Resumo
O artigo oferece uma leitura das políticas de cotas após duas décadas da sua implementação autônoma em quase uma centena de universidades e após uma década de implementação da Lei de Cotas nas Universidades. Traz como perspectiva o valor antirracista na Antropologia, que deve estimular um engajamento maior dos antropólogos para a formulação de uma proposta ampliada das cotas, em duas dimensões: as cotas étnicas e raciais em todos os níveis e espaços acadêmicos; e as cotas epistêmicas como mecanismo de descolonização do currículo eurocêntrico nas universidades brasileiras. Para as cotas étnico-raciais, propõe dois modelos novos: as cotas de preferência e as cotas de indução ou busca ativa, ambas concebidas como um mecanismo de aceleração da inclusão de docentes negros e indígenas. Para as cotas epistêmicas, propõe o projeto “Encontro de Saberes”, de cotas na docência para os mestres e mestras dos saberes das comunidades indígenas e afro-brasileiras.
Palavras-chave:
Cotas étnico-raciais; Cotas epistêmicas; Encontro de Saberes; Antropologia antirracista.
Abstract
The article offers an interpretation of quota policies two decades after their implementation and one decade after Law of Quotas in Universities was passed. Its perspective is that of an anti-racist value in anthropology, one that should prompt anthropologists to commit to formulating a broad proposal for quotas along two dimensions: ethnic and racial quotas at all levels; and epistemic quotas as a mechanism for decolonization of the Eurocentric curriculum in Brazilian universities. For the ethnic and racial quotas, we offer two new models of affirmative action: quotas of preference and quotas based on active search, both conceived as a means to accelerate the inclusion of black and indigenous lecturers, considering the delay in overcoming ethnic and racial inequality in higher education. For the epistemic quotas we propose the Meeting of Knowledges project, designed to include Indigenous and Afro-Brazilian masters of knowledge as lectures in Higher Education.
Keywords:
Ethnic and racial quotas; Epistemic quotas; Meeting of Knowledges; Antiracist Anthropology
Resumen
El artículo ofrece una lectura de las políticas de cuotas después de dos décadas de su implementación autónoma en una centena de universidades y de una década de la Ley de Cuotas. Desde una perspectiva antirracista de la Antropología e intentando estimular un compromiso más profundo en los antropólogos, este trabajo formula una propuesta ampliada de cuotas, en dos dimensiones: cuotas étnicas y raciales en todos los niveles; y cuotas epistémicas, como un mecanismo de descolonización del currículo eurocéntrico en las universidades. Para las cuotas étnicas y raciales, proponemos dos nuevos modelos: preferencia y búsqueda activa, ambos concebidos para acelerar la inclusión de docentes negros e indígenas y superar la desigualdad étnica y racial en la educación superior. Para las cuotas epistémicas, proponemos el proyecto Encuentro de Saberes, concebido para incluir los sabedores y sabedoras de las comunidades indígenas y afrobrasileñas como docentes en las universidades.
Palabras Clave:
Cuotas étnicas y raciales; lucha antirracista; Encuentro de Saberes; Antropología antirracista**
Prólogo
O presente ano de 2022 marca uma dupla efeméride na já longa campanha das cotas nas universidades brasileiras: duas décadas desde que essa política foi iniciada em três universidades estaduais, a do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a do Norte Fluminense (UENF), e a do Estado da Bahia (UNEB), e em uma federal, a Universidade de Brasília, em 2003; e uma década de vigência da Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas, sancionada em agosto de 2012. Após dez anos, esta Lei deve passar por um processo de avaliação e revisão no Congresso Nacional. Este momento é propício, portanto, para uma reflexão sobre o que foi alcançado até agora e para projetar a continuidade e a expansão dos modelos de cotas e ações afirmativas. Vale lembrar, para a Antropologia como uma disciplina tanto teórica como aplicada, que a luta pelas cotas surgiu, e ainda se mantém, como uma posição engajada no interior da academia. Por um lado, a objetividade científica (ou neutralidade axiológica, como preferem alguns) deve orientar nosso olhar etnográfico e nossa análise dos dados; por outro lado, não podemos abandonar os nossos posicionamentos políticos, pois as cotas afetam diretamente o nosso padrão de convivência interétnica e inter-racial. Dito em outros termos, as cotas são um tema de reflexão e de intervenção no nosso próprio meio. O presente texto visa contribuir para um aperfeiçoamento destes dois lados do tema.
Apresento inicialmente uma síntese analítica da implementação das cotas ao longo de duas décadas para em seguida empreender um esforço propositivo que permita expandir o efeito inclusivo da Lei 12.711. Recupero o debate fundante dessa campanha, qual seja, a preferência pelas cotas raciais em face das cotas ditas sociais. Como veremos mais adiante, essa polarização é emblemática dos dilemas da posição antirracista na nossa academia. Apresento em seguida o quadro mais completo formulado até agora das modalidades de cotas e ações afirmativas. Dada a urgência de intensificar a inclusão de docentes negros e indígenas nas universidades, formulo dois tipos novos de ação afirmativa que ainda não fazem parte do leque de opções atualmente em debate, a saber: as cotas de preferência e as cotas por indução e busca ativa. Finalmente, teorizo também as cotas epistêmicas, que devem ser implementadas paralela e complementarmente às cotas étnicas e raciais, e ofereço a experiência do projeto “Encontro de Saberes”, iniciado também na UnB em 2010, como um caminho para a construção de um novo currículo pluriepistêmico e descolonizado. Confiamos que estas duas frentes de cotas possam finalmente promover a superação e a eliminação das bases eurocêntricas e coloniais das nossas universidades, as quais sustentam, em última instância, o imaginário excludente que alimenta a reprodução do racismo acadêmico.1 1 Iniciei meus argumentos para uma proposta de cotas há duas décadas, colocando o problema central do nosso racismo acadêmico (Carvalho 2001).
A questão das cotas diz respeito, obviamente, a todas as áreas acadêmicas. Indiretamente, porém, ela incide com grande força na Antropologia, por pelo menos duas razões. Primeiro, porque a Antropologia se colocou como tarefa, desde o final do século XIX quando se constituiu como uma disciplina autônoma, de compreender as bases ditas científicas da diversidade étnica e racial de todos os povos e comunidades do mundo, porém tratando essa diversidade como mero objeto de estudo. No momento presente, se queremos construir uma Antropologia antirracista, é imprescindível criar uma nova política de convivência inter-racial e interétnica no mundo acadêmico, e o que está em jogo é precisamente a política de cotas étnicas e raciais.
Se o debate das cotas iniciado na UnB em 1999 foi tenso, ele foi precedido e motivado por um conflito ainda muito mais tenso, ocorrido em 1998 justamente no Departamento de Antropologia como consequência da reprovação surpreendente e inaceitável de Arivaldo Lima, o primeiro aluno negro que havia conseguido ingressar no Doutorado, após mais de vinte anos de funcionamento do Programa. Pior ainda, ele foi o primeiro doutorando a ser reprovado naquela disciplina obrigatória. Por outro lado, o corpo docente da Antropologia da UnB era composto exclusivamente de pessoas brancas. Esse quadro conflitivo multidimensional configurou-se como uma crise racial de proporções inéditas no espaço acadêmico brasileiro (e ainda mais intensamente na Antropologia). Foi a crise institucional provocada pelas inúmeras revisões de menção da nota daquela disciplina obrigatória, conhecida como Caso Ari, que conduziu à formulação da proposta de cotas para negros e indígenas na UnB.2 2 Para uma história do debate das cotas na UnB, ver Siqueira (2004) e Carvalho (2006a).
Já existe uma literatura significativa sobre o Caso Ari. O próprio Arivaldo publicou um texto profundo e contundente sobre sua traumática passagem pela Antropologia da UnB, e nele colocou o problema da legitimação do intelectual negro na academia brasileira (Lima 2001LIMA, Ari. 2001. “A Legitimação do Intelectual Negro no Meio Acadêmico Brasileiro: Negação de Inferioridade, Confronto ou Assimilação Intelectual?”. Afro-Ásia, n. 25-26:281-312.). Entre outras leituras, destaco a de Carlos Henrique Siqueira, que descreve todo o episódio sob a ótica de um historiador, com a precisão das fontes e cronologia minuciosa do conflito (Siqueira 2004SIQUEIRA, Carlos Henrique. 2004. “O Processo de Implementação das Ações Afirmativas na Universidade de Brasília (1999-2004)”. O Público e o Privado (UECE), n. 3:165-188.); e a de Nelson Inocêncio Silva, professor de Artes da UnB e ativista do movimento negro, que lista a sequência de eventos de racismo, antes e durante o Caso Ari e ressalta o protagonismo da militância negra durante todo o processo (Silva 2021SILVA, Nelson Fernando Inocêncio. 2021. “Diversidade na Universidade de Brasília: Um Breve Mapeamento da Luta Negra”. Revista da ABPN, v. 13, n. 38:468-486. ).
O Caso Ari provocou uma crise na cúpula da Antropologia brasileira, pois esta cindiu entre os que se colocaram do lado de Arivaldo e os que ficaram do lado do Programa e/ou do professor. Essa mesma cisão foi replicada em escala nacional, nas posições de muitos antropólogos influentes, divididos entre os que se manifestaram publicamente a favor e os que foram contrários às cotas. Essa polarização intensa de posições pró e contra as cotas provocou uma fissura na nossa Antropologia que ainda influencia seu perfil singular quando comparado com os debates próprios da disciplina presentes nos demais países da América Latina, da África, e das demais regiões do Sul Global. O primeiro grande exemplo desse conflito intelectual e político foi plasmado no dossiê sobre cotas publicado pela Revista Horizontes Antropológicos (v. 11, n. 23, 2005), do qual participei. É possível considerar esta publicação como um documento histórico da nossa Antropologia, porque nela foi colocada de forma explícita, provavelmente pela primeira vez, a necessidade de uma postura antirracista que passe pela defesa das cotas. Esta posição foi rejeitada, naquele momento, pela maioria dos debatedores, porém a questão de ser ou não ser antirracista não foi mais descartada nem silenciada, pelo contrário, cresce até hoje. O segundo episódio, ainda mais marcante devido ao seu enorme impacto midiático, foi a produção de dois Manifestos contra as cotas, em 2006 e em 2008, encabeçados por antropólogos, os quais foram enfrentados por outros dois Manifestos a favor das cotas, também redigidos, sob minha organização, por um grupo de acadêmicos que incluíram antropólogos, também em 2006 e 2008.3 3 Eis os quatro Manifestos, na ordem cronológica de sua aparição: Manifesto Contra o PL das Cotas (2006), Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial (2006), Manifesto Contra as Cotas (2008) e Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas (2008), este transformado em livro na sua segunda edição: Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas (2009).
A epistemologia antirracista na Antropologia ultrapassa a construção da alteridade inerente à relação etnográfica que constituiu a disciplina desde Malinowski, pois agora o desafio não é mais (apenas) construir a melhor compreensão ou interpretação possível do outro, mas formular as bases de uma convivência harmoniosa e pacífica com todos os outros distintos, que não são mais objetos de representação, mas colegas (tanto os acadêmicos de formação como os mestres tradicionais) ou alunos com os quais partilhamos a mesma cidadania e o mesmo espaço acadêmico. Na medida em que nossas universidades foram constituídas na base da segregação e da exclusão étnica e racial, o primeiro passo de uma nova Antropologia, definida por sua marca antirracista, é superar o racismo acadêmico e intervir na direção de uma convivência interétnica e inter-racial plena em todas as instâncias e em todos os espaços sociais. Acreditamos que as cotas são um dos principais mecanismos para a construção dessa convivência.
O antropólogo britânico John Blacking, que me orientou no Mestrado e no Doutorado na Universidade de Queen’s de Belfast, havia sido catedrático de Antropologia na Universidade de Witwatersrand em Johannesburg e foi expulso da África do Sul por suas atividades contra o apartheid. Vítima da polícia política do regime, foi condenado pela Lei dos Atos Imorais do apartheid que impedia relacionamentos amorosos entre pessoas de “raças” distintas (no caso entre um homem branco e uma mulher indiana). O fato escandaloso tornou-se o famoso Caso John Blacking (1991)BLACKING, John. 1991. “John Blacking: An Interview Conducted and Edited by Keith Howard”. Ethnomusicology, v. 35, n.1:55-76, Winter..4 4 Para uma descrição desse escândalo político disfarçado de sexual, ver Gaviglio e Raye (1976). O Caso é citado também em Niehaus (2013). John citava com frequência o provérbio do Ubuntu, assim expresso na língua zulu: Umuntu Ngumuntu Ngabantu. Na sua tradução: “O ser humano é um ser humano por causa dos outros seres humanos”; ou dito de forma curta: “Eu sou porque nós somos.”. Contra a separação radical do apartheid, com sua negação feroz da convivência inter-racial, afirmava-se a igualdade radical e a interdependência de todos os seres humanos.
A postura de um universalismo da espécie humana contra uma afirmação da diferença entre as raças humanas como mecanismo de enfrentamento do apartheid passou a ser uma forte marca da Antropologia da África do Sul, com um viés nitidamente antirracista. Esse viés antirracista foi materializado politicamente com toda a força na luta pela permanência de Archie Mafeje na Universidade do Cabo em 1968.5 5 Sobre o pensamento militante e antirracista de Mafeje e sua “ontologia combativa”, ver Borges, Costa, Couto, Cirne, Abreu e Lima, Viana e Paterniani (2015). Sobre o Caso Mafeje, que conta com uma vasta literatura, ver Hendricks (2008) e Ntsebeza (2014). Sobre a sua postura de descolonização da Antropologia, ver Mafeje (2001). O chamado Caso Mafeje, um marco na história da Antropologia e da academia sul-africana em geral, eclodiu em 1968, quando ele foi aprovado em primeiro lugar em um concurso para professor de Antropologia na Universidade do Cabo (UCT), e após todos os trâmites concluídos, a Universidade se recusou a contratá-lo para obedecer às leis do regime do apartheid, que impedia a presença de africanos nas universidades brancas, como era a Universidade do Cabo. A recusa a Mafeje levou a uma onda de protestos que culminou com a ocupação da UCT por centenas de alunos, que pararam a instituição totalmente por nove dias. Impedido de ser professor, Mafeje deixou a África do Sul em 1968 e somente regressou ao seu país no ano 2000.
Ao ser banido da África do Sul em 1969, John levou essa bandeira antirracista para Belfast, onde recebia estudantes africanos de vários países da África, especialmente da África anglófona.6 6 John Blacking mencionou o seu apoio a Mafeje a partir da sua cátedra em Witwatersrand, o que contribuiu para seu banimento da África do Sul (Blacking 1991). Naqueles anos, o Departamento de Antropologia de Queen’s tornou-se um dos postos avançados da luta contra o apartheid na Europa. Foi neste ambiente que me formei como antropólogo, assimilando essa disciplina e a sua prática correlata como uma área de conhecimento que se constituía, na versão professada por Blacking, no enfrentamento ao racismo.
Essa mesma linha universalista, centrada na igualdade da raça humana, foi também eficaz nos EUA no combate ao racismo, promovida com vigor por Franz Boas, e também na luta pelos direitos civis nos anos 60 do século passado contra a segregação racial. Boas deixou o legado de uma postura engajada na luta antirracista concebida de um modo integrado: formulou uma pedagogia contra o racismo nas escolas, dialogou intensamente com os movimentos negros e seus intelectuais, como Du Bois, e chegou a propor a criação de um Instituto Africano nos EUA como um instrumento de pedagogia política para mudar a atitude racista dos brancos estadunidenses (Boas 1999BOAS, Franz. 1999. A Formação da Antropologia Americana 1883-1911. Org. por George W. Stocking Jr. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora UFRJ. ). A visão antirracista de Boas foi retomada recentemente, após décadas de um relativo esquecimento (Baker 2020BAKER, Lee D. 2020. “The Racist Anti-Racism of American Anthropology”. Transforming Anthropology, v. 29, n. 2:127-142.). Paralelamente, a discussão do antirracismo na Antropologia estadunidense como um todo está sendo retomada na presente geração (Mullins 2005MULLINS, Leith. 2005. “Interrogating Racism: Toward an Antiracist Anthropology”. Annual Review of Anthropology, v. 34:667-693. ).
Nos dois casos do racismo anglófono, África do Sul e EUA, a prova dos nove colocada pelos acadêmicos ativistas seria a capacidade das instituições de aceitar a convivência inter-racial nos seus espaços próprios - obviamente, projetando essa convivência para todos os espaços públicos e privados, promovendo as relações e os casamentos inter-raciais. Apesar da enorme influência da Antropologia estadunidense no Brasil, a Antropologia brasileira que se tornou hegemônica a partir dos anos 60 do século passado não colocou o teste da convivência inter-racial como afirmação do antirracismo. Como resposta ao racismo eugenista da primeira metade do século XX, ela seguiu o argumento da mestiçagem e da democracia racial formulado nos anos 30 e 40.7 7 Essa mestiçagem foi fantasiada tanto pelos anglos quanto por muitos acadêmicos brasileiros brancos, tais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta. Sobre a dimensão encobridora da ideologia da mestiçagem no Brasil, ver Munanga (2019). Sobre o contraste entre o preconceito de origem e o preconceito de marca, ver Nogueira (1985).
Por outro lado, a defesa de uma atitude antirracista foi colocada explicitamente por Arthur Ramos, que foi um dos formuladores do Manifesto dos Intelectuais Brasileiros contra o Preconceito Racial, de 1935, publicado no seu livro (Ramos 1943MANIFESTO DOS INTELECTUAIS BRASILEIROS CONTRA O PRECONCEITO RACIAL. 1943. In: Arthur Ramos, Guerra e Relações de Raça. Rio de Janeiro: Departamento Editorial da União Nacional dos Estudantes. pp. 171-174.).8 8 Assinaram o Manifesto: Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Roquette Pinto, Hermes Lima, Inácio do Amaral, Maurício de Medeiros, Joaquim Pimenta, Queiroz Lima, Castro Rebello, Leonildes de Rezende, Victor Vianna e Azevedo Amaral. Essa consciência inicial da luta contra o racismo como constitutiva da Antropologia no Brasil foi infelizmente silenciada quando da sua consolidação acadêmica três décadas depois. Igualmente contundente foi o Manifesto da Sociedade Brasileira de Antropologia e EtnologiaMANIFESTO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA. 1943. In: Arthur Ramos, Guerra e Relações de Raça. Rio de Janeiro: Departamento Editorial da União Nacional dos Estudantes . pp. 177-180., também organizado por Ramos em agosto de 1942. A postura do Manifesto, expressão política e científica da instituição que ele havia fundado um ano antes, é explicitamente antinazista, critica o racismo científico europeu que já havia se instalado no Brasil, defende a mestiçagem brasileira como “laboratório de civilização” e conclama a nossa nascente Antropologia para reagir contra a discriminação racial (Ramos 1943:177-180RAMOS, Arthur. 1943. Guerra e Relações de Raça. Rio de Janeiro: Departamento Editorial da União Nacional dos Estudantes .).
Com aqueles Manifestos, retomamos a postura política da Antropologia brasileira que era presente na primeira tentativa de sua institucionalização. Trata-se agora de propor um novo paradigma antirracista oitenta anos depois. Uma das tarefas é ressignificar o que seja o antirracismo hoje, que não é mais centrado no combate ao racismo científico, concebido no séc. XIX por figuras como o Conde De Gobineau. De fato, a violência que excluiu os negros da universidade até agora não se deveu tanto a uma teoria científica de hierarquia racial de tipo nazista, mas ao racismo fenotípico, exercitado o tempo todo pelos brancos (inclusive docentes) apesar da realidade da mestiçagem, tão celebrada por Ramos e os demais autores dos Manifestos.9 9 Teorizei o racismo fenotípico em Carvalho (2008).
Como coloco no final deste artigo, vamos agora ampliar a linha antirracista posta primordialmente por Arthur Ramos, porém a ela incorporando as trajetórias antirracistas de autores negros eminentes como Abdias do Nascimento (2019NASCIMENTO, Abdias. 2019. O Quilombismo: Documentos de uma militância Pan-Africanista. São Paulo: Perspectiva.), Alberto Guerreiro Ramos (1995)GUERREIRO RAMOS, Alberto. 1995. “Patologia Social do ‘Branco’ Brasileiro”. In: GUERREIRO RAMOS, Alberto, Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. pp. 215-240.Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Edison Carneiro (2021CARNEIRO, Edison. 2021. Ladinos e Crioulos. São Paulo: Folha.), Lélia Gonzalez (1984GONZALEZ, Lélia. 1984. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, p. 223-244, ANPOCS. ), Beatriz Nascimento (2007)NASCIMENTO, Beatriz. 2007. Eu Sou Atlântica. São Paulo: Instituto Kuanza. e tantos outros. Como tentarei desenvolver aqui, cabe à Antropologia brasileira de hoje assumir o enfrentamento, teórico e prático, desse racismo fenotípico. O Caso Ari, diga-se de passagem, presentificou o racismo fenotípico que nunca havia sido combatido na nossa academia, e nem na nossa comunidade antropológica. A campanha pelas cotas é a atualização do antirracismo antropológico para o momento atual.
Esse racismo antropológico pouco questionado, sabemos agora, remonta às origens da disciplina, tendo sido plasmado num outro caso escandaloso que ainda exige uma devida reparação por parte dos antropólogos dos países centrais: o Caso Anténor Firmin. Se a reprovação de Ari em 1998 foi emblemática da barreira racial de entrada em um programa de doutorado que funcionava com um padrão de exclusão racial absoluta, o haitiano Anténor Firmin foi o primeiro antropólogo a desmontar deveras cientificamente o falso “racismo científico” de Gobineau. Inexplicavelmente, sua obra magistral, A Igualdade das Raças Humanas, publicada em Paris em 1885, foi totalmente silenciada por mais de um século, tendo sido jamais citada em nenhuma obra de referência conhecida da Antropologia acadêmica internacional. Foi traduzida para o inglês apenas em 2002, e para o espanhol em 2013, em uma edição cubana (Firmin 2013FIRMIN, Anténor. 2013. Igualdad de las Razas Humanas. Antropología Positiva. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales.); e a segunda edição do original francês somente em 2016, e ainda sem qualquer apresentação ou contextualização histórica! Ou seja, Firmin, o antropólogo negro que propôs o antirracismo como a marca fundante da Antropologia, foi silenciado totalmente pela comunidade de antropólogos franceses, ingleses e estadunidenses, quase todos brancos, durante todo o século vinte. Devemos colocar Anténor Firmin como uma referência primordial da Antropologia antirracista brasileira.
Sintetizando, vale ressaltar que esse contexto antropológico internacional deve inspirar-nos para aprofundar a leitura dos Manifestos contra e a favor das cotas e tentar entender como vários de nossos colegas antropólogos lançaram mão dos mesmos argumentos antirracistas formulados por Anténor Firmin, Franz Boas, John Blacking e Archie Mafeje, entre outros, para justificar sua reação contrária às políticas de cotas para negros nas universidades!
Das conquistas atuais à ampliação das políticas
Desde o início, a campanha pelas cotas tem sido desenvolvida através de uma série de ações separadas, compartimentalizadas e até estanques. Entre essas frentes de atuação estiveram: a luta pelas cotas na graduação; esforços para a implementação da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira, e da Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino da Cultura Indígena; debates para a superação do currículo eurocêntrico dos cursos e das disciplinas; articulações para apoiar a permanência dos estudantes cotistas com bolsas; negociações de abertura de vagas para a contratação de docentes negros; instalação de comissões de heteroidentificação complementares à autodeclaração étnico-racial dos/as estudantes (tanto de verificação como de validação); sindicância para o enfrentamento das fraudes nas cotas; e a partir de 2012, acompanhamento e avaliação de implementação da Lei 12.711.
Esta compartimentalização das ações seguiu um caminho distinto daquele proposto por Abdias do Nascimento em 1983NASCIMENTO, Abdias. 1983. Projeto de Lei 1332, Protocolado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados pelo Deputado Abdias do Nascimento. 55 pp., por meio do Projeto de Lei nº 1332, o qual apresentava um programa integrado de ações afirmativas. Tratava-se de uma “ação compensatória, visando à implementação do princípio da isonomia social do negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira.” (Nascimento 1983NASCIMENTO, Abdias. 1983. Projeto de Lei 1332, Protocolado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados pelo Deputado Abdias do Nascimento. 55 pp.).10 10 Abdias retomava em 1983 a primeira proposta de ações afirmativas formulada no Brasil em 1948, no primeiro número do jornal Quilombo, por ele dirigido (Nascimento 2003). O ponto 3 do Programa do jornal, anunciado na página 3, dizia: “Lutar para que, enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais do ensino secundário e superior, inclusive nos estabelecimentos militares”. Cônscio das consequências do processo histórico de escravização e fervoroso combatente do racismo, a proposta de Abdias era revolucionária e estruturante, pois propunha incidir em três dimensões fundamentais: na educação, no tratamento policial e nas oportunidades no mercado de trabalho e remuneração. Infelizmente, o seu visionário Projeto passou pela Comissão de Justiça, porém nunca chegou a ser colocado em votação no Plenário da Câmara dos Deputados e caiu no esquecimento, sendo retomado pela nossa frente pelas cotas apenas nos últimos anos.
O momento presente, de movimentação para a revisão e/ou continuidade da Lei de Cotas, apresenta-se propício para invocar a grande visão de Abdias do Nascimento e formular uma política integrada de ações afirmativas, e também para colocar uma das suas modalidades de implementação, a saber, o sistema de cotas (que infelizmente ficou ausente do Projeto de Abdias), como um valor básico e estruturante para todas as instituições do Estado, especialmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012, que julgou o sistema de cotas constitucional.11 11 Para uma análise quantitativa e qualitativa dos impactos atuais das políticas de cotas nas IFES, ver Santana, Meireles e Carvalho (2019) e Santana, Meireles, Carvalho e Nacif (2021).
Desde o início das nossas universidades, nas primeiras décadas do século passado, o mesmo segmento branco de classe média e alta foi crescendo nas instituições de ensino e pesquisa, e todos os cargos de maior poder, prestígio e remuneração do Estado foram sendo ocupados por esse mesmo segmento branco. Como resultado, temos hoje uma situação similar à da África do Sul nos dias do apartheid em todas as áreas do topo do poder decisório da República e também no topo do mundo privado. Essa desigualdade estrutural e crônica foi naturalizada no embate político enfrentado durante a campanha pelas cotas, a qual se restringiu, na primeira década deste século, exclusivamente à graduação.
Nestes termos, a implementação desta política foi unidimensional e monocausal: interveio apenas na base da pirâmide acadêmica, o que limitou o ritmo inclusivo capaz de garantir a igualdade racial, jogando-a para um futuro distante, porém praticamente inalcançável durante o presente século. Quanto à Lei 12.990/14 que reserva 20% de cotas para candidatos negros nos concursos para o serviço público, ela opera de um modo exatamente similar, projetando a igualdade racial entre os servidores do Estado para várias gerações adiante. Como a maioria dos cargos diretivos e de salários mais altos é de confiança, eles tenderão, inevitavelmente, a reproduzir a rede de pessoas brancas no topo do poder; e aos negros restarão os cargos básicos em todas as carreiras, e ainda assim em uma posição minoritária demograficamente, pois existe uma grande probabilidade de que sua inclusão seja apenas um pouco maior do que os 20% previstos na Lei.
Cotas raciais ou cotas sociais: duas décadas de visões opostas da política antirracista
Após vinte anos, não chegamos ao fundo do debate que contrapôs as cotas de baixa renda às cotas para negros surgido desde os primeiros anos da campanha pelas cotas. A proposta de dividir os negros em pobres e não pobres, e mesmo sabendo que 50% da população negra vivem com um salário-mínimo, merece uma justificativa mais consistente que as formuladas até o presente momento. Da defesa das cotas apenas para estudantes de baixa renda, depreende-se que só tem direito à reparação os jovens negros de famílias pobres; por outro lado, os de famílias de classe média, os que podemos chamar de economicamente moderados, terão que competir com os brancos de classe média, e média alta e ricos. Se sairmos da perspectiva brasileira para uma perspectiva internacional, essa cisão no interior da comunidade negra fica ainda menos compreensível porque ela não existiu no modelo de ação afirmativa para negros nos EUA; não existiu no modelo de reserva de vagas para os dalits da Índia; não existiu no modelo de cotas para os malaios na Malásia; e não existiu no modelo de cotas para os africanos na África do Sul.12 12 Para o sistema de ações afirmativas nos Estados Unidos e na África do Sul, ver Featherman, Hall e Krislov (2010) e Arday e Mirza (2018); para o sistema de cotas (por reserva) da Índia, ver Ambedkar (2002, 2008); para o sistema de cotas na Malásia, ver Guan (2005). Para uma análise das políticas de cotas, ver Carvalho (2016a).
Vista em uma perspectiva temporal mais ampla, que não separe o presente da comunidade negra dos três séculos de escravidão e do século vinte de racismo, essa exclusão dos negros não pobres pode ser entendida como a continuidade de um horizonte racista profundamente arraigado no inconsciente social brasileiro, mesmo com os benefícios trazidos pelas subcotas. Este modelo teve uma influência maior que o das cotas irrestritas para negros da Universidade de Brasília, aprovada em 2003, apesar (ou justamente em consequência) de não apresentar uma ruptura radical com a prática histórica de exclusão racial nas universidades brasileiras.
No momento em que se aprova uma lei que favorece a entrada de negros na universidade em uma escala ampla e sem precedentes, seus formuladores excluem, sem uma justificativa antirracista consistente, parte significativa dos estudantes negros. Outro ponto a ser considerado em uma futura revisão da lei, será a articulação com o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), de modo que para cada vaga de cotas deve haver garantia de bolsa e demais apoios de permanência para cada cotista.
O mesmo raciocínio é válido para a condição de negro egresso de escola pública. O não dito dessa regra de exclusão dos negros egressos de escola privada é que eles não precisam ser apoiados, como se a mera condição de renda da família negra capaz de pagar uma escola privada para seus filhos já garantisse paridade de concorrência leal com os candidatos brancos. Podemos concluir que tanto no modelo de inclusão racial por subcotas de baixa renda como no modelo de subcotas de escola pública está embutida uma dimensão parcial de exclusão racial.
Como ao longo do século passado houve uma mínima ascensão de classe, as cotas irrestritas teriam potencializado o pequeno ganho conquistado pela comunidade negra e favorecido uma ascensão a cargos mais próximos do poder decisório sobre os destinos da nação. Uma análise detalhada dessa ascensão da classe trabalhadora nos anos 70 (e seu respectivo segmento negro) foi realizada por Carlos Hasenbalg e Lélia Gonzalez (1982GONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos. 1982. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero.).
Dito de outro modo, o modelo de subcotas não tratou de intensificar a nascente ascensão social da população negra, mas de promover um recomeço parcial da situação tal como se encontrava um século atrás. Dada a escassez do número de vagas oferecido nas universidades, 20% delas garantem a entrada de um contingente ainda muito pequeno de negros, razão para que não se restrinjam a candidatura de nenhum deles. Esta seria a fundamentação de um modelo pleno de cotas antirracistas.
Devemos ponderar também a rapidez do movimento de reação às cotas. Em setembro de 2001, o projeto de cotas da UnB foi matéria do Jornal Nacional da TV Globo, alcançando projeção nacional. Menos de três meses depois surgiu a proposta da UERJ e, no início de 2002, a proposta da UNEB, e ambas retiraram a precedência das cotas raciais. Como não havia então nenhum antecedente de debate público acerca de cotas para baixa renda ou para escola pública, é plausível supor que estas surgiram como uma alternativa política às cotas irrestritas para negros. Na medida em que ativistas, acadêmicos e intelectuais negros estiveram envolvidos na formulação das propostas fluminense e baiana, a mudança de prioridade e a consequente redução do impacto racial das cotas nessas três universidades ainda carecem de uma compreensão mais detalhada.
Enfatizamos a guinada das cotas raciais para as cotas sociais logo nos dois primeiros anos da luta porque estas se generalizaram pelo país afora e serviram de referência para a Lei 12. 711, a qual abandonou as cotas raciais irrestritas e decretou um modelo de subcotas para os estudantes negros.13 13 Ofereci uma análise crítica detalhada do modelo lógico e da métrica do modelo de cotas da Lei 12.711 em Carvalho (2016b).
Duas obras recentes corroboram nossa crítica ao abandono das cotas raciais no modelo da Lei 12.711. Lívia Sant’Anna Vaz utiliza o mesmo conceito de subcotas, deixando claro o seu efeito diluidor do antirracismo pleno: “Uma análise mais cuidadosa do texto da lei nos permite afirmar que, na realidade, as cotas raciais para ingresso no ensino superior são subcotas sociais” (Vaz 2022:103-104VAZ, Lívia Sant’Anna. 2022. Cotas Raciais. São Paulo: Jandaíra.). E mais: “O sistema de cotas, implementado no Brasil graças ao empenho e à luta antirracista dos movimento negros - que propuseram tais mecanismo com o objetivo de reduzir as desigualdades raciais -, acaba por ser descaracterizado pela desracialização, o que reduz significativamente sua acuidade e efetividade no enfrentamento ao racismo” (:106). Mário Theodoro também desenvolve uma crítica similar à redução das cotas raciais à condição de subcotas:
Trata-se de uma visão não apenas equivocada, mas racista, na medida em que tenta eliminar o critério raça como elemento fulcral da política. Não por acaso, foi no momento em que as cotas pretenderam muito justamente focalizar a população negra - e seria a primeira vez na história no Brasil que uma política governamental viria a favorecer especificamente a população negra - que houve uma imediata preocupação com o branco pobre por parte dos adeptos do discurso contra as cotas (Theodoro 2022THEODORO, Mário. 2022. A Sociedade Desigual. Racismo e Branquitude na Formação do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. :228).
Optando por trilhar o caminho exatamente inverso, e consistente com uma epistemologia antirracista na Antropologia, nossa proposta é expandir e aprofundar as cotas raciais para a totalidade do espaço profissional acadêmico em todos os seus segmentos e instâncias, de modo a generalizar o valor antirracista e não permitir mais que em qualquer âmbito profissional o segmento branco possa atuar protegido ou exclusivo, deixando algum segmento da comunidade negra em situação de desvantagem, subsunção ou segregação.
Antirracismo como base das ações afirmativas
Devemos também aprofundar o sentido da construção da cidadania multirracial implícito na Lei 12.990/2014 de cotas para o serviço público. Se quisermos transformar o Brasil em uma sociedade de cidadania plena para todos, multirracial, multiétnica e verdadeiramente diversa em nações, povos, comunidades e segmentos populares, será preciso que as provas de ingresso na carreira de servidor público incluam questões que avaliem um conhecimento básico acerca da diversidade étnica e racial do país e um domínio igualmente básico dos valores, saberes e visões de mundo das nações indígenas e das comunidades afro-brasileiras.
Na medida em que as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) preparam os professores que ensinarão os materiais didáticos acerca da História da África, da Cultura Afro-Brasileira e da Cultura Indígena, conforme determinam as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, espera-se, portanto, que os candidatos a servidores públicos demonstrem conhecimento da complexidade e da riqueza étnica e racial da sociedade brasileira. Além dos conteúdos destas duas leis, os concursos devem refletir a diversidade racial, de classe e gênero na composição das bancas de seleção e incluir questões que avaliem o conhecimento dos candidatos acerca dos aspectos do racismo brasileiro e das estratégias e políticas antirracistas. Coerente com a implementação da legislação mencionada acima, o Estado deve explicitar a mudança profunda que todas as leis supracitadas propõem e afirmar uma ética antirracista, a ser assumida em todos os três níveis da administração pública.
Por razões idênticas, é preciso que os concursos para professores e técnicos administrativos nas IFES, em todas as áreas, incluam uma avaliação do conhecimento dos candidatos acerca das políticas de cotas e dos valores antirracistas que deverão nortear um novo convívio acadêmico, ou seja, para além das cotas (e junto com elas), esperamos que os docentes e os técnicos das IFES adquiram consciência de que fazem parte de uma instituição pública pautada pelo valor da igualdade racial e da convivência antirracista (e também antissexista, anti-homofóbica, obviamente).
Outro aspecto que exige especial atenção neste momento de concepção de um novo e mais amplo Plano de Metas para a construção da igualdade racial no Brasil: a baixa presença de docentes negros nas IFES e de pesquisadores negros nas instituições de pesquisa. Estudos recentes realizados pela equipe do INCT de Inclusão revelam que as vagas abertas para concursos nas IFES têm sido oferecidas de um modo pulverizado, e por isso têm incluído um número de docentes negros muito abaixo dos 20% esperados (de fato, sua inclusão tem ficado até agora em torno de 5%). Conforme concluem Mello e Rezende no seu exaustivo estudo sobre os concursos para docentes na IFES, os resultados são estarrecedores:
Com base nos dados sistematizados, a constatação mais relevante a destacar é que os concursos para a carreira de magistério superior das universidades federais estão longe de atingir os objetivos da ação afirmativa materializada na Lei n.º 12.990/2014, haja vista que das 15.055 vagas identificadas, apenas 742 foram reservadas para negras/os (2019:177MELLO, Luiz & REZENDE, Ubiratan Pereira de. 2019. Concursos Públicos para Docentes de Universidades Federais na Perspectiva da Lei 12.990/204: Desafios à Reserva de Vagas para Candidata/os Negra/os. Revista Sociedade e Estado, v. 34, n. 1:161-184, jan./abr. ).
Observemos que se as universidades tivessem maximizado de fato as vagas dos concursos, teríamos incluído pelo menos mais 3.110 docentes negros (20% de 15.055). Aqui será preciso invocar com firmeza as ações afirmativas como um valor estruturante da nação e lançar mão, paralelo ao sistema de cotas previsto na Lei 12.990/2014, dos sistemas de preferência e de busca ativa, que são ainda mais amplos e mais proativos: se as IFES querem de fato diminuir a desigualdade racial no seu quadro docente, deverão exercer sua autonomia e estabelecer preferência de contratação de candidatos negros aprovados em concursos de uma ou duas vagas, independente da sua classificação, ou seja, elas não precisam e não devem esperar acumular três vagas para um concurso. Se são deveras antirracistas, têm o dever de aproveitar cada oportunidade de contratar professores negros e indígenas. Detalharemos mais abaixo os sistemas de preferência e busca ativa.
Há que se propor, assim, uma articulação ampla de posições antirracistas pela igualdade racial e pela diversidade epistêmica: os docentes se colocarão como engajados nessas posições e as IFES também se posicionarão em favor e em defesa desses avanços, como um valor institucional de cada uma delas. Por enquanto, muitas IFES implementam as cotas simplesmente porque é uma lei a ser cumprida; e muitas administrações nem sequer colocam o que pensam dessa lei: simplesmente a implementam sem compromisso e/ou convicção da sua importância para a construção de um país democrático.14 14 Cf. Mello e Rezende (2019), muitas IFES ainda desrespeitam determinações do STF relativas à fiscalização e/ou ao controle social das cotas étnico-raciais determinadas pela referida Lei.
A propósito: não conhecemos site oficial de nenhuma universidade brasileira onde se possa ler claramente “esta é uma instituição pautada por política antirracista e com um compromisso aberto de se dirigir para uma situação de igualdade étnica e racial na composição dos seus três segmentos: docente, discente e técnico-administrativo”. Devemos neste momento demandar este tipo de declaração das Reitorias, porque dela emergirá mais facilmente uma disposição para tratar as cotas e as demais políticas de ação afirmativa de forma integrada, a saber: cotas na graduação; cotas nas especializações e no mestrado; cotas no doutorado; cotas nas bolsas de iniciação científica e extensão, de mestrado, de doutorado e de pós-doutorado; cotas nos cargos internos de representação acadêmica e de gestão universitária (pró-reitorias, diretorias, representações docentes, discentes e de técnicos nos Conselhos, Comissões etc.); cotas na docência, assumindo o compromisso de não fatiá-las em concursos de apenas uma ou duas vagas, mas de aplicar a porcentagem de 20% presente na Lei 12.990/2014 sobre o total de vagas disponíveis a serem preenchidas, antes de decidir em que unidades acadêmicas elas serão alocadas; paralelamente, aplicar os sistemas de preferência e de busca ativa; e estabelecimento das Comissões de Verificação Étnico-Racial e Sindicância no caso de fraudes nas cotas.
Em sintonia com todas as ações descritas acima, uma política completa conducente à igualdade racial e à eliminação do racismo deve ser capaz de integrar as Leis 10.639/2003, 11.645/2008, 12.711/2012, 12.990/2014, a Portaria Capes 13/2016 (que dispõe sobre a indução de Ações Afirmativas na Pós-Graduação) e o Decreto 9427/2018 (que reserva aos negros trinta por cento das vagas oferecidas nas seleções para estágio no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional), enfatizando que toda essa legislação está de acordo com o espírito da Lei 12.288/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância, e da legislação antirracista brasileira como um todo. Além disso, tal política estruturante passa necessariamente por uma reformulação do currículo, em todos os níveis, de modo a descolonizar as suas bases eurocêntricas absolutamente arraigadas nas nossas IFES. Assim como a desigualdade racial vem sendo superada pela política de cotas raciais, o currículo colonizado que reproduz o racismo e a desigualdade epistêmica somente será superado com uma política de cotas epistêmicas, tal como descritas abaixo.
Modalidades de cotas e ações afirmativas
Eis uma síntese dos tipos de cotas criados no Brasil nas últimas duas décadas.
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1.
Cotas - Uma porcentagem precisa de vagas é reservada para candidatos negros. O primeiro exemplo brasileiro foi o sistema de cotas da Universidade Brasília, formulado em 1999 e aprovado em 2003, que reservava 20% das vagas oferecidas para candidatos negros independente de terem estudado em escola pública ou privada, e independente também de sua faixa de renda.
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2.
Subcotas - São cotas no interior de outras cotas consideradas prioritárias, ou referenciais da política de inclusão, a saber: uma porcentagem de vagas é reservada para candidatos oriundos de escola pública e/ou de baixa renda e no interior dessas cotas são reservadas subcotas para negros e indígenas. Em contraste com as subcotas, podemos denominar analiticamente as cotas para negros aprovadas na UnB em 2003 de cotas raciais irrestritas.
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3.
Bônus - Um número adicional de pontos é acrescentado à nota dos candidatos beneficiados. À diferença do sistema de cotas, que garante matematicamente a inclusão de um determinado número de candidatos, o sistema de bônus é incerto quanto ao número de estudantes que poderão entrar, pois a inclusão efetiva dependerá da nota de corte alcançada pelos aprovados em cada vestibular ou processo seletivo equivalente.
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As políticas de ação afirmativas dos Estados Unidos (e que foram reduzidas drasticamente nas últimas décadas) são basicamente um sistema de bonificação, que pontuam diversos atributos do candidato: a identidade étnica ou racial do candidato; o seu padrão de renda; a sua descendência de algum ex-aluno da mesma instituição; a sua residência no mesmo estado onde está localizada a universidade; e as suas habilidades destacadas nos esportes. Assim, nos Estados Unidos, a condição racial é sempre um bônus entre vários, enquanto Brasil ele é atribuído a um candidato especificamente por ser negro.
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4.
Vagas - Um número exato de vagas é atribuído aos beneficiados. Assim como as cotas, as vagas permitem a quantificação do número de candidatos que deverão ser incluídos. O modelo inicial da UnB reservou 10 vagas para indígenas para cada vestibular, ao lado dos 20% de cotas para negros. As vagas extras, sobrevagas ou supranumerárias somente são abertas quando surge uma demanda específica de aprovados para elas. São estes os modelos com que temos operado até o presente momento. Contudo, a enorme desigualdade racial na docência superior demanda novos modelos que operem na urgência, sem se submeterem apenas às situações previstas na Lei 12.990/2014, que só pode ser aplicada para concursos com um mínimo de três vagas, exigência que dificilmente se encaixa na dinâmica pulverizada dos concursos nas universidades. Eis os novos modelos pensados para reduzir mais rapidamente a desigualdade étnica e racial na docência.
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5.
Sistema de preferência - Formulei o sistema de preferência ainda em 2003, meses após a aprovação do sistema de cotas na graduação da UnB. A porcentagem de 20% fez sentido para a inclusão de um contingente expressivo de jovens negros. Contudo, quando equacionei a luta pela inclusão de negros nas carreiras de docentes universitários e de pesquisadores do CNPq, a oferta muito menor de vagas suscitou a conceituação de um modelo de ação afirmativa mais adequado a essa realidade, em que muitas vezes é ofertada apenas uma vaga. Nesses casos em que não se aplicam as cotas como percentual, a política de inclusão deve ser o critério de preferência.
A ideia de compensação e preferência poderá chocar com crenças e convicções, escassamente discutidas e nem sempre trazidas à consciência, acerca do que entendemos como mérito e qualificação, e nós docentes brancos teremos que reconhecer que também escolhemos candidatos na base da preferência - e em muitas situações de banca as diferenças entre os candidatos são irredutíveis à pontuação e a decisão final é feita na base da “política acadêmica”, termo impreciso que certamente não se confunde com meritocracia: o “perfil” para um corpo docente inclui critérios de classe, “etiqueta” social, interesses de composição de grupos e até mesmo contribuição do candidato ao tipo de capital simbólico que a unidade acadêmica que o absorve optou por acumular. Apesar de tantas preferências exercitadas, a questão é que até agora ninguém nunca preferiu negros. E vamos ter que aprender a preferi-los. Ou seja, vamos ter que ser ativamente antirracistas (Carvalho 2003CARVALHO, José Jorge. 2003. “Ações Afirmativas para Negros na Pós-Graduação, nas Bolsas de Pesquisa e nos Concursos para Professores Universitários como Resposta ao Racismo Acadêmico”. In: Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva & Valter Roberto Silvério (orgs.), Educação e Ações Afirmativas. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira. pp. 161-192. :188).
Todavia, ainda que esse sistema tenha sido conceituado em 2003,15 15 Reelaborei o sistema de preferência em Carvalho (2006b). somente foi possível defendê-lo com maior orientação prática onze anos depois, após a aprovação da Lei 12.990, de 2014, que reserva 20% das vagas para concursos no serviço público. Dada esta característica percentual, só é possível aplicar o critério de cotas decretado pela Lei no caso dos concursos em que são ofertadas um mínimo de três vagas: 20% de três sendo 0,6, arredonda-se para um e temos que em todo concurso com três vagas, uma delas será reservada para negros. Sucede que, na maioria das vezes, as universidades pulverizam seus editais para ofertar uma única vaga, e com menor frequência para duas vagas, inviabilizando assim (intencionalmente ou não) a aplicação do sistema de cotas percentuais decretado por essa Lei.
O princípio de preferência é compatível com o mecanismo de cotas percentuais e também com o de reserva de vagas. São dois motivos básicos que justificam sua utilização. Em primeiro lugar, dada a baixa presença de docentes negros e indígenas nas nossas universidades atualmente, é preciso aplicar o princípio geral de preferência: em qualquer concurso da instituição em que se abra uma ou se abram duas vagas, válido para todas as áreas e todas as unidades acadêmicas, haverá preferência para os candidatos negros e indígenas que se candidatarem e que forem aprovados, independente de sua colocação no certame em face dos candidatos brancos.
Além da preferência geral, postulamos também o princípio da preferência específica, apropriado para concursos abertos para áreas acadêmicas ligadas mais diretamente às epistemes afro-brasileiras ou indígenas em que a presença de acadêmicos destes dois grupos seja considerada essencial, insubstituível ou imprescindível. Essa preferência específica exige muitas vezes realizar uma tarefa de indução ou busca ativa de candidatos.
A preferência, geral ou específica, pode ser entendida também como uma ação de contenção ou suspensão consciente da reprodução do grau profundo de desigualdade racial vigente nos nossos colegiados. Por exemplo, aqueles colegiados que têm a totalidade ou a maioria absoluta de professores brancos devem usar o modelo de preferência como uma contenção contra a reprodução da sua brancura e para dar início à reversão da exclusão racial que naturalizaram até agora.
6. Sistema de indução e busca ativa - Derivada da preferência, propomos mais um modelo de ação afirmativa que ainda não utilizamos: a indução, ou busca ativa. Se a universidade constata que uma determinada unidade acadêmica ou colegiado de curso não conta com professores negros ou indígenas, ela deve não apenas implantar o sistema de preferência nos próximos concursos (para tentar garantir, probabilisticamente, a inclusão dos que forem aprovados), mas também promover, paralelamente, uma busca ativa para encontrar candidatos negros e indígenas. Afinal, a preferência opera com a livre concorrência e responde positivamente à presença de candidatos negros e indígenas, porém é apenas reativa em relação aos editais abertos. A indução, porém, exige uma atitude proativa, derivada diretamente do valor institucional assumido, a saber, como a universidade decide não mais reproduzir a desigualdade vigente, ela passa a incentivar as candidaturas negras e indígenas, e para isso se dispõe a procurar doutores destes dois grupos formados nas áreas em que abrirá concursos.
Assim, as cotas deverão ser aplicadas em diferentes segmentos da vida acadêmica, mapeando os mestres e os doutores em áreas de saberes indígenas, africanos e afro-brasileiros e ampliando a busca para preencher também os cargos comissionados, de confiança, colegiados, diretorias e secretarias. Em todos eles deve-se aplicar a preferência, tendo como parâmetro a composição numérica da desigualdade étnica e racial em cada área.
A ideia de contenção da reprodução da desigualdade racial acima mencionada mantém afinidades também com a busca ativa para a obtenção de mais dois efeitos: de reposição e de exclusividade. Ilustro a necessidade de reposição com a trajetória acadêmica de Kabengele Munanga, o decano dos estudos de relações raciais no Brasil. Ele foi professor de Antropologia da USP de 1980 a 2002, tendo sido, durante trinta e dois anos, o único professor negro do Departamento. Quando se aposentou, esperava-se que o colegiado abrisse uma vaga de preferência para um doutor negro e assim repusesse (pelo menos) o lugar ocupado por Munanga. Essa preferência não foi acionada e o Departamento, após aquele concurso, regressou aos seus 100% de brancura que o caracterizavam antes da sua chegada. Somente neste ano de 2022, dez anos após a saída do eminente antropólogo congolês-brasileiro, ingressou um novo doutor negro no colegiado de Antropologia da USP.
A ideia da reposição acima ilustrada é uma solução ainda parcial e insatisfatória para os nossos colegiados de Antropologia, todos eles quase tão exclusivamente brancos como o da USP. Se vamos assumir de fato o antirracismo na Antropologia brasileira, devemos aplicar imediatamente um sistema de cotas exclusivas que sintetize preferências, indução e reposição, a saber: determinar a exclusividade das próximas vagas que se abrirem nos Departamentos de Antropologia para negros e indígenas até que cheguemos a uma igualdade étnica e racial. Sem esse movimento proativo, continuaremos reproduzindo o racismo acadêmico e uma Antropologia colonizada, pois não teremos colegas preparados para implementar cotas epistêmicas, sem as quais as cotas étnico-raciais se tornarão sempre incompletas. E não haverá justificativa aceitável para continuarmos ensinando somente a episteme eurocêntrica em salas de aulas de graduação, mestrado e doutorado que contam com estudante negros e indígenas, além de brancos também demandando um ambiente pluriepistêmico.
Esses novos sistemas de cotas, de preferência e de busca ativa, são tão constitucionais quanto o sistema de cotas previsto na Lei 12.990/2004, que depende da abertura de um mínimo de três vagas. E esta, por sua vez, reproduz o mesmo mecanismo de inclusão da Lei 12.711. De fato, a ruptura com a ideologia universalista de mérito em uma sociedade racista é exatamente a mesma, em todos os casos: um candidato aprovado, negro ou indígena, terá prioridade de ingresso diante de um candidato branco, mesmo que este alcance uma pontuação mais alta. A preferência e a busca ativa apenas individualizam o mecanismo que nos outros modelos (cotas, bônus, vagas) são aplicados para contingentes. O critério de 20% de cotas para negros quer dizer, na prática, que de cada 100 vagas oferecidas, os candidatos negros aprovados terão preferência na ocupação de 20 delas. Não há de se esquecer, porém, que a aplicação da preferência e/ou da busca ativa dependerá da disposição da IFES em assumir abertamente o seu valor institucional antirracista. Assim, ao invés de esperar acumular uma, duas e finalmente três vagas para abrir um concurso para docente ou técnico-administrativo (o que pode demorar anos), a universidade poderá acionar imediatamente a preferência e a busca ativa a cada vez que disponha de apenas uma ou duas vagas.
A preferência marca, ainda, outra diferença importante em relação ao sistema de cotas determinado pela Lei 12.990. Nesta, lembremos, de três vagas haverá uma reservada para um candidato negro. Porém, se seis candidatos forem aprovados em um concurso com essas três vagas e dois negros estiverem entre os seis, os dois somente ocuparão duas vagas se tiverem alcançado as três melhores notas, pois entende-se normalmente que haverá somente uma vaga de ação afirmativa e as outras duas serão de livre concorrência.
A aplicação comum da lei é transformar essa vaga de cota como um teto, porque assim é apresentada discursivamente, e todos os candidatos negros competirão por ela. Por outro lado, se formos aplicar o princípio do piso para esse tipo de concurso, ele de nada servirá, pois os dois negros terão que ser aprovados entre os três primeiros, ou seja, o segundo negro acaba concorrendo como se fosse pelas duas vagas ditas “universais”.
As cotas de preferência exigem uma nova compreensão integrada do modelo lógico, da métrica e da filosofia das ações afirmativas. Com a preferência, somos chamados a raciocinar em pequena escala, pois a maioria dos concursos para docentes não passa de três vagas ofertadas, sendo entendido que uma e apenas uma será oferecida como cota. Já as cotas para a Pós-Graduação podem ser consideradas de escala média (entre 15 e 30 vagas, na maioria dos casos) e as cotas na graduação, de grande escala (até centenas de vagas). Efetivamente, a destinação entre piso e teto só faz sentido prático para os sistemas de cotas de média e grande escala.
As vagas de preferência surgem em um contexto de pequena escala, de escassez de concursos e processos seletivos, e de alta desigualdade racial, como é o caso da docência e das bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq. Estas são áreas que não se encaixam inteiramente no âmbito de aplicação da Lei 12.990. Para aplicar plenamente o critério de preferência é preciso trazer à tona a política das reparações, recomendada no Plano de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo de Durban, em 2001. Podemos retirar aqui um lema geral de aplicação do sistema de preferência: quanto mais extrema for a área de desigualdade racial, e mais danoso o efeito dessa desigualdade, mais intensa deve ser a política de reparação para que seja de fato justa, pois seus resultados se projetarão em um tempo mais longo, tornando mais distante o momento de alcançar a meta da igualdade racial.
Voltando ao hipotético (e provável) concurso de três vagas, pode acontecer, inclusive, de os dois negros competirem pela mesma e (única) vaga de cotas, pois muitos concursos convertem essa vaga em um teto, e não em um piso. Seria o caso, por exemplo, em que os dois primeiros colocados dos seis candidatos aprovados fossem justamente os dois negros e apenas um deles teria o direito de ocupar uma das três vagas. Em tal caso, o concurso seria antimeritocrático do ponto de vista da comunidade negra. Por outro lado, caso o critério deste concurso fosse o de preferência, os dois seriam vencedores, ou seja, na preferência, as cotas para negros não se limitam mais a nenhuma porcentagem previamente definida.
Prestar a devida atenção a essas aparentes sutilezas na aplicação das cotas faz parte da tarefa requerida de quem se propõe a realizar uma etnografia das cotas orientada por uma postura antropológica antirracista. Afinal, o racismo acadêmico não opera apenas na discriminação, aberta ou parcialmente velada, sofrida pelos candidatos, tal como tem sido relatado frequentemente por colegas, mas também na interpretação assumida por muitas bancas que resultam em desvantagens para os candidatos negros.
A sistematização dos modelos de cotas que ofereço aqui é resultado de uma etnografia participativa, construída a longo prazo, em sintonia e sincronia com os eventos que se desenvolveram ininterruptamente ao longo das duas últimas décadas. Temos acompanhado, desde o seu início, o surgimento de um processo coletivo multiétnico, multirracial, multidimensional, autopoiético e em constante transformação, que toca o inconsciente social pelos conflitos e desafios que apresentam, tanto pelo lado da ação concreta de implementação das cotas como pelo lado da reflexão antropológica.
Esse processo suscita uma abordagem teórica nova, a ser construída neste contexto de intervenção para dessegregar e promover a igualdade étnica e racial no mundo acadêmico brasileiro - e na comunidade antropológica em particular. Trata-se de um movimento de reparação histórica que toca também o inconsciente político da nossa academia, com seus mecanismos de negação e recalque (ou disfarce) específicos e revelados, por exemplo, na manobra de contrapor as cotas de baixa renda e de escola pública para bloquear a disseminação, a partir da UnB, das cotas raciais para as demais universidades do país. Essa recusa das cotas raciais em nome das chamadas cotas sociais, afirmada por vários eminentes colegas nos dois Manifestos contrários às cotas de 2006 e 2008 (ambos redigidos por antropólogos), é um sintoma do racismo acadêmico, crônico e ainda profundamente irrefletido, vigente no seio da comunidade antropológica brasileira.16 16 Eis alguns dos antropólogos de grande influência nacional, ou ligados a alguns dos cursos de maior peso da Antropologia no Brasil que lideraram e/ou assinaram os dois Manifestos contra as cotas: Universidade de São Paulo: Eunice Durham, Ruth Cardoso e Lilia Schwarcz; Museu Nacional da UFRJ: Gilberto Velho, Ricardo Ventura Santos, Luiz Fernando Dias Duarte; IFCS da UFRJ: Peter Fry, Yvonne Maggie, Karina Kuschnir, Mirian Goldenberg; Universidade de Brasília: Mariza Peirano e Wilson Trajano Filho; Universidade Campinas (Unicamp): Guita Debert.
Cotas epistêmicas
O processo sociopsíquico posto em marcha com as cotas raciais gerou reações negativas de metade da comunidade antropológica brasileira: aceitar as cotas raciais seria admitir abertamente a existência de racismo na sociedade - e, também, racismo no interior da academia, e inclusive no interior da comunidade antropológica, fenômeno que fez eclodir a própria luta pelas cotas nas universidades. E mais, a existência do racismo acadêmico questionou também a exclusão epistêmica, o eurocentrismo generalizado e a base colonial da nossa Antropologia, que tratava os negros e os indígenas apenas como objeto de estudo e que agora deverá admitir, além das cotas étnicas e raciais, as cotas epistêmicas.
Utilizando uma distinção proposta por John Blacking entre processo e produto na sociedade humana (Blacking 1969BLACKING, John. 1969. Process and Product in Human Society. Inaugural Lecture Delivered 13 September. Johannesburg: Witwatersrand University Press.), no caso das cotas trata-se de etnografar um processo em pleno curso (e não um produto estabelecido, cultural, social ou político), no qual estamos engajados para a sua construção e sua continuidade. Podemos falar de um processo das cotas, ainda em consolidação, e cuja análise suscita as ferramentas da teoria da complexidade e do seu par, a da emergência. Nesse processo específico, relativamente, de duas décadas apenas, como é o caso das cotas étnico-raciais, etnografamos a emergência de uma linguagem de inclusão nova, plasmada nos tipos de cotas, subcotas, bônus, vagas, preferência e indução, todos criados ao longo dessa campanha. Seguindo o paradigma complexo, além da linguagem das cotas podemos pensar em duas emergências que tiveram força instituinte no período acima referido: as cotas sociais, surgidas como ideia e prática imprevisíveis; e a emergência da ideia e da implementação das cotas epistêmicas, que significam igualmente um movimento inédito, especificamente brasileiro, derivado diretamente do movimento das cotas raciais.17 17 Analisei a emergência da estruturação das ações afirmativas como uma linguagem em Carvalho (2016). Para uma discussão geral da teoria da emergência, ver Bedau e Humphreys (2008); sobre a teoria da emergência nas Ciências Sociais, ver Zahle e Kaidesoja (2019).
Outro processo de inclusão é o “Encontro de Saberes”, projeto iniciado na UnB em 2010 pelo INCT de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa do CNPq e desenvolvido em associação com as cotas étnico-raciais uma década depois, e que contribui para configurar a campanha atual pelas cotas epistêmicas. Como emergência de uma nova configuração dos saberes acadêmicos, as cotas epistêmicas plasmadas no “Encontro de Saberes” surgiram, assim como as cotas para negros, a partir de um formato simples (inicialmente tratou-se da abertura de uma disciplina regular ministrada por mestres e mestras dos saberes tradicionais) e começaram a ganhar contornos cada vez mais ampliados, a caminho de se converterem, as duas cotas articuladas, em um processo mais amplo e mais complexo de descolonização da base eurocêntrica da formação antropológica no Brasil.18 18 Para a teoria, a gênese e a expansão do “Encontro de Saberes”, ver Carvalho e Flórez (2014a, 2014b), Carvalho e Águas (2015), Carvalho (2018, 2019, 2021), Carvalho e Vianna (2020) e Carvalho e Albernaz (2022).
Implementar as cotas epistêmicas é dar um passo complementar e tão radical quanto implementar as cotas étnicas e raciais. Lembremos que estas tocam o corpo discente enquanto mantêm a maioria do corpo docente ainda bastante preso no eurocentrismo fundante da nossa academia, por duas razões: primeiro, porque a Lei 12.990/2014, que determina cotas no serviço público, afeta a composição do quadro de professores em uma escala muito reduzida e bem lentamente; em segundo lugar, porque o conteúdo dos concursos continua sendo controlado majoritariamente por docentes de tendência eurocêntrica e por este motivo favorecem os candidatos brancos que, em sua maioria, ainda contam com maior capital eurocêntrico que os candidatos negros e indígenas.
A descolonização do currículo passa necessariamente, portanto, por enraizar a formação dos futuros licenciados, bacharéis, graduados, mestres e doutores nas bases epistêmicas afro-brasileiras, indígenas e dos demais povos tradicionais. A questão do topo da transformação social conducente à superação do racismo e da desigualdade racial, qual seja, as cotas e as ações afirmativas para docentes negros, se une à questão da base da formação eurocêntrica nas escolas, isto é, às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Assim, um dos procedimentos complementares a essas leis, e capaz de descolonizar o imaginário racista crônico do nosso ensino básico e superior é incluir os mestres e as mestras dos saberes tradicionais afro-brasileiros e indígenas como docentes nas escolas e nas IFES, de modo a unir as nossas grandes tradições orais indígenas e afro-brasileiras com todas as tradições letradas (ocidentais, indígenas e africanas).
Tal instrumento metodológico de implementação de cotas epistêmicas é, reafirmamos, o “Encontro de Saberes”, já presente em vinte IFES, que foi alçado à categoria de Programa dentro das Metas do Plano Nacional de Cultura do Ministério da Cultura em 2014 (ver Carvalho 2018CARVALHO, José Jorge. 2018. “Encontro de Saberes e Descolonização: Para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras”. In: Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres & Ramón Grossfoguel (orgs.), Decolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica. pp. 79-106.) e que deve atuar em alinhamento e articulação com os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, cuja missão é igualmente descolonizadora e antirracista. Além disso, ele se alinha diretamente com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004)DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA. 2004. Brasília: Ministério da Educação. , prescrito na Lei 10.639.19 19 Um antecedente do Encontro de Saberes foi o curso universitário para a inclusão do Folclore e da Cultura Popular no Ensino Superior proposto em 1959 por Edison Carneiro (1965). O curso propunha a presença de saberes populares nas escolas de Medicina, Agronomia e Veterinária, Direito, Belas Artes, Música, Educação Física, Dança e Teatro, Ciências Econômicas, Engenharia, Arquitetura, entre outras. Infelizmente, ele não foi implementado na época, porém conseguimos realizar essa visão de Carneiro 50 anos depois.
Não há aqui espaço para um detalhamento do “Encontro de Saberes”, que já conta com uma literatura teórica e etnográfica considerável. O ponto central da intervenção que propõe é descolonizar o eurocentrismo epistêmico e excludente que legitima o conhecimento consolidado nas nossas universidades. Ao excluírem os saberes indígenas, africanos e afro-brasileiros, nossas instituições promovem um racismo epistêmico que combatemos com a aplicação simultânea de vários tipos de cotas: as cotas da Lei 12.990, que nos permitem aumentar a presença quantitativa de docentes acadêmicos negros e indígenas; as cotas de preferência e de busca ativa, que nos permitirão fazer uma intervenção estratégica em áreas de conhecimento ainda não abertas nas nossas universidades, tais como as tradições afros e indígenas; e também a inclusão dos mestres e das mestras dos saberes tradicionais, que complementarão as áreas cobertas pelos docentes negros e indígenas. Lembremos ainda que os mestres e as mestras do “Encontro de Saberes” são convidados basicamente por busca ativa.
Já é perceptível, ainda que em pequena escala, o efeito do “Encontro de Saberes” sobre a Antropologia brasileira recente. Rompendo com a relação etnográfica clássica de sujeito-objeto, que os enquadrava disciplinarmente na categoria de “nativos” ou “informantes”, os mestres e as mestras entram agora na sala de aula como colegas, interagindo conosco em uma relação sujeito-sujeito. Uma análise que já toma este tema como ponto de partida foi desenvolvida recentemente por Márcio Goldman e Edgar Rodrigues Barbosa Neto, tecendo considerações sobre o encontro interepistêmico gerado nas salas de aula ministradas por mestres e mestras (Neto & Goldman 2022NETO, Edgar Rodrigues Barbosa & GOLDMAN, Márcio. 2022. “A Maldição da Tolerância e a Arte do Respeito nos Encontros de Saberes” - 1ª. Parte. Revista de Antropologia (USP, São Paulo, on-line), v. 65, n. 1, e192790.). O primeiro desafio para a Antropologia que eles alertam e exorcisam é o da tentação de “aproveitar” a presença dos mestres no nosso meio e mais uma vez transformá-los em objetos de nossas etnografias e interpretações. O que esses autores fazem já é dar início ao diálogo com o que os mestres efetivamente trazem para a sala de aula, tomando como exemplos vários casos de lideranças espirituais das religiões de matriz africana, um dos grupos historicamente mais excluídos do nosso mundo acadêmico.
Para um segundo ciclo de cotas e um primeiro ciclo de antirracismo na Antropologia
Um novo Plano de Metas de Igualdade Étnica e Racial deveras integrado (tal como o que formulamos para a UnB em 2003)20 20 Ver Carvalho (2006c:201-203) deverá incluir um amplo conjunto de políticas públicas simultâneas e articuladas. Por um lado, há que garantir a efetiva implementação de cotas em todos os níveis: na graduação, na pós-graduação, na docência e na pesquisa; na permanência qualificada (material e simbólica), incluindo apoio psicopedagógico para os estudantes cotistas; nos pareceristas, nas bolsas de pesquisa, nos Conselhos da Capes, do CNPq e das Fundações de Apoio; nos projetos de Extensão; nos editais, incluindo temas direcionados para a comunidade afro-brasileira; e nos cargos da gestão superior (diretores e pró-reitores) da IFES.
Articuladas com as cotas étnicas e raciais devem ser implementadas igualmente as cotas epistêmicas, sendo um modelo possível o “Encontro de Saberes”, por permitir que os grandes representantes das matrizes civilizatórias indígenas, afro-brasileiras, quilombolas e dos demais povos tradicionais refaçam e expandam o imaginário do saber acadêmico em todas as áreas (ciências, tecnologias, artes, espiritualidades), superando definitivamente a base epistêmica do racismo crônico das nossas instituições federais de ensino superior. A implementação generalizada das cotas étnico-raciais e das cotas epistêmicas será a afirmação inequívoca do antirracismo como valor estruturante do funcionamento das instituições superiores de ensino e pesquisa no Brasil. E como das universidades saem os quadros que controlam o poder decisório do Estado, nas três esferas - federal, estadual e municipal -, devemos projetar as cotas epistêmicas em todos os órgãos e instituições, em todos os Conselhos (consultivos e deliberativos) e em todas as áreas das políticas públicas: modelo de desenvolvimento, meio ambiente, política agrária e territorial, tecnologias, educação, saúde, habitação, cultura, patrimônio, entre outras.
Uma vez assimiladas todas essas instâncias e dimensões, deveremos nos dedicar à tarefa de formular um novo modelo lógico e uma nova razão numérica da Lei de cotas para otimizar ao máximo a inclusão dos negros e dos indígenas sem diminuir a inclusão dos egressos de escola pública e os de baixa renda. O lema deste novo Plano de Metas deve ser: “nenhum negro e nenhum indígena a menos em nenhum lugar; e nenhum atraso para que os negros e os indígenas cheguem a todos os lugares”.
Sou herdeiro de formação do Caso John Blacking, de 1969BLACKING, John. 1969. Process and Product in Human Society. Inaugural Lecture Delivered 13 September. Johannesburg: Witwatersrand University Press., que foi em parte consequência do Caso Mafeje, de 1968. Os dois casos marcaram profundamente uma parte significativa da Antropologia anglófona africana e também britânica. O antirracismo dessa linha de antropólogos mantém afinidades com o antirracismo que eclodiu na UnB com o Caso Ari, de 1998, e que deu origem à nossa proposta de cotas. O Caso Mafeje e o Caso Ari de certo modo podem ser equiparados, guardadas as especificidades de cada país: o primeiro marcado naquele momento pela ideologia abertamente racista do apartheid; e o outro marcado pela ideologia exteriormente antagônica da mestiçagem e da democracia racial que escamoteia o nosso racismo acadêmico capaz de gerar uma segregação racial tácita e silenciosa, o qual foi descrito muito aptamente por Kabengele Munanga como “um crime perfeito”, por sua capacidade de abafar os casos de discriminação e perseguição e manter a impunidade dos perpetradores (Munanga 2010). Mafeje e Ari percorriam o mesmo caminho que deveria levá-los ao mesmo lugar almejado: no caso do primeiro, ingressar como professor com estabilidade em um respeitado departamento de Antropologia no seu país; no caso do segundo, fazer o doutorado em um departamento de Antropologia igualmente respeitado e, de posse do doutorado, concursar em alguma universidade, inclusive, por que não, na própria UnB.
Passados vinte e quatro anos do evento da reprovação de Ari Lima e vinte e dois anos do início da movimentação que conduziu à aprovação das cotas para negros e indígenas numa primeira universidade federal brasileira, o Caso Ari pode ser visto como a fagulha que incendiou, no interior de um campus acadêmico, a necessidade de combate à exclusão racial no ensino superior no Brasil21 21 A fagulha do Caso Ari reacendeu, de um modo inesperado, quando Ari Lima proferiu a conferência de abertura do VI Negras Antropologias da UnB, no dia 16 de novembro de 2022, Seminário organizado pelo Coletivo Zora Hurston de estudantes negros. Nessa ocasião, a professora Kelly Cristiane da Silva tentou desqualificar a sua exposição, alegando que ele não havia sofrido racismo, pois jamais existiu racismo na Antropologia da UnB. Tal incidente, que já adquiriu repercussão nacional, repetiu a hostilidade por ele sofrida 24 anos antes, suscitou várias notas de repúdio por parte dos estudantes e ex-estudantes de Sociologia e Antropologia, e do Comitê de Antropólogas/os Negras/os da Associação Brasileira de Antropologia. Diante desta nova crise do Caso Ari, o Departamento de Antropologia deliberou constituir uma “Comissão para elaboração de um programa de reconhecimento, combate e reparação do racismo estrutural no âmbito do DAN”. . Além disso, pode ser considerado também um evento fundador de uma Antropologia antirracista: um caso concreto de racismo acadêmico, que gerou um movimento de reação ao racismo acadêmico generalizado no país, do qual surgiu uma proposta de cotas para negros como uma pauta antirracista concreta; como consequência, uma proposta de cotas epistêmicas pelo “Encontro de Saberes”, que desafia o racismo epistêmico até então intocado. Ampliando ainda mais o seu escopo de emergência, chegamos atualmente à formulação de uma atitude antirracista geral para o método etnográfico no Brasil pós-cotas e para a construção de uma teoria antropológica multiétnica, multirracial, descolonizada e pluriepistêmica.
Essa Antropologia antirracista, multiétnica e multirracial, derivada de uma Antropologia da práxis que não admite separar interpretação de intervenção, demanda o engajamento na elaboração de etnografias das práticas racistas - dentro e fora da mesma comunidade antropológica - que se manifestam em vários mecanismos de discriminação, exclusão e violência racial; e etnografias de discursos racistas - igualmente dentro e fora da comunidade antropológica - que elaboram argumentos negativos sob diversas formas, tais como: disfarces; ironias; subestimações; acusações ad hominem; todas elas capazes de justificar reprovações, eliminações, menções e notas injustas, pareceres negativos infundados, exclusões de grupos de pesquisa e de eventos acadêmicos e perseguições.22 22 Esbocei uma primeira etnografia de doze casos (que é quase também uma fenomenologia, dada a repetição dos significantes e das reações a eles) que chamei de “Narrando o racismo universitário” (Carvalho 2006d:80-87). Esse tipo particular de etnografia do discurso pode se inspirar tanto nas reflexões lacanianas antirracistas de Lélia Gonzalez (1984GONZALEZ, Lélia. 1984. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, p. 223-244, ANPOCS. ) quanto nas análises, também parcialmente psicanalíticas, de Fredric Jameson do inconsciente político presente nos discursos como expressão de relações de poder (1992JAMESON, Fredric. 1992. O Inconsciente Político. A Narrativa como Ato Socialmente Simbólico. São Paulo: Editora Ática.). Essa etnografia deve, por sua vez, estar ancorada em um discurso antirracista explícito, por exemplo, desmontando as justificativas racistas subjacentes aos atos discriminatórios acima descritos; e em uma prática antirracista efetiva, como participação direta em políticas de inclusão étnica e racial dos mais diversos tipos, tais como cotas e ações afirmativas, além dos enfrentamentos abertos a casos de discriminação racial e a práticas estabelecidas de exclusão e segregação racial, dentro e fora da academia.
De fato, já estamos fazendo a transição para essa nova Antropologia, e dois fatos marcam essa mudança: no caso da UnB (e existem equivalentes desse processo em outras universidades), os estudantes cotistas negros da Pós-Graduação realizam um Seminário anual denominado Negras Antropologias, que já está na sua sexta edição: apenas expositores negros, lançando mão prioritariamente de autores negros e de epistemologias afro-centradas. E outro marco foi a criação, em agosto de 2020, da Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA), que reúne os acadêmicos indígenas, formados e ainda estudando, colocando suas perspectivas temáticas, teóricas e etnográficas próprias. Se temos agora uma Antropologia Negra e uma Antropologia Indígena, como vamos chamar a Antropologia estabelecida sem negros e sem indígenas que existia até uma década atrás? Nos termos de hoje, ela somente poderá ser denominada de Antropologia Branca. A tarefa, de agora em diante, será desenvolver os protocolos para a convivência acadêmica dessas três Antropologias para que tenhamos mais adiante uma Antropologia brasileira multiétnica, multirracial, pluriepistêmica, descolonizada e antirracista.23 23 Uma primeira versão deste texto foi construída no contexto do Fórum das Cotas Étnico-Raciais, que congrega um grupo de pesquisadores aos quais agradeço pelas trocas: Adilson Pereira dos Santos, Cleber Santos Vieira, Everson Meireles, Guimes Rodrigues Filho, Jane Maria dos Santos Reis, Luciana Alaíde Alves Santana e Onésio Soares Amaral. Agradeço a Daniel Reis e a Letícia Vianna pela ajuda inestimável.
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- THEODORO, Mário. 2022. A Sociedade Desigual. Racismo e Branquitude na Formação do Brasil Rio de Janeiro: Zahar.
- VAZ, Lívia Sant’Anna. 2022. Cotas Raciais São Paulo: Jandaíra.
- ZAHLE, Julie & KAIDESOJA, Tuukka. 2019. Emergence in the Social Sciences. In: GIBB, Sophie, FINDLAY, Robin & LANCASTER, Tom (eds). The Routledge Handbook of Emergence Londres: Routledge. pp. 400-407.
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Iniciei meus argumentos para uma proposta de cotas há duas décadas, colocando o problema central do nosso racismo acadêmico (Carvalho 2001CARVALHO, José Jorge. 2001. “As Propostas de Cotas para Negros e o Racismo Acadêmico no Brasil”. Revista Sociedade e Cultura, UFG, v. 4, n. 2:13-30, jul./dez.).
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Para uma história do debate das cotas na UnB, ver Siqueira (2004)SIQUEIRA, Carlos Henrique. 2004. “O Processo de Implementação das Ações Afirmativas na Universidade de Brasília (1999-2004)”. O Público e o Privado (UECE), n. 3:165-188. e Carvalho (2006a)CARVALHO, José Jorge.. 2006a. Inclusão Étnica e Racial no Brasil. 2. ed. São Paulo: Attar Editorial..
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Eis os quatro Manifestos, na ordem cronológica de sua aparição: Manifesto Contra o PL das Cotas (2006)MANIFESTO CONTRA O PL DAS COTAS. Todos têm direitos iguais na República Democrática. 2006. Entregue à Presidência do Congresso Brasileiro em Brasília, dia 30 de maio., Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial (2006)MANIFESTO EM FAVOR DA LEI DE COTAS E DO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL. 2006. Entregue à Presidência do Congresso Brasileiro em Brasília, dia 3 de julho. , Manifesto Contra as Cotas (2008)MANIFESTO CONTRA AS COTAS. 113 Cidadãos antirracistas contra as leis raciais. 2008.Entregue ao Supremo Tribunal Federal no dia 30 de abril. e Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas (2008)MANIFESTO EM DEFESA DA JUSTIÇA E CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS. 120 ANOS DA LUTA PELA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL. 2008. Entregue ao Supremo Tribunal Federal no dia 13 de maio. , este transformado em livro na sua segunda edição: Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas (2009)MANIFESTO EM DEFESA DA JUSTIÇA E CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS. 120 ANOS DA LUTA PELA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL. 2009. 2ª. edição. Brasília: Fundação Cultural Palmares/Secretaria Especial dos Direitos Humanos/Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial..
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Para uma descrição desse escândalo político disfarçado de sexual, ver Gaviglio e Raye (1976). O Caso é citado também em Niehaus (2013)NIEHAUS, Isak. 2013. “Anthropology and Whites in South Africa: Response to an Unreasonable Critique”. Africa Spectrum, v. 1:117-127. .
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Sobre o pensamento militante e antirracista de Mafeje e sua “ontologia combativa”, ver Borges, Costa, Couto, Cirne, Abreu e Lima, Viana e Paterniani (2015)BORGES, Antonádia, COSTA, Ana Carolina, COUTO, Gustavo Belisário, CIRNE, Michelle, ABREU E LIMA, Natascha, VIANA, Talita & PATERNIANI, Stella Z. 2015. “Pós-Antropologia: As Críticas de Archie Mafeje ao Conceito de Alteridade e sua Proposta de uma Ontologia Combativa”. Revista Sociedade e Estado, v. 30, n. 2:347-369, maio/agosto.. Sobre o Caso Mafeje, que conta com uma vasta literatura, ver Hendricks (2008)HENDRICKS, Fred. 2008. “The Mafeje Affair: The University of Cape Town and Apartheid”. African Studies, v. 67, n. 3, Dec. e Ntsebeza (2014)NTSEBEZA, Lungisile. 2014. “The Mafeje and the UCT Saga: Unfinished Business?”. Social Dynamics, v. 40, n. 2:274-288.. Sobre a sua postura de descolonização da Antropologia, ver Mafeje (2001)MAFEJE, Archie. 2001. “Decolonising African Anthropology: A Personal Contribution. In: MAFEJE, Archie, Anthropology in Post-Independent Africa: End of an Era and the Problem of Self-redefinition. Nairobi: Heinrich Böll Foundation. pp. 55-66..
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John Blacking mencionou o seu apoio a Mafeje a partir da sua cátedra em Witwatersrand, o que contribuiu para seu banimento da África do Sul (Blacking 1991BLACKING, John. 1991. “John Blacking: An Interview Conducted and Edited by Keith Howard”. Ethnomusicology, v. 35, n.1:55-76, Winter.).
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Essa mestiçagem foi fantasiada tanto pelos anglos quanto por muitos acadêmicos brasileiros brancos, tais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta. Sobre a dimensão encobridora da ideologia da mestiçagem no Brasil, ver Munanga (2019)MUNANGA, Kabengele. 2019. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. Nova Edição: Identidade Nacional versus Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora. . Sobre o contraste entre o preconceito de origem e o preconceito de marca, ver Nogueira (1985)NOGUEIRA, Oracy. 1985. Tanto Preto Quanto Branco. Estudos de Relações Raciais. São Paulo: T. A. Queiroz..
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Assinaram o Manifesto: Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Roquette Pinto, Hermes Lima, Inácio do Amaral, Maurício de Medeiros, Joaquim Pimenta, Queiroz Lima, Castro Rebello, Leonildes de Rezende, Victor Vianna e Azevedo Amaral.
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Teorizei o racismo fenotípico em Carvalho (2008)CARVALHO, José Jorge.. 2008. “Racismo Fenotípico e Estéticas da Segunda Pele”. Revista Cinética. Disponível em: www.cinetica.com.br. ISSN 1983-0343.
www.cinetica.com.br... . -
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Abdias retomava em 1983 a primeira proposta de ações afirmativas formulada no Brasil em 1948, no primeiro número do jornal Quilombo, por ele dirigido (Nascimento 2003NASCIMENTO, Abdias. 2003. Quilombo. Jornal dirigido por Abdias Nascimento, 1948-1950. Edição Facsímile. Rio de Janeiro: Editora 34.). O ponto 3 do Programa do jornal, anunciado na página 3, dizia: “Lutar para que, enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais do ensino secundário e superior, inclusive nos estabelecimentos militares”.
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Para uma análise quantitativa e qualitativa dos impactos atuais das políticas de cotas nas IFES, ver Santana, Meireles e Carvalho (2019)SANTANA, Luciana Alaíde A.; MEIRELES, Everson & CARVALHO, José Jorge de. 2019. “Acesso às Instituições Federais de Ensino Superior Brasileiras após a Lei de Cotas”. Revista FAEEBA, v. 28, n. 55:127-141, maio/ago. e Santana, Meireles, Carvalho e Nacif (2021)SANTANA, Luciana Alaíde A.; MEIRELES, Everson; CARVALHO, José Jorge de; & NACIF, Paulo Gabriel Soledade. 2021a. “A Lei de Cotas nas IFES: Nenhum Retrocesso, Nenhum/a Negro/a e Indígena a Menos”. Revista da ABPN, v. 13, n. 36:416-439..
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Para o sistema de ações afirmativas nos Estados Unidos e na África do Sul, ver Featherman, Hall e Krislov (2010)FEATHERMAN, David; HALL, Martin & KRISLOV, Marvin (orgs.). 2010. The Next 25 Years. Affirmative Action in Higher Education in the United States and South Africa. Ann Arbor: The University of Michigan Press. e Arday e Mirza (2018)ARDAY, Jason & MIRZA, Hedi Safia (orgs.). 2018. Dismantling Race in Higher Education. Racism, Whiteness and Decolonising the Academy. Londres: Palgrave Macmillan.; para o sistema de cotas (por reserva) da Índia, ver Ambedkar (2002, 2008); para o sistema de cotas na Malásia, ver Guan (2005)GUAN, Lee Hock. 2005. “Affirmative Action in Malaysia”. Southeast Asian Affairs, p. 211-228.. Para uma análise das políticas de cotas, ver Carvalho (2016a)CARVALHO, José Jorge. 2016a. A Política de Cotas no Ensino Superior. Ensaio Descritivo e Analítico do Mapa das Ações Afirmativas no Brasil. Brasília: Ministério da Educação/Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa..
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Ofereci uma análise crítica detalhada do modelo lógico e da métrica do modelo de cotas da Lei 12.711 em Carvalho (2016b)CARVALHO, José Jorge. 2016b. “Sobre a Lei de Cotas”. In: CARVALHO, José Jorge, A Política de Cotas no Ensino Superior. Ensaio Descritivo e Analítico do Mapa das Ações Afirmativas no Brasil. Brasília: Ministério da Educação/Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa . pp. 99-110..
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Cf. Mello e Rezende (2019)MELLO, Luiz & REZENDE, Ubiratan Pereira de. 2019. Concursos Públicos para Docentes de Universidades Federais na Perspectiva da Lei 12.990/204: Desafios à Reserva de Vagas para Candidata/os Negra/os. Revista Sociedade e Estado, v. 34, n. 1:161-184, jan./abr. , muitas IFES ainda desrespeitam determinações do STF relativas à fiscalização e/ou ao controle social das cotas étnico-raciais determinadas pela referida Lei.
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Reelaborei o sistema de preferência em Carvalho (2006b)CARVALHO, José Jorge. 2006b. “Um Sistema de Preferência para Negros e Indígenas na Pós-Graduação, na Docência e na Pesquisa”. In: CARVALHO, José Jorge, Inclusão Étnica e Racial no Brasil. 2. ed. São Paulo: Attar Editorial . pp. 171-180..
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Eis alguns dos antropólogos de grande influência nacional, ou ligados a alguns dos cursos de maior peso da Antropologia no Brasil que lideraram e/ou assinaram os dois Manifestos contra as cotas: Universidade de São Paulo: Eunice Durham, Ruth Cardoso e Lilia Schwarcz; Museu Nacional da UFRJ: Gilberto Velho, Ricardo Ventura Santos, Luiz Fernando Dias Duarte; IFCS da UFRJ: Peter Fry, Yvonne Maggie, Karina Kuschnir, Mirian Goldenberg; Universidade de Brasília: Mariza Peirano e Wilson Trajano Filho; Universidade Campinas (Unicamp): Guita Debert.
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Analisei a emergência da estruturação das ações afirmativas como uma linguagem em Carvalho (2016)CARVALHO, José Jorge. 2016a. A Política de Cotas no Ensino Superior. Ensaio Descritivo e Analítico do Mapa das Ações Afirmativas no Brasil. Brasília: Ministério da Educação/Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa.. Para uma discussão geral da teoria da emergência, ver Bedau e Humphreys (2008)BEDAU, Mark A. & HUMPHREYS, Paul (eds). 2008. Emergence. Contemporary Readings in Philosophy and Science. Cambridge: The MIT Press.; sobre a teoria da emergência nas Ciências Sociais, ver Zahle e Kaidesoja (2019)ZAHLE, Julie & KAIDESOJA, Tuukka. 2019. Emergence in the Social Sciences. In: GIBB, Sophie, FINDLAY, Robin & LANCASTER, Tom (eds). The Routledge Handbook of Emergence. Londres: Routledge. pp. 400-407..
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Para a teoria, a gênese e a expansão do “Encontro de Saberes”, ver Carvalho e Flórez (2014aCARVALHO, José Jorge & FLÓREZ, Juliana. 2014a. “The Meeting of Knowledges: A project for the decolonization of universities in Latin America”. Postcolonial Studies. Special Issue: Decoloniality, Knowledges and Aesthetics, Institute of Postcolonial Studies, Melbourne, Austrália, v. 17, n. 2:122-139, June., 2014b CARVALHO, José Jorge & FLÓREZ, Juliana. 2014b. Encuentro de Saberes: Proyecto para decolonizar el conocimiento universitario eurocéntrico, Nómadas, Vol. 41, 131-147, outubro.), Carvalho e Águas (2015)CARVALHO, José Jorge & ÁGUAS, Carla. 2015. “Encontro de Saberes: Um Desafio Teórico, Político e Epistemológico”. In: Boaventura de Sousa Santos & Teresa Cunha (orgs.), Colóquio Internacional Epistemologias do Sul. Vol. 1: Democratizar a Democracia. Coimbra: Universidade Coimbra/Centro de Estudos Sociais. pp. 1017-1027., Carvalho (2018CARVALHO, José Jorge. 2018. “Encontro de Saberes e Descolonização: Para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras”. In: Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres & Ramón Grossfoguel (orgs.), Decolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica. pp. 79-106., 2019CARVALHO, José Jorge. 2019. “Transculturality and the Meeting of Knowledges”. In: Ursula Hemetek et al. (orgs.), Transkulturelle Erkundungen. Wissenschaftlich-künstleriche Perspektiven. Viena: Böhlau Verlag. pp. 79-94., 2021CARVALHO, José Jorge. 2021. “Ethnomusicology and the Meeting of Knowledges in Music. The Inclusion of Masters of Traditional Musics as Lecturers in Higher Education Institutions”. In: Beverley Diamond & Salwa El-Shawan Castelo-Branco (eds.), Transforming Ethnomusicology. Political, Social, and Ecological Issues. Vol. II. New York: Oxford University Press. pp. 185-206.), Carvalho e Vianna (2020)CARVALHO, José Jorge & VIANNA, Letícia. 2020. “O Encontro de Saberes nas Universidades. Uma Síntese dos Dez Primeiros Anos”, Revista Mundaú, n. 9:23-49. e Carvalho e Albernaz (2022)CARVALHO, José Jorge & ALBERNAZ, Pablo. 2022. “Encontro de Saberes: Por uma Universidade Antirracista e Pluriepistêmica”, Horizontes Antropológicos, Ano 28, n. 63: 333-358, maio/ago..
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Um antecedente do Encontro de Saberes foi o curso universitário para a inclusão do Folclore e da Cultura Popular no Ensino Superior proposto em 1959 por Edison Carneiro (1965)CARNEIRO, Edison. 1965. Folclore em Nível Superior e Formação de Novos Quadros em Folclore. In: Dinâmica do Folclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. pp. 123-130.. O curso propunha a presença de saberes populares nas escolas de Medicina, Agronomia e Veterinária, Direito, Belas Artes, Música, Educação Física, Dança e Teatro, Ciências Econômicas, Engenharia, Arquitetura, entre outras. Infelizmente, ele não foi implementado na época, porém conseguimos realizar essa visão de Carneiro 50 anos depois.
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Ver Carvalho (2006c:201-203CARVALHO, José Jorge. 2006c. “Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília”. In: CARVALHO, José Jorge, Inclusão Étnica e Racial no Brasil . 2. ed. São Paulo: Attar Editorial . pp. 201-203.)
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A fagulha do Caso Ari reacendeu, de um modo inesperado, quando Ari Lima proferiu a conferência de abertura do VI Negras Antropologias da UnB, no dia 16 de novembro de 2022, Seminário organizado pelo Coletivo Zora Hurston de estudantes negros. Nessa ocasião, a professora Kelly Cristiane da Silva tentou desqualificar a sua exposição, alegando que ele não havia sofrido racismo, pois jamais existiu racismo na Antropologia da UnB. Tal incidente, que já adquiriu repercussão nacional, repetiu a hostilidade por ele sofrida 24 anos antes, suscitou várias notas de repúdio por parte dos estudantes e ex-estudantes de Sociologia e Antropologia, e do Comitê de Antropólogas/os Negras/os da Associação Brasileira de Antropologia. Diante desta nova crise do Caso Ari, o Departamento de Antropologia deliberou constituir uma “Comissão para elaboração de um programa de reconhecimento, combate e reparação do racismo estrutural no âmbito do DAN”.
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Esbocei uma primeira etnografia de doze casos (que é quase também uma fenomenologia, dada a repetição dos significantes e das reações a eles) que chamei de “Narrando o racismo universitário” (Carvalho 2006d:80-87CARVALHO, José Jorge. 2006d: “Narrando o Racismo Universitário”. In: CARVALHO, José Jorge, Inclusão Étnica e Racial no Brasil . 2. ed. São Paulo: Attar Editorial . pp. 80-87.).
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Uma primeira versão deste texto foi construída no contexto do Fórum das Cotas Étnico-Raciais, que congrega um grupo de pesquisadores aos quais agradeço pelas trocas: Adilson Pereira dos Santos, Cleber Santos Vieira, Everson Meireles, Guimes Rodrigues Filho, Jane Maria dos Santos Reis, Luciana Alaíde Alves Santana e Onésio Soares Amaral. Agradeço a Daniel Reis e a Letícia Vianna pela ajuda inestimável.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
04 Abr 2022 -
Aceito
05 Out 2022