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NEM TODAS AS CRIANÇAS VINGAM: UMA LEITURA DAS FIGURAÇÕES NO CONTO "PAI CONTRA MÃE", DE MACHADO DE ASSIS (1906)

NOT ALL CHILDREN MAKE IT: A READING OF THE FIGURATIONS IN THE SHORT STORY "FATHER AGAINST MOTHER", BY MACHADO DE ASSIS (1906)

Resumo:

O presente artigo procura investigar as noções de raça, humanidade, maternidade e classe social inseridas no processo de figuração dos personagens do conto "Pai contra mãe", publicado originalmente em Relíquias de casa velha , de 1906, de Machado de Assis. Esta leitura crítica tem como objetivo levantar questões que estreitem ainda mais as relações entre os campos literário e historiográfico. A partir do debate de ideias de autores como Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub, propõe-se uma análise da interseccionalidade nas leituras dos personagens. Desse modo, a correlação da figuração de Arminda pode ser vista com as muitas mulheres negras escravizadas que sofreram com a violência da branquitude.

Palavras-chave:
raça; maternidade; humanidade; classe social; branquitude

Abstract:

This article seeks to investigate the notions of race, humanity, motherhood and social class inserted in the process of figuration of de characters in the short story "Father against mother" originally published in Relíquias de casa velha , 1906, by Machado de Assis. This critical reading aims to raise issues that further strengthen the relationships between literary and historiographic fields. Based on the debate of ideas of authors such as Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Roberto Schwarz and Sidney Chalhoub, an analysis of intersectionality in the readings of characters is proposed. In this way, the correlation of Arminda's figuration can be seen with the many enslaved black women who suffered from the violence of whiteness.

Keywords:
race ; motherhood ; humanity ; social class ; whiteness

– Nem todas as crianças vingam – bateu-lhe o coração.

Machado de Assis, "Pai contra mãe"

A aquarela machadiana

Acapacidade de emocionar o leitor ou a leitora de um conto demarca a agência daquele escritor que se propõe a estudar sua sociedade e encará-la pela fechadura da prosa literária. A comoção, seja pelo espanto ou pelo delírio, é um artifício audacioso que só alcança um resultado satisfatório quando capaz de dosar na medida certa a formação da palavra.

A escrita de Machado de Assis não inaugura a aproximação entre História e Literatura enquanto áreas de produção de conhecimento, porém a força dos textos deste autor gera uma reorganização da estilística literária. No Brasil, desde o Primeiro Reinado muitos escritores buscaram, cada um ao seu modo, contemplar uma ou mais tentativas de realizar essa união.

Esse diálogo pode ser visto em uma escala internacional com exemplos clássicos como Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, Victor Hugo, Fiódor Dostoiévski, Edgar Allan Poe, mas podemos – e devemos – encará-lo em solo nacional. Os literatos brasileiros do século XIX formavam uma espécie de laboratório textual em suas publicações nos periódicos. Se na Europa o conto havia triunfado como uma estrutura narrativa capaz de contemplar uma história curta e propositiva, deste lado do Atlântico Sul talvez seja Machado quem melhor forjou personagens capazes de incorporar um "sentimento íntimo", como ele já sugeria em Instinto de Nacionalidade (ASSIS, 2015cASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015a. p. 1.177-1.184. ).

O conto "Pai contra mãe" (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. ) desenrola uma história que é marcada pela aspereza de uma ficcionalidade que machuca o mundo contemporâneo pós-escravidão. Todavia, a provocação projetada pelo autor desempenha uma metáfora viva de uma sociedade recém-livre de uma instituição tão degradante que foi capaz de reorganizar os modelos de pensamento e de ideias como humanidade, vida e, principalmente, História.

Tentaremos encadear a ideia de que o escritor utiliza da narrativa literária do conto como desnude de uma sociedade a cada frase, a cada silêncio ou esboço de tristeza, mostrando que a ficcionalidade caminha ao encontro das marcas de um tempo que se constrói a partir de composição mimética complexa e necessária. Vejamos, agora, o que comporta um conto.

Quem conta um conto, inventa um mundo

Como já sinalizou Nádia Battella Gotlib, em Teoria do conto , essa narrativa de difícil definição formativa apresenta uma característica comum em todas as variações, que é "simplesmente contar estórias". Notemos que a escolha pelo vocábulo estórias se apropria da estrutura ficcional e se afasta do campo historiográfico. Esse modelo narrativo não propõe remontar um passado a partir de fontes históricas ou vestígios no tempo, mesmo que assim possa fazer de outro modo (GOTLIB, 1985GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985. , p. 8). A estética literária do conto apresenta uma alternância de modos de escrita pela própria essência experimental de sua composição mimética; o escritor não precisa estar preso em amarras como: grande ou pequeno número de páginas, comprovação de sua veracidade, modo de começar ou terminar sua narrativa, ou seja, para entendermos a liberdade ficcional devemos "aceitar uma luta em que a força da teoria pode aniquilar a própria vida do conto" (GOTLIB, 1985GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985. , p. 10).

Dentro dessa figuração de uma história, a ficção e a realidade disputam espaço e constroem, em simbiose, todo um sistema de compreensão. Ou, como alerta Gotlib, a voz narrativa irá guiar o leitor por um caminho idealizado para provocar sensações ainda não experimentadas e que possam sair da própria narrativa literária. Ao investigar a construção de Edgar Allan Poe, a autora instiga-nos:

O que pretende o autor? aterrorizar? encantar? enganar? Já havendo selecionado um efeito, que deve ser tanto original quanto vivido, passa a considerar a melhor forma de elaborar tal efeito, seja através do incidente ou do tom [...]. E em seguida busca combinações adequadas de acontecimentos ou de tom, visando a "construção do efeito"

(GOTLIB, 1985GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985. , p. 35-36).

Nesse caso, podemos observar que a inserção da historicidade nos é apresentada como a própria experiência de escrita do autor, caso contrário não haveria sentido ou conto. Mesmo que a história fosse narrada dentro das balizas mais futuristas, a essência de configuração levaria em conta palavras, sentidos, ideias ou experiências narrativas já existentes, para que o escritor possa organizá-las e dotá-las de sentido.

É possível ampliar nesse ponto aquilo que Antonio Candido ( 2014CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2014. , p. 14, grifo nosso) nos alertou sobre a percepção da literatura, que já fora debatido e refletido tantas vezes, no que tange à proposta de "que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno ". E Machado de Assis soube nessa tessitura colher seus frutos e maturá-los.

Ao explorar a criação dos personagens nos contos do Bruxo do Cosme Velho, Paul Dixon adverte-nos que a elaboração dessas histórias não pretende realizar uma correspondência de caracteres com "pessoas de carne e osso", mas sim caminhar para a construção de uma espécie de "receptáculos de ideias, pontos de vista ou valores". É de fato importante perceber que o ato de figuração de "modelos em movimento" não está preso a uma falsa essência realista, ao contrário, as cores dessas construções despontam-se pela ficcionalidade bem-acabada (DIXON, 2006DIXON, Paul. Modelos em movimento: os contos de Machado de Assis. Teresa – Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 185-206, 2006. , p. 189).

A margem de originalidade dos contos escritos por Machado de Assis está na marca da pluralidade de figurações possíveis de um modo que elas, ainda assim, se tornem acessíveis ao toque no leitor. Os exemplares de Cândido, Clara e Arminda, que logo veremos com maior precisão, compõem através do texto escrito uma formação relacional de experiências de vida da sociedade fluminense do século XIX; o contraponto expresso por cada um deles tece uma trama que instiga os leitores a um reflexo íntimo de sua própria existência.

A problemática da teoria da composição machadiana de um "esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres" (ASSIS, 2015bASSIS, Machado de. Ressureição. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015c. p. 230-307. , p. 232), passa a ser visto por Dixon como uma forma de entender como o literato extrapola a noção de uma figuração individual para abrir caminho para a espacialidade de um mundo de constante inter-relação. No interior dos contos, a briga por espaço e vida entre essas figurações parece deixar um cheiro de sentimentos, desejos, dores e conquistas próprias de uma historicidade de seu tempo (DIXON, 2006DIXON, Paul. Modelos em movimento: os contos de Machado de Assis. Teresa – Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 185-206, 2006. , p. 199).

A partir dos próximos tópicos, procuramos demonstrar como cada um dos personagens ganha corpo e vida dentro do conto; ao nos atermos a essas construções, conseguimos enxergar como o literato os coloca em um constante modelo dialógico. Essa proposta de leitura propõe que a força e o sucesso da expressividade narrativa não seriam os mesmos caso tivéssemos apenas uma figuração; todavia, o todo ganha espaço e se mostra pelos contrastes.

A Escravidão e o corpo negro

A história narrada em "Pai contra mãe" passa-se durante o século XIX brasileiro, nos arredores do dito Município Neutro, a Corte carioca. No núcleo principal dos personagens temos três figurações: Clara, uma moça pobre e órfã que se mantém com a ajuda de uma tia; Cândido, um homem entregue à penúria, com poucas perspectivas laborais; e Arminda, uma mulher negra grávida e escravizada, que se encontra fugida durante quase todo o conto. A instituição da escravidão deve ser compreendida ao lado da propriedade privada como os pilares de uma sociedade marcada pela ideologia senhorial e os seus monopólios, como evidenciou Ilmar Rohloff Mattos ( 1999MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999. , p. 70).

O tempo da história corre rapidamente pela sequência de ações que se sucedem nas vidas dos dois personagens livres e pobres; após alguns anos de acúmulo de revezes, eles se casam e a jovem engravida. Em meio à penúria e ao desemprego, a alternativa do trabalho de captura de escravos desperta em Cândido um meio de sobrevivência. No final, o já previsto encontro entre um pai desesperado e uma mãe que figura a força da resistência à escravidão se dá com uma luta que ficciona a vida em sua essência mais dura, aquela que procura desnudar as relações sociais do Segundo Reinado.

O conto começa com uma narração satírica da violência e desumanização da escravidão; os objetos de tortura e punição adotados pelos senhores de escravos brasileiros são transpostos como uma introdução ao terror costumeiro. O narrador anuncia que "a escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais", engendrando assim uma ótica extratemporal, uma vez que, embora a publicação do conto tenha acontecido em 1906, seu enredo analisa o que seria um legado de um período encerrado em 1888 (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621).

A descrição dolorosa do cotidiano escravista abre espaço para a concretização da afirmação sugerida por Sidney Chalhoub ( 2003CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. , p. 57), em que ele interpreta que "os escravos lutavam intensamente por sua liberdade, e via de regra organizavam sua vida em função da expectativa de alcançar esse objetivo". Os castigos físicos, a objetificação e animalização do corpo negro passam pelo olhar exibicionista do narrador. Vejamos:

Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado

(ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621).

A resposta a tal aplicação de recursos torturantes e degradantes vem na voz do narrador, isto é, na explicação das elites que incorpora o elemento pela amostragem: "Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcançava sem o grotesco, e alguma vez o cruel" (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621). A construção da crítica machadiana não se mostra de forma simples, é preciso notar como o ponto crucial está na própria ideologia senhorial escravista que normatizava a dor e a não humanidade dos escravizados em prol de uma determinada essência de ordem .

E os exemplos continuam: "uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave", assim era retratado o castigo do ferro no pescoço aos escravos que fugiam de seus proprietários. O narrador mais uma vez toma da pena da ironia para tipificar tal compreensão das fugas argumentando que "nem todos [os cativos] gostavam da escravidão", ou dizendo que "sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar", ou ao extremo, "o dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói" (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621).

Essa máxima ideológica entra como fator racionalizante para os movimentos senhoriais e vamos acompanhá-la no mundo liberal regido pela propriedade privada e os elementos do capital: o ser negro escravizado é um não-indivíduo, passando a só ter valor (visto na palavra dinheiro) a partir da garantia e direito de seu senhor, conseguimos assim enxergar um esquema de desumanização. Como afirma Sidney Chalhoub, "a escravidão parecia naturalizada, tão parte da paisagem social", ou seja, a literatura constrói um eixo de ligação com o próprio tempo de sua produção ou reprodução. Machado desperta na demonstração do horror uma mancha que era fruto da sociedade de seu tempo, evidenciando que o corpo do homem e da mulher negra passava por ritos simbólicos diários de destruição da condição humana desses indivíduos (CHALHOUB, 2018CHALHOUB, Sidney. Literatura e escravidão. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 298-304. , p. 298).

Frantz Fanon alertou-nos que "no mundo branco, o homem de cor [como construção social dos negros pelos brancos] encontra dificuldades de elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação"; esse movimento de desconstrução da humanidade negra passa por uma soma de ações em que "o branco quer o mundo; ele o quer só para si. Ele se considera senhor predestinado deste mundo. Ele o submete, estabelece-se entre ele e o mundo uma relação de apropriação" (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. , p. 117). Nesse ponto, enxergamos na literatura machadiana uma forma de exibir a ideologia senhorial e o pensamento dela em cima do sujeito escravizado.

No caso do corpo da mulher negra, a função de posse reproduz uma lógica de propriedade que ultrapassa todas as outras funções sociais dos corpos dentro da sociedade do século XIX, pois a marca do uso indiscriminado pela vontade do senhor é, como nos lembra Chalhoub, a "ameaça constante e a violação sexual delas por senhores que se arrogam esse direito". O corpo da mulher escravizada torna-se objeto de concentração de olhares e desejos, transformando sua vida em uma constante observação (CHALHOUB, 2018CHALHOUB, Sidney. Literatura e escravidão. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 298-304. , p. 300).

Nesse caso, Machado de Assis elabora o início de seu conto por um contraste, pois a enumeração da vida destrutiva da escravidão é lida pelos olhos de um narrador senhorial que não esconde as barbáries de uma instituição que se mostra necessária à engrenagem de funcionamento de todo um corpo social. As ideias de Roberto Schwarz ajudam-nos a entender esse paradoxo da formação de nossa identidade nacional transposto para a literatura como elementos formais da constituição narrativa. O autor afirma:

[...] o atrito dos pontos de vista obriga à crise, cuja substância são as incongruências da situação brasileira – a luz do critério esclarecido. A consciência moral as questiona escrupulosamente, ainda que na forma satírica da aprovação, e, diante de sua imoralidade, conclui pela própria impotência, que é um dado mais

(SCHWARZ, 2012bSCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2012b. , p. 129).

Dessa forma, caímos em uma estruturação pela própria lógica senhorial: o que seria um desnível entre a moralidade burguesa e a degradação social escravista vira justamente fratura de acerto explorada no conto. O chamado fator crítico dessa construção textual está na fissura ou, como bem localizou Antonio Candido ( 2010CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. , p. 67), "nos resfolhos da frase, no subentendido das cenas, no esforço aparentemente casual da descrição, estão escondidos o interesse lúcido pela realidade social e o sentimento das suas contradições".

Se pudermos pegar de empréstimo a categoria político-cultural de Amefricanidade de Lélia Gonzalez, conseguiríamos responder esse compromisso de observação de Machado de Assis sem superestimar a sua observação crítica da sociedade fluminense. Com segurança podemos afirmar, seguindo a chave conceitual de Gonzalez ( 2019GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Ed. Bazar do Tempo, 2019. p. 353-366. , p. 345), que este literato foi capaz de identificar o processo em que "as sociedades ibéricas se estruturaram a partir de um modelo rigidamente hierárquico, onde tudo e todos tinham seu lugar", garantindo assim que "as sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas". Esse processo se ancora na ideologia de branqueamento.

As ideologias racistas e evolucionistas inundaram o debate intelectual do século XIX, assumindo um protagonismo na própria discussão de futuros para o país. Pensar em projetos para se seguir sinaliza uma reflexão no presente de construções elaboradas no passado. Nas palavras de Lilia Moritz Schwarcz ( 2020SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. 17. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 249), a ideologia senhorial pós-década de 1870 assumiu um protagonismo em várias frentes, desde o Direito até a Medicina, em que "o objetivo era curar um país enfermo, tendo como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte gangrenada do país, para que restasse uma população de possível perfectibilidade". Machado apresenta-nos essa teoria esquematizada desde o início do conto com a naturalidade de um modus vivendi ; desse modo, ele remete ao leitor o papel de julgar a própria sociedade.

Resta analisar, como bem lembra Luiz Felipe de Alencastro, que a política de formação histórica desta terra se encontra vinculada ao tráfico negreiro e ao contingente da escravidão como força laboral. O historiador afirma que é "no espaço mais amplo do Atlântico Sul que a história da América portuguesa e a gênese do Império do Brasil tomam a sua dimensão", ancorando assim não só as nossas classes sociais como a estruturação das nossas elites coloniais e depois imperiais (ALENCASTRO, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. , p. 20). Ou não seria ainda no Segundo Reinado brasileiro o sujeito escravizado a força motriz de nossa industrialização, agricultura e quase todo o mundo do trabalho?

A chave de análise de Alencastro ( 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. , p. 21) é que a administração do Império perpetua os "condicionantes atlânticos, africanos" até o momento da Abolição da Escravatura em 1888, quando as formas de opressão e desigualdade constitucionais serão reorganizadas. As elites do século XIX ainda estão ligadas aos modelos aristocráticos de manutenção de poder, coibindo ou deturpando as ideias liberais e adaptando "aqui uma ideologia familista, calcada na parentela de tipo brasileiro, com seu sistema de obrigações filiais e paternais", como propõe Roberto Schwarz ( 2012bSCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2012b. , p. 70) sobre a sua ideia de periferia do capitalismo .

Porém, não caiamos no erro de achar que tal dicotomia escravidão versus modelo de formação liberal existia enquanto ausência de funcionalidade; ao contrário, essa foi a forma de arranjo político e institucional encontrado pelas nossas elites senhoriais "como um fato econômico possível numa economia de livre mercado e de direito irrestrito à propriedade privada", correspondência essa que considerava os condicionantes morais e éticos da escravização de seres humanos pela ótica de uma supremacia biológica dita natural, como conclui Ricardo Salles ( 2013SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013. , p. 108).

Se o mundo que envolvia a escravidão gerava sofrimento e morte para uma maioria, para outros gerava sobrevivência laboral e distinção social. Essa instituição detinha esferas de enriquecimento e forças de trabalho para assegurar o controle e a sua alta lucratividade. E é nesse grande fosso entre dois mundos que encontramos Clara e Cândido.

A humanidade de Clara e Cândido

Começaremos esta parte por uma questão que não pode passar despercebida, a escolha dos nomes Cândido Neves e Clara. Se o narrador não nos aponta efetivamente a cor desses dois personagens, podemos investigar as suas posições sociais em uma sociedade tão bem demarcada como a do Segundo Reinado, essas sim bem especificadas. Porém, a nomeação não é fortuita: percebam que ambos os nomes indicam adjetivos colorizados.

A provocação nominal machadiana dialoga com as descrições de mobilidade social de seus personagens somente dirigidas para livres e pobres; a escolha pelos nomes indica um caminho justamente para entender esses estratos que ficavam entre a escravidão e as classes senhoriais e que detinham no mundo do trabalho ou na ausência dele um dilema moral. Roberto Schwarz ( 2012bSCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2012b. , p. 105) explica-nos essa camada da população brasileira dessa forma, pela estruturação: "Não tendo propriedade, e estando o principal da produção econômica a cargo do escravo, os homens [e mulheres, note-se aqui] pobres pisam terreno escorregadio: se não trabalham são uns desclassificados, e se trabalham só por muito favor serão pagos ou reconhecidos".

Um importante ponto de reflexão é estabelecido em "Whiter shades of pale" (FLYNN; CALVO-GONZÁLEZ; SOUZA, 2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and race in contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013. ) . Nesse artigo, o conceito de branquitude passa a ser questionado e desmobilizado a partir da leitura crítica da interpretação automática dos personagens Cândido, Clara e Arminda como naturalmente identificados racialmente. Isso se deve ao fato dos dois primeiros personagens não apresentarem a descrição quanto à cor da pele ao longo do conto machadiano. Durante décadas de fortuna crítica, percebemos a reafirmação do par binário, "branco versus negro", como uma única chave de entendimento dos protagonistas pai e mãe, como advertem Alex Flynn, Elena Calvo-González e Marcelo Mendes de Souza ( 2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and race in contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013. ).

Faz-se possível indagar o que Machado de Assis enquanto contista buscava oferecer com essa construção mimética imbricada de lacunas, mas ao mesmo tempo coberta de referências explícitas ao jogo metafórico. Não nos esqueçamos que os nomes são alusivos, as classes sociais são delimitadas com a indicação direta da ocupação profissional ou falta dela, o cotidiano marcado por penúria e decadência também são a todo momento levantados, tudo isso, saltando aos olhos do leitor como guia de leitura.

O argumento desenvolvido por Flynn et al. ( 2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and race in contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013. ) mostra como esse binarismo se mostra estéril, chave que pode nos levar a excelentes especulações daquilo que o próprio autor procurava ressaltar e desmobilizar. Nas palavras dos autores:

In other words, Machado employs a playful irony, inviting the reader to "color in" the characters, something he never explicitly does himself. Machado's text is not prescriptive; the author's intention is rather to invite the reader into what amounts to a common misreading and thereby demonstrate that the solidity of whiteness, which many take for granted, is in fact negotiable and socially constructed

(FLYNN; CALVO-GONZÁLEZ; SOUZA, 2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and race in contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013. , p. 5).

A construção do conceito de branquitude perpassa não só por uma identificação fixa da identidade racial dos indivíduos, no século XIX essa lógica destinava toda uma imagem de nação e do futuro que ela poderia representar, como já sinalizado. As teorias racistas e eugenistas, que estipulavam formas de se identificar o branco como modelo, buscavam também apagar a paleta de cores que isso poderia representar em um país em que negros e indígenas assumiam relevante parcela da população. Os ditos filhos de casamentos inter-raciais assumiam não só diferentes tonalidades de cor da pele, eles ainda passavam a ser notados também por outras características físicas, educacionais, de renda, moralizantes, comportamentais, de gênero e tantas outras. Dessa vez, enxergamos a flexibilidade de reconhecimento racial que pode atingir Cândido e Clara, diferentemente de Arminda, que tem em sua figuração a marca da escravidão.

Em outro ponto de argumentação, Fernando de Souza Rocha ( 2016ROCHA, Fernando Souza de. "Father versus Mother": Slavery and its apparatuses. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Orgs.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave, 2016. p. 91-103. ) percorre a análise do conto afirmando que o casal é negro. Tal escolha se ancora em uma leitura do ofício de captura de escravos desempenhado por Cândido Neves, posição que muitos negros livres assumiam como forma de sustento. Para este autor, a escolha pela abertura do conto recheada com os horrores da escravidão sinaliza a tentativa de amostragem dessa estrutura de "produção de corpos dóceis", em que a humanidade passa por uma simbologia do aniquilamento. Desse modo, a ironia estaria entre nomes paradoxalmente contrários às identificações raciais dos personagens, o que modifica as resoluções que o leitor poderia ter se levasse à frente a ideia de que eles seriam brancos (ROCHA, 2016ROCHA, Fernando Souza de. "Father versus Mother": Slavery and its apparatuses. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Orgs.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave, 2016. p. 91-103. , p. 97).

Todavia, não podemos perder de vista uma coisa: se para os dois personagens pobres que procuram manter a felicidade e o cuidado de seu filho em suas mãos existe a possibilidade de outras leituras de sua cor e decisões a tomar (trabalhos múltiplos, casamentos negociáveis, roda dos enjeitados, novas moradias, mesmo que precárias), para Arminda a única alternativa foi a fuga. A tensão narrativa do conto, criada a partir de filho vivo contra filho morto, não deve ser polarizada por uma ótica racial de seus pais, como bem notou Flynn et al. ( 2013FLYNN, Alex; CALVO-GONZÁLEZ, Elena; SOUZA, Marcelo Mendes de. Whiter Shades of Pale: "Coloring in" Machado de Assis and race in contemporary Brazil. Latin American Research Review, [Pittsburgh], v. 48, n. 3, p. 3-24, 2013. ) e até reorganizou Rocha ( 2016ROCHA, Fernando Souza de. "Father versus Mother": Slavery and its apparatuses. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Orgs.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave, 2016. p. 91-103. ) , mas não podemos esquecer do desfecho do conto: foi a personagem negra e escravizada quem perdeu seu filho, que lutou sem ter escolhas como os demais e que aos olhos dos outros convivas de seu mundo fictício era objeto de seu senhor, e isso Machado de Assis deixou nítido não só no jogo de construção de palavras como na dor que o texto exala.

Decerto, a narrativa não pode ser encarada pela ótica presumida de colorização dos personagens, mas as marcas de classe e de gênero não podem ser desprezadas. A pobreza que os une, de uma certa forma, os separa. Ser pobre apresenta níveis, e a escravidão a tudo cerceia, esse é o ponto máximo da mimesis de "Pai contra mãe" . A leitura de um Machado significadô(r) , de Paulo Dutra ( 2022DUTRA, Paulo. O Machado significadô(r): literatura na afrodescendência. Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 15, p. 1-17, 2022. ), demarca bem esse espaço da linguagem enquanto construção textual crítica. A descrição minuciosa das figurações de Clara e Cândido oferece aos leitores caminhos possíveis que esses personagens poderiam tomar; ao pai não podemos esquecer da satisfação de encontrar uma escrava como forma de ouvir mais uma vez o choro de seu filho nos braços, essa escolha da dubiedade está atrelada ao conceito de branquitude e todas as duras consequências do seu edifício social, aí, sim, para todos (DUTRA, 2022DUTRA, Paulo. O Machado significadô(r): literatura na afrodescendência. Machado de Assis em Linha – Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 15, p. 1-17, 2022. , p. 14).

Vejamos o caso de Cândido Neves, o pai que titula nosso conto. Segundo a voz elitista de nosso narrador, nosso personagem principal "cedeu à pobreza quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos", isto é, tendo em vista a expressão um tanto insolente de não conseguir manter-se em emprego algum. Essa quase arte de não permanência em nenhum ofício lhe assegurará a expressão de cunho pejorativo caiporismo , derivada de uma suposta índole de preguiça e azar (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621).

Entretanto, se seguirmos o percurso laboral desse jovem pobre, perceberemos que os ofícios largados não foram poucos e que o mundo do trabalho, para aqueles como ele, era um tanto restrito e demandava uma rede de relações de clientela. No início de sua juventude encontrou-se "por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem", ou seja, demandaria tempo e, em sua condição, tempo é sobrevivência e, ainda mais, não poderia se arriscar em algo que "não ganhasse bastante". Logo depois da primeira desistência, achou com alguma ajuda a entrada em uma loja como caixeiro e, dessa vez, o que lhe feria era o orgulho de "atender e servir a todos", sentimento este que o fez em breve pedir demissão. Para completar as contas, colocamos "fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império [e] carteiro", todos os empregos deixados por ele (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 622).

Se não temos a precisão de sua origem familiar, podemos supor que não descendia de nenhuma família ilustre ou notável dentre o céu fluminense. Pelo contrário, o que nosso narrador apresenta é uma ligação com um primo, também pobre e "entalhador de ofício", com quem dividia o teto e que lhe ensinara alguns poucos manejos dessa profissão que mesmo assim "aprendeu mal". A recusa para o trabalho é um fator de reflexão social em um mundo em que os pobres não detinham meios de arranjar sozinhos a sua subsistência (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 622). Ou, como já sentenciava o contemporâneo Joaquim Nabuco ( 2010NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. , p. 142):

[...] o trabalhador livre não tinha lugar na sociedade, sendo um nômade, um mendigo, e por isso em parte nenhuma achava ocupação fixa; não tinha em torno de si o incentivo que desperta o homem pobre a vista do bem-estar adquirido por meio do trabalho por indivíduos de sua classe, saídos das mesmas camadas que ele.

Quem novamente nos faz uma leitura desse fato é Roberto Schwarz ( 2012bSCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2012b. , p. 105), pois para ele "a vizinhança da escravidão desmoralizava o trabalho livre. Em consequência, a ética do trabalho – um dos pilares da ideologia burguesa contemporânea – encontrava pouco crédito entre nós". A resposta ao sentimento de negação vivenciado por Cândido, que não tem apreço pelo trabalho, pode ser lida como uma normalidade em um mundo senhorial. Trabalhar em funções tidas como subalternas poderia ser comparado à escravidão, à servilidade e à exigência de uma obrigação, e a tudo isso recusava aceitar essa figuração de um homem livre e pobre.

A outra parte de nosso conto está figurada na personagem Clara, uma mulher de 22 anos de idade quando encontra seu futuro marido. Sua pouca descrição genealógica demonstra que era "órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela"; o indício laboral novamente é explícito, seguindo-se uma nova observação, em que "não cosia tanto que não namorasse o seu pouco". A pobre moça enxergava no matrimônio uma esperança de ascensão social ou, no mínimo, a subsistência diária. Sua tia já apontava que o casamento estava para ser traçado como "um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir embora". Análise triste essa, se prestarmos a devida atenção, uma vez que a sua condição social não deixava meios de escolha e, ainda mais, estaria sujeita à violência da decisão ou rejeição dos pretendentes que a trocavam por uma possível noiva melhor (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 622).

O encontro entre as duas figurações, Cândido e Clara, segue o relevo do estilo romanesco incorporando aquilo que Georg Lukács ( 2009LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Editora 34, 2009. , p. 117) buscou traduzir falando da "inadequação que nasce do fato de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que a vida lhe é capaz de oferecer": enxergamos no casamento entre eles algo quase metafísico à realidade de classe. É possível creditar os encantos e namoros entre os dois nos onze meses que se seguiram até o esperado matrimônio, as vozes soavam contradizendo que o noivo "era dado em demasia a patuscadas", entretanto a força da naturalidade – não seria também da pobreza? – os uniu (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 622).

A história encaminha-nos para a "casa pobre onde eles se foram abrigar", os três, marido, mulher e tia, um lugar de pouco alimento, mas de muito riso como avalia nosso narrador. A nova troça com a questão nominal aparece em uma leitura bem atenta, que dessa vez se mascara em trocadilho: "Os mesmos nomes eram objetos trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir" (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 622), podemos deduzir dessa frase a seguinte expressão: Por que claro, cândido ou branco como a neve se em nada isso pode nos reverter ?

A união matrimonial logo anunciou "o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura", porém o narrador se encarrega de demonstrar que o ventre crescia em contínuo desenvolvimento da precariedade da família Neves. Nessa altura, o chefe familiar já arrumara um modo de ganhar a vida com maior flexibilidade e menor exposição: a captura de escravizados fugidos. Entretanto, a entrada de novos homens pobres no mesmo ofício de Cândido, aumentando a oferta e diminuindo as oportunidades de captura, demonstra como as comunidades urbanas livres subalternizadas se mantinham em momentos de desemprego (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 623).

Esse ofício, se assim pudermos localizá-lo, era degradante do ponto de vista moral, mas a existência da pobreza e da própria escravidão reivindicavam a sua existência. Apresentamos assim os caminhos possíveis para aqueles que caminhavam entre a liberdade e a submissão também opressiva, os livres e pobres. Nesse ponto, precisamos nos recordar do alerta que nos fizera Patrícia Hill Collins ( 2015COLLINS, Patrícia Hill. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: MORENO, Renata (Org.). Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: EDSOF, 2015. p. 13-42. , p. 17):

Todas/os têm uma identidade específica de raça/classe/gênero (e podemos investigar outras muitas mais). Pensamentos dicotômicos do tipo ou/ou são especialmente problemáticos quando aplicados a teorias de opressão, porque todo indivíduo deve ser classificado ou como sendo oprimido ou como não oprimido. Se torna conceitualmente impossível a oposição "ambos/e", em que o indivíduo é simultaneamente oprimido e opressor.

O que afirmamos não é a relativização dos atos opressivos do ofício de captura de escravos , desenvolvidos por homens brancos, negros e mestiços pobres. O mecanismo é abrir para a macroanálise proposta pelo conto, em que a estrutura sociocultural senhorial brasileira subjuga os estratos menos favorecidos e os torna opressores em massa para a manutenção daquilo que podemos entender como sistema político da força. Onde podemos localizar os corpos não pertencentes às classes dominantes e afastados de seus privilégios?

Mediante as poucas oportunidades de emprego e a ausência de uma rede de clientela segura, o cotidiano dessa família passa a ser exposto aos maiores vexames morais, primeiro o despejo pela falta de pagamento só remediada pelos favores de uma "senhora rica, que lhes prometeu emprestar os quartos baixos da casa", e depois a mais profunda ausência de recursos básicos, ancorando-se na falta de alimento para dar conta de, agora, quatro bocas (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 625).

A voz de tia Mônica, que também ajuda com atividades de costura e remendos, traz um destino para o recém-nascido. A personagem figurada no conto representa uma espécie de agregada que mantinha também um auxílio financeiro básico para o sustento daquele pequeno núcleo familiar: ao mesmo tempo em que ensinava a sobrinha os dotes de corte e costura, contribuía financeiramente como forma de prover alimentos e, mais tarde, ajudar no enxoval do bebê. Outro papel que coube a esta senhora, tipificada pela voz racional, está na ideia de levar o rebento à roda dos enjeitados, desejo que ela já alimentava desde a descoberta da gravidez e que passa a ser argumentado com fervor na medida em que os recursos materiais se vão deteriorando. Vejamos:

Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular. [...] Pois a roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua

(ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 624).

Diante da situação incontornável dos pais, o esposo recolhe sua alegria paternal e procura forças para enfrentar o conselho de tia Mônica, levando o seu primeiro filho até a rua dos Barbonos; note-se aqui que o narrador salienta o sexo biológico do rebento, sendo ele um menino. Os cuidados descritos como "agasalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preservá-lo do sereno" aumentavam a tristeza desse pai que estava prestes a perder seu filho para a pobreza (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 626). 1 1 Note-se que a referência à rua dos Barbonos, no centro do Rio de Janeiro, se dá justamente pela instalação do prédio da Santa Casa de Misericórdia e a sua chamada roda dos expostos. Sobre isso ver Venâncio ( 1998 ).

Arminda: Uma figuração de carne e osso?

A descrição de Arminda passa-se como uma análise interseccional, aquela de uma mulher negra cativa que acabara de fugir. A recompensa pela sua captura alcançava a somatória de mais de cem mil-réis, o que pela correspondência social é um alto valor em um mundo de gratificações regidas por "promessas" ou "soma escrita e escassa". Vinha descrita como uma mulata, de posse do vestido do corpo. Ela foi descoberta por Cândido Neves circulando pelos arrabaldes da rua da Ajuda no Centro fluminense, encontro que o encheu de vitalidade e esperança (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621).

A fuga de escravos era prática comum ao longo do Oitocentos. Os anúncios de cativos fugidos inundavam os jornais da Corte e geravam uma fonte de renda para aqueles que se aventuravam na captura em busca de uma gratificação, como afirma o próprio narrador, ao pontuar que:

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa. [...] Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa

(ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 621).

A personagem criada por Machado de Assis ganha vida quando mergulhamos nos periódicos cariocas da segunda metade do século XIX. Após folhear a quarta folha do Jornal do Commercio , encontramos Joanas, Delfinas, Jacintas, Florindas, Faustinas e Felicidades que poderiam ser Arminda. As descrições apresentam tópicos centrais, tipificações raciais, culturais, vestimentas, trejeitos e, principalmente, o desejo senhorial de tê-las de volta em suas mãos.

Ainda fugida desde o dia 23 de novembro [contabilizamos quase dois meses] do ano passado a escrava Joana, de nação Angola, com os seguintes sinais: alta, bem parida, fala muito bem, pelo que pareceu crioula: levou vestido de chita em morim escuro; quem a levar à rua da Carioca (antigo Piolho) n. 85 será bem gratificado. Adverte-se que protestará contra quem a tiver acoutada com todo rigor da lei

(ANÚNCIOS, 1850aANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 25, n. 6, jan. 1850a, p. 4. , p. 4).

Fugiu, no dia 15 do corrente, da rua da Princesa n. 25, uma preta de nome Delfina, nação Moçambique, feia de cara, bicuda, beiços grossos, e o superior furado, cabelo cortado rente, e olhos empapuçados. Quem a levar à casa acima será gratificado

(ANÚNCIOS, 1850bANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 25, n. 49, fev. 1850b, p. 4. , p. 4).

FUGIU uma crioula de nome Florinda, um pouco fula, rosto redondo, cheia de corpo, um pouco vesga, com uma cicatriz de queimadura no braço, e costuma dizer que é forra. Quem a apreender e levar à rua do Conde n. 73 será bem gratificado

(ANÚNCIOS, 1850cANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 25, n. 127, maio 1850c, p. 4. , p. 4).

FUGIU, no dia 3 do corrente, uma crioula de nome Felicidade, baixa, magra, com um sinal de queimadura em um braço e outro nas costas, e levou vestido de chita velho, e xale também velho: quem der notícia na rua da Ajuda n. 171 será gratificado

(ANÚNCIOS, 1850dANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 25, n. 278, out. 1850d, p. 4. , p. 4).

FUGIU, no dia 21 do corrente, da casa n. 2 da ladeira da Conceição, a preta Faustina, de nação cabinda, com 20 anos de idade, cor retinta, estatura baixa, com braços finos, comparativamente ao corpo, e pisando um pouco para dentro: levava o cabelo crescido e amarrado, argolas de ouro nas orelhas, vestido de chita já usado por cima de outro azul com raminhos amarelos, sem camisa, e com xale branco de lã ao pescoço; quem a levar a dita casa receberá alvíssaras. Também desde já se protesta contra quem a tiver acoutada

(ANÚNCIOS, 1850eANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 25, n. 322, nov. 1850e, p. 3. , p. 3).

FUGIU, no dia 1º do corrente, a preta Jacinta, Mina, que vendia frutas na rua Direita, é alta, magra, e já de idade; quem apreender e levar a rua Direita n. 17, será gratificado

(ANÚNCIOS, 1851aANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 26, n. 82, mar. 1851a, p. 3. , p. 3).

Fugiu, no dia 16 de corrente, uma preta de nação Moçambique, a qual tem os sinais da nação, o beiço furado, é bastante robusta, tem cara larga, fala mal, e já é idosa; levou vestido de riscado azul, lenço branco e encarnado de xadrez, no pescoço; na cabeça lenço azul escuro; seu nome é Joana, costuma andar lavando no campo, e já foi vista no Engenho Velho; quem a levar à rua da Quitanda n. 16 receberá gratificação. Igualmente protesta-se contra quem a acoutar

(ANÚNCIOS, 1851bANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano. 26, n. 138, maio 1851b, p. 4. , p. 4).

O que distingue essas mulheres, uma fictícia e outras tantas de carne e osso? Um marcador é somente revelado no encontro entre o seu perseguidor e ela, momento de extrema tensão narrativa. Nesse momento, podemos localizar o título do conto. No meio da noite, "ao fim do beco e indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda", encontrou Cândido Neves a sua oponente e também companheira de opressão e humilhação social; após uma quente tentativa de livrar-se das mãos de seu algoz, a mulher negra e escravizada apela para a clemência, tendo em vista a sua condição de grávida. A possibilidade do feto é um fator que as separa e une ao mesmo tempo (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 626).

A narrativa chega ao seu clímax com a revelação da gestação de uma escravizada e o desejo enérgico de um pai pobre de ter seu filho junto de si. É possível classificar esse encontro por qual ponto de vista? A dor da maternidade e da paternidade encontram-se juntas em uma dura construção mimética que corresponde à sobrevivência. O leitor é tragado pela consciência ou pela falta dela.

Ao final do conto, o olhar do narrador concentra-se na figuração de Arminda: através dela podemos enxergar alguns marcadores sociais definidores de seu status social. Ela é uma mulher negra, grávida e em condição de escravizada. Dentro do regime de trabalho no qual ela estava inserida, isso assumia muitos significados, pois, como nos alerta Maria Helena Machado ( 2018MACHADO, Maria Helena. Mulher, corpo e maternidade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 334-340. , p. 334), "ser mãe podia implicar desafios consideráveis, além dos riscos inerentes à gravidez, maternidade, lactação, criação de filhos/as sob o jugo da escravidão", uma difícil resistência.

O narrador não nos apresenta a completude da vida de Arminda, não sabemos como era a sua rotina de trabalho, se era casada, se esperava o seu primeiro filho, se seu ventre carregava um fruto de um estupro ou os reais motivos de sua fuga. O que podemos, sem extrapolar os efeitos socioculturais, é supor ideias a partir do que o conto nos apresenta pela lógica de construção textual e pela própria realidade das estruturas que solidificavam a sociedade fluminense do século XIX. O corpo da mulher negra escravizada era objeto de interesse e posse dos homens brancos proprietários, sua rotina concentrava-se em realizar trabalhos plurais, desde os serviços domésticos até a lida no campo, além de uma vida permeada de abusos morais e sexuais.

Como nos lembra a historiadora, o conceito jurídico partus sequitur ventrem, oriundo do Direito latino, garantia ao senhor de escravas a propriedade dos frutos de suas gestações mantendo a condição jurídica materna para os filhos, até as leis abolicionistas e em especial até 1871, com a conhecida Lei do Ventre Livre. Desse modo, o corpo da mulher negra era duplamente significado como produção de riquezas dentro da engrenagem da instituição da escravidão, seu trabalho e seus descendentes garantiriam vantagens pecuniárias aos seus donos (MACHADO, 2018MACHADO, Maria Helena. Mulher, corpo e maternidade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 334-340. , p. 334).

As muitas incertezas da garantia de vida e liberdade de seu filho podem ter servido de estímulo para a fuga de Arminda, pois, "em geral, as escravas eram mal alimentadas, trabalhavam muito e sofriam castigos inclusive quando grávidas". Toda essa projeção se confirma com o apelo que ela faz a Cândido, "– Estou grávida, meu senhor!", que revela como seria o retorno à casa e ao ciclo de maus tratos, agora intensificados após sua evasão (ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 626). Podemos nos valer novamente das palavras de Nabuco ( 2010NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. , p. 123), quando ele afirmara que "cada ventre escravo dava ao senhor três, quatro crias que ele reduzia a dinheiro", reafirmando o caráter de posse e conversão econômica da mulher negra.

Faz-se preciso enxergar que o corpo dessa figuração passa a ser entendido por um duplo valor, pois o fruto de seu ventre também é reconhecido como propriedade do senhor. A ideia da invisibilidade não cabe aqui, ela não só é notada – isto é, como mercadoria, sua cor, objeto sexual, fugitiva, um bem, uma reprodutora –, como também é explorada através dessas múltiplas formas de opressão. Sua existência, como mostra o conto, é capaz não só de suportar essas violências, mas também de encará-las resistentemente.

Ao supor uma troca na categoria do gênero dessa personagem, podemos entender um pouco como os eixos opressivos passam a dialogar de uma forma diferente. Vejamos um homem negro escravizado que, recém-fugido, procura estabelecer-se no meio de uma sociedade urbana de livres. Sua suposta socialização e formas de invisibilidade não passariam de maneira mais despercebida? O próprio ato gestatório não seria uma punição discricional e acusativa para uma cativa que procura esconder-se? Tudo isso somado aos olhares negros e brancos que buscavam em Arminda uma projeção sexual nas ruas por onde ela passava.

Mesmo argumentando que o regresso poderia colocar em xeque sua gestação ou sua própria vida, os ouvidos de Cândido estavam instalados na gratificação que permitiria ouvir outras tantas vezes o choro de seu filho, aquele mesmo que não mais seria enjeitado na roda dos expostos. E a cena dura de ser ouvida e lida conta o fim dessa parte da análise:

Foi arrastando a escrava pela rua dos Ouvires, em direção à Alfandega, onde residia o senhor. Na esquina dessa a luta cresceu, a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. [...] Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente pedia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto entrou sem vida neste mundo, entre gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Candido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. [...] O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. [...] Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

(ASSIS, 2015aASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: LEITE, Aluísio et al. (Org.). Obra completa de Machado de Assis. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015b. p. 621-627. , p. 627).

Conclusão: A pena que escreve, também desenha...

Esta breve conclusão se abre como um espaço para reflexão e convite. Os periódicos, livros, folhetins e arquivos do século XIX inundam-se de experiências literárias que leem o seu mundo contemporâneo. O Rio de Janeiro como espaço geográfico e político do Segundo Reinado movimentou a pena dos muitos literatos que não deixaram passar um citadino fluminense, uma senhora que às dezessete horas tomava chá com suas companheiras de missa, a dura realidade dos homens e mulheres negras escravizados que movimentavam o mundo do trabalho e sentiam na pele a dor dessa política de estruturação e desenvolvimento imperial, a escravidão.

A investigação histórica que se aproxima da narrativa literária consegue encontrar uma gama de surpresas, sentimentos e emoções, e nesse campo Joaquim Maria Machado despontou. O jovem escritor negro já se aproximava do campo histórico desde seus primeiros poemas e crônicas literárias, seu olhar atento e cético já interrogava maneiras de ver o mundo e de representá-lo. O exemplo de "Pai contra mãe", conto publicado em 1906 na coleção Relíquias de casa velha , desperta uma "ruga sardônica" de nosso passado e, por isso mesmo, deve ser explorado.

Em memória das muitas Armindas, que não tiveram o direito de assegurar suas vidas e dos seus próprios filhos, é que nós historiadores precisamos encontrar meios de expor essas personagens literárias, retirá-las das gavetas, contrastá-las com seus pares e, assim, estudá-las a memória e os mecanismos de opressão. Estes últimos, tão poderosos, colocavam nas mãos dos mais pobres um paradoxal dilema de sobrevivência e morte, em que a constante vigilância e violência marcavam as ruas da Corte e de todo o recente país chamado Brasil.

Referências

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  • 1
    Note-se que a referência à rua dos Barbonos, no centro do Rio de Janeiro, se dá justamente pela instalação do prédio da Santa Casa de Misericórdia e a sua chamada roda dos expostos. Sobre isso ver Venâncio ( 1998VENÂNCIO, Renato. Famílias abandonadas: assistência à criança das camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador. Campinas: Papyrus, 1998. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2023
  • Aceito
    08 Mar 2024
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