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Resenha de Quase brancos, quase pretos: representação étnico-racial no conto machadiano, de Selma Vital

Review of Quase brancos, quase pretos: representação étnico-racial no conto machadiano, by Selma Vital

RESENHAS

Eduardo de Assis Duarte

Universidade Federal de Minas Gerais / CNPq. Belo Horizonte (MG), Brasil

VITAL, Selma. Quase brancos, quase pretos: representação étnico-racial no conto machadiano. São Paulo: Intermeios, 2012. 183p.

Machado de Assis possui sem sombra de dúvida a mais vasta e consistente recepção crítica dentre todos os autores brasileiros, com dezenas de estudos produzidos a cada ano. Seus escritos despertam a atenção de um vasto horizonte de exegetas, que mobiliza desde acadêmicos consagrados no país e no exterior e autores de obras lapidares a toda uma gama de estudiosos de vários campos e tendências críticas, aí inclusos pesquisadores marcados pelas inquietações teóricas contemporâneas e jovens estudantes de pós-graduação, o que só atesta a atualidade e a permanência do interesse pela obra. No entanto, historicamente tem preponderado o enorme apelo exercido pela produção romanesca, que coloca em segundo plano a vasta produção jornalística, a poesia, boa parte do acervo de mais de duzentos contos, e também a valiosa correspondência do autor, de edição mais recente. Mesmo dentre os romances, é flagrante a predominância de trabalhos voltados para Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas sobre narrativas da importância de Quincas Borba, Esaú e Jacó ou Memorial de Aires, isto sem falar de seus romances de juventude.

Esse contexto só faz ressaltar a importância do livro de Selma Vital, centrado num duplo movimento: o estudo comparativo de contos publicados em momentos distintos da carreira do escritor, para neles analisar a representação dos afrodescendentes, escravos ou não. Resultado de anos de pesquisa atenta a um aspecto obliterado ao longo de décadas de recepção crítica, o livro da ensaísta aborda a presença do tema racial em momentos distintos da produção machadiana e da própria história do país. Tema ainda hoje polêmico entre nós, tanto no caso específico de Machado - como se pode comprovar pela vigorosa reação ao comercial de TV da Caixa Econômica Federal em que o escritor foi representado por um ator branco - , como, em termos mais amplos, numa sociedade ainda hoje marcada pelo preconceito, mesmo que disfarçado em tolerância e convivência pacífica.

A ensaísta opta por um tópico rico em controvérsias, mas que, paradoxalmente, aproxima críticos de formações distintas e até antagônicas. Como é sabido, a velha lenda do "absenteísmo machadiano" quanto à escravidão encontra respaldo em análises de cunho formalista, tanto quanto naquelas de orientação marxista, entre outras. Por sua vez, Selma Vital, para além das escolas ou tendências críticas, nos oferece um trabalho abrangente, sem, contudo, abrir mão da densidade e do aprofundamento necessários à leitura dos escritos do Bruxo do Cosme Velho. Apesar de declarar na introdução ter a "close reading como principal ferramenta analítica" (p. 14), a autora, pode-se dizer, navega na contracorrente da maioria dos que a antecederam, mostrando, contudo, saber muito bem lidar com leituras distintas da sua. Dialoga de forma elegante com todas elas, concordando ou não, argumentando sempre. E vai além, incorpora historiografia, sociologia, antropologia, feminismo. Ilustra, informa e reconstitui muito bem o contexto de produção da obra, trazendo-o de forma competente em reforço de sua argumentação. Escapa assim, aos reducionismos, sejam eles sociológicos ou estilísticos.

Já de início, convoca os principais argumentos contrapostos à sua visão da obra para com eles debater. De Sílvio Romero a David Brookshaw, passando por Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e outros, constrói para o leitor um valioso painel da recepção crítica fundada na leitura de Machado como negro de alma branca. Convicta de que o escritor "não somente representa seu país, como o faz dentro de um projeto, que se estrutura estética e cronologicamente ao longo de seus romances" (p. 23), discorre em seguida sobre a literatura abolicionista da época. Por um lado, ressalta seu conservadorismo preconceituoso, a considerar africanos e descendentes como "raça inferior", marcada pela "degeneração moral"; por outro, destaca o maniqueísmo simplista de situações e personagens, aliado à retórica panfletária de Patrocínio e outros. De sua crítica não escapa sequer Castro Alves, cuja oratória inflamada talvez tenha feito do vate romântico, "que viajava com um escravo pessoal", um personagem "mais abolicionista do que de fato ele tenha sido" (p. 27). Voltando a Machado, a ensaísta enfatiza a "confusão" existente desde aquela época entre "eloquência" e "compromisso ideológico ou humanitário" (idem) para reafirmar a representação na obra dos "conflitos que constituíam a fibra social na qual ele crescera e se tornara escritor" (idem).

Em seguida, Vital passa à análise dos contos selecionados em seu recorte, a fim de refutar a tese da "ausência da escravidão" nos textos machadianos. No capítulo "Para além dos saraus: a cultura e o 'jogo de contrastes'", parte da visão do Rio de Janeiro como "cidade negra", formada por uma maioria miscigenada e "excluída do processo de formação da identidade brasileira". Além da luta pela sobrevivência, essa população "não somente produz cultura como influencia o cenário 'culturalmente branco' e eurocêntrico, de tal forma a lhe oferecer contornos fundamentais e, em última instância, a transformá-lo" (p. 35). Analisa em seguida os contos "O machete" (1878), "Cantiga de esponsais" (1883), "Terpsícore" (1886) e "Um homem célebre" (1888), a fim de apontar o quanto neles se afirma a energia oriunda das fontes populares de matriz negro-brasileira, em consonância, todavia, com a "pluralidade antimaniqueísta" (p. 48) do estilo machadiano, que se vale do humor e da ironia contra o apelo retórico de fazer do texto uma tribuna.

O capítulo seguinte, "A dignidade da mulata", analisa os contos "Virginius" (1864) e "Mariana" (1871). Como o próprio título já indica, a leitura de Selma Vital se faz em consonância com a articulação discursiva presente nos textos, como também no poema narrativo "Sabina", publicado em 1875. Neles, Machado deixa visível o respeito que pauta sua representação da mulher subalterna, seja ela escrava ou agregada, a ponto de praticamente refutar o signo mulata, sabedor que era do velho estereótipo que marcava a identidade de suas vítimas como ferro em brasa: "branca para casar, preta para trabalhar e a mulata para fornicar." Assim, tanto Elisa, do conto "Virginius", quanto Mariana têm na morte a única alternativa ao destino imposto pelo estereótipo. A autora as vincula ainda a Helena, do romance homônimo, e a Estela, de Iaiá Garcia, para evidenciar a postura de crítica ao sistema que submetia e confinava a mulher a um não lugar social como sendo algo "sistêmico" e, não, fruto das circunstâncias (p. 75). Prossegue, trazendo para sua argumentação exemplos de mulatas estereotipadas presentes em textos contemporâneos ao autor e, mesmo, posteriores, para, ao final, aproximá-lo de Lima Barreto. Tudo isto visando ressaltar uma verdade quase sempre ausente nas reflexões da crítica: em "Virginius" e "Mariana", Machado representa a questão da mulher negra e escrava "como ninguém até ali havia feito" (p. 96).

Passa em seguida à análise de "O caso da vara" (1891) e "Pai contra mãe" (1906), textos em que a violência inerente ao sistema emerge em todas as suas dimensões ao desumanizar brancos e negros, livres ou escravos. A ensaísta polemiza com Giorgio Marotti, entre outros, para refutar a "desconexão" entre os absurdos evidenciados em "Pai contra mãe" e a lógica hegemônica na sociedade escravocrata, alvo primeiro e último da crítica machadiana. Adentra em seguida pelo tema da identidade ao refletir sobre "O espelho" (1882) e "O último capítulo" (1883). E novamente dialoga com intérpretes do porte de Lúcia Miguel Pereira e Raimundo Faoro, sem deixar de expressar pontos em comum e, também, discordâncias. Com sua leitura "racializada" do criador de Prudêncio, Candinho e tantas outras "peças" quase brancas, quase negras do sistema que deixou marcas profundas em nossa sociedade, Selma Vital faz uma leitura conectada com seu tempo e seu país. Tudo isto sem esquecer o imenso suplemento de sentido representado pelos milhares de páginas publicadas sobre o escritor. Seu livro figura, em suma, como formidável avanço. Um avanço capaz de consolidar em definitivo a via de abordagem atenta à etnicidade que pulsa na antecena da escrita machadiana.

Eduardo de Assis Duarte é professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia (2. ed., Record, 1996). Organizou a antologia Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (2. ed. rev. e amp. Pallas; Crisálida, 2007) ) e a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (UFMG, 4 v., 2011). Coordena o projeto de pesquisa "Afro-descendências" e o site literafro, disponível no endereço <www.letras.ufmg.br/literafro>.

E-mail: assis.duarte@terra.com.br

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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