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Césaire, Suzanne. 2021. A Grande Camuflagem: Escritos de dissidência (1941-1945). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições. Tradução de Júlio Castañón Guimarães. 140 pp.

Césaire, Suzanne. . 2021. A Grande Camuflagem: Escritos de dissidência (1941-1945).Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições. Tradução de Guimarães, Júlio Castañón. . 140 pp.

A Grande Camuflagem: Escritos de dissidência (1941-1945), compilação de sete ensaios de Suzanne Césaire (1915-1966CÉSAIRE, Suzanne. 2021. A Grande Camuflagem: Escritos de dissidência (1941-1945). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições. Tradução de Júlio Castañón Guimarães. 140 pp.), escritora e professora martinicana anticolonialista e feminista, que dialogou, com seu estilo incisivo e sofisticado, com o movimento da negritude e o surrealismo, vem preencher uma enorme lacuna. Editado pela Papéis Selvagens, o livro traz a primeira tradução para o português dos ensaios da autora, recompilados pelo escritor Daniel Maximin em 2009, lançados pela editora Seuil, que foram publicados originalmente na Revista Tropiques, entre 1941 e 1945, e pode ser considerado a parte luminosa de um injusto apagamento.

Nascida na então colônia francesa da Martinica, Suzanne Césaire ecoa em seus textos as cicatrizes do colonialismo presentes na sociedade martinicana, dialogando, com perspicácia e refinamento intelectual, com seu companheiro intelectual e então marido Aimé Césaire (com quem teve, ao todo, quatro filhos e duas filhas), e antecipando questões que apareceriam anos mais tarde, em autores como Frantz Fanon.

Os ensaios de Suzanne Césaire apresentam um debate filosófico original sobre aspectos até então inexplorados do “povo martinicano”, pensado a partir de suas potencialidades e devires, para muito além de um discurso identitário, considerando as marcas profundas do colonialismo e seus reflexos, seja na cultura assimilacionista, ou na vida cotidiana. O contexto no qual se dão esses debates não é de menor relevância: estes “escritos de dissidência” são ademais um vívido testemunho da resistência de um grupo de intelectuais martinicanos ao regime colaboracionista de Vichy, instaurado nas Antilhas e na Guiana Francesa durante a Segunda Guerra Mundial.

O livro está dividido em cinco partes, iniciando com um prefácio de Daniel Maximin, que nos apresenta uma autora ao mesmo tempo “solar” e enigmática, sobretudo por uma ausência de textos posteriores aos sete ensaios publicados em Tropiques, à exceção de uma obra teatral da qual não se conservou, até onde se sabe, nenhum registro escrito. A segunda parte está composta pelos sete ensaios de Suzanne Césaire propriamente ditos. A terceira parte apresenta quatro poemas dedicados a Suzanne Césaire (dois deles de autoria de Aimé Césaire, um de sua filha Iná Césaire e outro de André Breton). A quarta parte, um posfácio de Lilian Preste de Almeida, profunda conhecedora da obra de Suzanne e Aimé Césaire, está composta de dois textos escritos especialmente para a edição brasileira, que nos oferecem preciosas chaves de leitura para os ensaios presentes no livro, tanto em relação ao contexto no qual foram escritos quanto à apresentação de intertextualidades interessantíssimas, particularmente com os textos de Aimé Césaire, nas quais se vislumbram influências recíprocas. Finalmente, o livro encerra com “Dois documentos sobre a censura militar e a resposta de Tropiques”, que reproduz a carta de interdição à publicação de um dos números da revista, em 1943, assinada pelo então “chefe de serviço de informação”, além da audaz e brilhante resposta de seus editores. Tal como peças de um quebra-cabeça, estes distintos fragmentos nos dão a dimensão da complexidade desta personagem, tão vanguardista em seus posicionamentos existenciais e cotidianos quanto nas reflexões teóricas, filosóficas e políticas presentes em seus ensaios.

O primeiro dos sete ensaios, “Leo Frobenius e o problema das civilizações”, publicado em 1941, apresenta uma discussão fundamental em um contexto de colonialismo, no qual imperavam premissas evolucionistas que foram, ademais, aprofundadas pelo contexto brutal de racismo durante o período do regime colaboracionista de Vichy na ilha. Diante da necessidade de “camuflagem” para editar uma revista de oposição que deveria, a cada número, passar pelo crivo dos censores, é com sagacidade que Suzanne Césaire apresenta este ensaio, dedicado à análise do “problema das civilizações” pelo antropólogo alemão Leo Frobenius: “Frobenius descobriu, de fato, ser falsa a ideia do progresso contínuo, cara ao século XIX, que mostrava a civilização progredindo numa linha única desde a barbárie primitiva até a alta cultura moderna” (:30), escrevia Suzanne Césaire, instaurando, já no primeiro número da revista, um debate que servirá de base para suas reflexões sobre a potência de um povo martinicano que necessita urgentemente “ousar conhecer-se a si mesmo, ousar confessar-se o que se é, ousar perguntar-se o que se quer” (:32-33).

“Alain e a estética”, texto de 1941 publicado no segundo número de Tropiques, inicia um diálogo com o surrealismo que será retomado em outros ensaios da autora. Neste sentido, não há como não mencionar o encontro do casal Suzanne e Aimé Césaire com André Breton, de passagem pela Martinica rumo ao exílio em Nova York, ocorrido poucos meses antes, que selará uma aliança definitiva com o surrealismo. Neste ensaio, a autora apresenta a “análise metódica das artes” que configura a perspectiva clássica de Alain, para contrastá-la, ao final, com a arte surrealista, confirmando sua adesão a esta “arte nova”, promotora de “uma nova consciência do mundo” (:41), o que já permite entrever um modo de apropriação do surrealismo comprometido com o contexto martinicano.

O debate mais direto com o surrealismo reaparecerá no artigo seguinte, “André Breton poeta...”. A partir de uma apresentação da poesia de Breton e de ideias-chave do surrealismo, particularmente de seu segundo manifesto, do qual destaca sua “extraordinária revolução, já que ela empenha mais que a arte, nossa vida inteira” (:48), a autora revela sua admiração pela poesia de Breton e seu potencial revolucionário. Neste ensaio, novamente é possível perceber, em meio a uma leitura que exalta o potencial libertário da poesia de Breton, uma requintada e necessária camuflagem para aludir ao contexto de guerra e censura no qual viviam, como podemos encontrar nesta “frase perturbadora” de Breton em sua “carta às videntes”, de 1925: “Há pessoas que pretendem que a guerra lhes ensinou alguma coisa. São de qualquer modo menos avançadas que eu, que sei o que me reserva o ano de 1939” (:48).

Em “Miséria de uma poesia, John-Antoine Nau”, a autora realiza uma crítica feroz à “Literatura de rede. Literatura de açúcar e de baunilha” (:55), reprodutora do olhar ocidental exotizante sobre a ilha da Martinica, contraface “adocicada” do colonialismo, cujo eco se fazia ouvir na poesia até então praticada pelos próprios martinicanos. A discussão sobre as possibilidades de emergência de uma arte martinicana liberta do modelo europeu, que aparecerá em textos posteriores, aqui é evocada a modo de manifesto: “A poesia da Martinica será canibal ou não será”, em uma convergência de pensamento que nos remete à antropofagia oswaldiana.

Em “Mal-estar de uma civilização”, Suzanne Césaire retoma o debate com Leo Frobenius para discutir os efeitos nefastos da escravidão e do colonialismo na população martinicana, enfrentando a “quietude artificial” que evitava estas temáticas em nome de um ideal assimilacionista e de negação de um passado africano. Nesta brilhante análise que lança luzes para a compreensão da “máscara branca” martinicana, Suzanne Césaire discute a “inquietação ancestral” de um povo que se formou a partir das “condições atrozes da transplantação brutal” (:54), sendo submetido “a um sistema de ‘civilização’” que lhe é completamente estrangeiro; e que, após a abolição, assumiu por anos o discurso da superioridade dos colonizadores europeus e o desejo de mimetizar-se. Em resposta às acusações de cunho racista a respeito do povo martinicano, Suzanne Césaire refuta qualquer análise de cunho determinista, iniciando um debate a partir de premissas que, por um lado, recordam o debate antirracista de Franz Boas em Raça e Progresso (1931BOAS, Franz. 2004 [1931]. “Raça e Progresso”. In: Celso Castro (org.), Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) e, por outro, antecipam questões que seriam retomadas anos mais tarde por Frantz Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas (1951FANON, Frantz. 1971 [1951]. Peau noire, masques blancs. Paris: Seuil.), como o desejo de parte da população negra colonizada de dominar os modos de vida dos colonizadores brancos, partindo da interiorização da premissa de uma suposta superioridade. Na análise deste que, como bem aponta, é um “gigantesco equívoco”, Suzanne Césaire retoma o debate com Leo Frobenius iniciado em seu primeiro ensaio para analisar o martinicano em sua filosofia etíope de “homem-planta”, propondo uma reflexão ontológica sobre o povo martinicano que explicaria sua independência e resiliência silenciosa, sustentadas sobre bases completamente distintas às da civilização ocidental. Assim, Suzanne Césaire clama pelo reconhecimento deste “sentimento etíope da vida”, herança da civilização etíope analisada por Frobenius.

Em “1943: o surrealismo e nós”, publicado em outubro deste ano, pouco após o final do período da Dissidência, Suzanne Césaire reitera a potência revolucionária do surrealismo e reflete sobre sua “irradiação” pelas Américas e pelo Caribe no entreguerras, reforçando sua adesão ao movimento. A causa da liberdade, no início do movimento, um exercício interior, “irradia” para o mundo em 1943, quando “a própria liberdade se acha ameaçada no mundo inteiro” (:60). A partir de uma apropriação canibal da premissa segundo a qual “a causa surrealista, na arte como na vida, é a própria causa da liberdade” (:60), Suzanne Césaire discute a situação da Martinica em 1943, poucos meses após o fim do período da Dissidência: “Em nenhum momento no correr desses duros anos da dominação de Vichy, a imagem da liberdade embaçou-se totalmente aqui, e é ao surrealismo que o devemos” (:62). A liberdade, entretanto, ainda não chegara para o povo negro, não somente o das Antilhas. Suzanne Césaire sonha com o momento em que se vá “transcender enfim as sórdidas antinomias atuais: brancos-negros, europeus-africanos, civilizados-selvagens”, e serão recuperadas “nossas comunhões insólitas” (:63). Para a autora, como fio condutor desta utopia, o surrealismo é a “corda estirada da nossa esperança” (:63), sobre a qual, com sua confiança inabalável na liberdade, se dispõe a lançar-se.

Em “A Grande Camuflagem”, último dos sete ensaios, escrito em 1945 depois de uma estadia de cinco meses no Haiti, aparece a reflexão talvez mais incisiva sobre o colonialismo nas Antilhas e na América: “Há três séculos a aventura colonial prossegue [...]. Naturalmente são os negros da América que sofrem mais, numa humilhação cotidiana, das degenerescências, das injustiças, das mesquinharias da sociedade colonial” (:67), apresentando novamente questões que serão posteriormente retomadas por Fanon. Suzanne Césaire denuncia que “persistem ainda formas refinadas de escravidão” (:67) nas terras americanas, marcadas de modo indelével pela “aventura colonial”, no que parece ser também a antecipação, quase cem anos antes, de debates retomados à luz das teorias decoloniais, particularmente quando a autora discute o colonialismo interno nas Antilhas, representado na figura do “burguês de cor” antilhano. Ainda assim, nas “Antilhas-África, graças aos tambores, a nostalgia dos espaços terrestres vive nesses corações insulares” (:70). Neste “grande jogo de esconde-esconde” que teve êxito nas Antilhas, as marcas do colonialismo - “ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra”, como nos lembra Grada KilombaKILOMBA, Grada. 2019. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó. -, muitas vezes “camuflado” pela ofuscante beleza das ilhas, são desnudadas neste brilhante ensaio, que é também o artigo de encerramento do último número de Tropiques. “A Grande Camuflagem: Escritos de Dissidência (1941-1945)” nos revela, assim, não somente a sofisticação do pensamento desta intelectual tão pouco conhecida das leitoras e dos leitores brasileiros, mas também propõe uma reflexão sobre múltiplas possibilidades de re-existências que se atualizam e potencializam, entre processos criativos e “camuflagens” - apesar da violência colonial cotidiana e de intentos constantes de negação, apagamento e esterilização -, lançando um grito de liberdade e esperança que, ainda hoje, não pode parar de ressoar.

Referências bibliográficas

  • BOAS, Franz. 2004 [1931]. “Raça e Progresso”. In: Celso Castro (org.), Antropologia cultural Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • CÉSAIRE, Ménil et al. 1978. Tropiques. 1941-1945. Collection Complète Paris: Jean-Michel Place.
  • CÉSAIRE, Suzanne. 2021. A Grande Camuflagem: Escritos de dissidência (1941-1945) Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições. Tradução de Júlio Castañón Guimarães. 140 pp.
  • FANON, Frantz. 1971 [1951]. Peau noire, masques blancs Paris: Seuil.
  • KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano Rio de Janeiro: Cobogó.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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