Open-access Claude Lévi-Strauss e a carta (jamais lida?) a Marcel Mauss

Introdução

Em novembro de 2023 realizávamos uma consulta aos documentos pessoais de Claude Lévi-Strauss depositados na Biblioteca Nacional da França, em Paris. A cada caixa que cuidadosamente abríamos no silêncio da suntuosa sala de leitura do Departamento de Manuscritos, um vertiginoso volume de anotações, correspondências e fotos se revelava. Embora estivéssemos em busca de informações que nos ajudassem a compreender o caminho percorrido pelos objetos indígenas coletados nos anos 1930 por Lévi-Strauss e sua esposa, a também antropóloga Dina Dreyfus, era impossível para nós, enquanto antropólogos, não nos determos - e até mesmo nos perdermos um pouco - nos antigos papéis e imagens daquele cujas obras e pensamento tanto influenciaram a disciplina e a nós mesmos. Se o trabalho com arquivos é sempre dado a surpresas, os documentos pessoais de Claude Lévi-Strauss são, para qualquer antropóloga ou antropólogo, um verdadeiro banquete.

Foi justamente ao nos deixarmos levar por um destes desvios que nos deparamos com uma correspondência que acreditamos ser não apenas um encontro com o inesperado, mas com um capítulo fundamental da própria história da antropologia. Trata-se de uma carta escrita por Claude Lévi-Strauss em Nova Iorque, em 2 de outubro de 1944, e endereçada a Marcel Mauss.1 Nesta correspondência, ele busca retomar o contato com o “mestre” (maître) após os anos de silêncio que se seguiram a seu exílio nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.2 Com o fim do conflito, Lévi-Strauss tinha planos de retornar à França. A principal finalidade da carta, neste sentido, é propor a Mauss que ele seja o rapporteur em sua banca de defesa de tese.3 O trabalho, de fato defendido em 1948 e publicado em forma de livro no ano seguinte, era o clássico Estruturas Elementares do Parentesco (doravante, EEP), acompanhado da tese suplementar A vida familiar e social dos índios Nambiquara.

Sabemos, porém, que Marcel Mauss não foi o rapporteur da tese, nem esteve presente na banca de defesa.4 Tudo indica, na verdade, que Mauss nunca respondeu a esta carta. Temos bons motivos para supor que ele talvez nem mesmo a tenha lido. Um deles é o de que, no “Fonds Marcel Mauss - Henri Hubert” depositado no Collège de France, em Paris, a última carta de Claude Lévi-Strauss data de 1939.5 Outro é que aparentemente nunca foi enviado de volta o documento de uma página que, anexado à carta, deveria ter sido assinado por Marcel Mauss, indicando o aceite ao convite. Entender o que acontecia com Mauss e Lévi-Strauss à época é útil para que nossas suposições fiquem mais claras.6

Os momentos que antecederam o começo da Segunda Guerra Mundial foram, para Marcel Mauss, carregados de responsabilidades administrativas relacionadas à docência e de uma intensa participação em conferências e seminários. Não demorou muito, porém, para que consequências diretas do conflito, misturadas a algumas dificuldades pessoais, impactassem a vida de Mauss decisivamente.

Em 1940, Mauss decide se retirar da função de presidente da quinta seção da École Pratique des Hautes Études (EPHE). Na ocasião, sua avaliação foi a de que, por ser de origem judia, ele protegeria a instituição e seus colegas caso resignasse ao cargo. Em sequência, Mauss abdica também do posto de professor do Collège de France. Ao mesmo tempo, se ocupa de sua esposa que, experimentando frequentes lapsos de memória, entrava no que veio a se tornar um longo processo de adoecimento. Ele enfrenta, ainda, o falecimento de alguns amigos próximos, como Lucien Lévy-Bruhl e Marcel Granet. Com a crescente perseguição aos judeus dentro e fora das universidades, Mauss passa a reunir esforços para ajudar política e financeiramente ex-alunos e companheiros de profissão - inclusive aqueles responsáveis pela publicação do boletim Résistance no recém-fundado Musée de l’Homme. A partir do ano seguinte, Mauss passa a ler pouco e a escrever menos ainda, recusando sucessivamente os convites acadêmicos que lhe chegavam. Em 1942, o antropólogo e a esposa são obrigados a deixar seu confortável apartamento em Paris para ceder o lugar a um general alemão. Mudam-se para um minúsculo e insalubre apartamento térreo na mesma cidade, onde enfrentam um duro inverno. Mauss passa a sentir com mais força os efeitos da diabetes e, seguindo a imposição aplicada a qualquer judeu que circulasse na cidade, costura ele mesmo uma estrela de Davi em seu casaco.

Embora no começo de 1944 um comunicado da Cruz Vermelha o tenha localizado em Paris e bem de saúde (como veremos, esta é a mesma informação que chegou a Lévi-Strauss), tudo indica que tal condição não durou muito tempo. Em 1945, Jacques Soustelle encontra Mauss e relata que “a guerra foi um calvário e ele está doente”. Desde então, ele para de se corresponder com seus amigos e antigos alunos. Louis Dumont conta que, tendo visto o professor, ele o teria confundido com Michel Leiris. O mesmo acontece com Lévi-Strauss. Ao retornar a Paris, ele encontra Mauss ao menos uma vez, mas este não o reconhece e acredita estar diante de Jacques Soustelle. Nessa época, Henri Mauss se muda para o apartamento do tio para lhe prestar assistência. Embora ele e a esposa tenham retomado o local onde moravam antes da guerra, Marcel Mauss enfrenta frequentes lapsos de memória. Sua esposa falece em 1947. Em 1950, com 77 anos, em casa e rodeado por seu irmão e sobrinhos, ele também parte.

Não temos muitas informações sobre o encontro entre Claude Lévi-Strauss e Mauss após a guerra. O que sabemos, contudo, é que em 1944 o jovem antropólogo ainda não tinha ideia de como esse período havia sido difícil para Mauss. Tal ignorância é consequência direta de seu distanciamento geográfico. Exilado do outro lado do Atlântico, Lévi-Strauss foi um dos intelectuais judeus franceses que viveram de maneira diferente as consequências da guerra.

Nos Estados Unidos desde 1941, Lévi-Strauss escutou, no dia 6 de junho de 1944, no rádio de seu apartamento no Greenwich Village em Nova Iorque, notícias sobre os eventos do Dia D e o início da retomada da França pelos Aliados. Em suas próprias palavras, “o que eu ouvia era tão estranho que no início me pareceu ininteligível. Pouco a pouco, compreendi e explodi em soluços” (Loyer 2018:283). Após seis angustiantes meses de incerteza, no dia 30 de novembro ele receberia as primeiras notícias de seus pais. Poucas semanas depois, Lévi-Strauss voltou à França pela primeira vez desde o início da guerra, retornando em seguida aos EUA como adido cultural na embaixada francesa em Nova Iorque. A carta de 2 de outubro, portanto, foi escrita durante o período de silêncio e apreensão que se passou entre a Liberação da França e as primeiras notícias de sua família.

No geral, a relação entre o cenário geopolítico que levou Lévi-Strauss a Nova Iorque e a emergência do estruturalismo é descrita como circunstancial, como se o exílio tivesse sido o simples pano de fundo para aquilo que, décadas mais tarde, o antropólogo descreveria como uma espécie de “revelação” (Lévi-Strauss 1977:7). Tal expressão se refere à sua descoberta da Linguística Estrutural, apresentada ao jovem antropólogo pelo já experiente Roman Jakobson, linguista do Círculo Linguístico de Praga e também no exílio nova-iorquino. No entanto, como sugere Emmanuelle Loyer (2018), a biógrafa de Lévi-Strauss, tudo indica que o despontar desta nova tradição da disciplina não foi tão fortuito quanto por vezes é descrito. Segundo Loyer, a tese de Lévi-Strauss (as EEP) foi diretamente influenciada pelas preocupações do antropólogo exilado com a situação de seu país e com os futuros possíveis da disciplina no pós-guerra.

Como veremos, a carta de 2 de outubro é explícita quanto a isso. Nela, Lévi-Strauss afirma que seu trabalho foi “impulsionado pelo desejo de poder ser útil e de poder contribuir, tão breve seja possível, ao renascimento do pensamento e da ciência na França”. Assim, o caráter monumental e o tom de refundação da disciplina que transparece nas EEP não seriam apenas artefatos de sua ambição. Seriam, além disso, parte de um esforço ativo de estabelecer os fundamentos de uma nova antropologia francesa no pós-guerra. Esta antropologia viria a ser nova até no nome: Lévi-Strauss nomeará sua cadeira no Collège de France com a expressão de origem inglesa “anthropologie sociale”.7 Com o tempo, o próprio termo anthropologie (no lugar de ethnologie, mais comum à época) passará a ser utilizado na França.8 Resta entender como essa refundação será apresentada como parte de uma tradição especificamente francesa. Aqui, o remetente de nossa carta se torna uma peça fundamental.

A figura de Marcel Mauss ocupa a posição de elo entre a nova anthropologie de Lévi-Strauss e a tradição sociológica francesa. Como sugere Lévi-Strauss (2013:13) a seus colegas no Collège de France em sua aula inaugural em 1960, “ao criarem uma cadeira de antropologia social, foi a de Mauss que os senhores quiseram restaurar”. Ademais, teria sido Mauss, afirma Lévi-Strauss, “o primeiro, em 1938, a introduzir as palavras ‘antropologia social’ na terminologia francesa”. É a partir da imagem de Marcel Mauss construída por Lévi-Strauss que a disciplina, refundada sob novo nome, com inspiração anglo-americana, método leste-europeu e um fundo ameríndio ainda latente reivindicará suas raízes francesas.9 Na carta de 1944, Lévi-Strauss é resoluto ao apresentar as EEP a Mauss como “uma extensão fiel” (ênfase nossa) do pensamento deste último. Sugerimos, aqui, deslocar nossa atenção da reivindicação de “fidelidade” em direção à noção de “extensão”. Para que nosso ponto fique mais claro, coloquemos lado a lado dois textos de Lévi-Strauss: A Sociologia Francesa (2022 [1944]), publicado no mesmo ano da carta em questão, e a célebre Introdução à obra de Marcel Mauss (2003 [1950]), publicada seis anos depois, na ocasião da morte de Mauss. Juntos, eles nos ajudam a compreender como Lévi-Strauss construiu uma relação de continuidade entre sua própria obra e aquela do maître.

O primeiro texto, de 1944, se apresenta como uma revisão da Escola Sociológica Francesa e é em parte estruturado como uma resposta à crítica de Kroeber a Mauss e Durkheim publicada na década anterior. Nesta, o antropólogo norte-americano defende que noções como “sacrifício” e “dom” não seriam nem noções nativas, nem conceitos científicos, mas, na verdade, ideias derivadas “de experiências comuns e desprovidas de fundamento científico” (Kroeber 1935:560, trad. nossa). Lévi-Strauss argumenta então que tais noções, assim como a ideia durkeimiana de “suicídio”, não deveriam ser vistas como o ponto de chegada das análises de Mauss e Durkheim. Para ele, tais conceitos seriam, mais bem, pontos de partida provisórios. Segundo Lévi-Strauss, o método empreendido pela Escola Sociológica Francesa seria o de encontrar, para além de noções provisórias, aqueles “elementos ocultos e fundamentais realmente constitutivos do fenômeno” (2022:87).

Em A Sociologia Francesa, Lévi-Strauss destaca a obra de Marcel Mauss daquela de seus pares, apresentando-a como a forma mais acabada de tal esforço metodológico. Este último procederia em direção à redução da “complexidade concreta do dado para atingir estruturas mais simples” - movimento este que seria, ainda, “a tarefa fundamental da sociologia” (:89). Para Lévi-Strauss, ademais, se na geração anterior da Escola Sociológica Francesa tal esforço de redução teria se limitado por uma tendência ao tipologismo, os ensaios de Mauss iriam além. Nestes, a complexidade seria decantada até que “só reste o material mais puro” (:92). Especificamente no que diz respeito ao desenvolvimento da noção de “dom”, Lévi-Strauss observa que “quando Mauss compara os diferentes tipos de dádiva, é para descobrir, por trás das formas mais diversas, a ideia fundamental de reciprocidade” (:90). Em tom elogioso, conclui: “Durkheim pertence ao passado, ao passo que Mauss esteve a par do pensamento e das pesquisas etnográficas mais modernos” (:91).

Em A Sociologia Francesa, portanto, Lévi-Strauss destaca Mauss como aquele autor da Escola Sociológica Francesa cuja obra apontaria para o futuro das Ciências Sociais. Já em Introdução à Obra de Marcel Mauss, é Lévi-Strauss, ele mesmo, que, em uma espécie de teleologia retórica, se apresenta como aquele que chegou onde Mauss não teria sido capaz. Assim, para Lévi-Strauss, enquanto Mauss teria reduzido uma miríade de relações aparentemente heterogêneas a três movimentos básicos (dar, receber, retribuir), ele teria levado o método maussiano mais adiante. Lévi-Strauss, agora em tom crítico, reivindica que a troca seria, na verdade, o que “constitui o fenômeno primitivo, e não as operações discretas nas quais a vida social a decompõe” (2003:34). Ele sugere que, ainda que Mauss se abra à possibilidade de considerar “os próprios indígenas melanésios como os verdadeiros autores da teoria moderna da reciprocidade” (:30), o maître teria se deixado “mistificar” pela teoria maori do hau. Para Lévi-Strauss, Mauss teria interrompido seu esforço de redução ao esposar uma teoria nativa “muito pouco satisfatória”, na qual o caráter sintético da troca reside em uma força intrínseca que emana do que é trocado. Se a obra de Mauss era a extensão moderna da Escola Sociológica Francesa, a de Lévi-Strauss a teria levado ainda mais adiante. Este reivindica ter compreendido que, por trás dos três movimentos discretos do dom, haveria uma síntese mais fundamental: a reciprocidade.10

Assim, tanto no caso da noção de hau como naquela de mana, Lévi-Strauss sugere uma substituição da força pela forma. Na interpretação lévi-straussiana sobre o dom, a força do hau é substituída pelo aspecto sintético e formal daquilo que o antropólogo designa como “reciprocidade” - isto é, uma relação formal que conecta na mesma medida em que reintroduz a diferença ou a separação entre pessoas singulares ou coletivos. Tal substituição é um dos movimentos que permitem a Lévi-Strauss transpor o caráter formalmente opositivo e relativo dos fonemas, tal como estabelecido pela linguística estrutural, para o estudo do parentesco. Em outras palavras, esta operação lhe permite passar da língua à sociedade. Poderíamos afirmar, portanto, que é por meio do “fato social total” de Mauss que Lévi-Strauss desloca o “fato linguístico total” jakobsoniano para o nível sociológico. Vejamos, então, como esta convergência viria a se expressar em sua tese, as EEP.

As relações de afinidade (dimensão terminológica) e de aliança matrimonial (dimensão sociológica), ambas expressões dos vínculos estabelecidos entre pessoas ou coletivos por meio do casamento, ocupam um lugar privilegiado nas EEP. Como é sabido, essas relações, na primeira formulação do autor, estariam baseadas na troca de mulheres. As formas de troca, fundamentos da aliança e da afinidade, tornam-se assim logicamente anteriores às de descendência, constituindo o locus da emergência e da diferenciação dos sistemas de parentesco. Esse deslocamento permite ao antropólogo recolocar o problema da constituição dos grupos de parentesco em novos termos. Rompe-se assim com a questão funcionalista da integração de unidades de parentesco internamente constituídas (e, portanto, atomizadas). O estruturalismo nascente de Lévi-Strauss interroga, ao invés disso, as formas que descrevem as relações que constituem tais unidades - e, em obras posteriores, como estas seriam pensadas. Tais formas existiriam em um nível anterior à história e à estrutura social. Por esta razão, na carta a Mauss, Lévi-Strauss se diz “chocado com as pretensões de Malinowski, e ainda mais de seus alunos, de encontrar a organização funcional por meio da observação concreta dos grupos”. Em suma, como formula posteriormente Roy Wagner, “é na troca de dádivas, ou reciprocidade, que o estruturalismo começa. Ou, antes, é onde o funcionalismo acaba para os estruturalistas” (2010 [1974]:241).

O dom reinventado como “troca” ou “reciprocidade” é, assim, um movimento crucial nas EEP. É este modo de relação, na forma da aliança de casamento, que faz dos grupos de parentesco (clãs, linhagens, sibs, metades, etc.) elementos essencialmente opositivos e relativos, assim como os fonemas jakobsonianos. Vemos aqui, então, como convergem as leituras lévi-straussianas de Mauss e de Jakobson. No entanto, em termos de estilo, Lévi-Strauss difere marcadamente de seus mestres europeus. Enquanto Mauss e Jakobson são conhecidos por seu estilo ensaístico, Lévi-Strauss prepara um verdadeiro tratado de parentesco que, como define na carta de 2 de outubro, ele compreende como “o trabalho de Lewis Morgan retomado após 75 anos”.

Fica claro, portanto, como os aspectos histórico-políticos (exílio e Liberação da França), teóricos (apresentação do argumento das EEP e influência da obra maussiana) e acadêmicos (convite para ser rapporteur de sua tese) da carta de 2 de outubro estão intimamente ligados. Para Lévi-Strauss, no contexto do pós-guerra, uma aproximação intelectual e institucional com Mauss era parte do esforço para fazer da disciplina refundada uma antropologia verdadeiramente francesa. A resposta, no entanto, nunca veio, e o documento enviado por Lévi-Strauss a Mauss nunca foi assinado. Publicada pela primeira vez na íntegra e em tradução para o português, a carta que segue expressa de forma excepcionalmente clara e sintética um momento decisivo da história da antropologia. As transições quase imperceptíveis entre temas pessoais, histórico-políticos, conceituais e profissionais, tão características do gênero “carta”, fazem desta uma leitura fascinante. Esperamos poder compartilhar com um público mais amplo a sensação que tivemos ao encontrar este punhado de amareladas folhas datilografadas e percorrer suas palavras pela primeira vez, com surpresa e maravilhamento, linha por linha.

Carta

Estimado maître,

Ao longo dos últimos três anos, eu tentei em numerosas ocasiões entrar em contato com o senhor. Sem dúvida esta carta, levada pelo Dr. Rivet, será a primeira que chegará a suas mãos. Não tenho nenhuma notícia do senhor, exceto por um comunicado da Cruz Vermelha, de janeiro de 1944, dizendo que o senhor estava bem de saúde e que ainda se encontrava em Paris. É desnecessário dizer como todos nós nos sentimos ao longo desses últimos meses. Uma mistura de alegria e angústia, de esperança e de tormenta, que por sua vez era apenas uma imagem vaga do que vocês mesmos, do outro lado do oceano, devem ter sentido. Mas eu gostaria de dizer mais uma vez o que eu lhe disse há alguns dias em um breve cartão-postal: seus colegas americanos, seus amigos de todas as nacionalidades nunca deixaram de pensar no senhor nesses longos anos. E o maior desejo deles seria fazer algo - o que quer que fosse - para ajudá-lo e reconfortá-lo. Lowie, Radin11 e outros me incumbiram de atuar como intérprete entre eles e o senhor. O senhor os faria infinitamente felizes ao me indicar em que direção os esforços deles e os meus devem se orientar. Sobre meus pais, meus amigos, há meses que eu também não sei nada. Como vocês todos sobreviveram, por quais provações vocês todos passaram? Esta é uma preocupação lancinante que se tornou tão habitual que, mesmo após a Liberação,12 não é possível se livrar dela.

Nestas condições, haveria uma certa dose de imprudência em discorrer longamente sobre um cotidiano de estudos tranquilo e monótono. Contudo, ao longo desses três anos, a motivação que encontrei para mim mesmo foi o trabalho árduo, impulsionado pelo desejo de poder ser útil e de poder contribuir, tão breve seja possível, para o renascimento do pensamento e da ciência na França. Assim, eu trabalhei bastante e considero que alcancei alguma repercussão: uma dezena de artigos publicados ou aceitos para publicação (diversos capítulos do Handbook of South American Indians, em preparação no Smithsonian;13 diversos artigos sobre sociologia primitiva14); um livro sobre a vida familiar e social dos índios Nambikuara,15 completamente finalizado; e outro, de dimensões e pretensões mais consideráveis, já em estado bastante avançado de escrita. É sobretudo a respeito deste último que eu gostaria de falar com o senhor, pois ele se deve muito ao seu trabalho e espero que, em um campo ligeiramente diferente do seu, ele se constitua como uma extensão fiel do seu pensamento. O título ainda não foi definitivamente escolhido. Proibição do Incesto? A Aliança e o Parentesco? Introdução à Teoria Geral do Parentesco? Eu ainda não sei. De qualquer forma, trata-se de uma tentativa de estabelecer uma tipologia dos sistemas de parentesco e uma sistemática das regras de casamento. Em resumo, e com um outro estilo, é o trabalho de Lewis Morgan retomado após 75 anos e sem tentar ser exaustivo (o que seria evidentemente impossível), mas ainda assim buscando considerar todas as regiões do mundo. A obra definitiva terá uma dimensão considerável (por volta de 500 páginas impressas) e estará baseada em uma bibliografia extensa, de modo que fiz o esforço de me concentrar nos últimos vinte ou trinta anos (naturalmente, sem me privar de recorrer a fontes mais antigas) a fim de que a informação à disposição do leitor seja ela mesma original se comparada às obras mais sistemáticas publicadas sobre temas similares (Westermarck16 etc.).

O método usado é relativamente novo. Eu fiquei bastante impressionado com as transformações na linguística introduzidas pelo método fonológico, cujas implicações teóricas me parecem extrapolar a análise das línguas e envolver o futuro das ciências humanas como um todo. O fato de uma língua se organizar sempre em um conjunto estrutural, mas em um estágio anterior àquele da história e do vocabulário, foi para mim uma constatação reveladora. Eu já havia me chocado com as pretensões de Malinowski, e ainda mais de seus alunos, de encontrar a organização funcional por meio da observação concreta dos grupos - o que nada mais é do que um retorno inconsciente ao providencialismo do século XVIII. Portanto, eu me perguntei (guiado, aliás, pelas sugestões convincentes que aparecem em sua obra) se os problemas sobre o parentesco - igualmente análogos, de um ponto de vista formal, aos problemas linguísticos - não poderiam ser tratados como a fonologia trata as línguas. Isto é, se eles não poderiam ser analisados como elementos diferenciais simples entre os quais surgiriam relações elementares. O Ensaio sobre a Dádiva17 foi meu ponto de partida e minha inspiração. Postulei, como hipótese de trabalho, que as regras de casamento e os sistemas de parentesco se traduzem e são resultado do modo pelos quais as mulheres são trocadas dentro do grupo. Um segundo momento foi dedicado a demonstrar, de forma teórica, as diversas modalidades de troca entre n participantes (tarefa nem sempre fácil e para a qual, nos casos complexos, tive que recorrer à ajuda de matemáticos). Finalmente, uma vez conhecidas e classificadas essas modalidades, verifiquei quais regras de casamentos e quais tipos de sistemas de parentesco seriam necessários e se justificavam. Colocado nestes termos, o problema se mostrou extremamente simples. Questões como o casamento entre primos cruzados e a preferência pela prima matrilateral ou patrilaterial se tornaram evidentes. Passando às estruturas mais complexas, criei uma nova classificação para os sistemas australianos na qual aqueles sistemas conhecidos como “anormais” recentemente descritos por R. Brown,18 Sharp,19 Elkin20 e Warner21 (sistemas Mara, Murngin, Nangyomerri) podem ser inscritos em posições designadas previamente em um quadro mais geral. Minha classificação por fim se estendeu aos sistemas ainda mais complexos (Ambrym, Pentecote) e até mesmo à integração, sob uma fórmula bastante geral, dos sistemas fundados em um princípio binário (Kariera, Sibéria) e daqueles resultantes de uma combinação dos dois (Crow-Omaha).

Sem dúvida, tudo isto parecerá ao senhor uma ambição grande demais. Porém, os resultados da análise sociológica foram combinados àqueles da análise geográfica. Assim, não apenas a teoria dos sistemas foi objeto de uma grande simplificação, mas também o mapa de sua distribuição - resultado igualmente alcançado por meio da análise fonológica no que diz respeito aos grupos de afinidade linguística e ao qual atribuo, portanto, uma grande importância.

Eu já finalizei completamente a coleta e a classificação dos materiais, e um terço do livro já está escrito. No momento, eu poderia completá-lo em quatro meses, desde que eu tivesse condições de me dedicar completamente a isto. Isso tem sido impossível desde que tive que aceitar a vaga de secretário-geral da École Libre. E eu anseio por uma solução que me permita terminar esta tarefa que vem ocupando meu pensamento. Eu gostaria que este livro fosse minha tese principal, enquanto aquele sobre os Nambikuara (completamente terminado, com por volta de 175 páginas) fosse minha tese complementar. Minha grande esperança seria que o senhor aceitasse ser meu rapporteur. Com esta esperança, eu anexo uma carta ao Diretor que o senhor poderia assinar e enviar.

De um ponto de vista prático, meu maior desejo é retornar imediatamente à França em um trabalho (Museu, Instituto de Etnologia, Altos Estudos?22) que permitisse que eu me dedicasse completamente ao meu trabalho científico. O Dr. Rivet está de acordo sobre isso, mas ele gostaria que passasse um tempo no México a fim de consolidar o Instituto Francês Ibero-Americano, para o qual ele quis me propor ser o diretor. Como eu disse a ele, me resignarei com esta opção se for necessário, mas conservando meu pensamento em outro lugar. É provável que antes de ir ao México eu passe rapidamente por Paris. O Dr. Rivet lhe explicará o motivo. Será uma grande alegria reencontrar o senhor e poder lhe pedir os conselhos que tanto me fizeram falta enquanto meu livro era organizado. Posso pedir-lhe que envie notícias a meus pais (Camcabra, Valleraugue, Gard23) para que eles tenham notícias minhas, já que o correio ainda não está reestabelecido no Sul da França?24 Eu prefiro pecar pelo excesso de precauções. Peço desculpas por esta carta tão longa e tão egoísta. E, por favor, aceite, meu querido maître, minha fiel, aprazível e respeitosa afeição.

Claude Lévi-Strauss

Referências

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  • KROEBER, Alfred. 1935. “History and Science in Anthropology”. American Anthropologist, 37 (4):539-569.
  • LOYER, Emmanuelle. 2018. Lévi-Strauss São Paulo: Ed. SESC.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1948a. “The Tupí-Cawahíb”. In: Julian Steward (ed.), Handbook of South American Indians. Volume 3 - The Tropical Forest Tribes Washington: United States Government Print Office. pp. 299-307.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1948b. “Tribes of the upper Xingú River”. In: Julian Steward (ed.), Handbook of South American Indians. Volume 3 - The Tropical Forest Tribes Washington: United States Government Print Office . pp. 321-348.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1948c. “The Nambicuara”. In: Julian Steward (ed.), Handbook of South American Indians. Volume 3 - The Tropical Forest Tribes Washington: United States Government Print Office . pp. 361-370.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1948d. “Tribes of the right bank of the Guaporé River”. In: Julian Steward (ed.), Handbook of South American Indians. Volume 3 - The Tropical Forest Tribes Washington: United States Government Print Office . pp. 371-381.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1948e. La vie familiale et sociale des indiens Nambikwara Paris: Société des Américanistes.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1977. Prefácio. In: R. Jakobson. Seis lições sobre o som e o sentido Lisboa: Moraes Editores.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2003 [1950]. “Introdução à Obra de Marcel Mauss”. In: Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia São Paulo: Cosac Naify. pp. 7-46.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2008. “História e Etnologia”. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural São Paulo: Cosac Naify . pp. 31-54.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013. “O Campo da Antropologia”. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois São Paulo: Cosac Naify . pp. 17-43.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2022. Antropologia Estrutural Zero Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude; ERIBON, Didier. 1990. De Perto e de Longe Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • MAUSS, Marcel. 2003 [1925]. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. In: Sociologia e Antropologia São Paulo: Cosac Naify . pp. 183-314.
  • SIGAUD, Lygia. 1999. “As vicissitudes do ‘ensaio sobre o dom’”. Mana, 5 (2):89-123.
  • WAGNER, Roy. 2010 [1974]. “Existem grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné?”. Cadernos De Campo, 19 (19):237-257.

Notas

  • 1
    Agradecemos a Monique Lévi-Strauss por autorizar a consulta e a publicação deste material, a Anaïs Dupuy-Olivier (Departamento de Manuscritos/BNF) por intermediar o acesso, e a Carlos Fausto pela leitura atenciosa e o incentivo em fazer com que mais colegas possam ler esta carta. Leandro Varison (Musée du Quai Branly - Jacques Chirac) é parte fundamental do projeto USP-Cofecub no qual a consulta a este material se inseriu e, sem ele, esta publicação teria sido impossível.
  • 2
    Optamos por manter a grafia original em maître a fim de salientar o aspecto de respeito e afeto que o vocábulo guarda em francês - em comparação, por exemplo, a professeur ou “mestre”, em português.
  • 3
    No mundo acadêmico francês, o rapporteur é um avaliador que, geralmente escolhido em função de seu prestígio na área, é responsável pela entrega, antes da defesa pública, de um relatório escrito detalhado sobre o trabalho.
  • 4
    Segundo Lévi-Strauss, a composição da banca acaba se configurando da seguinte forma: “Fui visitar Davy, que era decano da Sorbonne, com meu manuscrito debaixo do braço, para pedir-lhe que fosse meu diretor de tese (se é que se pode dizer assim, uma vez que a tese já estava pronta). [...] E ele concordou. O mesmo aconteceu com a tese complementar, que foi aceita por Griaule. Então eu as defendi na Sorbonne, tendo como banca: Davy, Griaule, Benveniste, Bayet e Escarra [...]” (Lévi-Strauss; Eribon, 1990:70).
  • 5
    Naquele mesmo ano, Dina Dreyfus, então esposa de Claude Lévi-Strauss, envia três cartas a Marcel Mauss. Em 1941, o pai de Lévi-Strauss, o pintor Raymond Lévi-Strauss, envia um cartão-postal a Mauss, ao qual não tivemos acesso. Em uma correspondência de Mauss a Lévi-Strauss, em 20 de fevereiro de 1936 (BNF, número de inventário NAF 28150 [196]), a proximidade entre Dina Dreyfus e o professor fica evidente na seguinte frase de Mauss: “Naturalmente, esta carta também é dirigida à sua esposa. Eu a confundo com você, até mesmo em meus pensamentos” (tradução nossa).
  • 6
    Todas as informações de cunho biográfico que seguem se baseiam na obra de Fournier (1994).
  • 7
    Segundo Loyer, a “escolha do nome da nova cátedra, ‘antropologia social’, é, sob diversos aspectos, anormal, estranha. Corresponde à escolha primordial que Lévi-Strauss fez em sua volta à França de adotar o termo, inusitado à época, ‘antropologia’” (2018:407-408).
  • 8
    Vale notar, no entanto, que Lévi-Strauss (2008:14), em 1949, sugeriu uma distinção escalar e metodológica entre etnografia, etnologia e antropologia.
  • 9
    Para uma análise cuidadosa da influência ameríndia no pensamento de Lévi-Strauss, ver Coelho de Souza e Fausto (2004).
  • 10
    Para uma análise mais detalhada da passagem teórica do dom à reciprocidade efetuada por Lévi-Strauss, ver Sigaud (1999).
  • 11
    Robert Lowie e Paul Radin, importantes antropólogos da primeira metade do século XX, baseados nos Estados Unidos e especialistas nos povos indígenas da América do Norte.
  • 12
    Liberação de Paris ao final da Segunda Guerra Mundial, ocorrida entre 19 e 25 de agosto de 1944.
  • 13
  • 14
    Grande parte dos artigos de caráter etnológico publicados durante o período nova-iorquino foram reunidos na coletânea Antropologia Estrutural Zero (2022).
  • 15
    Lévi-Strauss (1948e).
  • 16
    Edvard A. Westermarck, filósofo e sociólogo finlandês da virada do século XX, conhecido por suas teorias sobre o incesto.
  • 17
  • 18
    Alfred Radcliffe-Brown, o influente antropólogo britânico estrutural-funcionalista.
  • 19
    Lauriston Sharp, antropólogo e arqueólogo norte-americano.
  • 20
    Adolphus Peter Elkin, antropólogo australiano especialista nos povos aborígenes.
  • 21
    William Lloyd Warner, antropólogo norte-americano que também desenvolveu pesquisa entre povos aborígenes australianos.
  • 22
    Lévi-Strauss refere-se aqui, muito provavelmente, ao Musée de l’Homme, ao hoje extinto Institut d'ethnologie criado por Mauss e Lévy-Bruhl e, finalmente, à École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).
  • 23
    Durante a guerra, os pais de Lévi-Strauss residiram no vilarejo de Camcabra, na antiga comuna de Vallerauge, departamento de Gard (para mais detalhes, ver Loyer, 2018).
  • 24
    Na versão original da carta, “Midi de la France”, termo que designa uma região no sul da França mediterrânica e atlântica.
  • Financiamento:
    Campus France (USP-COFECUB Uc Sh187/23) e Universidade de São Paulo (Edital 1634 - Programa USP-COFECUB).

Editado por

  • Editora-Chefe:
    María Elvira Díaz Benítez
  • Editor Adjunto:
    John Comeford
  • Editor Associado:
    Luiz Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2024
  • Aceito
    14 Out 2024
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