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A RELAÇÃO ENTRE O PAPEL DO TRABALHO E A CRESCENTE PERDA DE CONDIÇÕES DE AÇÃO POLÍTICA NOS ESTADOS NEOLIBERAIS CONTEMPORÂNEOS

THE RELATION BETWEEN THE ROLE OF LABOR AND THE INCREASING LOSS OF CONDITIONS FOR POLITICAL ACTION IN CONTEMPORARY NEOLIBERAL STATES

Resumo:

Este artigo se propõe a pensar sobre a relação entre a atividade do trabalho e a da ação política na fundação e desenvolvimento do Estado moderno e em seus desdobramentos nas sociedades neoliberais contemporâneas. Partindo da noção de liberdade política em Hannah Arendt, e de sua crítica ao caráter negativo da liberdade no Estado de bem-estar social, identifico limites e contribuições ainda atuais de seu pensamento. Em seguida, a partir de referências contemporâneas do pensamento político e social, trato da condição de ação política no contexto do capitalismo avançado, em que a perda da liberdade – que Hannah Arendt considerava uma liberdade meramente negativa – gradativamente limita ou mesmo impede a ação política dos cidadãos, mantendo-os atrelados principalmente a atividades e interesses vinculados à sobrevivência biológica, e desvinculados de compromissos éticos com o bem comum.

Palavras-chave:
Ação Política; Trabalho; Liberdade; Cinismo

Abstract:

This study aims to think about the relation between the role of labor and political action in the foundation of modern States and its repercurssion in contemporary neoliberal societies. Based on Hannah Arendt’s notion of political freedom and her criticism of the negative feature of freedom in the Welfare State, I identify the limits and still current contributions of her thought. Subsequently, according to contemporary references on political and social thought, I set out to investigate the conditions of political action in the context of advanced capitalism, in which the loss of freedom – which Hannah Arendt considered “negative” – gradually reduces or even prevents citizens’ political action, keeping them first and foremost connected to biological survival activities and interests, as wells as unable of ethical commitments with the common good.

Keywords:
Political Action; Labour, Freedom; Cinicism

Para pensar no problema da relação entre o papel do trabalho e da ação política nos Estados modernos, e em seus desdobramentos nas sociedades neoliberais contemporâneas, partirei da noção de liberdade política em Hannah Arendt (1906-1975), apresentando as razões pelas quais ela identifica as bases da fundação do Estado nacional moderno e o Estado Providência do século XX como formas de governo que levam os cidadãos a um distanciamento em relação ao espaço público, ou seja, em relação à disposição de tomar iniciativa e agir em conjunto, visando o bem comum. Em seguida, a partir de revisão de bibliografia secundária, problematizo alguns dos limites da teoria política de Arendt, vinculados à impossibilidade conceitual e sistêmica de separar os âmbitos “social”, “político” e “econômico”. Como última etapa, a partir de autores da sociologia e da filosofia política contemporâneas, apresento as transformações do capitalismo e de sua relação com as atuais condições de trabalho e com as possibilidades de ação política de indivíduos inseridos nessas condições, uma vez que a falência da crítica e a perda de sentido e crença em narrativas que deem conta de estruturar racionalmente modos de vida refletidos e compartilhados contribuem para a disseminação de um cinismo generalizado. Com isso, dedico-me à reflexão sobre o papel decisivo das incertas condições contemporâneas de trabalho como elemento desagregador da capacidade de ação coletiva, em vez de atribuir à condição de seguridade social, propiciada pelas experiências do Estado de bem-estar social, a causa da apatia que desvincula as pessoas da disponibilidade de exercerem de fato sua liberdade política.

O papel da vida nos Estados modernos e a centralidade do valor do trabalho

É no século XVI, na Europa, com o aumento da autonomia econômica de proprietários em ascensão, que surgiu a reivindicação de que o governo passasse a arbitrar as relações comerciais e a proteger a propriedade daqueles que percebiam, nos inícios do capitalismo, que a propriedade é capaz de gerar mais propriedade. Assim, surgiu a demanda de que fosse criado um Estado com leis estáveis e poderes limitados, que protegesse e respeitasse a propriedade e a liberdade civil e econômica dos indivíduos; um governo que representasse a proteção da riqueza privada e o controle da luta entre os proprietários por mais riqueza, de modo que o único elemento em comum entre as pessoas seriam seus interesses privados. Dessa forma, o domínio público se rege por uma demanda do domínio privado, enquanto o domínio privado passa a ser “a única preocupação comum que restou” (Arendt, 1998ARENDT, Hannah. 1998. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press. , p. 69). 1 1 Todas as citações de obras em língua estrangeira foram traduzidas pelo autor.

Porém, o fundamento da propriedade em seu sentido moderno (e, acima de tudo, liberal) passa a não ser mais de um lugar fixo no mundo, de um refúgio que abriga o que não deve aparecer à luz do dia para os outros: a propriedade, além de ser multiplicável e geradora de mais riqueza, passa a ter no corpo do indivíduo a sua base e princípio, constituindo sua primeira e inalienável propriedade, que não se pode tirar sem que se tire com isso a sua própria vida, e a qual não se tem como compartilhar. Com a filosofia de John Locke (1632-1704) como fundamento teórico do liberalismo no século XVII, o corpo passa a ser considerado a primeira propriedade, e “a obra de suas mãos” (Locke, 1952LOCKE, John. 1952. The Second Treatise of Government. New York: The Liberal Arts Press. , p. 71), por consequência, passa a ser sua por direito.

Com o liberalismo o trabalho aparece como o fundamento da propriedade, e a defesa desta como o sentido da existência do Estado, uma vez que a propriedade consiste na vida biológica (o corpo), nos bens conquistados pelo trabalho e numa concepção de liberdade. Assim, enquanto ao longo da tradição o trabalho sempre estivera relacionado ao fardo da necessidade, da falta, da penúria e da pobreza, com Locke, ele aparece como a fonte da riqueza e da prosperidade. Por esse caminho a modernidade abre espaço para uma mudança na compreensão sobre a fatalidade da pobreza, desnaturalizando a noção de que ela seria “inerente à condição humana” (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 22), acabando por gerar, cerca de pouco mais de um século depois, o propósito do combate à miséria por meio de direitos humanos e civis, e que na França se materializaria enquanto Revolução.

Chegando ao corpo como primeira propriedade, chegamos à vida como elemento central da justificação do Estado moderno e, com isso, ao que Arendt chama de “questão social” e ao modo como ela assume a dianteira das questões políticas. Ou seja, o cuidado com a vida, que sempre foi reservado a um âmbito doméstico/privado de preocupação, passa a ser uma questão pública. A distinção entre a vida biológica/natural – que Aristóteles chamou de zoé (enquanto somente o que faz do indivíduo humano um exemplar de sua espécie animal) – e a vida qualificada, a vida boa e propriamente política – que chamava de bios (Aristóteles, 1959ARISTÓTELES. 1959. Politics. Tradução de H. Hackham. Cambridge: Harvard University Press. ) , é subvertida:

Desde o advento da sociedade, desde a admissão do lar e das atividades domésticas no domínio público, tem sido uma das características notáveis do novo domínio uma irresistível tendência de crescer, de devorar os antigos domínios do político e do privado, assim como a mais recentemente estabelecida esfera da intimidade. Este constante crescimento, cuja aceleração não menos constante podemos observar ao longo de pelo menos três séculos, deriva a sua força do fato de que, por meio da sociedade, é o próprio processo da vida que, de alguma forma ou de outra, foi canalizado para o domínio público

(Arendt, 1998ARENDT, Hannah. 1998. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press. , p. 45).

A política ocidental pré-moderna se estruturou na exclusão da vida biológica, delimitando o seu espaço de direito ao domínio privado, uma vez que no domínio público vigoraria aquilo que fosse especificamente humano, ou seja, a articulação de visões de mundo por meio da linguagem, das ações e das distinções entre bem e mal, justo e injusto, adequado e inadequado (Aristóteles, 1959ARISTÓTELES. 1959. Politics. Tradução de H. Hackham. Cambridge: Harvard University Press. ), que tornam possível gerar narrativas de vidas humanas que se constituam como biografias, por conta da especificidade da trajetória de cada agente. Por outro lado, os Estados modernos buscam encontrar a bios da zoé , transformar a zoé em forma de vida, criar uma dignidade própria ao âmbito da vida que é indistinta entre os indivíduos por pertencer ao ciclo biológico da espécie humana como uma espécie entre outras, de modo que “o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua enquanto tal, constitui o evento decisivo da modernidade” (Agamben, 2010AGAMBEN, Giorgio. 2010. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG. , p. 12). É sobre os fundamentos dessa tese e as implicações dessa mudança que busco pensar.

Em Sobre a Revolução , Hannah Arendt busca compreender como isso aconteceu por meio da análise dos documentos e eventos em torno das revoluções francesa e americana. Algo digno de nota é que, citando a obra The First American Revolution , de Clinton Rossiter, ela aponta a hipótese de que a experiência da colonização dos Estados Unidos (ou seja, muito antes da revolução americana na segunda metade do século XVIII) teria sido a inspiração para a teoria contratualista liberal, por conta das notícias de como a auto-organização dos colonos proprietários era capaz de gerar acordos e compromissos entre indivíduos para a organização de um governo, por meio de um contrato mútuo entre os sujeitos envolvidos. O ponto relevante nessa história é que a América do Norte – onde se consolidariam os Estados Unidos – passou a ser considerada um lugar em que, por mais que houvesse colonos pobres, diferentemente do resto do mundo, não havia miséria, de modo que tempos depois, segundo Arendt, na época da revolução, não teria sido o âmbito da necessidade vital (a questão social) que teria gerado a fundação de um novo corpo político por meio da revolução americana, mas sim a intenção de fundar uma nova forma de governo em que houvesse de fato a liberdade pública e a participação efetiva dos cidadãos no poder, em vez da liberdade privada enquanto libertação das necessidades e da política, restrita à conquista de direitos civis. 2 2 Cabe, porém, ressaltar que “a ausência da questão social da cena americana era, afinal, totalmente enganadora, e que a miséria abjeta e degradante estava presente em toda parte na forma de escravidão e do trabalho negro” (Arendt, 1990 , p. 70).

Dessa forma, haveria o desejo pela experiência de um tipo de liberdade diverso da vivida pelos súditos ingleses, sendo denominada tanto como “liberdade pública” quanto como “felicidade pública” (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 127), ou seja, um tipo de felicidade decorrente da efetiva participação no poder público, com o prazer no brilho de aparecer diante dos outros com atos e palavras significativos, e de disputar diretrizes sobre o melhor a fazer no que se refere ao bem comum – o que indicava a insuficiência da felicidade meramente privada. Por outro lado, considerando os textos dos fundadores do governo americano (Thomas Jefferson, John Adams etc.), Arendt identifica que ali consta também o juízo segundo o qual aqueles que se ocupam diretamente do governo não são felizes, carregam um fardo, atuam na política como um mal necessário para se alcançar um fim maior, que não é político: a felicidade da sociedade. A felicidade nesse sentido, como os próprios fundadores reconheciam, localiza-se fora do domínio público, na intimidade do lar, na proximidade dos amigos e nas realizações pessoais (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 128). Desse modo, ela identifica que, por mais que na Declaração da Independência Americana não esteja clara a diferenciação entre felicidade pública e privada, a “ pursuit of happiness ” ainda deixava em aberto os dois sentidos de felicidade, o bem-estar e a participação na coisa pública. 3 3 Na Declaração de independência americana constam dentre os direitos inalienáveis a vida, a liberdade e a busca de felicidade . Disponível em: https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript . Acesso em: 18 de março de 2024. Mas o fato é que o segundo significado acabou por ser rapidamente esquecido, e o termo “felicidade” “sem o seu adjetivo qualificativo original pode bem ser o padrão para medir a perda do significado original e o esquecimento do espírito que tinha sido manifesto na Revolução” (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 132).

Em suma, a revolução motivada pela busca da liberdade política resultou no triunfo da liberdade civil, e o domínio do oikos se impôs sobre a pólis , na medida em que liberdade para a busca individual por felicidade se impôs como característica central das sociedades liberais. Assim, prezou-se pelo que Arendt entendia por “liberdade negativa”, que é o equivalente à liberdade civil – ou seja, correspondendo à garantia de não sofrer repressão injustificada, ao direito de reunião, de petição (reunião com o fim de requerer que o governo repare injustiças) e de não ser submetido à miséria e à condição de medo de sofrer opressões em geral (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 32) –, e não pela liberdade de participação ativa no governo, que consistiria na liberdade propriamente política.

No caso da França do século XVIII, por outro lado, o nível da miséria e das condições degradantes de vida da imensa maioria da população era estarrecedor. Ainda assim, Arendt afirma que o termo “povo”, enquanto grupo geral que luta por interesses, nunca significou “os pobres”, e muito menos no século revolucionário francês. O que estava em jogo era que a burguesia, por não ter acesso ao poder político no interior de uma monarquia absoluta, se julgava oprimida e no direito de se qualificar enquanto “povo”, sem que com isso houvesse o interesse na promoção social dos pobres, ou na igualdade de oportunidades – tal qual hoje as ciências sociais entendem o termo “questão social”. Ou seja, a revolução foi fomentada por reivindicações “contra a tirania e a opressão, e não contra a exploração e a pobreza” (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 74). Com a diferenciação clara entre uma elite ilustrada e a massa de trabalhadores, pensava-se que o justo e racional seria que essa elite cuidasse dos direitos e liberdades das pessoas, de modo que, mesmo entre os liberais do século seguinte, não houve qualquer ideal de que os pobres deixassem de ser pobres ou alcançassem o esclarecimento.

A libertação da tirania monárquica, para a massa de miseráveis, não significava diferença efetiva de sua situação; eles precisavam de uma segunda libertação: em relação ao nível ultrajante das mais básicas necessidades. Não havia vínculo objetivo entre os revolucionários – que se assumiam como representantes do povo – e a população pobre. Por isso Robespierre (1758-1794) passou a reivindicar uma solidariedade com esta, que não tinha a ver com a fundação da república ou com a liberdade, mas com a ideia de bem-estar e a felicidade do maior número. É a partir desse momento que a palavra “povo”, além de abranger os que não participavam do governo, passou a abranger os excluídos pelo fardo da desgraça e da infelicidade. O sentimento de compaixão por essa população passa a ser invocado como a maior virtude política, e o bem-estar destes toma a frente de qualquer noção quanto à forma de governo. Ou seja, a partir da urgência de resolver o problema social, a fundação de um novo corpo político em bases republicanas após a queda da monarquia deixa de ser o principal objetivo, e, ao contrário, a felicidade do maior número se torna argumento para os jacobinos justificarem a tirania e a violência irrestrita, o Terror. Em suma, o diagnóstico de Hannah Arendt quanto à herança que foi legada a estes dois países (e aos Estados democrático-liberais em geral) foram, ao invés da busca pela liberdade pública e pelo espírito público, as

liberdades civis, o bem-estar individual do maior número e a opinião pública como a maior força que governa uma sociedade igualitária e democrática. Esta transformação corresponde com grande precisão à invasão do domínio público pela sociedade; é como se os princípios originariamente políticos fossem traduzidos em valores sociais. […] os revolucionários aprenderam que os princípios de inspiração iniciais tinham sido anulados pelas forças nuas da carência e da necessidade

(Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 221).

Enquanto por meio do pensamento de Locke podemos observar o valor atribuído ao trabalho por conta de seu poder de gerar acumulação de riqueza – assim como sua relação com as revoluções do século XVIII –; no século XIX, com Karl Marx (1818-1883) e o movimento dos trabalhadores, o trabalho se torna a atividade de distinção ontológica do ser humano, e o ato de prover o sustento e a manutenção digna da vida atinge o coração da compreensão sobre a importância da política. O significado liberal da propriedade entra em choque com a realidade dos trabalhadores das fábricas, uma vez que a teoria não se aplica ao seu modo de trabalho, porque, por princípio, não se tornam proprietários do que produzem, assim como a noção de “obra de suas mãos” se torna dificilmente identificável, uma vez que o trabalhador passa a ocupar somente uma pequena etapa isolada na linha de produção, não produzindo integralmente obra alguma. A configuração socioeconômica resultante do desenvolvimento industrial fez com que Marx trouxesse à tona a reivindicação da socialização da riqueza produzida, e para isso recorreu ao valor do trabalho a partir da noção do valor de uso, definindo-o como a “eterna necessidade natural para viabilizar o metabolismo ( Stoffwechsel ) entre o ser humano e a natureza, ou seja, a vida humana” (Marx, 2016SLOTERDIJK, Peter. 2016. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. Tradução de Claudia Cavalcanti. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade. , p. 57), de modo que seria necessário que esse conceito de trabalho se sobrepusesse à venda da força de trabalho – que visava somente multiplicar e concentrar capital nas mãos dos proprietários dos meios de produção.

Arendt qualifica o trabalho como a única atividade humana que é interminável, pois enquanto a produção de uma obra alcança o seu fim com o produto finalizado, ou enquanto a tomada de iniciativa para desencadear novos acontecimentos junto de outras pessoas também encontra como fim, parcial ou totalmente, sua realização ou sua frustração, o trabalho é a única atividade que tem que ser sempre repetida, equivalente ao processo metabólico de nosso corpo, vinculada ao ciclo biológico de necessidade, consumo e saciedade. A tendência moderna de interiorização e subjetivação do sujeito – tanto a partir dos desdobramentos do cogito cartesiano, quanto pela noção kantiana de autonomia, pelo conceito de propriedade primeira em Locke (o corpo) e pelo individualismo dos proprietários em ascensão no início do capitalismo – possibilita a Arendt fazer a interpretação segundo a qual

dentro da estrutura das experiências dadas à introspecção, não conhecemos outro processo para além do processo da vida dentro de nossos corpos, e a única atividade na qual podemos traduzir isso e que corresponde a isso é o trabalho

(Arendt, 1998ARENDT, Hannah. 1998. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press. , p. 116).

O modo como Marx coloca o trabalho no centro do sentido da ação humana possibilita a Arendt pensar na transformação do humano em animal laborans (Arendt, 1998ARENDT, Hannah. 1998. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press. ), e afirmar que a partir de Marx o ser humano deixa definitivamente de ter a centralidade da razão na determinação de seu ser (como animal racional), assim como a capacidade política como seu distintivo especial. A concentração na vida e em sua manutenção, assim como no consumo e na abundância de bens, acaba por distanciar o ser humano da capacidade de iniciativa e natalidade a partir da atuação em comum acordo com seus pares – que foi o que sempre gerou transformações, novos projetos, visões de mundo compartilhadas e ações decisivas na história. A esperança no pensamento de Marx de que, por meio do desenvolvimento tecnológico e da socialização da riqueza, chegar-se-ia a um tipo de sociedade em que vigorasse a liberdade, vincula-se à noção de libertação da opressão da miséria e do fardo do trabalho e da necessidade, de modo que o trabalho pudesse ser superado em prol de uma sociedade em que se tornasse leve, orgânico e reduzido ao mínimo.

A semelhança que Arendt identifica entre o liberalismo e o ideal comunista é que, em ambos os casos, entende-se que o valor da ação propriamente política deve ocorrer de forma provisória somente, no momento revolucionário ou no contrato inicial, pois em seguida, se há êxito, o Estado não é pensado como forma de participação ativa de pessoas ocupadas com a disputa de diretrizes a partir de critérios de justiça, pluralidade humana e bem comum, mas sim como mera administração das necessidades igualmente compartilhadas, de modo que as pessoas não tenham que se ocupar com o próprio governo, ou seja, com fazer política.

Apesar de estarmos tratando da modernidade, Arendt identifica a origem desse modo de conceber a política no início da tradição filosófica ocidental, uma vez que Platão usou categorias da experiência privada para estabelecer os critérios do exercício do poder. Platão se apropriou da relação doméstica entre senhor e escravo para descrever o funcionamento ideal da coisa pública entre os que sabem e mandam e os que executam e obedecem (Arendt, 2007bARENDT, Hannah. 2007b. Que é autoridade? In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. 6. ed. São Paulo: Perspectiva. pp. 127-186. ). Além disso, ele visou impor à cidade (na figura do rei filósofo) ideais acessíveis somente na solidão, e não passíveis de serem submetidos à discussão e persuasão (Arendt, 2016aARENDT, Hannah. 2016a. A tradição do pensamento político. In: ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 6. ed. Rio de Janeiro: Difel. pp. 85-109. , p. 99), o que demonstra o desprezo da filosofia pelo âmbito da esfera propriamente prática da vida humana, uma vez que uma das características do exercício de tomar iniciativa e desencadear ações junto de outras pessoas é a imprevisibilidade do resultado, pois no nível da pluralidade humana as contingências são incontáveis, e os desdobramentos das ações, a identidade dos agentes, assim como suas reais intenções, somente se mostram no decorrer das próprias ações (Arendt, 1998ARENDT, Hannah. 1998. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press. , pp. 179-180). Esse nível de incerteza e sujeição ao erro fez com que Platão preferisse a analogia com as obras da fabricação – inclusive em sua Teoria das Ideias – para pensar os fundamentos da política a partir de noções provindas da atividade do artesão e do exercício da técnica.

Com a Revolução Industrial na modernidade, a experiência da fabricação atingiu proporções nunca vistas, “a ponto de relegar as incertezas da ação ao total esquecimento; foi possível começar a falar em ‘fabricar o futuro’ e ‘construir e aperfeiçoar a sociedade’, como se se tratasse da fabricação de cadeiras e da construção e reforma de casas” (Arendt, 2016aARENDT, Hannah. 2016a. A tradição do pensamento político. In: ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 6. ed. Rio de Janeiro: Difel. pp. 85-109. , p. 105). Com o liberalismo supôs-se que os interesses dos proprietários correspondiam aos interesses da humanidade; com o marxismo supôs-se que os interesses da classe trabalhadora coincidiam com os interesses da humanidade. Em ambos os casos se glorificou o trabalho com o intuito de superá-lo, criando-se “a noção de um tempo final terreno, no qual se teria fechado o círculo do produzir e do desfrutar” (Sloterdijk, 2016SLOTERDIJK, Peter. 2016. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. Tradução de Claudia Cavalcanti. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade. , p. 66), e se pensou o Estado como agente administrativo da manutenção confortável das vidas, operado, em última instância e de forma ideal, por técnicos, e não por políticos, e por meio de uma imensa abstração burocrática sem sujeitos/agentes imputáveis (Arendt, 1973bARENDT, Hannah. 1973b. Da Violência. In: ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. São Paulo: Perspectiva. pp. 91-156. , p. 118).

Tanto na experiência socialista como nas democracias liberais, Arendt identifica a transformação da capacidade de ação das pessoas (a natalidade, a iniciativa, a decisão sem precedentes, o acordo conjunto) em comportamento , ou seja, em adequação a padrões morais convencionais, em “auto-sujeição acrítica a regras inquestionadas” (Pitkin, 1998PITKIN, Hanna Fenichel. 1998. The Attack of the Blob: Hannah Arendt’s Concept of the Social. Chicago: The University of Chicago Press. , p. 179); em suma, ao caráter imbecilizante da sociedade de massas, que tem opinião, gosto e visão de mundo facilmente manipuláveis.

A transformação da capacidade de ação em comportamento corresponde ao resultado da transformação do governo em administração, de modo que a meta da vida humana passa a se restringir a uma vida de consumo possibilitada pelo trabalho: se é a zoé que passa a ser o foco da política, não é necessária a pluralidade, pois trata-se justamente daquele nível da vida que todos os indivíduos têm em comum. A especificidade quanto ao tipo de trabalho passa a perder importância, desde que a relação entre esforço e consumo se dê de forma suave. Essa suavidade determina também o desinteresse das pessoas em tomar parte da política, o que gera o conformista social (Pitkin, 1998PITKIN, Hanna Fenichel. 1998. The Attack of the Blob: Hannah Arendt’s Concept of the Social. Chicago: The University of Chicago Press. , p. 193) como fenômeno coletivo de uma multidão de indivíduos sem relação entre si no interior de um mundo sem força de congregá-los ou relacioná-los, o que, por consequência, os torna cada vez mais incapazes de agirem em conjunto, atomizados que ficam, ainda que rodeados pelos mesmos produtos e preocupações. Assim, a inércia se torna o resultado do movimento coletivo em que as pessoas, ao se conduzirem, tornam-se incapazes de assumirem para si o direcionamento e a responsabilidade de agentes livres. Cada um pensa a si mesmo somente como indivíduo isolado, mas se comporta como todos os outros. O advento do social para Arendt impede que as pessoas exerçam a capacidade de tomar iniciativa e de reorganizarem a si mesmas.

Problemas no pensamento político de Arendt

Cabe-nos a partir daqui fazer alguns questionamentos: Como é possível afirmar que o bem-estar social não deve ser parte constitutiva da finalidade da política? Será mesmo possível afirmar que atitudes de valor político são somente as que se baseiam no discurso verdadeiro e na argumentação? Como é possível distinguir com tamanha clareza o que é da ordem da liberdade civil e o que é da ordem da liberdade política? Há como buscar a segunda sem a primeira? Políticas públicas que visam extirpar o nível básico das necessidades humanas (frio, fome, falta de trabalho, de escola, moradia etc.) são menos “políticas” do que as ações preocupadas com a “verdadeira” liberdade? O trabalho pode mesmo ser reduzido a uma atividade apolítica e vinculado exclusivamente ao eterno e recorrente ciclo biológico?

Já nos anos 1970, em seu artigo “O conceito de poder de Hannah Arendt”, Jürgen Habermas (1929-) identificava o modo como a pensadora incorreu em “dicotomias conceituais rígidas” (Habermas, 1980HABERMAS, Jürgen. 1980. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sergio Paulo. (org.). Habermas: Sociologia. São Paulo: Ática. pp. 100-118. , p. 109), que impediram sua compreensão sobre a realidade política de seu tempo. Pois, por mais que seja compreensível a separação entre liberdade pública e superação da pobreza, Estado e economia, o público e o privado, Habermas fez o seguinte apontamento:

[…] um Estado, exonerado da elaboração administrativa de matérias sociais; uma política, depurada das questões relativas à política social; uma institucionalização da liberdade pública, que independe da organização do bem-estar; um processo radical de formação democrática da vontade, que se abstém em face da repressão social – este caminho não é viável para nenhuma sociedade moderna

(Habermas, 1980HABERMAS, Jürgen. 1980. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sergio Paulo. (org.). Habermas: Sociologia. São Paulo: Ática. pp. 100-118. , p. 110).

Encontramos aqui um primeiro limite da teoria de Arendt: destituir de valor político as medidas que visam o bem-estar, ou seja, as condições básicas a partir das quais as pessoas possam se ocupar com a “liberdade pública”, pois somente quando o Estado garante direitos civis básicos para aqueles impossibilitados de garantir sua própria propriedade no mundo é que se pode pensar num Estado de fato democrático – para além da condição prévia dos que “podem” se ocupar com a coisa pública. Sua noção restrita de liberdade impede, por exemplo, que ela entenda determinadas “manifestações da violência estrutural” (Habermas, 1980HABERMAS, Jürgen. 1980. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sergio Paulo. (org.). Habermas: Sociologia. São Paulo: Ática. pp. 100-118. , p. 111), como quando empresários conseguem pressionar governos para flexibilizar leis trabalhistas, de modo a intensificar o nível da exploração à qual os trabalhadores são submetidos, quando certos interesses adentram o espaço de determinação das leis, não se tratando neste caso somente de uma questão social, por se referir ao trabalho, mas de uma questão política, por conta da disputa de interesses – formalmente pacífica –, que faz com que certos grupos – já com maior poder – avancem, e que outros retrocedam – em casos de até mesmo perderem a condição de exercer sua cidadania. 4 4 “[…] é preciso haver garantia de direitos para que haja liberdade e é preciso haver espaços de liberdade para que a ‘institucionalização’ dos direitos seja constantemente revista e renovada” (Wellmer, 1999 apud Frateschi, 2007 , p. 98). Assim, é equivocado pensar que programas sociais colocados em prática pelo Estado se restringem a algo como o “metabolismo biológico”.

Redistribuições [de renda] estatais e programas sociais não são parte de um processo praticamente biológico, assim como Arendt os entende, sob a orientação da diferenciação aristotélica entre oikos e polis; mas são politicamente mediados, menos em relação à sua realização estatal-burocrática, e mais pelo seu surgimento do público conflito de interesses e opiniões, que se nutrem certamente de pontos de vista muito distintos em relação à coisa comum

(Thaa, 1999 THAA, Winfried. 1999. Die notwendige Partikularität des Politischen: Über Hannah Arendts republikanische Perspektive auf Politik und Weltgesellschaft. Zeitschrift Für Politik, v. 46, n. 4, pp. 404-423. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24228018 . Acesso em: 13 mar. 2024.
https://www.jstor.org/stable/24228018...
, p. 411).

Essas políticas sociais em estados democráticos são resultado da pluralidade de perspectivas, que, segundo Arendt, constitui a essência da vida política. Além disso, pensar em direitos sociais básicos não é restringir-se a pensar em vida biológica, pois a condição para se exercer a plena cidadania abrange direitos como educação, saúde e seguridade social (Thaa, 1999 THAA, Winfried. 1999. Die notwendige Partikularität des Politischen: Über Hannah Arendts republikanische Perspektive auf Politik und Weltgesellschaft. Zeitschrift Für Politik, v. 46, n. 4, pp. 404-423. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24228018 . Acesso em: 13 mar. 2024.
https://www.jstor.org/stable/24228018...
, p. 419), que dizem respeito a aspectos mundanos, ao “entre” as pessoas, ao mundo enquanto obra humana estável, que Arendt considerava tão fundamental para a possibilidade de relação livre entre as pessoas (Canovan, 1992 CANOVAN, Margaret. 1992. Hannah Arendt: A Reinterpretation of her Political Thought. Glasgow: Cambridge University Press. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/190883 . Acesso em: 13 mar. 2024.
https://www.jstor.org/stable/190883...
, p. 108). Trata-se não de aspectos meramente biológicos, mas de condições para a sociabilidade que se proponha entre iguais, com a disposição política para o alargamento da perspectiva individual de se colocar no lugar do outro (Arendt, 2016bARENDT, Hannah. 2016b. Sócrates. In: ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 6. ed. Rio de Janeiro: Difel. pp. 45-84. ), e para a efetiva capacidade de ação.

Por um lado, Arendt identifica que a capacidade de produção de artefatos – como a atividade humana de estabilização do mundo, que nos deu a condição de criar coisas firmes e com permanência maior que as breves vidas individuais – tem gradualmente se tornado parte de um processo sem fim de produção e consumo, que se assemelha à esfera por ela entendida como mecânica e cega do trabalho, que se repete ciclicamente, assim como os ciclos biológicos. Por outro lado, a aversão com que ela observa a sociedade de massas do seu tempo a leva a pensar que nelas (democráticas ou não) é impossível ocorrer a pluralidade de um autêntico espaço público, em que indivíduos se unem em suas diferenças e agem juntos. Em vez disso, o que ela identifica é que as pessoas tendem a agir de acordo com o que se espera da produção em massa de comportamentos previsíveis, a partir de interesses privados ligados à produção e ao consumo. Ocorre que faltou a Arendt a percepção de que a pluralidade também é possível na sociedade: a revolução húngara de 1956 confirmou sua teoria da natalidade, da possibilidade de iniciativa que frustra as expectativas, do imprevisível e inesperado da capacidade humana para agir; mas contradisse a sua noção de que os trabalhadores se tornam incapazes de ação política no interior de regimes totalitários (Arendt, 2012ARENDT, Hannah. 2012. As Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras. ). Os movimentos estudantis de maio de 1968, por sua vez, evidenciaram o desejo pela liberdade política, mesmo em meio ao Estado de bem-estar social; além disso, contradisseram a suposta perda do espírito revolucionário em democracias representativas, ou seja, “não era verdade que a sociedade de massas e o totalitarismo incapacitavam as pessoas para a ação política, e [principalmente no caso da Hungria] nem que as questões políticas eram exclusivas de uma elite de não trabalhadores” (Canovan, 1978CANOVAN, Margaret. 1978. The contradictions of Hannah Arendt’s Political Thought. Political Theory, v. 1, n. 6, pp. 5-26. , p. 12), quer dizer, daqueles libertados das necessidades para poderem se ocupar com o reino da liberdade.

A noção de política em Arendt, a partir das obras consideradas até aqui, acaba por se revelar restrita a três sentidos. Por um lado, ela considera dignas de valor autenticamente político somente as ações grandiosas dos momentos de fundação de novos corpos políticos, de momentos históricos revolucionários, não considerando a importância da política mundana ordinária, feita diariamente nas disputas por diretrizes no interior de instituições, de movimentos sociais e estudantis, de pequenos avanços em direção a vitórias legislativas em prol de interesses de determinados grupos, na disputa por não aprovação ou revogação de leis que afetam negativamente a população, por exemplo, perdendo de vista que a única coisa que pode ser garantida são os direitos civis (Canovan, 1978CANOVAN, Margaret. 1978. The contradictions of Hannah Arendt’s Political Thought. Political Theory, v. 1, n. 6, pp. 5-26. , p. 22) (que ela considera como liberdade negativa), sendo que caberá sempre aos indivíduos escolherem participar ou não ativamente da “liberdade política”, de modo que não há qualquer determinismo segundo o qual, pelo fato de as pessoas dedicarem bastante tempo e importância ao trabalho, elas serão necessariamente privadas de interesse pela coisa pública, como se imperasse um determinismo materialista que contradiria justamente o seu conceito da iniciativa e natalidade, o “milagre” da ação.

Por outro lado, um segundo elemento do caráter problemático de sua noção de política, apontado por Habermas, é o modo como ela exclui dela a estratégia , por considerá-la manifestação de violência. Ao excluir as ações instrumentais do campo da política, ela admite somente as interações de entendimento mútuo, negociação e acordos. Mas acontece que muitas vezes o argumento não é o elemento decisivo na determinação da política, mas sim a “capacidade de impedir outros indivíduos ou grupos de defender os seus próprios interesses” (Habermas, 1980HABERMAS, Jürgen. 1980. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sergio Paulo. (org.). Habermas: Sociologia. São Paulo: Ática. pp. 100-118. , p. 114), ou seja, a estratégia. As ações meramente instrumentais também têm valor político, pois são meios pelos quais muitas vezes o bem comum é possível, e as palavras na política devem às vezes servir sim para velar intenções, uma vez que revelá-las seria, em certos casos, contraproducente (anti-estratégico) para o próprio alcance do bem comum. 5 5 Vale mencionar, somente a título de esclarecimento, que na década seguinte, nos anos 1990, com a publicação de Direito e Democracia: entre facticidade e validade , Habermas faz largo uso da teoria política de Arendt, mas chamando a atenção para que a separação que ela realiza entre poder e violência possibilita extinguir a oposição entre poder e direito, de modo que este passa a assumir uma origem comum ao poder comunicativo pensado por Arendt: “a política não pode coincidir, no seu todo, com a prática daqueles que falam entre si, a fim de agir de forma politicamente autônoma. O exercício da autonomia política significa a formação discursiva de uma vontade comum, porém não exclui ainda a implementação de leis que resultam desta vontade. O conceito do político estende-se também ao emprego do poder administrativo e à concorrência pelo acesso ao sistema político” (Habermas, 2003 , p. 189). Assim, o direito se torna a mediação que possibilita que o poder comunicativo chegue a se tornar poder administrativo, ou seja, por meio da implementação efetiva de direitos e políticas públicas. Deste modo, Habermas fará uso de conceitos caros ao pensamento de Arendt (como consenso, livre comunicação, espaço público) para criar a sua ética da comunicação, só que a partir de um conceito mais ampliado de política.

Por fim, em terceiro lugar, ao não considerar o caráter determinante de fatores econômicos e sociais na política, ela fica impedida de pensar em como o poder econômico e a opressão social, por conta da falta de oportunidades e das urgências das necessidades básicas, acabam por configurar um mundo em que simplesmente têm vez os mais fortes (acima de tudo em poder econômico), de modo que principalmente a estes é concedida a prerrogativa da vida pública. Ao desconsiderar fatores econômicos e sociais, ela perde de vista que pessoas que não tiveram condições financeiras para uma educação de qualidade e/ou frequentaram escolas que não foram adequadamente geridas pelo Estado, por exemplo, têm grandes chances de terem sua capacidade de consciência política limitada, o que pode simplesmente impedi-las de terem o impulso de agir no mundo comum, de modo a cuidarem somente de suas vidas privadas, isoladas em meio a modos de vida massificados e irrefletidos quanto às suas possibilidades de intervenção e ação na vida pública.

Mesmo ao apontar isso que chamamos de limitações do pensamento político de Arendt, precisamos reconhecer seus pontos fortes. Primeiramente, vale chamar a atenção para a sua concepção de ação, a sempre aberta possibilidade do novo, pelo fato de constantemente virem ao mundo novos seres humanos que têm em si a potencialidade para novos começos. Em segundo lugar, podemos destacar o seu republicanismo e sua crítica ao fundamento liberal da política, uma vez que ela deixa claro que a política não deve servir para estabelecer controle sobre os interesses individuais que concorrem entre si, mas sim para ser o espaço de atuação em que cidadãos, em pé de igualdade com o poder e no interior da condição de pluralidade de visões, possam participar livremente do governo do bem comum, relacionando-se entre si com essa finalidade. Em terceiro lugar, vale a pena salientar o valor dado por ela aos conselhos populares que espontaneamente surgiram nos momentos revolucionários, movidos pela autogestão e pelo desejo legítimo de auto-organização das pessoas – o que nos serve para pensar, em alguma medida, em formas alternativas de fazer política, para além da restrição do formato partidário-representativo.

A relação entre trabalho e ação no capitalismo avançado e o fenômeno do cinismo de massa

Por mais que em textos posteriores, como Desobediência Civil e Da Violência , possamos observar como a noção de ação política de Arendt se desenvolve e abrange os movimentos de contestação dos anos 1960, é possível notar que permanece em seus escritos dessa época a noção presente em A condição humana , de que a conquista de condições satisfatórias de vida (com o desenvolvimento sistêmico da burocracia) leva as pessoas a se distanciarem da ocupação e do cuidado com as questões políticas 6 6 A título de comparação, vale a pena conferir as afirmações de Arendt em A condição Humana (p. 322) e em Da violência (p. 144) quanto à tendência dos trabalhadores não demandarem participação política em condições de bem-estar social. . Nesse sentido, é interessante chamar a atenção para como uma vertente marxista de pensamento dos anos 1960 apontava para o modo como nos Estados de bem-estar social vigorava uma espécie de coincidência entre necessidades sociais (criadas pelo mercado e os governos) e as necessidades individuais, uma espécie de identificação automática dos indivíduos com o formato de sociedade disponível. Leiamos um trecho do texto O homem unidimensional , de Herbert Marcuse (1898-1979), publicado às vésperas de Maio de 1968,sobre a consequência do aumento da produtividade do trabalho e do consumo:

Enquanto essa conjuntura prevalecer, ela reduzirá o valor do uso da liberdade; não há razão para insistir na autodeterminação se a vida administrada é a vida confortável e até mesmo a vida ‘boa’. Esse é o fundamento racional e material para a unificação dos opostos, para o comportamento político unidimensional […]

A rejeição do Estado de Bem-Estar social em nome de ideias abstratas de liberdade é pouco convincente. A perda das liberdades econômica e política que foram a real conquista dos dois séculos anteriores pode parecer uma perda insignificante para um Estado capaz de tornar a vida administrada segura e confortável. Se os indivíduos estão satisfeitos a ponto de se sentirem felizes com os bens e serviços entregues a eles pela administração, por que eles devem insistir em instituições diferentes para uma produção diferente de bens e serviços diferentes?

(Marcuse, 2015MARCUSE, Herbert. 2015. O homem unidimensional. Tradução de Robespierre de Oliveria, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro. São Paulo: Edipro. , p. 79).

Essa unidimensionalidade do comportamento significa a perda da capacidade de negação, de recusa, da potencialidade negativa, condição que sempre gerou ideais e visões de outros mundos possíveis que não fossem aquele dado em uma realidade atual. Sua constatação é a da falência da capacidade de crítica, contestação e estranhamento, em prol de uma completa adequação ao status quo .

É nesse contexto que ocorrerá, em maio de 1968, o que Luc Boltanski e Ève Chiapello ( 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. 2009. O novo espírito do capitalismo. Tradução de Ivone C. Benecetti. São Paulo: Martins Fontes. ) chamarão de crítica estética. Enquanto a crítica social atua como denúncia da miséria e reivindicação de justiça, a crítica estética atuou como um questionamento quanto à forma dessa vida em sociedade, com o pleno provimento das necessidades básicas: a reivindicação de democracias mais participativas, ao invés de meramente formais por meio do voto; a crítica à padronização dos modos de vida e das culturas de massa; ao modo como o Estado se aliou ao capitalismo, de forma a acomodar as pessoas à estrutura das empresas de busca por sempre maiores lucros; a um tipo de vida em que o consumo passou a ser a finalidade última da existência; e ao trabalho que não tinha relação alguma com qualquer aspecto individual da personalidade das pessoas, sendo meramente maquinal, previamente programado, e sem espaço para a iniciativa e a criação. Ou seja, a condição de pleno emprego e a formação de uma massa de juventude com alta escolarização gerou demandas além das necessidades básicas, ou seja, demandas estético-políticas que passaram a identificar no capitalismo a causa dessa perda de dignidade do valor de uma vida com sentido.

Foi no contexto do Estado de bem-estar que se enfraqueceu a noção de “luta de classes” (ao menos no interior dos países do capitalismo avançado), uma vez que grande parte da população se tornou classe média, com amplo acesso aos bens de consumo. No cenário europeu dos anos 1980 isso contribuiu para o enfraquecimento dos sindicatos enquanto representação coletiva dos trabalhadores. Assim, a crítica da geração de 1968 ao formato uniformizador do trabalho assalariado, que não dá valor às características individuais da personalidade das pessoas, recebeu enquanto resposta dos grupos empresariais a flexibilização das funções, a resolução de problemas de forma “inovadora” e “criativa” por parte dos empregados, e a autonomia e responsabilidade individual, reduzindo gastos com cargos mais caros de chefia e sobrecarregando os trabalhadores de funções diversas. Além disso, estatutos legais que garantiam regras mínimas para as relações trabalhistas passaram a não se impor mais sobre as negociações entre empregador e trabalhador, o que, em época de crise, obviamente mudou para pior a capacidade dos trabalhadores de negociar, pois com a diminuição de força dos sindicatos e da legislação, junto ao alto índice de desemprego da crise dos anos 1970, o poder de determinação dos empregadores sobre salários e condições de trabalho aumentou.

Desencadeou-se um processo de transformações do mundo do trabalho que piorou a vida dos trabalhadores e dissolveu a sua capacidade de organização coletiva: diante da recusa da juventude escolarizada em cumprir funções mecânicas, empregos não qualificados foram transferidos para países periféricos pobres; o questionado valor excessivo atribuído ao diploma universitário passou a ser substituído pela importância atribuída à capacidade de se adequar a qualquer função; a crítica ao rigor repetitivo dos horários de trabalho recebeu a resposta de horários flexíveis e trabalhos à distância, ambos com menores salários; a crítica à hierarquia entre chefes e subordinados recebeu como resposta a criação de grupos de trabalho autofiscalizados, cumprimento individual de metas abusivas e meios eletrônicos de controle de produtividade. Trabalho intermitente, temporário, terceirizações em massa e contratação de pessoas jurídicas foram outros elementos da transformação em curso nesse processo de resposta do capitalismo às críticas que recebia, e da implementação do neoliberalismo sobre a relações de trabalho.

A época a que Arendt se referia era a do emprego baseado no valor da segurança e da estabilidade. Mas a partir dos anos 1970 inicia-se a noção – que contemporaneamente se dissemina globalmente cada vez mais – de que o trabalho constitui a passagem de um projeto a outro, de acordo com a capacidade da pessoa em estabelecer novas conexões em um mundo pensado em rede de influências e de contatos. Enquanto Arendt atribuía à política a paixão de aparecer diante dos outros por gestos e palavras em busca da disputa por melhores diretrizes para o bem comum, a condição do novo espírito do capitalismo fez com que os indivíduos passassem a ter necessidade de aparecer uns diante dos outros para serem lembrados e eventualmente inseridos em algum novo projeto, para garantirem temporariamente algum emprego. As relações de amizade, enquanto forma autêntica de buscar compreender a opinião do outro, que Arendt entendia como “uma percepção política por excelência” (Arendt, 2016bARENDT, Hannah. 2016b. Sócrates. In: ARENDT, Hannah. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 6. ed. Rio de Janeiro: Difel. pp. 45-84. , p. 60), tornam-se, com frequência, nesta nova realidade do trabalho, em interesses oportunistas para arrumar um novo projeto ou emprego (Boltanski e Chiapello, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. 2009. O novo espírito do capitalismo. Tradução de Ivone C. Benecetti. São Paulo: Martins Fontes. , p. 126). Multiplicar conexões e ampliar redes se tornam questão de sobrevivência, e não de intercâmbio e pluralidade em prol de possíveis alianças, acordos e ação em conjunto: “a ampliação da rede é a própria vida, enquanto a sua não ampliação é a própria morte” (Boltanski e Chiapello, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. 2009. O novo espírito do capitalismo. Tradução de Ivone C. Benecetti. São Paulo: Martins Fontes. , p. 143). Ser virtuoso passa a significar a capacidade de abrir mão de princípios morais para se ajustar, para se adaptar a um contexto e segurar uma vaga; de não ser fiel a si mesmo se isso for necessário para adaptar-se às pessoas que representam os melhores contatos para as melhores situações; de não ser crítico e de ser ambivalente (assumir uma postura agora, e, se for necessário, o contrário dela no momento seguinte).

O isolamento das pessoas, ao qual Arendt se referia ao tratar da cultura de massas, assume o formato de isolamento por falta de organizações coletivas para a ação no que diz respeito ao trabalho, tanto no sentido de perda de direitos legais quanto no de perda de força da representação sindical. A pessoa virtuosa nesse novo espírito do capitalismo “possui a habilidade para controlar a auto apresentação, chegando até à capacidade de ‘mentir sem hesitar’, desde que isso seja julgado necessário” (Boltanski e Chiapello, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. 2009. O novo espírito do capitalismo. Tradução de Ivone C. Benecetti. São Paulo: Martins Fontes. , p. 146). Num mundo assim, em que cada um busca individualmente com todo tipo de estratégia o seu lugar ao sol, a dissociação de vínculos coletivos que motivem a ação comum em prol de objetivos compartilhados torna difícil a ação política das pessoas na condição de trabalhadores. Diferentemente da crítica que Arendt e Marcuse fazem em seu tempo sobre a apatia política de uma sociedade satisfeita consigo mesma e com seu conforto, a realidade atual traz um outro problema, que vincula as condições do trabalho à disposição para a ação política: a luta pela sobrevivência se tornou muito mais cruel, demandando muito mais habilidades egoístas e competitivas do que antes, e possivelmente contribuindo para o enfraquecimento de potenciais mobilizações coletivas.

Apesar das transformações do capitalismo, do trabalho e da sociedade ao longo das décadas desde Maio de 1968, a unidimensionalidade identificada por Marcuse naquele momento continua a ser contemporânea, pois representa um divisor de águas em relação à noção de ideologia. No século XVIII, o Iluminismo significava o conjunto de ideias que guiam uma cultura, de modo que caberia aos ideólogos (os intelectuais) serem os educadores da humanidade, portanto “os especialistas em ideologia garantiriam o domínio da razão sobre todo o campo das crenças e do comportamento humanos” (Bauman, 2000BAUMAN, Zygmunt. 2000. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar. , p. 115).

No século XIX, Marx e Engels afirmam que os ideólogos partiram do ponto errado ao visarem combater as falsas ideias para transformar a realidade, sendo necessário primeiro transformar o mundo material, lugar perverso de onde continuam a brotar falsas ideias, dentre as quais as que chamam “progresso” a exploração do homem pelo homem, e as que afirmam que a relação entre empresário e empregado ocorre a partir da “liberdade” de ambos. Em ambas as noções de ideologia, pensava-se de forma bidimensional que a razão é capaz de se opor ao real, e além disso, de transformá-lo. Assim, as noções clássicas de ideologia tinham por pressuposto que a lógica das coisas contradiz a lógica da razão, que a razão se opõe à natureza e à efetividade da realidade criada pelos homens, que está sempre aquém do que a razão exige. O princípio de que a razão se opõe à realidade e visa transformá-la, e de que somente seja aceito aquilo que é capaz de ser justificado, constitui-se como “a exigência formal que fez dos intelectuais os protagonistas da civilização político-cultural, que vai do Iluminismo até Maio de 1968” (Perniola, 2011PERNIOLA, Mario. 2011. Ligação direta: estética e política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis: Editora UFSC. , p. 20).

A nossa condição contemporânea é marcada pela unidimensionalidade porque, diferentemente das épocas ideológicas, parece não haver mais a oposição entre o real e o que poderia ser ou deveria ser. Todos os modos de ver, todos os pontos de vista são considerados ideológicos, as ideologias se tornaram algo como “molduras cognitivas que permitem encaixar vários fragmentos da experiência humana num desenho reconhecível e que faz sentido” (Bauman, 2000BAUMAN, Zygmunt. 2000. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar. , p. 123); configuram-se como padrões de estruturas prévias a partir das quais determinados grupos sociais interpretam, valoram e dão sentido aos acontecimentos. Mas o que é mais grave é que, na medida em que tudo se torna uma questão de interpretação, a condição contemporânea é marcada pela descrença de que preceitos ideológicos possam ser fundamento para alterar a realidade, o que nos lança numa época pós-ideológica, ou seja, em que as “sociedades […] aparentemente não fariam mais apelos à reificação de metanarrativas teleológicas enquanto fundamento para processos de legitimação de estruturas de racionalização social” (Safatle, 2008SAFATLE, Vladimir. 2008. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo. , p. 11). Assim, na medida em que se perde a crença na possibilidade de se estabelecer metas que determinem um modo de ser racional para a organização social, tem-se por consequência a condição em que cada vez mais parece ser hegemônica a noção de que o mundo tal como é o único possível. O discurso que se torna cada vez mais hegemônico é que a vitória do capitalismo (só que agora em seu formato neoliberal) parece ser inquestionável, ou seja, reencontramos aqui a unidimensionalidade denunciada por Marcuse em 1968 e a apatia política identificada por Arendt nos anos 1950, mesmo que numa realidade histórico-econômico-social distinta, pois, se “a ideologia costumava colocar a razão contra a natureza, […] o discurso neoliberal desautoriza a razão naturalizando-a” (Bauman, 2000BAUMAN, Zygmunt. 2000. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar. , p. 132).

Se a história não tem mais uma narrativa e um projeto, mas sim uma soma de belos golpes de mestre ou do acaso, tal “desnarrativização geral do mundo” (Han, 2017HAN, Byung-Chul. 2017. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes. , pp. 44-45), no que diz respeito à relação entre condições de trabalho e disposição para a ação voltada a fins coletivos, se dá, por um lado, no crescimento e na agudização da insegurança generalizada, e, por outro, na completa indiferença e alívio daqueles que, em meio ao naufrágio geral, conseguiram um lugar no bote salva-vidas, mesmo que temporariamente. Não é à toa que se faz tanto uso da visibilidade midiática dos miseráveis, o que serve para compensar os efeitos revoltantes da incerteza e tornar tolerável a flexibilização sem limites, gerando até o sentimento de gratidão à sorte por não se estar naquela situação: “O paradoxo moral do capitalismo é […] a suportabilidade do insuportável, o conforto na desertificação e a highlife na catástrofe permanente” (Sloterdijk, 2012SLOTERDIJK, Peter. 2012. Crítica da Razão Cínica. Tradução de Marco Casanova, Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Maurício Mendonça Cardozo e Ricardo Hiendlmayer. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade. , p. 431).

A insegurança geral nesse caso se refere ao nível de precarização das relações de trabalho, em que as pessoas gradativamente não têm mais condições de planejar uma vida, de contar com um nível de previsibilidade do futuro que lhes possibilite realizar projetos de longo prazo e alcançar metas pessoais que demandem estabilidade mínima quanto aos níveis mais básicos das necessidades e garantias vitais. Quando não se consegue mais vislumbrar um nível mínimo de controle sobre a própria vida privada, fica mais difícil a disponibilidade para engajamento em causas e mobilizações coletivas. A administração do que Bauman chama de “economia política da incerteza” cria meios mais sutis e baratos de controle social do que a polícia, a disciplina e a vigilância:

A economia política da incerteza é boa para os negócios. Ela torna supérfluos os pesados, desajeitados e caros instrumentos de disciplina, substituindo-os não tanto pelo autocontrole de objetos treinados e disciplinados, mas pela incapacidade dos indivíduos privatizados e inerentemente inseguros de agirem de modo concertado; incapacidade que se torna ainda mais profunda pela descrença deles de que qualquer ação desse tipo possa ser eficaz e de que as preocupações privadas possam ser refundidas em questões coletivas, quanto mais em projetos comuns de uma ordem de coisas alternativa

(Bauman, 2000BAUMAN, Zygmunt. 2000. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar. , p. 176).

O trabalho não se reduz à equivalência ao ciclo biológico sempre recorrente, somente como um meio de sobrevivência, como pensou Arendt. O trabalho é o que gera a segurança existencial que torna possível a disponibilidade de se exercer de fato a liberdade e a autonomia (Bauman, 2000BAUMAN, Zygmunt. 2000. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar. , p. 182). A condição atual do trabalho flexível, por mais que possa às vezes cobrir (mal) os custos com a sobrevivência, não é capaz de gerar segurança suficiente para que os indivíduos se sintam mobilizados a resistir contra o progressivo definhamento do espaço público, em que dispositivos econômicos se tornam cada vez mais os definidores das decisões políticas, de modo que a coisa pública cada vez mais deixa de extrapolar a crua materialidade das ruas enquanto vias de passagem, a polícia como forma de violência controladora (e ainda mais violenta contra maiorias em países pobres e contra minorias em países ricos) e o judiciário como meio de garantir o cumprimento dos contratos.

Esse estado de coisas leva a um pensamento muito comum: se o mundo é desse jeito, o que resta é buscar estratégias para tirar o melhor proveito possível das coisas como elas são. Ou seja, essa é a formulação de um pensamento cínico, que expressa a falência da compreensão de que a razão seja capaz de constituir normatividades orientadas por princípios de justiça, ou seja, a descrença de que se possa determinar a realidade a partir de “condições ideais reguladoras” (Safatle, 2008SAFATLE, Vladimir. 2008. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo. , p. 88).

No fim das contas, a condição de ser consciente e não fazer nada com isso, somado à posse de um trabalho, constitui o conceito de felicidade contemporânea para o cidadão médio esclarecido. Vivemos em um momento em que a crítica se tornou praticamente um estilo literário ou publicitário, quase como uma informação, mais ou menos dramatizada, com certa resignação que a faz se tornar somente uma constatação impotente, realista e conformada. O que resta de valor positivo é se manter apto para o trabalho, com uma amargura aparentemente sutil, uma depressão controlada e a disposição para encarar o que vier com “a perene disponibilidade a se tornar cúmplice de qualquer coisa por qualquer preço” (Perniola, 2010PERNIOLA, Mario. 2010. Desgostos: novas tendências estéticas. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis: Editora UFSC. , p. 52). Contrariamente ao ímpeto do agon da ação, de aparecer e brilhar diante dos outros, o cínico de massa moderno prefere a discrição, passar despercebido, ser anônimo, “um associal integrado” (Sloterdijk, 2012SLOTERDIJK, Peter. 2012. Crítica da Razão Cínica. Tradução de Marco Casanova, Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Maurício Mendonça Cardozo e Ricardo Hiendlmayer. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade. , p. 33), que se identifica como membro de uma consciência conformada que a maioria supostamente tem: de que a vida é como é, e o que resta é dar um jeito de se acomodar nela da melhor forma possível – em vez de qualquer disposição e imperativo pela organização coletiva para transformações políticas.

Esse cenário aparentemente catastrófico já é anunciado há algumas décadas, e exige a reinterpretação da validade da hipótese de Arendt quanto ao caráter de apatia política dos Estados de bem-estar: atualmente o agravante da situação não é mais a figura do Estado Providência, que gradativamente aprofunda a sua crise, com o aumento da aplicação da doutrina neoliberal de diminuição radical do Estado, em que os indivíduos (teoricamente) possam, cada um por si, ter a liberdade de buscar sua felicidade e realização de seus fins com seus próprios meios. Hoje em dia, o que representa a maior ameaça para a morte da política é, por um lado, a completa falta de garantias e seguranças da maioria da população mundial para planejar o dia de amanhã, e a naturalização de que o mundo é um lugar instável e que é virtuoso aquele que mais sabe se adaptar a essa flexibilidade sem fim e imprevisível. Por outro lado, a decadência dos partidos social-democratas mundo afora, ao lado do avanço da preferência popular por políticos de extrema direita, é um alerta à gradativa desilusão quanto aos meios políticos tradicionais de se lidar com a coisa pública e com as necessidades coletivas, em prol de meios “mais fáceis” e diretos de “resolver” problemas cuja superfície pode ser denominada de desordem social ou moral, corrupção e falta de segurança pública. Esse meio mais fácil é em geral a violência crua, uma vez que a crescente descrença na capacidade de agir democraticamente talvez constitua a “atual glorificação da violência” (Arendt, 1973aARENDT, Hannah. 1973a. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. São Paulo: Perspectiva. pp. 49-90. , p. 153) como forma de resolver as coisas.

Quando se pensa que em poucos anos, por conta da tecnologia, mecanização e inteligência artificial, uma porcentagem enorme dos atuais postos de trabalho não exigirá mais atividade humana, temos a evidência de que grande parte da população mundial não terá emprego – ao menos não nos formatos ainda praticados hoje. Isso na prática significa que boa parte da humanidade não será necessária para o crescimento do capital, que gradativamente se torna independente dos setores produtivos que geram emprego, e que cresce a partir do mercado financeiro e da expansão da venda de serviços antes oferecidos pelo Estado (saúde, educação, previdência, segurança etc.). Parece impossível pensar que esse cenário se refira somente a uma questão social e não política, pois o que temos pela frente é que pensar em que nível, a partir da tomada de iniciativa e de associação da própria sociedade civil, é possível ainda agir politicamente para tornar esse cenário menos sombrio. E uma das primeiras questões que terão que ser encaradas é o próprio conceito de trabalho assalariado, que em pouco tempo não será mais viável para garantir sequer a existência biológica de bilhões de pessoas – o que se dirá da existência política?

Bibliografia

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    » https://www.jstor.org/stable/23955552
  • 1
    Todas as citações de obras em língua estrangeira foram traduzidas pelo autor.
  • 2
    Cabe, porém, ressaltar que “a ausência da questão social da cena americana era, afinal, totalmente enganadora, e que a miséria abjeta e degradante estava presente em toda parte na forma de escravidão e do trabalho negro” (Arendt, 1990ARENDT, Hannah. 1990. On Revolution. New York: Penguin Books. , p. 70).
  • 3
    Na Declaração de independência americana constam dentre os direitos inalienáveis a vida, a liberdade e a busca de felicidade . Disponível em: https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript . Acesso em: 18 de março de 2024.
  • 4
    “[…] é preciso haver garantia de direitos para que haja liberdade e é preciso haver espaços de liberdade para que a ‘institucionalização’ dos direitos seja constantemente revista e renovada” (Wellmer, 1999 apud Frateschi, 2007 FRATESCHI, Yara Adario. 2007. Participação e liberdade política em Hannah Arendt. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 10, pp. 83-100. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v0i10p83-100
    https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800....
    , p. 98).
  • 5
    Vale mencionar, somente a título de esclarecimento, que na década seguinte, nos anos 1990, com a publicação de Direito e Democracia: entre facticidade e validade , Habermas faz largo uso da teoria política de Arendt, mas chamando a atenção para que a separação que ela realiza entre poder e violência possibilita extinguir a oposição entre poder e direito, de modo que este passa a assumir uma origem comum ao poder comunicativo pensado por Arendt: “a política não pode coincidir, no seu todo, com a prática daqueles que falam entre si, a fim de agir de forma politicamente autônoma. O exercício da autonomia política significa a formação discursiva de uma vontade comum, porém não exclui ainda a implementação de leis que resultam desta vontade. O conceito do político estende-se também ao emprego do poder administrativo e à concorrência pelo acesso ao sistema político” (Habermas, 2003HABERMAS, Jürgen. 2003. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. , p. 189). Assim, o direito se torna a mediação que possibilita que o poder comunicativo chegue a se tornar poder administrativo, ou seja, por meio da implementação efetiva de direitos e políticas públicas. Deste modo, Habermas fará uso de conceitos caros ao pensamento de Arendt (como consenso, livre comunicação, espaço público) para criar a sua ética da comunicação, só que a partir de um conceito mais ampliado de política.
  • 6
    A título de comparação, vale a pena conferir as afirmações de Arendt em A condição Humana (p. 322) e em Da violência (p. 144) quanto à tendência dos trabalhadores não demandarem participação política em condições de bem-estar social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2020
  • Aceito
    19 Fev 2024
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