Pressão é um termo bem falado entre nós nesse breve início de século: pressão em casa, no trabalho, na universidade; pressão econômica, política e social. Também nos sentimos pressionados, oprimidos ou comprimidos conforme o cotidiano se desenrola: o ônibus apertado, ou a falta de mobilidade urbana efetiva nas cidades, que já nos faz pensar no horário que talvez não se cumpra, na bronca do patrão e, no final do dia, a “cabeça incha” e o “coração aperta”.
Descontrolada: Uma Etnografia dos Problemas de PressãoFLEISCHER, Soraya . 2018. Descontrolada: Uma Etnografia dos Problemas de Pressão. Brasília: EdUFSCar. 261 pp. nos permite abrir um leque de configurações e imagens em que a noção de “pressão” se singulariza como uma realidade efeito de múltiplos elementos determinantes. Isto quer dizer que, conforme aceitamos a dança etnográfica proposta por Fleischer, vamos percebendo que os “problemas de pressão” podem ser tão vastos e múltiplos quanto suas tentativas de “enquadrá-los” ou “controlá-los”. Especificamente, a noção de “problemas de pressão” é tanto referente a uma ideia de “pressão alta” quanto à dimensão mais legítima de indicá-la, a hipertensão (HAS, Hipertensão Arterial Sistêmica). A novidade nessas distinções está na forma como a antropóloga produz sua analítica singular, numa espécie de topografia etnográfica, em torno do que nos apresenta como “doença comprida”.
A cronicidade está atrelada à percepção hegemônica e biomédica que caracteriza as oscilações na pressurização corporal como uma “doença crônica”. Em outros termos, a hipertensão, enquanto uma categoria biomédica aferida segundo as indicações do CID (Classificação Internacional de Doenças), tem sua distinção não na chave da “pandemia” dos acometimentos corporais agudos, mas na “endemia” de condições de saúde incapacitantes - caracterizadas por sua prevalência histórica no corpo e nas atividades diárias do indivíduo. Mas a hipertensão é um dos múltiplos elementos que, por meio da etnografia fina de Fleischer, vemos se entrelaçar e se estranhar com aquilo que chamamos de categorias locais. Assim, estar com a pressão alta não corresponde imediatamente ao diagnóstico da HAS ou tampouco pode se materializar facilmente em uma doença comprida.
Entre possíveis sintomas e a constatação de possíveis diagnósticos, uma série de mediações coprodutoras de realidade corpo-social emerge no cotidiano daqueles e daquelas que se encontram no espectro antropológico dos 'problemas de pressão”. Essas mediações, demonstradas por Soraya Fleischer, não são meramente biomédicas ou institucionalizadas através univocamente dos serviços formais de saúde. Nesse sentido, a etnografia da antropóloga brasiliense é uma imersão que “desorienta” e “desnorteia” as transparências de categorias e classificações hegemônicas consideradas universais, como tendem a ser os diagnósticos médicos. Os problemas de pressão, então, nos aparecem no contexto da Guariroba, um dos bairros populares da cidade de Ceilândia, no Distrito Federal.
A Guariroba é um bairro planejado que data do final dos anos 1960 e, de certa maneira, fez parte do conhecido plano piloto de expansão do Distrito Federal em cidades satélites e regiões administrativas. A atual cidade de Ceilândia conta com mais de 500 mil habitantes e um quinto dessa população tem mais de 60 anos de idade. Foi através do convívio com as dimensões populares de Brasília que a pesquisadora acessou a vida de uma parcela da população ceilandense que relatava suas dinâmicas cotidianas envolvendo remédios, dietas e exercícios para “controlar a danada”. Essa figura feminizada da hipertensão, chamada de “Ela” pelas interlocutoras de Fleischer, fez a investigadora ponderar uma certa homologia entre os problemas de pressão endêmicos no bairro da Guariroba e a própria “demografia” dessa população.
Perseguindo os passos dessas interlocutoras, a etnógrafa percebeu que os “problemas de pressão” se acoplam a uma população migrante, predominantemente negra e nordestina, idosa, em que as mulheres do bairro tanto enfrentam os “descontroles” da pressão quanto também produzem uma rede de cuidados mútuos que se estende àqueles e àquelas que, de alguma forma, se “incapacitaram” devido aos próprios problemas de pressão. Dessa forma, os caminhos trilhados por Soraya Fleischer com as moradoras da Guariroba são “crônicas do mundo moderno” em que a modernidade não é um termo cronológico, um corte entre o passado e um porvir, mas um termo “comprido”, no qual a vida na roça e a vida na cidade se mesclam nas conversas, nas idas ao posto de saúde para o aferimento periódico da pressão sanguínea ou nas próprias maneiras de se medicar e de reestruturar a comensalidade. A vida na roça exprimia uma tranquilidade nem tanto perdida por essas migrantes, mas constantemente exercitada como resistência às pressões da cidade - consideradas como uma das fontes de instabilidade emocional que provocavam toda uma intranquilidade corporal. O “acompridamento” dos “problemas de pressão” não é da ordem exclusiva das tipicidades fisiológicas, mas também das rotinas e dos cotidianos de uma população marcada como “de risco” e em “necessidade de ajuda”. Essa demarcação, longe de ser aceita como tal na Guariroba, passava como ponto neutralizado no que Fleischer define como “serviços formais de saúde”.
Por um lado, a pesquisadora faz uma antropologia da saúde às avessas no convívio com os/as moradores/as da Guariroba, nos postos e centros públicos de atendimento à saúde da Ceilândia frequentados pelas “hipertensas”. Entretanto, a antropóloga é reconhecida como uma “estranha” no mundo biomédico ou na saúde pública. Foi na rede pública de saúde em Brasília que Soraya Fleischer pôde contrastar como os problemas de pressão eram categorizados, textualizados e tratados pelas equipes do “Hiperdia”, programa do Ministério de Saúde de fomento ao cuidado e controle da hipertensão. Neste ponto do livro, a pesquisadora produz caminhos profícuos para uma intrigante antropologia do Estado. Nessa antropologia, o serviço público de saúde se emaranha com a agência das usuárias e das profissionais do cuidado, produzindo tensões, conflitos e negociações em correlação com o próprio manejo burocrático e tecnológico atrelado ao “controle da pressão arterial”. Segundo Fleischer, numa inspiração kafkiana, a burocracia confunde e descontrola exatamente para “governar”. Assim, a governança da pressão arterial da população se dá tanto em ambientes delimitados por “pontos de checagem” que produzem dados organizados de forma epidemiológica quanto se dá em uma “peregrinação” das usuárias do sistema de saúde por esses “pontos”: o posto de saúde, o grupo da pressão, a farmácia popular, as consultas médicas.
A topografia etnográfica de Fleischer vem em camadas. Da universidade às casas na Guariroba, das casas aos itinerários nos postos e centros de saúde, da rede pública de saúde aos contatos e trocas com as profissionais na sua relação com as mulheres usuárias dos serviços públicos, das relações aos cadernos e diários de campo. Tudo se entrelaça, mas tudo se distancia em uma intrigante ficção científica que mescla as múltiplas realidades locais com as múltiplas possibilidades de interpretar e produzir essas mesmas realidades. Assim, o tipo ideal visualizado pelas agentes de saúde - as mulheres pobres, isoladas e adoentadas da Guariroba - se contrapunha à visão crítica dessas experientes mulheres sexa, septua, octogenárias em relação ao trato e, inúmeras vezes, ao destrato da equipe médico-terapêutica com suas condições de saúde - afetadas diretamente por suas histórias de vida.
A etnografia, prática de conhecimento “comprida” por excelência, nos permite ver, através das múltiplas percepções de Fleischer, como as agentes de saúde e as “pacientes” compensavam a falta de empatia, a crônica falta de recursos nos locais básicos de atendimento à saúde, o discurso da dádiva cristianizada de muitas profissionais de saúde quanto ao cuidado dos pobres em contraponto à noção de direitos já impregnada da população usuária dos serviços médicos. Fundamentalmente, acredito que, além de amplificar as interlocuções entre os mundos socioantropológicos e biomédico-terapêuticos formais, a etnografia de Soraya Fleischer nos permite vislumbrar os usos críticos das tecnologias de cuidado em perspectiva com as variadas gramáticas epistêmicas e ontológicas desse próprio cuidado.
Aqui, por mais que a antropóloga seja crítica de forma precisa à noção foucaultiana de biopolítica, seu trabalho faz um ruído produtivo quanto às simples tentativas de encaixar o conceito na realidade brasileira, mas sem deixar de pensar como a lógica da disciplina e da regulação se perfaz através da responsabilização individual não só do cuidado, mas também do controle de si. Fleischer nos mostra como podemos lançar mão de formas de intervenção social que levem em conta as gramáticas e as tensões cotidianas sem exatamente disputarem as mesmas semânticas médicas. Aqui me refiro ao documentário dirigido pela antropóloga chamado Bicha Braba, que parte da narrativa de algumas de suas interlocutoras de pesquisa sobre o convívio comprido com os “problemas de pressão” e diabetes. O documentário foi uma tentativa de tornar menos maçante e distante as “palestras” sobre “educação arterial” que as mulheres recebiam no grupo da pressão por meio de filmetes com médicos famosos.
Descontrolada: Uma Etnografia dos Problemas de Pressão é uma peça de rigor científico e um libelo etnográfico que se transmuta em e se alimenta de narrativas, histórias e conversações que dançam sob o concerto da escrita de Fleischer. Embalados pelo rock’n’roll de Mercury e Bowie, cuja letra da música “Sob Pressão” estampa a orelha do livro, ou pelos forrós da Guariroba frequentados pela antropóloga em campo, passamos a encontrar o compasso das batidas da “gente danada” do bairro ceilandense que, pelejando com as pressões da vida, ensina a dançar.
O autor agradece imensamente à EdUFSCar pela cortesia do envio do livro aqui resenhado.
- FLEISCHER, Soraya . 2018. Descontrolada: Uma Etnografia dos Problemas de Pressão Brasília: EdUFSCar. 261 pp.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Maio 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019