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CRÔNICAS DO ESCRITOR CARAMUJO: MACHADO DE ASSIS E A QUESTÃO RACIAL EM "BONS DIAS!"

MACHADO DE ASSIS AND THE RACIAL ISSUE IN HIS "BONS DIAS!" CHRONICLES

Resumo

A atemporalidade da literatura machadiana é inegável, pois Machado de Assis trouxe à tona questões emblemáticas quanto ao seu tempo e espaço históricos, situadas na sociedade carioca do século XIX marcada, sobretudo, pelo debate social e político da escravidão que atravessava todas as comunidades à época. O referido autor desenvolveu ácido e pontual senso crítico sobre o tema, abordado mais frequentemente em seus contos e crônicas, ao se utilizar de variados elementos discursivos, estéticos, estilísticos e literários para denunciar o sistema escravocrata presente no Brasil oitocentista. Com isso, este artigo objetiva investigar a questão racial nas crônicas da série "Bons Dias!" (1888-1889), publicadas no jornal carioca Gazeta de Notícias. Busca-se analisar o contexto de produção dos referidos textos sob o olhar da literatura negro-brasileira e compreender a necessidade de aplicação desse conceito à análise contemporânea da produção escrita machadiana. A pesquisa, teórico-bibliográfica e de viés qualitativo, baseou-se nos estudos de Duarte (2009DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. 2. ed. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2009.; 2020______. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020.), Gledson (2006)GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., Chalhoub (2009)CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/i...
, Guimarães (2017)GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017., entre outros pesquisadores da fortuna crítica machadiana. Para compor o aporte teórico do trabalho, utilizou-se ainda o pensamento dos autores Cuti (2010)CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. , entre outros que estudam questões étnico-raciais e a literatura negro-brasileira. Os resultados da pesquisa discutem a compreensão do projeto literário elaborado por Machado de Assis, cidadão e autor negro-brasileiro que lutou contra e denunciou, a seu modo, as injustiças de uma nação construída com base na exploração e no genocídio da população negra.

Palavras-chave:
crônica; Machado de Assis; literatura negro-brasileira

Abstract

Machado's literature resonates with contemporary audiences because of its insightful exploration of 19th-century Rio de Janeiro society, particularly its grappling with slavery. Machado de Assis, a key figure of the time, critiqued societal norms sharply through his short stories and chronicles, employing various literary techniques to condemn the pervasive slave system. This article focuses on analyzing how Machado addressed race in his "Bons Dias!" series (1888-1889), published in Rio de Janeiro's Gazeta de Notícias. We aim to understand the production context of these texts within black-Brazilian literature and emphasize the importance of this perspective in contemporary assessments of Machado's work. Our study employs a theoretical and bibliographical approach, drawing on insights from scholars like Duarte (2009DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. 2. ed. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2009.; 2020______. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020.), Gledson (2006)GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., Chalhoub (2009)CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/i...
, and Guimarães (2017)GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.. We also incorporate perspectives from scholars such as Cuti (2010)CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. and Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. , who contribute to the discourse on ethnic-racial issues and black-Brazilian literature. Ultimately, our research highlights Machado de Assis's role as a conscientious black-Brazilian author who bravely confronted and exposed the injustices endured by the black population in a nation built on their exploitation and genocide. Machado's writings not only critique societal inequalities but also contribute to the broader struggle for social justice and equality.

Keywords:
chronicle; Machado de Assis; Black-Brazilian literature

1. Introdução

Machado de Assis, conhecido pelas obras-primas Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899), é considerado um dos principais autores brasileiros do século XIX, não só por encabeçar a estética realista, mas também por sobreviver para além do realismo literário.

O autor carioca viveu em um período marcado pela escravidão e pela discriminação racial, assim, sua obra reflete as tensões e contradições desse contexto, inclusive serve como modelo para pensarmos a ética, bem como questões étnico-raciais, em virtude de sua afrodescendência, e o seu interesse pelas complexidades da figura do negro em suas produções literárias, como já foi apontado por Eduardo de Assis Duarte (2009DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. 2. ed. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2009.). Logo, mesmo quando trata de assuntos ligados à etnia, Machado apresenta-se a seus leitores como um "escritor caramujo", que ora se revela de maneira célere, ora esconde seus posicionamentos com obliquidade.

Utilizada pelo próprio escritor para definir o seu estilo de escrita referente às crônicas, a expressão "caramujo" pode ser interpretada metaforicamente, sugerindo a maneira como Machado de Assis, dotado de escrita perspicaz e reflexiva, insinua-se nos periódicos, deixando trilhas de observações agudas e de análises críticas, quer veladas, quer visíveis. Cumpre dizer que isso também já foi enunciado por Duarte (2022______. A capoeira literária de Machado de Assis. Literafro: O portal da literatura afro-brasileira, 2022. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/28-critica-de-autores-masculinos/1019-a-capoeira-literaria-de-machado-de-assis-eduardo-de-assis-duarte. Acesso em: 30 nov. 2023.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/auto...
).

Assim, este artigo possui três objetivos principais: 1) investigar a questão racial nas crônicas da série "Bons Dias!" (1888-1889), publicadas no jornal carioca Gazeta de Notícias; 2) analisar o contexto de produção dos referidos textos sob o olhar da literatura negro-brasileira; 3) compreender a necessidade de aplicação desse conceito à análise contemporânea da produção escrita machadiana.

A metodologia de pesquisa teórico-bibliográfica e de viés qualitativo baseia-se nos estudos de Duarte (2009DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. 2. ed. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2009.; 2020______. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020.), Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. ), Gledson (2016), Chalhoub (2009CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/i...
), Guimarães (2017GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.), entre outros pesquisadores da fortuna crítica machadiana. Para compor o aporte teórico do trabalho, utilizou-se ainda o pensamento dos autores Cuti (2010)CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. , entre outros que estudam questões étnico-raciais e a literatura negro-brasileira.

Para fins didáticos, o trabalho divide-se em três seções: na primeira, apresentamos Machado como cronista; na segunda, discutimos a crônica como retrato da sociedade oitocentista; e, na terceira, abordamos a literatura negro-brasileira em Machado de Assis.

A leitura e a análise das crônicas machadianas nos jornais identificam o papel ativo desempenhado pelo autor na construção e desconstrução de ideias, desafiando o leitor para que coparticipe de suas produções. Notamos que a linguagem afiada e o humor sutil machadianos demonstram a habilidade do autor em transcender os limites literários convencionais e em se inserir no contexto contemporâneo, dialogando de modo atemporal diretamente com a sociedade.

Em suma, esperamos que este trabalho contribua como mais uma via de comunicação sobre as crônicas machadianas e a produção escrita do nosso escritor caramujo.

2. Machado, cronista-escritor: o jornal como veículo de denúncia

A crônica brasileira desempenha um papel fundamental na construção da identidade literária do país e, como bem pontua Arrigucci Jr. (1985, p. 48 apudLOPES, 2007LOPES, Elisângela Aparecida. "Homem do seu tempo e do seu país": senhores, escravos e libertos nos escritos de Machado de Assis. 2007. 171 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) -Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843/ECAP-74QJMQ . Acesso em: 28 nov. 2023.
https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843...
, p. 62), ela apresenta-se como a "arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas vezes maldosa e sempre irresistível". Ao longo dos anos, diferentes gerações de escritores contribuíram para a diversidade e a riqueza desse gênero, consolidando-o como uma forma de expressão literária única, capaz de capturar a essência nacional de maneira singular. Como um gênero textual que se destaca por sua característica híbrida, mescla elementos da literatura, do jornalismo e da reflexão pessoal; portanto, a crônica possui tradição rica e consolidada em território brasileiro. Além disso, ela desempenha papel importante na cultura e na expressão literária do país, sua ascensão no Brasil ocorreu durante o século XIX, especialmente no contexto das transformações sociais e políticas que marcaram esse período.

Em famoso artigo sobre a crônica, intitulado "A vida ao rés do chão", o mestre Antonio Candido (1984CANDIDO, Antonio. A vida ao rés do chão. In: ANDRADE, Carlos Drummond et al. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1984. v. 5, Prefácio., p. 16) assim descreve a relevância desse gênero literário:

O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor.

Compreendemos que o caráter humanizador da crônica é incontestável, uma vez que ela toca em assuntos caros ao tempo presente, mas que podem muito bem ser atemporais, pois falam do homem de todos os tempos. Além do caráter atemporal, a simplicidade e a brevidade são outros aspectos interessantes que tornam a crônica um gênero com maior fluidez de leitura. Ademais, por ser publicada inicialmente em jornais impressos, esse gênero literário cresceu consideravelmente e atingiu um clima político e sociológico, conforme esclarece Jorge de Sá (1987SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática , 1987.).

Nesse caso, a crônica de Machado de Assis, por exemplo, promove reflexões políticas e sociológicas do cotidiano de sua época, mas que efetivamente se relacionam com os tempos de hoje. Daí o caráter literário e atemporal das crônicas do autor carioca. Até mesmo porque, como informa Sá (1987SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática , 1987.), ao ser publicada também em livro, a crônica adquire reelaboração, pois o autor (ou organizador) selecionará os textos que tiverem expressão mais duradoura. Assim, quando publicada em livro, há novos contextos e significações para a crônica.

Com o surgimento e a popularização dos jornais e das revistas, houve espaço crescente para a escrita de textos mais leves e acessíveis, capazes de dialogar com um público amplo. Como bem afirma Elisângela Aparecida Lopes (2007LOPES, Elisângela Aparecida. "Homem do seu tempo e do seu país": senhores, escravos e libertos nos escritos de Machado de Assis. 2007. 171 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) -Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843/ECAP-74QJMQ . Acesso em: 28 nov. 2023.
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, p. 61):

Conforme é sabido, crônica vem de Chronos, deus do tempo. Segundo nos alerta Arrigucci Jr., ela se liga ao resgate da memória, ao "registro da vida escoada" (1985, p. 43). Sendo assim, pode ser entendida como instrumento que nos proporciona revisitar o passado ou contemplar o presente em seus modos, costumes, trâmites políticos e sociais. Para este crítico, a crônica pode ser encarada como "documento de toda uma época", "testemunho de uma vida", "meio de se inscrever a História no texto".

Machado de Assis, frequentemente considerado um dos pioneiros desse gênero no Brasil, publicava suas crônicas em jornais e revistas, destacando-se pela sua brevidade e pela capacidade de abordar temas cotidianos de forma satírica ou reflexiva. Segundo Lopes (2007LOPES, Elisângela Aparecida. "Homem do seu tempo e do seu país": senhores, escravos e libertos nos escritos de Machado de Assis. 2007. 171 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) -Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843/ECAP-74QJMQ . Acesso em: 28 nov. 2023.
https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843...
, p. 61-62):

Por esses motivos, a crônica machadiana se configura como um importante instrumento capaz de representar uma visão crítica do escritor a respeito do processo histórico que irá das últimas décadas da escravidão à abolição, permitindo-nos uma leitura deste período histórico.

[...] Tendo como ponto de partida os fatos do cotidiano, as coisas miúdas do dia a dia, a crônica é entendida pelo escritor carioca, em texto de 01/11/1877, como nascida da conversa entre duas vizinhas, tidas como avós dos cronistas. Ela, geralmente, inicia-se por uma trivialidade, como num ciclo que se fecha: dos comentários sobre a temperatura ("que calor!"), passa-se aos fenômenos atmosféricos, às conjecturas acerca do sol e da lua, até as mazelas da febre amarela. É essa "arte da desconversa" de que nos fala Arrigucci Jr. o que imprime à crônica um ar descompromissado.

Pela citação acima, notamos como Lopes (2007LOPES, Elisângela Aparecida. "Homem do seu tempo e do seu país": senhores, escravos e libertos nos escritos de Machado de Assis. 2007. 171 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) -Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843/ECAP-74QJMQ . Acesso em: 28 nov. 2023.
https://repositorio.ufmg.br/handle/ 1843...
) destaca o quão consciente Machado parecia ser acerca das características da crônica, especialmente ao destacar a oralidade e o cotidiano como matérias fundamentais desse gênero textual. O referido escritor brasileiro, ciente da importância e da influência dos jornais no século XIX, usa-os como veículo e apropria-se da linguagem utilizada nesse meio para traçar diálogos e adequar sua escrita ao público leitor, pois, como esclarece John Gledson (IGOA; COSTA, 2016IGOA, Rosario Lázaro; COSTA, Walter Carlos. Edição e tradução nas crônicas brasileiras dos séculos XIX e XX: entrevista com John Gledson. Cad. Trad., Florianópolis, v. 36, n. 2, p. 311-329, maio/ago. 2016. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2016v36n2p 311 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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, p. 313), o jornal era "a internet daquela época" e "tudo passava por ele". É indispensável refletir sobre como a cultura jornalística dominava os meios de circulação das informações à época, atuando como filtro de divulgação dos textos que, legitimados por esse instrumento de comunicação em massa, poderiam protagonizar os olhares curiosos dos indivíduos que queriam se manter informados sobre as notícias circulando naquele período. Assim, Duarte (2022______. A capoeira literária de Machado de Assis. Literafro: O portal da literatura afro-brasileira, 2022. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/28-critica-de-autores-masculinos/1019-a-capoeira-literaria-de-machado-de-assis-eduardo-de-assis-duarte. Acesso em: 30 nov. 2023.
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, p. 3) assevera que:

As condições de produção da obra machadiana, especialmente no tocante à prosa, revelam uma estreita proximidade entre literatura e imprensa. Não se pode relevar o fato de ser o jornal o veículo primeiro de muitos de seus escritos e isto contém em si implicações as mais diversas, inclusive no que se refere ao nível de liberdade de expressão existente no Segundo Reinado. Ao longo praticamente de toda a sua vida, Machado foi, senão um "homem de imprensa", no sentido que a expressão ganhou ao longo do século XX, alguém muito próximo disso. E, se observarmos os diversos órgãos pelos quais passou, especialmente na juventude, veremos que, dos 16 aos 34 anos, o escritor foi antes de tudo um trabalhador da palavra impressa: tipógrafo, revisor, redator, tradutor, crítico, censor teatral, atividades que compartilhavam o tempo do escritor com a poesia, a ficção, o drama e a crônica.

Por circular nos espaços dos jornais, Machado cronista manifesta interesse como escritor que acompanhou notícias e assuntos de seu tempo, "ainda que às vezes isso tenha sido feito de maneira oblíqua como o olhar de Capitu" (GUIMARÃES, 2017GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017., p. 236). E, como pessoa negra que rodeou esses espaços, o autor brasileiro construiu um discurso político e crítico aparentemente mais direto sobre questões étnico-raciais, isso se comparado com o discurso de seus contos e romances. Para Sidney Chalhoub (2009CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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, p. 235): "Essa queda pelo político, que reforça a âncora temporal dos textos, ajuda a entender a desventura crítica da crônica enquanto gênero literário. Afinal, reza a lenda que cânone literário e indiferentismo político são assim como irmãos siameses". Logo, a questão étnico-racial consiste em um tema político que aparece com potência nas crônicas machadianas.

Em Peles negras, máscaras brancas, Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. ) discorre sobre como pessoas negras precisam se "infiltrar" no mundo dos brancos, compreender seus mecanismos de convivência social expressos por meio da linguagem e de suas variadas formas para manifestar cultura e conhecimento, sobretudo aqueles legitimados pela elite intelectual acadêmica das sociedades ocidentais. Pela leitura das crônicas, parece-nos que Machado de Assis, em toda a sua intelectualidade e percepção de si e do outro, era consciente de sua frágil posição social em condições de racialidade. Todavia, o escritor caramujo buscou usufruir de sua inteligência para conseguir se manter não apenas ativo no meio literário como também influente, imortalizando-se como o mais importante escritor brasileiro do século XIX e um dos mais emblemáticos nomes da literatura brasileira ao construir um "Otelo brasileiro", como disse Helen Caldwell (2002CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê, 2002.) em seu estudo sobre Dom Casmurro.

Dotado de "máscaras brancas", Machado encontrou maneiras de divulgar sua visão crítica também por meio da crônica. Contudo, de forma velada, sem que fosse percebido explicitamente por quem o lia, como o movimento do caramujo que aparece e desaparece durante o seu trajeto ou, ainda, como o ritmo daquele que dança ou joga a capoeira, combinando, ao mesmo tempo, elementos de luta, acompanhando os passos do oponente para observá-lo e esquivando-se quando necessário para atacar quando oportuno.

Luiz Costa Lima (1997 apudDUARTE, 2022______. A capoeira literária de Machado de Assis. Literafro: O portal da literatura afro-brasileira, 2022. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/28-critica-de-autores-masculinos/1019-a-capoeira-literaria-de-machado-de-assis-eduardo-de-assis-duarte. Acesso em: 30 nov. 2023.
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, p. 3) compreende essa capoeira verbal como "princípio de individuação da linguagem do cronista", capaz de ignorar a "lógica proposicional implícita no cientificismo hegemônico à época", substituindo-a "por um encadeamento em forma de constelação, em que os assuntos se revezam na superfície da crônica, exigindo atenção redobrada do leitor". Lima (1997 apudDUARTE, 2022______. A capoeira literária de Machado de Assis. Literafro: O portal da literatura afro-brasileira, 2022. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/28-critica-de-autores-masculinos/1019-a-capoeira-literaria-de-machado-de-assis-eduardo-de-assis-duarte. Acesso em: 30 nov. 2023.
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, p. 3) destaca também que "Machado ginga e dribla, faz da capoeira um estilema". Nesse movimento de "capoeira literária", a crônica publicada na Gazeta de Notícias, no dia 19 de maio de 1888 - dias após a abolição da escravatura -, lança ferrenha crítica ao complexo de salvador das pessoas brancas em relação ao fim do regime escravocrata brasileiro.

Por apresentar certo caráter cético, o escritor brasileiro trabalha de forma objetiva nas suas crônicas e na sua produção ficcional. Diante disso, entendemos que o cronista-escritor Machado de Assis se dedica a entender a história e a política brasileira por meio de seus textos. Assim, na seção a seguir teceremos considerações sobre a série de crônicas "Bons Dias!".

3. Aos leitores, "Bons Dias!": a crônica machadiana como retrato da sociedade

No jornal carioca da Gazeta de Notícias, Machado escreveu a série de crônicas "Bons dias!", entre os anos de 1888 e 1889, sob a assinatura de Boas Noites, narrador que protagoniza as observações e os acontecimentos da sociedade do Rio de Janeiro durante a crise do Brasil Império (1822-1889), captando as polêmicas e as contradições da alta elite brasileira do referido período.

A respeito do narrador das crônicas, Hélio de Seixas Guimarães (2017GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017., p. 235) rememora o estudo de Gledson e questiona: "em que medida o narrador das crônicas seria comparável a um narrador ficcional, como Brás Cubas e Dom Casmurro? E em que medida essa voz narrativa pode ser identificada com o escritor Machado de Assis?". Por outro lado, Chalhoub (2009CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
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) advoga que os narradores nas crônicas machadianas são espécies de filtros narrativos muito semelhantes aos narradores dos contos e dos romances. Além disso, o referido crítico alerta que não podemos imputar a concepção dos narradores à presumida concepção de Machado.

Com discurso arrogante e repleto de uma soberba típica dos personagens que incorporam as características das classes abastadas cariocas do século XIX, Boas Noites, denominado de Policarpo, é um ex-relojoeiro que se posicionava de modo duvidoso sobre o carnaval carioca à época, conforme sugere este trecho da crônica:

Cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem igualzinhos, sem discrepância: desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro (ASSIS, 1888ASSIS, Machado de. Bons Dias. In: ______. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 mai. 1888. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000167.pdf. Acesso em: 28 nov. 2023.
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, p. 2).

Com tom de sarcasmo, de ironia e de profundo deboche quanto aos sentimentos de grandeza e de justiça, equiparados ao sacrifício de Jesus, o narrador Boas Noites inicia sua declaração afirmando que iria alforriar seu jovem escravizado em uma grande cerimônia, visando tornar público o seu ato. No entanto, o leitor atento saberá, sem muita demora, logo nos últimos parágrafos da crônica, que tal atitude possuía interesse político. O narrador buscava se lançar como deputado no Rio de Janeiro, usando (e mesmo distorcendo) a narrativa da libertação de seu escravizado como método para conquistar a afeição e a fidelidade de seus futuros eleitores, como aponta o excerto a seguir:

[...] Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico. No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo (ASSIS, 1888ASSIS, Machado de. Bons Dias. In: ______. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 mai. 1888. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000167.pdf. Acesso em: 28 nov. 2023.
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
, p. 6).

Inúmeras vezes referido como "molecote" por parte de Boas Noites, o nome do adolescente escravizado, Pancrácio, mostra-se extremamente instigante. A sonoridade do substantivo, profundamente sugestiva, oferece a ideia de "pancada" pela forte pronúncia entre as sílabas:

O nome do escravo remete ao adolescente Pancrácio, um dos mártires e primeiros santos do catolicismo, torturado e decapitado no dia 12 de maio (!) do ano 304, por ordem do imperador Diocleciano. Na Espanha, São Pancrácio é considerado o padroeiro dos trabalhadores. O campo semântico do nome está ainda vinculado ao substantivo grego pankrátion, que designava justamente uma espécie de luta livre, considerada a modalidade mais violenta do atletismo grego, em que se permitia o uso de mãos e pés a fim de vencer o adversário. Escusado dizer que, em sua conformação fonética no português, o nome está em consonância com "pancada". Sua escolha, portanto, nada tem de casual ou inocente (DUARTE, 2020______. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020., p. 56).

Pela citação transcrita acima, notamos o caráter cínico do narrador a respeito do sentimento voltado ao delírio de grandeza e de benevolência por parte de Boas Noites. Para Chalhoub (2009CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/i...
, p. 242):

Ao acompanhar a crise final e a abolição da escravidão, em abril e maio de 1888, Policarpo tenta adotar a perspectiva dos proprietários de escravos mais impenitentes, que buscavam ainda controlar os eventos; ao mesmo tempo, não podia deixar de saber que as circunstâncias históricas do momento haviam colocado os escravocratas a reboque dos acontecimentos, tornando irremediável a liberdade de seu escravo Pancrácio e todos os outros 600 mil ainda escravizados em 13 de maio de 1888.

Como parte da configuração do projeto literário machadiano, que visava questionar o pensamento controverso e dissimulado da elite carioca, seus personagens são caricatos e até ridículos por suas personalidades delirantes quanto à autopercepção e autocrítica, delineando com grandiosidade os limites e contradições do ego da elite branca brasileira. Em relação a essa crônica em específico, Eduardo de Assis Duarte (2020______. Machado de Assis afrodescendente. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020., p. 56) destaca que:

Nesta crônica, publicada 6 dias após a Abolição, vale-se o autor dos recursos da ficção ao criar personagens que remetem a fatos noticiados na imprensa da época. Na história aqui contada em primeira pessoa, temos um narrador-senhor de escravos cínico, oportunista e sedento de notoriedade, à semelhança de Brás Cubas. Esses traços estão marcados por um exagero caricatural, como forma de desmascarar a falsa benemerência do "profeta post factum". A encenação da filantropia de conveniência tem um de seus pontos altos no conto "Teoria do medalhão", publicado em Papéis avulsos, de 1882, e será retomada mais tarde em Memorial de Aires.

No desfecho da narrativa, Boas Noites estabelece um "contrato" com Pancrácio, no alto valor de seis mil-réis, que foi aceito pelo próprio escravizado sem maiores questionamentos, porque desconhece, de fato, a situação socioeconômica da realidade carioca, como pode ser visto no fragmento a seguir:

- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos (ASSIS, 1888ASSIS, Machado de. Bons Dias. In: ______. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 mai. 1888. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000167.pdf. Acesso em: 28 nov. 2023.
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
, p. 7).

O fragmento transcrito acima figura como espécie de depoimento acerca de como Pancrácio se mostra resignado com sua nova condição de "liberdade", ou seja, continua aceitando tudo, como, por exemplo, a agressão física, o assédio moral e psicológico do ex-dono. Policarpo sustenta que, por agora se considerar livre, o anterior servo, ou melhor, escravo, não realiza mais seu trabalho com rigor, por isso justifica a punição física com o piparote. Contudo, mesmo agredindo o homem, o narrador da crônica reafirma o direito civil, isto é, a alforria que ele concedeu àquela pessoa negra. Logo, o algoz parece ser uma pessoa boa, afinal, ele libertou um sujeito negro e concedeu-lhe o direito à liberdade. O final da crônica revela-se impactante, o narrador assevera que aquele homem negro, antes seu escravo, "continuava livre", mas nos perguntamos: será que ele é feliz? Em contrapartida, a voz narrativa afirma o quanto ela mesma continua "de mau humor": seria essa uma condição habitual desse narrador? Os pares de opostos são perceptíveis no discurso dessa crônica. De que vale a liberdade forjada concedida à pessoa negra, se ela não é feliz e verdadeiramente livre? De que vale o reconhecimento do direito à liberdade fornecido pelo ex-dono, se o sujeito negro continua a servir como escravo? A crônica possui conteúdo político e leva-nos a essas reflexões, sobretudo quando encontramos pessoas negras diariamente sendo subjugadas em subempregos, vítimas de preconceito racial e excluídas dos espaços na sociedade brasileira. Assim, questionamo-nos: o que Machado tem de seus narradores e o que os narradores têm de Machado? As crônicas machadianas também nos levam a essas perguntas. Concordamos com Chalhoub (2009CHALHOUB, Sidney. A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa. Remate de Males - Revista de Teoria e História Literária, Campinas, v. 29, n. 2, p. 231-246, jul./dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/remate/article/view/8636276/3985 . Acesso em: 15 nov. 2023.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/i...
, p. 244): "Decerto, para Machado de Assis, autor imaginário de crônica não se confundia com autor imaginário de romance. Policarpo pouco tinha a ver com Brás Cubas, ou com o conselheiro Aires; todavia, é crucial reconhecê-lo, como os outros, enquanto realidade da ficção".

Assim sendo, vemos que por meio de suas crônicas Machado tocou em questões raciais de forma subversiva, utilizou-se da ironia e da ambiguidade a fim de criticar as hierarquias da sociedade brasileira e expor as fragilidades da elite carioca branca e de tantas outras instituições sociais. Diante disso, na próxima seção do trabalho, veremos rapidamente os contributos de Machado de Assis à literatura negro-brasileira.

4. A literatura negro-brasileira em Machado de Assis

Sílvio Romero, grande crítico literário e rival de Machado de Assis, acusava o escritor caramujo de ser alheio às questões étnico-raciais. Todavia, não é à toa que Machado se interessou pelas complexidades da figura do negro em sua literatura, como bem aponta o professor Eduardo de Assis Duarte (2009DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. 2. ed. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Pallas; Crisálida, 2009.) no importante estudo Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. Então, narrativas como "Mariana", "O caso da vara", "Pai contra Mãe", "Virginius" e "A mulher pálida" trazem personagens negras vivendo relações impactantes entre oprimido e opressor, sobretudo porque apontam para o período da escravatura, mas nem por isso deixam de ser politicamente atuais. Machado, injustamente, foi acusado de permanecer silente sobre essas discussões políticas; entretanto, por meio de sua sutileza e ironia, perceberemos como o autor atinge reflexões importantes sobre preconceito racial e social também em suas narrativas curtas. O escritor conseguiu manter equilíbrio e resiliência suficientes para se estabelecer na literatura brasileira como um dos melhores autores cuja obra se mantém forte em densidade psicológica, social e cultural, porque apresenta as múltiplas facetas do homem, sua crueldade e vileza associadas à sua generosidade e humanidade.

A respeito da literatura negro-brasileira, notamos que existe uma busca por um conceito sobre o que seria de fato essa literatura. Os brasilianistas pioneiros nesse estudo foram: Roger Bastide, com Estudos afro-brasileiros, de 1940; Raymond Sayers, com O negro na literatura brasileira, de 1958SAYERS, Raymond. O negro na literatura brasileira. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1958.; Gregory Rabassa, com O negro na ficção brasileira, de 1965; David Brookshaw, com Raça e cor na literatura brasileira, de 1983; Zilá Bernd, com A questão da negritude, de 1984, e Introdução à literatura negra, de 1988. No entanto, há um problema que circunda esse tema: há uma literatura diferente na sua concepção, porém o critério possível para conceituar a escritura negra seria o conceito discursivo.

A literatura negro-brasileira manifestou leis fundamentais, a saber: 1) emergência de um eu-enunciador; 2) construção de uma epopeia negra; 3) reversão de valores; 4) nova ordem simbólica. Essas leis são perceptíveis na autoria de muitos sujeitos negros que escrevem os mais variados gêneros textuais e militam em prol de maiorias minorizadas.

Sobre essa questão, Domício Proença Filho (2004PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 161-193, 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9980 . Acesso em: 22 nov. 2023.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 184) destaca que:

O risco da adjetivação limitadora reside, segundo penso, no explicável mas perigoso empenho em situar radicalmente uma autovalorização da condição negra por emulação, equivalência ou oposição à condição branca, colocação no mínimo complexa no caso brasileiro, diante até da dificuldade de se estabelecer limites entre uma e outra no miscigenado universo da cultura nacional.

É curioso pensarmos que o adjetivo negro poderia limitar essa literatura, ainda mais se tomarmos por base os escritos do escritor caramujo e a forma como ele adentra nessa categoria literária.

O poeta e professor Luiz Silva, mais conhecido pelo pseudônimo Cuti, defende a opção estética, política e ideológica, pelo termo "literatura negra" em contrapartida à denominação "afro-brasileira" ou "afrodescendente", por entender que esses termos acabam por escamotear a questão negra, que ficaria, assim, diluída na diversidade subjacente ao prefixo "afro".

Cuti possui vasta produção sobre a identidade negra na literatura. Na introdução de seu livro Literatura negro-brasileira, o crítico propõe abordagem bastante expressiva acerca dos estudos de etnia presentes em nossas letras, sobretudo quando afirma que:

O surgimento da personagem, do autor e do leitor negros trouxe para a literatura brasileira questões atinentes à sua própria formação, como a incorporação dos elementos culturais de origem africana no que diz respeito a temas e formas, traços de uma subjetividade coletiva fundamentados no sujeito étnico do discurso, mudanças de paradigma crítico-literário, noções classificatórias e conceituação das obras de poesia e ficção (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 8).

Sendo assim, Machado conduz muito bem sua pena quando se insere nessa literatura, não se limitando, mas sim ampliando seu tom crítico e corrosivo em suas crônicas e contos. Como autor negro-brasileiro, é evidente que Machado de Assis cumpriu papel político, social, histórico e cultural, porque o vemos embebido em seu lugar de fala, embora houvesse (quiçá sempre houve) quem quisesse embranquecer Machado de todas as formas, das fotografias à linguagem. Nesse sentido, ora consciente, ora inconsciente, Machado contribuiu para desconstruir preconceitos, mesmo que isso incomodasse a hegemonia branca da sociedade carioca de sua época, criando textos críticos, políticos e literários que expuseram, mesmo que veladamente, o seu lugar de fala contra a discriminação racial. Cuti (2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 20) destaca que:

Uma das formas que o autor negro-brasileiro emprega em seus textos para romper com o preconceito existente na produção textual de autores brancos é fazer do próprio preconceito e da discriminação racial temas de suas obras, apontando-lhes as contradições e as consequências. Ao realizar tal tarefa, demarca o ponto diferenciado de emanação do discurso, o "lugar" de onde fala.

De tal modo, concordamos com o referido crítico ao repensar a nomenclatura para a produção escrita negro-brasileira, porque assim estaríamos projetando-a para a origem continental dos seus autores, deixando mais uma vez à margem a nossa literatura brasileira e hierarquizando culturas. Se formos refletir com atenção, os vocábulos "afro-brasileiro e "afrodescendentes" são expressões que induzem a discreto retorno à África, isto é, um afastamento silencioso do espaço da nossa literatura para se constituir negra. Então, estaríamos reforçando nossa produção negra como mero suplemento da africana, o que ela não é (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 28). Haveria aí um contrassenso, pois "a literatura africana não combate o racismo brasileiro. E não se assume como negra" (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 29).

Vale ressaltar ainda que o vocábulo "negro" ajuda a rememorar a identidade daqueles que a perderam por conquistas e que possibilitaram a criação da Frente Negra Brasileira como partido político (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. ). Nesse sentido, a mudança de nome de literatura afro-brasileira para literatura negro-brasileira não é apenas uma transformação metodológica, luta terminológica e ideológica, mas também uma renovação de identidade, "querer-se negro, assumir-se negro e gostar-se negro" (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 36). Então, é por isso também que Machado de Assis deve ser reconhecido e lido como tal, pois ele participou da consolidação de nossas letras especialmente por sua vivência como pessoa negra que andou nos mais variados ambientes do Rio de Janeiro do século XIX.

Logo, a literatura negro-brasileira surge da população negra que se fundou sobre a África e sobre sua experiência em solo brasileiro. Dessa maneira, sua singularidade faz-se notável, sobretudo porque "A palavra 'negro' aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que englobaria como um todo a receber, daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer" (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 36).

Os escritores negro-brasileiros fazem literatura de Luiz Gama a Maria Firmina dos Reis, passando pela escrita de Machado de Assis, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Gilka Machado, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Lívia Natália, Cristiane Sobral, Eliane Alves Cruz, Itamar Vieira Jr., Jeferson Tenório, entre tantos outros expressivos artistas; logo, suas experiências são brasileiras, e não africanas, embora alguns deles estejam isolados do ponto de "vista estético-literários no que toca a subjetividade do negro brasileiro" (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 67). "Se falar e ser ouvido é um ato de poder. Escrever e ser lido, também" (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 39), e um escritor não lido não existe para o público, a escolha de determinados livros em detrimento de outros obedece a critérios falhos; assim, essas listas preferenciais priorizam pequena minoria. Parece-nos que faz pouco tempo que Machado de Assis começou a existir como autor negro-brasileiro para a crítica literária e para os leitores, e tal fato impediu que Machado fosse visto como autor negro e saísse de um discurso panfletário.

Quando Machado trouxe mulheres negras ao protagonismo de sua ficção, como, por exemplo, Mariana, Arminda, Elisa, e homens negros, como Julião - personagens dos contos citados anteriormente -, o escritor desfez estereótipos e amplificou a discussão política de suas obras, destruindo caricaturas, noções de beleza exótica, sexualidade aguçada, ingenuidade visível e acomodação ligados ao sujeito negro e ao corpo desse sujeito representados na literatura brasileira. Nessa direção, compreendemos o quanto Machado de Assis ajudou a potencializar a literatura negro-brasileira.

Em O negro na literatura brasileira, Raymond Sayers (1958SAYERS, Raymond. O negro na literatura brasileira. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1958.) fez um levantamento numérico de autores brancos que exibem personagens ou motivos referentes à descendência africana, criando estereótipos marcados até hoje, como, por exemplo, a "bela mulata, o negro fiel e o escravo sofredor" (CUTI, 2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 55). Foi com Gregório de Matos e Guerra que a literatura brasileira trouxe à tona a visão eurocêntrica e hegemônica, haja vista que o referido poeta criou os mais variados estereótipos para as personagens de seus poemas, tornando-se o "cantor da mulata", como sugeriu o crítico José Veríssimo.

Por outro lado, a literatura negro-brasileira em Machado de Assis evidencia singular expressão de refletir as convicções e as fantasias pessoais do sujeito negro, reforçando o posicionamento de Cuti (2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 73) quando afirma que "a subjetividade negra é intransferível, mas ela é comunicante pela semelhança de seu conteúdo humano". Indiretamente, Cuti (2010CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. , p. 73), com seu pseudônimo, leva-nos igualmente a refletir acerca disso: sobre como o escritor negro também precisa escrever como ator, ou seja, "mergulhar no universo do diferente, necessita atuar como ator na escrita, como se o outro fosse". De tal modo fez o escritor caramujo e cronista para produzir literatura negro-brasileira.

Sendo assim, como um autor-matriz, ou seja, "aquele cuja obra, pela própria complexidade, autoriza a pluralidade de leituras críticas, pois elementos diversos de seu texto estimulam abordagens teóricas diferentes" (ROCHA, 2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 25), Machado granjeou forças atemporais que nos fazem enxergar seu conteúdo político e questões raciais atrelados aos seus textos.

Em síntese, não podemos ignorar o texto marcado pela negritude machadiana, seja em suas crônicas, seja em seus contos e romances. Diante disso, é imperativa a capacidade do autor em transcender os limites literários, pois ele abordou variedade de temas sociais, históricos, culturais, éticos, psicológicos, políticos e verdadeiramente humanos.

5. Considerações finais

Este trabalho discutiu a questão racial nas crônicas machadianas e promoveu olhares que contra-argumentam as afirmações condenáveis ao autor em relação ao seu suposto silenciamento e conveniência quanto às questões raciais. Essas permeavam a sociedade brasileira do século XIX, sobretudo o debate acerca da escravidão presente na conjuntura social do Rio de Janeiro.

Com isso, esperamos que os leitores deste artigo se sintam convidados a reconhecer mais facetas do "Bruxo do Cosme Velho", como, por exemplo, a de cronista-escritor irônico, sarcástico, satírico e profundamente consciente de sua posição social. Como pessoa negra, Machado impactou a sociedade literária e a elite intelectual de um Brasil ainda incipiente.

Em síntese, podemos dizer que esta análise procurou revelar a habilidade de Machado de Assis em interagir com seu público, transformando o gênero literário "crônica" em diálogo reflexivo também para os dias de hoje. A adaptação do escritor caramujo ao contexto jornalístico de sua época evidenciou a sua versatilidade, contribuiu para a compreensão mais profunda de sua genialidade e do seu impacto duradouro na cultura brasileira.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2024
  • Aceito
    22 Abr 2024
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