em si, mas à especialização do representante dos cidadãos como político profissional dedicado em tempo integral às intrigas do Parlamento e da Corte, ou à especialização do cidadão-miliciano como soldado profissional.

Porém, mesmo esses limites não necessariamente evitariam que o que deveria permanecer na periferia gradativamente avançasse e ocupasse o centro da atividade política, pois cada vez mais todos os segmentos da sociedade estavam envolvidos com o mundo do comércio, da divisão do trabalho e da especulação monetária. Como manter a política imune a isso? O espectro da corrupção, não apenas dos governantes, mas dos governados, parecia ser um dado permanente dos novos tempos. Esta é a angústia republicana, a fonte do estado de consciência "atormentado" de que fala Pocock.

Na América, essa angústia será sentida de forma ainda mais aguda desde que, rompidos os laços com a metrópole, os pais fundadores, pressionados pela realidade, se viram sob o imperativo de desenvolver, dadas as enormes dimensões territoriais do novo Estado, um governo centralizado com base em representantes dos estados, além de um novo sistema de crédito público, para custear as crescentes despesas da União. O debate se restabelece então, desta vez entre os próprios revolucionários, a respeito da necessidade de se limitar e evitar o abuso desses novos instrumentos. O que acabará colocando em pólos opostos duas de suas mais respeitáveis personalidades - o futuro presidente do país (1801-1808) e principal autor da Declaração da Independência, Thomas Jefferson, líder da "facção republicana", e o secretário do Tesouro do primeiro governo do presidente George Washington, Alexander Hamilton, líder da "facção federalista".

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Na entrevista que segue, Pocock nos fala um pouco mais dessa e de outras contribuições de sua historiografia.

Cicero Araújo (C.A.) - Em que sentido a tradição republicana da América Revolucionária se opõe à liberal?

Pocock - Eu duvido que houvesse uma "tradição liberal" no século XVIII, e conseqüentemente não acredito que, neste sentido, a tradição republicana era oposta a ela. Alguns autores, porém, acreditam tanto nisso que não duvidam de sua existência como uma expressão dessa oposição. Eu vejo a tradição "republicana" como oposta ao sistema de governo Hanoveriano ou "da Corte" [que se instalou na Inglaterra após a "Revolução Gloriosa", de 1688] baseado na patronagem do rei, no parlamentarismo aristocrático, na dívida pública e no exército permanente. Mas isso não é o que costumamos chamar de "liberalismo". Thomas Jefferson pensou que seu companheiro na luta pela independência, Alexander Hamilton, estava tentando introduzir esse mesmo sistema nos Estados Unidos, e seus Republicanos atacaram os Federalistas precisamente nesses termos.

Um modo melhor de estabelecer a oposição "republicano versus liberal" é aplicar o último termo a "democracia representativa" como oposta a "democracia direta". James Madison, no artigo 10 dos Artigos Federalistas [publicado em 1787-8, e escrito com Alexander Hamilton e John Jay; o texto é anterior à cisão entre Hamilton e Jefferson], escreveu que um estado em que os cidadãos governassem a si mesmos diretamente seria uma "democracia" e só poderia ser um estado pequeno; enquanto um estado em que fossem governados por representantes, eleitos por esses mesmos cidadãos, seria uma "república" e poderia continuar se expandindo indefinidamente, como os Estados Unidos fizeram. Este era o único modo de imaginar uma imensa república, de dimensões continentais, mas implicava uma reversão de linguagem. O que Madison chamava "democracia" sempre tinha sido chamada "república", mas não havia uma palavra para o que ele chamava "república". Assembléias representativas eram meios através dos quais os reis faziam consultas a seus súditos.

Quando a palavra "liberal" é associada à democracia representativa, ela carrega o significado de que o povo tem outras coisas a fazer com o seu tempo do que governar a si mesmos: eles deixam esse encargo aos seus representantes, e restringem-se a elegê-los. Eis o problema: cidadãos republicanos sempre pensam que isso não é suficiente, e temem que os representantes se tornem corruptos e passem a dominar aqueles que os elegeram. Os pais fundadores da América estavam comprometidos com a democracia representativa, mas eram republicanos o bastante para compartilhar esse temor - como continua sendo o caso em muitos países onde há democracia representativa.

C. A. - Aliás, você pensa que a tradição que investigou é mais do que uma disposição contra a monarquia. Você fala também de um estado de espírito atormentado...

Pocock - Eu a vejo como um estado de espírito atormentado porque, para a consciência republicana, a cidadania e a igualdade são sempre historicamente contingentes, sempre inseguras e ameaçadas pela corrupção. Mas é matéria para discussão se elas podem ser obtidas sem que sejam negadas a outros. Embora eu não soubesse disso quando escrevi a respeito, Isaiah Berlin faz a mesma afirmação, à sua maneira.

C. A. - E o que dizer da influência de John Locke, geralmente reconhecido como o pai do liberalismo, na fundação dos Estados Unidos?

Pocock - Na verdade, há duas questões aqui. Primeiro: eu escrevi divergindo de Louis Hartz [autor de um livro clássico sobre as origens liberais da América], que argumentava que todos os americanos pensavam como Locke, já que a ausência de feudalismo não lhes deixaram outra alternativa senão pensar como ele. A implicação era que Locke seria o autor de um "liberalismo" endêmico à América inglesa. Isto para mim não tem sentido: Locke na verdade pensou estabelecer uma ordem "feudal" na América, como atesta seu escrito sobre as Constituições da Carolina. O que procurei mostrar - e não sou o único a fazê-lo - é que primeiro devemos nos livrar da idéia de que tudo que aconteceu (em termos de idéias políticas) na Grã-Bretanha e na América veio de Locke e só então entender de que maneiras ele foi de fato importante. Infelizmente, muitos de meus críticos supõem que eu disse que ele não foi importante, e pensam que desqualificam meu ponto sempre que encontram um modo de mostrar que ele foi.

Segundo: eu vejo dois modos em que Locke foi muito relevante para a América. Primeiro, três de seus textos — o Ensaio sobre o Entendimento Humano, a Razoabilidade da Cristandade e a Carta sobre a Tolerância - ajudaram a produzir uma filosofia que rompe com o passado Aristotélico e Platônico, e encoraja uma teologia (então chamada "Socianismo") em que Cristo não precisa ser tão completamente divino a ponto de ser o igual do Pai. Isso tem como conseqüência diminuir o poder da Igreja e favorecer uma religião em que a fé é mais importante do que seu conteúdo dogmático. Daí o Unitarianismo, o Deísmo e a Maçonaria, tão importantes para alguns dos que fizeram parte da geração que fundou a América. Segundo, a idéia lockeana da "dissolução do governo", tal como aparece no Segundo Tratado sobre o Governo, foi empregada na Declaração da Independência americana de uma maneira que mesmo ele, Locke, não tinha em mente: isto é, imaginar dois povos afirmando sua capacidade de auto-governo e dissolvendo seus laços recíprocos.

C. A. - Você lembra em seus trabalhos que a forma da propriedade - mobiliária ou imobiliária - teve implicações políticas sérias no século XVIII inglês. Quais as repercussões disso na América revolucionária?

Pocock - Na teoria republicana, o cidadão deve ser senhor pelo menos de si mesmo, e é melhor que possua alguma coisa, a fim de não se tornar dependente de outro. Na teoria antiga isso se materializava em três fundamentos: terra mais escravos mais armas. Na Europa medieval e moderna nascente, na junção de terra mais direitos legais mais servos mais armas. A terra era sólida e real e durava mais que seu proprietário, de modo que providenciava o melhor fundamento para a cidadania.

Contudo, isso se complicou com o crescimento da economia monetária. Se sua riqueza fosse móvel, também o seria sua cidadania, e sua personalidade. Se você fizesse comércio com outros, você se tornaria dependente em suas relações com eles. Poderia o cidadão, que deveria ser autônomo, ser ao mesmo tempo um ser social? Esta é a tensão entre o político e o social no pensamento republicano.

Por causa de tudo isso, havia um sentimento de que a república deveria estar enraizada na terra. Jefferson acreditava nisso, mas, como todo mundo em seu tempo, acreditava também que a função da terra era produzir bens excedentes para serem vendidos no mercado. Algumas pessoas insistem que eu disse que Jefferson era hostil ao capitalismo empresarial no plano individual. Eu nunca disse isso. Ele era sim hostil à idéia de um Estado acumular grandes dívidas públicas para continuar governando com base no crédito. Porque ele pensava que isso tornaria todo mundo dependente da manipulação financeira, o qual determinaria o valor da propriedade de todos. Ele achava que Hamilton queria governar através de uma classe de bem-sucedidos investidores nos papéis do governo. Uma coisa é o individualismo empresarial; outra coisa é o Estado como um mecanismo de crédito, e o pensamento republicano sempre esteve preocupado com isso desde que tal mecanismo apareceu na Inglaterra, na década de 1690 [com a fundação do Banco da Inglaterra].

C. A. - Está certo, mas o que acontece quando pessoas sem propriedade ingressam na arena política? Isso também não deveria causar desconforto ao ideal republicano?

Pocock - Na verdade a palavra "propriedade" não significa a coisa de que você é dono, mas o direito que você tem sobre ela. Indivíduos que não possuíssem terra ou bens ainda poderiam afirmar que tinham propriedade ou direito sobre seu próprio trabalho, ou então sobre si mesmos. Eles ainda teriam de mostrar que não eram servos à disposição da vontade de um senhor, mas apenas de sua própria. Para trabalhadores industriais, ainda que vivendo em bairros miseráveis, isso era mais fácil de mostrar do que para aprendizes e servos domésticos vivendo com seus senhores numa economia doméstica.

C. A. - E quanto às mulheres? Montesquieu costumava dizer que elas eram mais influentes nas cortes dos reis do que nas assembléias dos cidadãos.

Pocock - Era comum se pensar que, como as mulheres não empunhavam armas ou governavam outros, elas não poderiam existir como cidadãs e existiam apenas no lar, sendo então representadas (se tanto) por seus pais e maridos. O que mudou isso foi o surgimento, no século XVIII, da crença de que os seres humanos são seres sociais, vivendo através de suas "maneiras" ou códigos de conduta, os quais eram aprendidos na sociedade civil. As mulheres passam então a aparecer em padrões de interações sociais cuja função, como a do comércio, era a de amaciar e refinar as maneiras dos homens. Mas isso não as tornava cidadãs ou iguais aos homens. Para tanto, elas precisariam tornar-se republicanas e, com isso, enfatizar o político contra o social. Eu suspeito que foi um erro da parte das feministas negar que a esfera pública é diferente da privada. Mas sou alvo de abuso pessoal toda vez que digo isso.

C. A. - A Revolução Francesa é também considerada uma grande herdeira da tradição republicana. Mas algumas pessoas acreditam que a chamada "questão social" é a grande diferença que separa os eventos franceses dos americanos. Você acha que isso ajuda a explicar por que a virtude cívica foi tão sangrenta na França?

Pocock - Nos Estados Unidos não houve algo como o Reino do Terror ou como o Império Napoleônico. A explicação clássica disso é a chamada "tese da fronteira": havia uma enorme quantidade de terras esperando para serem ocupadas por meios que implicavam guerra apenas contra indígenas (os mexicanos certamente têm algo a dizer a respeito...). Portanto não houve nenhum assalto revolucionário contra relações sociais existentes, pelo menos até a fronteira ser fechada e a luta entre capital e trabalho se tomar violenta, porém nunca revolucionária. Também o Estado não teve de organizar a si mesmo como um império militar a conquistar os estados vizinhos (nem mesmo o México). "Republicanismo", neste caso, pôde expressar-se como uma busca de terras desocupadas. Mas, depois, acabou tendo de se haver [no limiar da Guerra Civil] com o problema de se tal ocupação deveria ser conduzida por trabalhadores livres ou por homens livres em posse de trabalho escravo.

C. A. - Você falou da América como um "império", e da idéia dos fundadores de que sua república era vocacionada para a expansão territorial. Contudo, durante o século XVIII (por influência de Montesquieu, outra vez), pensava-se que a construção de um "império" estava melhor associada a monarquias, e não a repúblicas.

Pocock - Por volta de 1780 o "império" do Rei da Grã-Bretanha significava sua soberania sobre todos os seus "reinos" - Britânico, Irlandês e Americano -, já que o hábito de usar "império" para indicar colônias dependentes não estava estabelecido ainda. Quando as colônias tornaram-se independentes, elas trataram de se estabelecer como vários estados e um império; elas não tinham nenhum problema em chamarem-se assim.

Os fundadores sabiam, pela história romana, que uma república que adquirisse um império poderia acabar sendo absorvida por ele. Mas os Estados Unidos puderam ser ambos, uma república e um império, por duas razões. Primeiro, porque havia um suprimento infinito da terra que tornava os homens cidadãos livres. Segundo, porque o federalismo democrático oferecia um caminho no qual as populações democráticas poderiam transformar territórios desocupados em estados da União. Assim, a última poderia continuar se expandindo como um "império da liberdade". A empreitada de fato funcionou apesar da Guerra Civil [1861-1865], que foi, como disse, uma luta entre dois modos de fazer isso. Republicanismo e governo representativo acabaram não colidindo nesta estória.

C. A. - Muita atenção é dada hoje ao possível conflito entre democracia e o poder judiciário nos Estados Unidos. Mas o fato é que a Corte Suprema, apesar de não eleita, é um corpo coletivo, enquanto a Presidência exerce um papel quase monárquico. Isso não deveria preocupar a consciência republicana?

Pocock - Em teoria, uma república pode conter um elemento de monarquia, já que classicamente ela é uma balança entre monarquia, aristocracia e democracia, idéia que evolveu para a da balança entre os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. O presidente dos Estados Unidos é um monarca eletivo neste sistema, em muitos sentidos próximo dos reis hereditários do Velho Regime. Contudo, na prática, havia um problema com o Rei da Grã-Bretanha que, como chefe do componente Executivo, possuía poderes de patronagem que podiam ser usados para corromper os outros dois componentes e então desequilibrar a balança. Jefferson acusava George III (então rei da Grã-Bretanha) de fazer isso, e depois acusou Hamilton de também querer fazê-lo na jovem república. Os freios e contrapesos (checks and balances) do governo dos Estados Unidos foram pensados para evitar que isso acontecesse.

Os juizes da Suprema Corte são indicados pelo presidente, confirmados pelo Congresso e virtualmente irremovíveis depois disso. Porém, tornou-se uma questão nas eleições presidenciais que o candidato pode prometer que, se eleito, ele preencherá vagas na Suprema Corte indicando juizes com esta ou aquela convicção: pró ou contra o aborto ou os direitos dos estados. Mas o presidente não terá muito controle sobre o comportamento deles uma vez que assumam seus postos, e há limites para a habilidade do juiz de interpretar a lei do modo que ele queira.

C. A. - Qual a vantagem de se escrever a história ideológica americana do ponto de vista de um cidadão britânico?

Pocock - Desde que meu assunto é a história britânica, estou interessado nos modos em que as histórias dos Estados Unidos e da Irlanda foram conformadas por ela e dela se afastaram. Como não sou nem americano, nem irlandês, vejo a história deles de um modo que eles próprios não se vêem. Por "história britânica" eu quero dizer as histórias entrelaçadas de todos os povos - ingleses, escoceses, irlandeses, americanos, canadenses, australianos etc - que estão ou estiveram envolvidos nisso.

C.A. - Conte-nos um pouco sobre o livro que você acaba de publicar [Barbarismo e Religião], sobre o historiador inglês do século XVIII Edward Gibbon. Por que esse interesse especial em Gibbon?

Pocock - Como escrevi no prefacio do primeiro volume do livro, Gibbon entendia a tese republicana o suficiente para concordar que o declínio da virtude cívica explicava a queda do mundo antigo, mas como um amigo de David Hume e Adam Smith, ele não acreditava que o processo se repetiria no mundo moderno, onde o comércio e as boas maneiras tinham tanta importância quanto a virtude. O outro aspecto de seus escritos que me fascina é o encaminhamento de seu livro [o Declínio e Queda do Império Romano] na direção de uma história da Teologia Cristã e da autoridade eclesiástica, e como o pensamento iluminista e protestante entendiam esse processo. Sempre fui interessado na historiografia como uma espécie de pensamento político.

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    Apresentação e entrevista por Cícero Araújo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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