Open-access Lua Nova: 40 anos

Esta edição marca os 40 anos de publicação da Revista Lua Nova . Há exatos 40 anos, impactados pelas expectativas geradas pela redemocratização do Brasil, e também pelas frustrações de mais uma derrota sofrida pelos movimentos sociais e pela oposição à ditadura, os membros do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) fundaram um de seus mais longevos projetos: a revista Lua Nova . A história da revista e do próprio Cedec – tal como já foi registrada anteriormente em nossas páginas – remonta ao processo de redemocratização da sociedade brasileira, com seus avanços e obstáculos. A celebração dos 40 anos da nossa publicação e a atual conjuntura do país – com destaque para o recém-aniversário dos 60 anos do Golpe de 1964 – formam um momento oportuno para revisitar essa história.

A redemocratização do Brasil teve início antes da década de fundação da Lua Nova – nos anos de 1980 – e perdurou depois desta. Como é sabido, o regime militar brasileiro, inaugurado com o Golpe de 1º de abril de 1964, buscou desde o princípio mesclar uma faceta que a literatura em geral nomeia de mais “branda” com outra frente que não dissimulava o autoritarismo. De 1974 em diante, a face “branda” e a face abertamente autoritária e violenta se revezaram, em movimentos estrategicamente elaborados de “abertura” e “fechamento” do regime autoritário, o que permitiu pôr em marcha a redemocratização lenta, gradual e “segura” da sociedade, e a manutenção do controle sobre o sentido e amplitude desse processo. No livro A ditadura em questão , publicado em 1982 , Florestan Fernandes descreveu da seguinte forma esse movimento:

O regime e seus condutores não enxergam a profundidade do precipício e se iludem quando pensam que ‘tudo está sob controle’… A oposição, por sua vez, tanto a conservadora e liberal quanto a de esquerda, ignora ou subestima as vantagens desse terreno movediço para os que detêm o controle arbitrário das decisões políticas vitais e da força bruta, ou seja, as vantagens de uma estática política que acaba tomando lugar do movimento histórico e perpetuando o monstro que já poderia estar enterrado. Não se aventura ao combate decisivo (aberto, direto e permanente), deixando as iniciativas à ditadura e permitindo que esta substitua com atrevimento o ativismo democrático por sua própria forma de gradualismo. A oposição cede até no campo ideológico. Não desmascara a ditadura, não desmistifica o seu ‘gradualismo democrático’

(Fernandes, 1982 , p. 9).

Alguns eventos, todavia, abriram oportunidades para que as camadas populares e progressistas alentassem qualquer esperança no caminho então em construção. De meados de 1970 em diante, despontaram na cena política novos movimentos populares e protagonistas sociais. O Movimento de Custo de Vida (MCV) (também chamado de Carestia), as mobilizações por moradia, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as associações de bairro, o movimento negro, feminista, estudantil e, ainda, o novo sindicalismo e as greves operárias do ABC são alguns dos mais influentes. A própria fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980, um partido de massas e de esquerda, representava uma novidade no cenário político e na história do país até então. Além disso, no ano de 1982, as oposições que disputavam os espaços institucionais autorizados pela ditadura conquistaram vitórias nas eleições para a Câmara dos Deputados e para o governo dos mais importantes estados (inclusive, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro).

É bem reconhecido que o auge desse processo de mobilização da sociedade foi a Campanha pelas Diretas Já (1983-1984). Como outros processos da época, no entanto, a campanha também esteve repleta de dubiedades. A mobilização tinha por objetivo reivindicar que a eleição presidencial de 1984 – a primeira para presidente no Brasil desde o Golpe de 1964 – fosse realizada diretamente pelo voto popular, e não indiretamente, como desejava o regime militar ainda em vigor. Dante de Oliveira, deputado do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), criado a partir do único partido de oposição autorizado pela ditadura, o Movimento Democrático Brasileiro, propôs, em março de 1983, uma Emenda Constitucional pela realização de eleições presidenciais diretamente pelo voto popular. No mês seguinte, abril, o PMDB organizou um comício de apoio à Emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida, com a participação de 5 mil pessoas. Para o PMDB, este é o marco inicial da Campanha pelas Diretas Já, que ganhou corpo no ano seguinte, 1984.

Ainda em novembro de 1983, no Pacaembu, ocorreu o primeiro comício unificado, suprapartidário e com apoio de diferentes governadores e dezenas de organizações da sociedade civil, reunindo cerca de 15 mil pessoas. A partir desse momento, a esperança por uma redemocratização pela base (e não pelo alto) ganhou fôlego e a campanha adquiriu musculatura, tornou-se massiva e chegou a alcançar a adesão de dezenas de milhares de pessoas, como em 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé. No ápice, em 16 de abril de 1984, estima-se que 1 milhão de pessoas integraram a manifestação no Vale do Anhangabaú. Esses comícios de grande envergadura contaram com apoio dos governadores estaduais, que garantiram infraestrutura, acesso e mobilidade. Todavia, governadores como Tancredo Neves não estiveram presentes nas últimas manifestações, por receio de radicalização da base.

Embora seja fruto de um processo híbrido, a mobilização pelas Diretas Já, de fato, tornou-se uma demanda popular e despertou profundas esperanças nas possibilidades de uma democratização efetiva e substancial do país. Mas, no meio do caminho, havia uma pedra, e a Emenda pelas “Diretas Já” foi derrotada no Congresso por uma diferença de apenas 22 votos. É na ressaca dessa dura derrota que foi publicada pelo Cedec a primeira edição da Revista Lua Nova . Ao contrário do poeta Carlos Drummond de Andrade, que relatou em seus versos clássicos que jamais esqueceria “na vida de [suas] retinas tão fatigadas” ( 1998 , p. 267, acréscimo nosso) ter esbarrado em uma pedra no meio do caminho, quando o Cedec sofreu tal revés, encontrava-se bem no início do seu trajeto e era um centro de estudos ainda jovem, com menos de 10 anos de existência.

O Cedec foi fundado em 1976 e sua história está intrinsecamente conectada ao processo de redemocratização da sociedade brasileira. O objetivo de seus fundadores, sob liderança de Francisco Weffort, era estabelecer uma instituição voltada à pesquisa e à intervenção política e social, especialmente em interlocução com os movimentos sociais da época. As novas mobilizações políticas e os desafios para a constituição de uma democracia substantiva no país estimulavam a produção de reflexões, pesquisas e discussões teóricas sobre a questão da democracia, da cidadania e dos direitos. Esses estudos, por sua vez, impulsionaram o diálogo com movimentos sociais e a intervenção no debate público da época, bem como a formulação de propostas de políticas públicas, tendo em vista os fundamentos teóricos e as questões substantivas enfrentadas abstratamente pelos pesquisadores do centro. Em uma conjuntura em que o regime ditatorial ainda tinha um imenso poder de iniciativa e habilidade em pautar os processos políticos e sociais em curso, a esperança dos intelectuais que participaram do Cedec era que – graças aos novos movimentos sociais, às práticas políticas que despontavam e às reflexões teóricas emergentes – fosse possível gestar novas imaginações políticas alternativas e profícuas à democracia então em construção. Os desafios autoritários eram gigantescos, mas não impossibilitaram a esperança nas novas práticas em germinação, que ganharam dimensão ainda mais ampla com a Campanha pelas Diretas Já.

Em meio ao insucesso da votação da emenda Dante de Oliveira, quando os membros do Cedec ainda recolhiam os cacos das aspirações então despedaçadas, foi publicado o primeiro número da revista Lua Nova . O editorial da primeira edição, intitulado “Pensar a Democracia”, abria com uma pergunta direta: “O que nos leva a lançar uma nova revista?”. José Álvaro Moisés, primeiro editor da Lua Nova , explicava que:

Essa decisão nasce do desejo de nos abrir a um público mais amplo, formado não apenas pela comunidade acadêmica ou pelo círculo de intelectuais ao qual pertencemos, mas por todos aqueles que, no seu campo próprio de ação (partidos, sindicatos, universidades, fábricas, instituições culturais, comunidades religiosas ou movimentos sociais), são os protagonistas da história brasileira dos nossos dias. Queremos levar a eles a nossa produção cultural, bem como entender melhor suas propostas, seus problemas, suas aspirações. Queremos uma revista de reflexão voltada para as questões atuais da construção da democracia no país. Uma reflexão sobre a ação política, social e econômica em nosso tempo.

Pensar sobre a nossa própria ação nesse momento de rápidas mudanças: eis o desafio que se oferece, não apenas aos que se situam no campo da oposição ao atual regime brasileiro, como também a todos os que assumiram o compromisso de fazer nascer no Brasil uma sociedade nova

(Moisés, 1984 , p. 5).

O nome da publicação – Lua Nova – advém dessa promessa: trata-se da fase da Lua mais favorável ao plantio e à semeadura. Em meio às esperanças de germinar o regime democrático almejado pelos movimentos populares, mas também em uma conjuntura marcada por reveses, “pensar a democracia” e semear novas ideias e imaginações políticas era uma tarefa – de uma só vez – política e teórica de alto fôlego. 40 anos depois, podemos nos certificar da longevidade deste projeto. Se tomarmos emprestadas, novamente, as palavras de Drummond, dessa vez, no poema “A flor e a náusea”, onde ele queixava-se “Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado” (Drummond, 1988, p. 36), a Lua Nova chega, enfim, à sua “meia-idade”, podemos assim dizer, com a certeza de que a democracia brasileira topou com muitas outras pedras no caminho, mas, ao contrário do poeta de Itabira, a revista colocou inúmeros problemas e dilemas sobre a nossa democracia ao longo dessas quatro décadas. A cada novo ciclo e a cada novo “tropeço”, a Lua Nova renovou a promessa de “pensar a democracia”, tendo em vista o intuito de seus fundadores de não “dar respostas prontas”, mas de ter a “capacidade de formular as perguntas relevantes” (Moisés, 1984 , p. 5).

Ao longo do tempo, a Lua Nova passou por mudanças editoriais. A orientação prática da revista e o destaque dado às análises de conjuntura foram substituídos por artigos teóricos densos e/ou debates de profundidade sobre questões empíricas e históricas. Embora a forma tenha sido alterada, os editores subsequentes sempre mantiveram o interesse primordial nos três campos fundamentais nos quais a revista foi estabelecida: a democracia, a cidadania e os direitos. É imprescindível reconhecer e agradecer a qualidade do trabalho editorial dos editores que me antecederam e conduziram a revista Lua Nova após a saída de José Álvaro Moisés, que foram, em ordem cronológica: Tullo Vigevani, Gabriel Cohn, Cicero Araujo, Elide Rugai Bastos, Rossana Rocha Reis e, mais recentemente, Bruno Konder Comparato.

Gostaríamos de aproveitar a oportunidade para agradecer também ao trabalho de Oneida Maria Borges, que atuou boa parte desse período nos serviços de assessoramento e secretaria da revista e, mais recentemente, como responsável pelas campanhas de apoio. Por fim, é fundamental reconhecer o apoio crucial do SciELO, que tem contribuído notavelmente para a divulgação de artigos científicos, sob os princípios da universalidade e do acesso aberto, assistindo, assim, de forma decisiva, à publicação de periódicos de qualidade no Brasil. É com muita satisfação que os artigos da Lua Nova passaram a estar disponíveis nessa plataforma, na qual é possível acessar a coleção completa do periódico, desde o seu primeiro número publicado em 1984.

Este número da Lua Nova é composto por nove artigos, enviados espontaneamente por seus autores, que refletem sobre temáticas caras à revista, entre elas, a própria trajetória da democracia brasileira nas últimas décadas. O artigo de abertura, “Movimento Negro Brasileiro: do denuncismo às políticas de igualdade racial”, de Petrônio Domingues, examina a trajetória desse movimento desde a ditadura militar até a atualidade, período em que o ativismo negro alternou de uma postura de costumeiro rechaço à negociação com o Estado para uma nova percepção acerca do poder público como uma arena privilegiada para se buscar a promoção de políticas de igualdade racial.

O artigo subsequente, “As variações e categorias no conceito de hegemonia em Ernesto Laclau”, de Renato Xavier dos Santos, exprime os debates teóricos da Lua Nova , contribuindo com um estudo sobre as transformações no conceito de hegemonia em Laclau, partindo da ênfase inicial no antagonismo até a aproximação da ideia de desconstrução. Para entender melhor essas variações, o autor examina as interlocuções mais importantes feitas por Laclau ao longo desse percurso de refinamento de ideias.

O texto de Marlon Tomazella, “A relação entre o papel do trabalho e a crescente perda de condições de ação política nos estados neoliberais contemporâneos”, por sua vez, discute a limitação gradativa da ação política e da capacidade dos cidadãos tomarem iniciativa no contexto do capitalismo avançado – e de suas incertas condições de trabalho –, tendo por base a noção de liberdade política em Hannah Arendt.

A ideia de mérito e de meritocracia é o tema do artigo seguinte. “Meritocracia, seus sentidos e crítica a partir da estrutura do trabalho”, de Thiago Aguiar Simim, examina as críticas mais comumente elaboradas ao princípio da meritocracia e propõe um questionamento alternativo ancorado no significado do discurso do mérito para a estruturação do trabalho.

Em seguida, o texto “As críticas à teoria política de Rawls: uma teoria não política da política?”, de autoria de Lilian Sendretti, reage a diversas críticas de que John Rawls desenvolveu uma teoria que, contraditoriamente, seria não política. A autora propõe o entendimento de que – ao contrário do que é apontado por seus críticos – o arsenal teórico rawlsiano parte do reconhecimento de que há conflitos e controvérsias profundas em uma sociedade moderna pluralista e, nesse sentido, sua teoria é informada pela cultura política pública de uma sociedade democrática.

O próximo artigo, intitulado “O rodoviarismo na engrenagem política da democratização (1945-56)”, de Daniel Monteiro Huertas, analisa a articulação e a influência política adquirida pelos defensores do rodoviarismo no primeiro período da democratização após a queda do Estado Novo, destacando o papel crucial do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) para que o sistema rodoviário se impusesse e fosse percebido como modelo de transportes superior naquela conjuntura.

Leonardo Monteiro é o autor do texto posterior, intitulado “Pragmatismo e Discrição: as relações entre EUA e Venezuela nos governos Biden e Maduro”. A proposta de Monteiro é refletir sobre o pragmatismo, de um lado, dos norte-americanos ao reduzir sanções, restabelecer relações comerciais e distensionar conflitos na relação bilateral com a Venezuela, tendo em vista o desafio regional e global posto pela China e; do outro lado, sobre o pragmatismo dos venezuelanos, caracterizado pelo interesse em manter relações com ambas as potências em disputa.

O penúltimo artigo, de autoria de Bruno Boti Bernardi e João Roriz, “A multi-level analysis on the impact of international human rights norms and pressures: exploring interactive effects beyond the spiral model” faz uma avaliação crítica acerca das insuficiências e simplicidades de um modelo teórico-analítico influente nas relações internacionais (o modelo espiral) acerca do impacto de normas e pressões internacionais no campo dos direitos humanos. A partir dessa problematização, os autores contribuem com a proposição de um novo quadro referencial de maior complexidade, que amplia o estudo para dimensões sociais e estruturais antes negligenciadas e considera o potencial não apenas de avanços, mas também de retrocessos, e/ou de se cooptar e instrumentalizar o vocabulário de direitos humanos para se perpetuar estruturas de abusos e violações.

Finalmente, o artigo “Notas sobre a atuação da Igreja Católica durante a ditadura militar: a formação das Comunidades Eclesiais de Base na região da Baixada Fluminense (1964-1988)”, de Renata Meirelles, encerra o número com um estudo sobre as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no período da ditadura. De acordo com a autora, embora as CEBs tenham ficado associadas, na memória nacional, ao clero progressista e à resistência popular ao regime militar, a documentação histórica revela, na realidade, que as CEBs surgiram de um consenso dentro da Igreja sobre a oportunidade de se expandir a evangelização e a propagação da fé católica no Brasil e abrir espaços para participação de leigos em atividades religiosas. Em alguns casos, grupos progressistas tiveram notável atuação nas CEBs, utilizando-as para mobilizar setores populares e organizar ações de resistência à ditadura, mas nem sempre essas comunidades estiveram vinculadas ao incentivo de mudanças sociais por meio da mobilização da base.

Todos os artigos deste número foram avaliados positivamente por nossos pareceristas, a quem novamente agradecemos e enfatizamos a importância para a qualidade da revista. Por fim, uma última comunicação: para os próximos números, estamos recebendo artigos sobre as seguintes temáticas: o fenômeno do bolsonarismo; a Constituição e a crítica da atualidade; as mobilizações sociais e o desmonte de políticas públicas.

Bibliografia

  • ANDRADE, Carlos Drummond de. 1998. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record.
  • MOISÉS, José Álvaro. 1984. Pensar a democracia. Lua Nova, n. 1, p. 5.
  • FLORESTAN, Fernandes. 1982. A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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