Open-access O corpo fazendo a diferença

Resumos

Este artigo apresenta uma análise comparativa dos livros Making Sex de Thomas Laqueur e The Woman in the Body de Emily Martin. Enquanto o primeiro se debruça sobre a trajetória de elaboração da distinção entre os sexos tal como a concebemos contemporaneamente, a segunda focaliza o corpo feminino visto a partir da ginecologia e da obstetrícia. O objetivo é mostrar como o corpo assume lugares distintos nas elaborações teórico-metodológicas dos dois autores, o que se reflete na construção de perspectivas mais ou menos reducionistas ou com maior ou menor capacidade explicativa. De um lado, uma concepção que leva em conta a historicidade do corpo e a pluricausalidade no processo da distinção entre os sexos; de outro, o corpo como substrato fundamental capaz de determinar uma experiência particular das mulheres.


This article provides a comparative analysis of the books Making Sex, by Thomas Laqueur, and The Woman in the Body, by Emily Martin. While Laqueur studies how the distinction between the sexes as we now conceive of it was established, Martin focuses on the female body from the point of view of gynecology and obstetrics. The purpose is to show how the body assumes different places in the authors' respective theoretical/methodological work, as reflected in the construction of more or less reductionist perspectives, with greater or lesser explanatory capacity. On the one hand, a concept considering the body's historicity and the multicausality of the process of distinction between the sexes; on the other, the body as a fundamental substrate capable of determining women's particular experience.


ENSAIO BIBLIOGRAFICO

O corpo fazendo a diferença*

Fabíola Rohden

LAQUEUR, Thomas. 1994 [1990]. Making Sex. Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge: Harvard University Press.

MARTIN, Emily. 1992 [1987]. The Woman in the Body. A Cultural Analysis on Reproduction. Boston: Beacon Press.

Para aqueles que se interessam pelas temáticas do corpo e da sexualidade as duas obras aqui comentadas são necessariamente conhecidas. O livro de Emily Martin, publicado inicialmente em 1987 e reeditado em 1989 e 1992, é identificado tanto no campo feminista como na academia como um estudo inovador no que se refere à medicina e à sua capacidade de intervenção nos corpos das mulheres1. O trabalho mais recente de Thomas Laqueur, que desde 1990 também é freqüentemente reeditado, vem causando um enorme impacto, especialmente em função de sua amplitude temporal (dos gregos a Freud) e da maneira inovadora como concebe as categorias sexo e gênero2.

Embora os dois livros focalizem objetos específicos distintos ¾ no caso de Martin a apreensão do corpo feminino orientada por conceitos da ginecologia e obstetrícia e no caso de Laqueur o percurso de elaboração da distinção entre os sexos tal como a concebemos contemporaneamente ¾, ambos fazem referência a diversas questões comuns. Dentre elas destacam-se a fronteira entre a antropologia e a história, a tentativa de articulação entre passado e presente e uma perspectiva que pretende a desnaturalização dos seus objetos. Contudo, a questão mais importante colocada pelo contraste entre os dois trabalhos refere-se ao lugar ocupado pelo corpo na construção de suas perspectivas analíticas. O dilema entre uma concepção que leva em conta a historicidade do corpo e outra que se baseia no corpo como fundamento é um problema que não é novo, mas que também está bastante longe de uma resolução definitiva. É exatamente a disputa entre essas duas alternativas que se explicita ao compararmos Laqueur e Martin. Os dois trabalhos ilustram com propriedade o jogo complexo de articulações e possibilidades que se elaboram entre cada um desses pólos de escolhas teóricas. O estatuto diferenciado dado ao corpo em cada um dos livros revela as opções selecionadas pelos autores na construção de seu argumento e no tipo de tratamento dos dados. A validade dessa comparação está na possibilidade de vermos as diferenças significativas em termos do alcance de cada uma das perspectivas. Ou seja, o lugar dado ao corpo pode fazer toda a diferença na capacidade de explicação, ou profundidade, das análises. Tomando como ponto de partida esse contraste, passo a uma apresentação dos dois livros aqui comentados para depois voltar às questões mais gerais.

I.

No primeiro capítulo de Making Sex, Laqueur esclarece que está partindo de uma perspectiva multicausal em função da qual se descobre que o sexo também é situacional e só pode ser entendido no campo das relações entre gênero e poder (:11)3. Entre o dilema natureza/cultura, sexo biológico/marcas sociais e políticas da diferença, muitas têm sido as saídas. Laqueur cita Foucault (1988) para falar de uma relação muito mais complexa entre a sexualidade e o corpo, enfatizando a sexualidade como uma forma de moldar o self na experiência da carne. O autor acrescenta, recorrendo a Jeffrey Weeks (1985), contra os desconstrucionistas mais radicais, que o fato de nos tornarmos humanos na cultura não nos dá licença para ignorar o corpo (:13). O enfoque de Laqueur parte dessa centralidade do corpo na ordem social. Porém, isso não significa que tenhamos de pensá-lo como algum tipo de substrato irredutível, muito pelo contrário, é preciso levar às últimas conseqüências a idéia de que ele também é objeto de construção.

Segundo Laqueur (1987; 1994), as diferenças entre os sexos ou a própria idéia de dois sexos biológicos distintos é uma concepção que pode ser historicamente contextualizada. Em algum momento do século XVIII passa-se a considerar a existência de um modelo de dois sexos, contrariamente à percepção herdada dos gregos de que haveria apenas um sexo biológico, enquanto o gênero se apresentaria pelo menos em duas possibilidades. Nesse modelo antigo, de um sexo, homem e mulher não seriam definidos por uma diferença intrínseca em termos de natureza, de biologia, de dois corpos distintos, mas, apenas, em termos de um grau de perfeição4. Dependendo da quantidade de calor atribuída a cada corpo, ele se moldaria, em termos mais ou menos perfeitos, em um corpo de homem quando o calor foi suficiente para externalizar os órgãos reprodutivos, ou em um corpo de mulher quando foi insuficiente e os órgãos permaneceram internos. As diferenças seriam de grau, compondo uma hierarquia vertical entre os gêneros: os órgãos reprodutivos vistos como iguais em essência e reduzidos ao padrão masculino. Ou seja, homens e mulheres seriam dotados de pênis e testículos, por exemplo. A única diferença é que na mulher esses órgãos não foram externalizados. Haveria, então, um só corpo, uma só carne, à qual se atribuem distintas marcas sociais ¾ inscrições, certificados culturais baseados em caracteres sociais mais que biológicos e que comportam uma relação hierárquica entre seres considerados de acordo com uma escala de perfeição. Esse modelo, segundo Laqueur, prevalece até o Renascimento, quando se processa a passagem para o modelo de dois sexos, para uma biologia da incomensurabilidade, um novo dimorfismo, instituindo uma diferença radical entre homens e mulheres e não mais uma hierarquização.

Laqueur (capítulo 3) se pergunta se as causas dessa transformação teriam sido as mudanças provocadas pelos progressos da ciência. E ele mesmo responde que as descobertas científicas sozinhas nada significam. Só fazem sentido e só são efetuadas dentro de um contexto social propício e respondendo a demandas sociais particulares em cada momento. Não há, assim, uma causa única, um processo singular e contínuo, mas uma composição de múltiplos programas culturais em atuação, uma pluricausalidade. Os avanços da anatomia no Renascimento, sua preocupação em olhar, tocar e dissecar os corpos, apesar de nos parecerem reveladores das diferenças, não foram suficientes. Só se chegou à constatação de que os corpos de homens e mulheres eram diferentes na sua natureza quando houve um clamor social para isso, associado a uma multiplicidade de causas.

Para Laqueur (capítulo 5) essa passagem tem dois focos fundamentais de origem: uma mudança epistemológica e uma mudança política. A primeira se dá a partir do contexto da revolução científica, propagada por Bacon, Descartes, o mecanicismo, o empiricismo, a síntese newtoniana, que tinha solapado o modo galênico de compreender o corpo em relação ao cosmos e abandonado o isomorfismo entre homens e mulheres. Engloba tanto a instituição de algumas dicotomias básicas, como fato e ficção, ciência e religião, razão e credulidade, corpo e espírito, verdade e falsidade, sexo biológico e gênero teatral, quanto o rompimento com a epistéme da "grande cadeia do ser". A associação infindável de signos, entre corpo e cosmos, dá lugar à redução a um plano único, o plano da natureza, onde a explicação reducionista e o sexo como fato físico são viáveis. Essas mudanças só foram possíveis em conjunção com um novo contexto político, especialmente centrado nas divisões entre esfera pública e esfera privada, homens e mulheres, partidários e contrapartidários da autonomização feminina. É recorrendo aos pais fundadores da teoria política que Laqueur vai reforçar o seu argumento. Laqueur afirma que para Hobbes, assim como para Locke, não há base na natureza, na lei divina, ou na ordem cósmica transcendente para justificar autoridades específicas como a do rei sobre o súdito, do senhor sobre o escravo e, possivelmente, do homem sobre a mulher. Contudo, para os mesmos autores, os homens continuam sendo os chefes das famílias, assim como também os chefes das nações. Só os homens, e não as mulheres, fazem o contrato social. A fundação dessa diferença estaria não em algo transcendental, mas no fato da diferença sexual e suas implicações utilitaristas, ou seja, a constatada força superior dos homens e a freqüente incapacidade das mulheres em decorrência de suas funções reprodutivas. O corpo, que para a visão de mundo centrada na "grande cadeia do ser" era o signo, passa agora a ser o fundamento da sociedade civil. Mesmo nos Estados Unidos da América, Tocqueville argumenta que a democracia tinha destruído as velhas bases da autoridade patriarcal e que era necessário traçar uma nova e precisa linha divisória entre os dois sexos (:156-157).

O corpo é agora chamado por diferentes visões a expressar novas demandas surgidas em novos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e eróticos. As diferenças que antes eram expressas em termos de gênero, agora são evidenciadas pelo sexo, pela biologia. E aqui, o papel da ciência torna-se cada vez mais fundamental. Médicos e cientistas não só fornecem dados para o debate ideológico, como também emprestam o seu prestígio em ascensão. Para Laqueur a política de gênero afeta tanto a interpretação de dados clínicos e laboratoriais, quanto a sua própria produção.

Nota-se agora uma inversão: o corpo, o sexo, torna-se a fundação da sociedade. As diferenças biológicas diagnosticadas pelos cientistas passam a oferecer a base para que pensadores sociais dissertem sobre as diferenças inatas entre homens e mulheres e a conseqüente necessidade de diferenciações sociais. A natureza já se encarregou de postular a divisão; cabe à sociedade respeitá-la e promover um comportamento adequado. Para os iluministas, a mulher era incapaz de assumir responsabilidades cívicas. O contrato social, então, só era possível entre homens. A biologia da incomensurabilidade fornecia um modo de explicar as diferenças sociais, já que na própria natureza homens e mulheres eram diferentes, e mais do que isso, as mulheres eram naturalmente inferiores. No século XIX essas distinções e conclusões políticas a partir da natureza já são inquestionáveis. E a ciência, ou a medicina, só acrescenta cada vez mais novos e intrigantes detalhes que provam a intransponibilidade da diferença5.

É preciso mencionar que mesmo traçando esse quadro de mudanças, Laqueur (:233-243) recorre, entre outros exemplos, a Freud e à sua reinvenção do clitóris para indicar que o one-sex model continua presente. A noção de que o clitóris seria um pênis feminino fornece pistas para se pensar na permanência, ou melhor, na reapresentação em um novo enquadramento e dentro de novas configurações, desse outro modelo. O interessante aqui não é tanto discutir o mérito da questão, mas prestar atenção no cuidado que Laqueur tem em não restringir sua análise. Ele parece mais preocupado em levar a sério a sua perspectiva mais pluralista, em que há lugar para a convivência de linhas de força, correntes de pensamento em articulação ou enfrentamento. Há lugar tanto para as rupturas, para a identificação de modificações importantes nos discursos que passam a ser privilegiados em cada época, como também para algum tipo de continuidade, que não é simplesmente a manutenção de uma prática, mas a rearticulação de seus elementos em um novo contexto. As descobertas de Freud indicam também que o que é tido como natural está sujeito a ser apropriado para legitimar as diferentes criações da cultura (:241).

Diante desse quadro, podemos concluir que Laqueur pretende se afastar de uma análise que naturalize o objeto e estabeleça causas únicas para os processos que o engendram. Em contrapartida, prefere mais a idéia da imbricação de modos discursivos e a possibilidade de arranjos diferentes a cada momento, embora seja possível localizar alguns vetores que se tornam mais proeminentes. Além disso, em função da riqueza do material analisado, o autor consegue relacionar de modo eficaz os casos mais específicos com que trabalha com macroprocessos ou hipóteses mais amplas, sem cair porém em relações forçadas e artificiais.

II.

Vejamos agora o trabalho de Martin. A autora descreve seu objetivo como sendo o de estudar os processos culturais que afetam as mulheres e que, segundo ela, podem ser observados nas concepções que estas têm dos seus corpos. Martin trabalhou com 165 entrevistas de mulheres de Baltimore (EUA), que viviam em diferentes "comunidades" com distinções étnicas, de idade e de classe, cujas representações sobre o corpo passavam pela remissão aos discursos e práticas de ginecologistas e obstetras. A autora também incursionou sobre depoimentos e, principalmente, manuais médicos. Sua proposta era, então, investigar o que pessoas comuns e especialistas dizem quando estão descrevendo objetos como hormônios, útero, fluxo menstrual. Ou, em outros termos, qual a suposição cultural implícita a respeito da natureza da mulher e do homem. A cultura médica seria um sistema cultural cujas idéias e práticas perpassam a cultura popular. Isso poderia ser visto a partir da utilização do conceito de metáfora. Tanto os textos médicos quanto os depoimentos das mulheres estariam expressando, através de metáforas, concepções mais gerais sobre a sociedade, concepções estas que têm fundamento nos processos econômicos, sociais e políticos em curso em um dado momento.

Em várias passagens, o livro aponta para um uso do conceito de metáfora que é convincente na questão da circulação de discursos. Nesse caso, Martin consegue mostrar que opiniões e representações das mulheres sobre seus corpos têm referência, ou, pelo menos, combinam, com idéias mais gerais correntes na sociedade ¾ metáforas abrangentes e importantes em um determinado contexto social. É o que ocorre nos exemplos da menstruação e da menopausa.

A partir do século XIX, a ideologia da produção concretizada nas fábricas é tão abrangente que chega aos corpos. Os corpos das mulheres passam a ser pensados, nos textos médicos principalmente, como fábricas para a produção de filhos. Mais especificamente, o corpo é pensado, assim como a sociedade, em termos de uma organização hierárquica: são vários elementos ocupando posições de valor diferente no conjunto do sistema. No caso do corpo feminino, esse sistema funciona a partir da seqüência cérebro-hormônios-ovários, os quais se comunicam hierarquicamente. O bom andamento do sistema tem como resultado a produção de novos seres humanos. E qualquer evento que fuja a este objetivo implica uma desvalorização. É o caso da menstruação e da menopausa. Segundo Martin, tal como é descrita em textos médicos e em livros populares, a menstruação aparece como uma falha na produção. Todo o sistema estava preparado para gerar um novo produto e se isto não aconteceu é devido a algum tipo de falha. Já a menopausa é definida como o momento do término da produção, quando as máquinas já estão cansadas e começam a apresentar defeitos até que, finalmente, cessam de funcionar. Com referência à concepção hierárquica, pode-se apontar o fato de que as falhas acontecem porque algum elemento deixou de obedecer aos sinais de comunicação enviados pelo órgão superior. No caso da menopausa, os ovários é que deixariam de responder, quebrando a hierarquia da produção (:41-42).

As citações e encadeamentos que Martin faz em torno dessa questão, aqui resumida, são interessantes. Levam a pensar sobre a comunicação, a porosidade que pode haver entre eventos sociais mais abrangentes, como o advento da industrialização, e ações mais cotidianas, como o tipo de tratamento, e as concepções implícitas dos médicos em relação às mulheres e à reprodução. Através dos exemplos que a autora invoca fica difícil pensar que a menção à idéia da fábrica nos textos sobre reprodução seja uma mera coincidência com o sistema socioeconômico que se desenvolvia. É claro que por trás disso deve estar algo como um conjunto de referências proeminentes em um dado momento e que se reproduz em uma série de níveis.

Entretanto, em outros momentos, a passagem que Martin faz das concepções das mulheres entrevistadas aos textos médicos parece muito rapidamente localizável em idéias mais gerais. Como exemplo é possível citar o que diz sobre a tensão pré-menstrual. A autora afirma que o fato de, mais recentemente, os médicos nomearem o conjunto de sintomas que as mulheres sentem antes da menstruação implicou o reconhecimento de que esse é um problema real, o que pode ser positivo para as mulheres (:144-145). Tal suposição aponta para algumas dificuldades de seu texto. Martin parece esquecer que está tratando do caráter construído e mutável que a medicina tem, entre outros discursos, e de que um conjunto de possíveis sintomas e a sua conceituação também podem ser variáveis no tempo. Reconhecer que é bom que a tensão pré-menstrual seja nomeada revela mais sobre a sua ânsia de apresentar saídas para a dominação das mulheres do que algo sobre o material do qual se ocupa.

A questão da dominação é, mais uma vez, o que está por trás de seu argumento quando afirma que os sintomas que as mulheres descrevem na tensão pré-menstrual podem ser entendidos como indicativos de um processo de liberação. Martin usa depoimentos de suas entrevistadas, que falam desse período como um momento em que sentem raiva e, por vezes, até "possuídas" por alguma força estranha, para fazer prognósticos feministas. Acredita que essas descrições podem ser pensadas como momentos de manifestação da revolta das mulheres quanto à sua condição de subordinadas na sociedade. E vai mais longe ao afirmar que essa experiência comum das mulheres pode, de fato, se converter em uma base positiva para que se identifiquem como um grupo oprimido e busquem estratégias de fuga. Segundo ela, o problema é que até agora as mulheres localizam essa raiva mais em causas biológicas do que na sua real condição de opressão. Se isso fosse reavaliado, as perspectivas de conscientização seriam promissoras (:135).

Ao que parece, Martin acaba resolvendo muito rapidamente as questões colocadas pelo seu material mediante a hipótese inicial da dominação masculina. E aponta mais para o que considera perspectivas futuras de saída dessa dominação do que para a complexidade dos seus dados. Falar das perspectivas de liberação das mulheres, por mais importante que seja politicamente, não resolve os impasses metodológicos de sua investigação. O ponto de partida da dominação já aponta para onde os resultados da pesquisa deveriam chegar, fazendo com que os esforços explicativos cessem antes de articular melhor os problemas.

Na conclusão do livro, Martin sugere que a ciência médica é ligada a uma forma particular de hierarquia e controle (:197), portanto, a uma construção social. Em seguida, afirma que as mulheres podem usar a sua experiência comum para confrontar as concepções da medicina. O problema é que Martin não percebe que o que está chamando de experiência comum das mulheres é também uma construção social. Essa ressalva não seria necessária se a autora falasse de práticas discursivas ou linhas de força em contraposição. Mas, de modo distinto, ela prefere conceder um estatuto diferenciado a essa experiência. Embora diga que não se trata de uma volta à natureza, mas de um outro tipo de cultura, Martin localiza a noção de experiência a partir do corpo. Em função de vivenciarem processos corporais particulares, as mulheres conseguem ter a capacidade de articular melhor dimensões ideologizadas em domínios separados, como casa e trabalho, natureza e cultura, amor e contrato. Sendo assim, uma vez que se tornassem conscientes desse processo ou característica comum, poderiam ser capazes de perceber o problema dessas dicotomias e propor uma nova ordem social:

"Dado que seus processos corporais lhes são indissociáveis, forçando-as a justapor biologia e cultura, as mulheres vislumbram cotidianamente uma concepção de um outro tipo de ordem social. No mínimo, desde que elas não se adequam à divisão ideal das coisas (processos corporais, privados, pertencem ao doméstico), mais provavelmente serão capazes de perceber que a ideologia dominante é parcial: ela não captura sua experiência. Mais provavelmente também serão capazes de compreender o modo inextrincável pelo qual suas categorias culturais estão relacionadas e assim compreender a falsidade das dicotomias" (:200).

É estranho que a autora não discuta o fato de que imaginar que só as mulheres são capazes dessa nova visão é também uma suposição. E é atribuir às mulheres um status de portadoras de uma cultura específica, como se não partilhassem de todas as relações sociais com os homens ou como se estivessem até agora à margem da história. Aqui parece que Martin naturaliza o seu objeto que fica subsumido à categoria "as mulheres".

Em boa parte do livro, o que Martin faz é mostrar como o conteúdo de textos médicos e representações das mulheres não é o resultado exclusivo de descobertas científicas, mas tem relação com conjuntos de pensamento predominantes, idéias-chave, presentes de uma forma mais ampla em um determinado contexto social. O conceito de metáfora é o instrumento utilizado para dar conta dessas associações que, em alguns casos, parecem bastante coerentes. Contudo, quando a autora reduz a sua análise a subentendidos, como a dominação masculina ou a alienação das mulheres, acaba muito mais pressupondo do que demonstrando uma articulação entre micro e macroprocessos. Nesse caso, o uso da idéia de metáfora não é levado às últimas conseqüências porque a noção mais geral com a qual os comportamentos ou discursos mais específicos seriam relacionados não é descoberta e sim pré-concebida. Ao contrário da pluricausalidade que Laqueur sugere, Martin acaba caindo na redução à grande causa suposta da dominação masculina.

III.

O que se observa comparando os trabalhos de Laqueur e Martin é que enquanto o primeiro fala em pluricausalidade e desnaturalização dos objetos, a segunda está o tempo todo fazendo referências a grandes hipóteses como a de uma experiência particular das mulheres ou a da dominação masculina. Essa diferença de perspectiva se deve, evidentemente, a uma série de fatores, mas acredito que haja uma relação fundamental com as apropriações da obra de Michel Foucault explicitadas em cada um dos trabalhos. No caso de Laqueur, aparece uma aproximação clara com a perspectiva foucauldiana de críticas a modelos tradicionais de investigação que se apóiam em certas pressuposições e objetos considerados como dados sem serem problematizados. Idéias como a de desnaturalização do objeto, "acontecimentalização" e multiplicação causal, que marcaram as contribuições de Foucault, são colocadas de maneira explícita no percurso analítico de Laqueur, e levam a um aprofundamento da análise6.

No caso de Martin, a presença de Foucault não aparece no caminho metodológico escolhido pela autora, mas em rápidas, porém significativas, citações7. Martin, de fato, não poderia incorporar a perspectiva de Foucault porque esta é incompatível com o tipo de análise feita em The Woman in the Body. A noção do corpo como moldado pelas construções históricas não poderia se juntar ao argumento usado por Martin do corpo como base para uma experiência comum específica das mulheres. Por outro lado, o fato de esta autora ter de citar Foucault mesmo sem estar comprometida com sua perspectiva é indicativo de algo que ocorre em diversos campos de estudo, mas é mais destacado no caso das temáticas do corpo e da sexualidade, em relação ao papel essencial de Foucault. Trata-se do hábito de citar um autor que é de fundamental importância no campo, mas apenas como um ícone, como um atestado da legitimidade do trabalho que está sendo feito. A apropriação do autor, então, fica muito mais restrita à semelhança dos temas pesquisados do que à consideração de suas proposições teóricas.

Deixando de lado essa observação mais específica sobre o uso que Martin faz de Foucault, o importante é que, comparativamente, a perspectiva de Laqueur consegue ir mais longe na sua capacidade explicativa. E isto parece ser decorrente da centralidade que as contribuições foucauldianas têm na sua obra. As formulações de Foucault parecem extremamente frutíferas quando refletidas sobre as questões do corpo e da sexualidade. Permitem, em primeiro lugar, que se avance para além dos velhos esquemas dicotômicos em torno do par natureza/cultura. O corpo, se visto de uma perspectiva multicausal, já não é mais o mesmo do que em análises que privilegiam o biológico como um substrato irredutível. E também a sexualidade não é simplesmente construída por um único processo, como a medicalização, por exemplo. Esses dois lugares de tematizações sociais passam a exigir um esforço maior, o que é, sem dúvida, empreendido por Laqueur. Por outro lado, a análise de Martin parece mais presa a objetos e teses pensados como garantidos, implicando um certo reducionismo. Nos termos de Veyne (1995:164), enquanto o primeiro se apegaria ao processo de objetivação, ao o que foi o fazer em cada momento da história, a segunda se fundamentaria no objetivado, no que é feito.

Essas observações, no limite, poderiam servir para pensar outros trabalhos, outros assuntos ou ainda questões mais amplas, mas que estão relacionadas ao corpo. É o caso da velha oposição entre natureza e cultura. Contudo, nos temas do corpo e da sexualidade adquirem uma visibilidade maior. Isto se deve ao fato de muitos dos trabalhos centrados nesse campo se apoiarem em âncoras biológicas, como as diferenças entre os sexos, ou, do contrário, na idéia de que o corpo não é um elemento relevante para a análise histórica. Mas, se a perspectiva de Foucault, ou de Laqueur, for levada às últimas conseqüências, o corpo passa a ocupar outro lugar. O corpo deixaria de ser considerado como um dado encompassador, como faz Martin, que fundamenta o que acredita ser uma experiência peculiar das mulheres nos seus diferentes processos corporais, para tornar-se um campo maleável de fluxos que participa na elaboração de inúmeras possibilidades que envolvem discursos, práticas e intervenções concretas. O corpo continua sendo real, mas só pode ser analisado através das diferentes formas de agenciamento que assume em distintos momentos históricos. Em vez de o corpo ser algum substrato irredutível ou base sobre a qual se assentam as representações sociais, ele se transforma em uma dentre tantas outras variáveis que compõem os processos sociais capazes de engendrar determinados objetos.

Recebido em 5 de janeiro de 1998

Reapresentado em 2 de março de 1998

Aprovado em 16 de março de 1998

Fabíola Rohden é mestre e doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER).

Notas

Resumo

Este artigo apresenta uma análise comparativa dos livros Making Sex de Thomas Laqueur e The Woman in the Body de Emily Martin. Enquanto o primeiro se debruça sobre a trajetória de elaboração da distinção entre os sexos tal como a concebemos contemporaneamente, a segunda focaliza o corpo feminino visto a partir da ginecologia e da obstetrícia. O objetivo é mostrar como o corpo assume lugares distintos nas elaborações teórico-metodológicas dos dois autores, o que se reflete na construção de perspectivas mais ou menos reducionistas ou com maior ou menor capacidade explicativa. De um lado, uma concepção que leva em conta a historicidade do corpo e a pluricausalidade no processo da distinção entre os sexos; de outro, o corpo como substrato fundamental capaz de determinar uma experiência particular das mulheres.

Abstract

This article provides a comparative analysis of the books Making Sex, by Thomas Laqueur, and The Woman in the Body, by Emily Martin. While Laqueur studies how the distinction between the sexes as we now conceive of it was established, Martin focuses on the female body from the point of view of gynecology and obstetrics. The purpose is to show how the body assumes different places in the authors' respective theoretical/methodological work, as reflected in the construction of more or less reductionist perspectives, with greater or lesser explanatory capacity. On the one hand, a concept considering the body's historicity and the multicausality of the process of distinction between the sexes; on the other, the body as a fundamental substrate capable of determining women's particular experience.

Referências bibliográficas

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  • WEEKS, Jeffrey. 1985. Sexuality and its Discontents London: Routledge.
  • *
    Agradeço os comentários de Marcio Goldman, Federico Neiburg, Luiz Fernando Dias Duarte e Emerson Giumbelli.
  • 1
    A repercussão desse livro pode ser verificada nos comentários de Strathern (1992:68, 76); MacDonald (1990); e Behar (1990). Além disso, foi o objeto de um encontro realizado pela American Anthropological Association, em 1989, denominado "Author meets critics: Emily Martin and the cultural construction of scientific knowledge", no qual estavam presentes Donna Haraway e Karen Sacks, dentre outros (Martin 1992:
    xviii). A contracapa da edição de 1992 menciona que
    The Woman in the Body foi também o vencedor do Eileen Basker Memorial Prize de 1988.
  • 2
    Em 1994,
    Making Sex já se encontrava na 6
    a edição (sem contar as impressões em
    paperback). Quanto a alguns comentários referentes à obra de Laqueur, ver Gould (1991); Bynum (1992:19); e Hunt (1992:25-26).
  • 3
    É bom lembrar que, assim como afirmou Foucault (1994a:28-29) sobre a loucura ou a respeito do
    panotpticom, dizer que o sexo, enquanto dado natural, não existe não é concluir que não signifique nada ou que não produza efeitos.
  • 4
    Vale notar que, assim como Foucault, Laqueur e outros autores recorrem sempre a modos de representação bastante antigos para desnaturalizar as concepções modernas em torno do sexo. É importante lembrar que a própria noção de sexualidade é apontada por Foucault como uma construção específica da modernidade: "Tem-se uma sexualidade a partir do século XVIII, um sexo a partir do século XIX. Antes, tinha-se sem dúvida uma carne." (Foucault 1994b:313)
  • 5
    A tese de Laqueur é reafirmada pelo trabalho de L. Schiebinger (1987). Ao estudar a descoberta das especificidades do esqueleto feminino, fornece um exemplo bastante interessante de como a anatomia é moldada por circunstâncias sociais. Segundo essa autora, é no contexto da tentativa de redefinição da posição da mulher na sociedade européia do século XVIII que surgem as primeiras representações do esqueleto feminino, provando que os interesses da ciência não são arbitrários, mas que focam partes do corpo politicamente significantes. É o caso da afirmação de que a mulher tem um crânio menor, conseqüentemente menos capacidade intelectual e, portanto, menos condições de participar dos domínios do governo, comércio, educação, ciência. Ou, então, da constatação de que ela tem a pelve maior, o que prova que é naturalmente destinada à maternidade. Durante os séculos XVIII e XIX, a ciência cada vez mais evidencia que a natureza humana não é uniforme, mas se diferencia de acordo com idade, raça e sexo. Assim como Laqueur, Schiebinger também conclui que não é apenas uma questão de desenvolvimento científico. Pois, a anatomia já dissecava corpos de mulheres, o que poderia levar à observação das diferenças, mas isso não acontecia. Os anatomistas explicavam as diferenças que percebiam como meramente externas, sem grande importância porque não chegavam às estruturas mais profundas.
  • 6
    No capítulo sobre método de
    A Vontade de Saber (1988:88-97) Foucault sugere certas "prescrições de prudência", nas quais se destacam a
    desnaturalização do domínio da sexualidade como um campo desinteressado e livre do conhecimento científico em prol da consideração das relações de poder implicadas no seu processo de constituição, a busca das variações contínuas nos jogos de relações de força, os encadeamentos sucessivos entre estratégias locais e globais e a definição dos discursos como
    locus de articulação de saber e poder (1988:93-97). Ressaltam-se, especialmente, a noção de que não existe uma realidade pré-dada sujeita à investigação (no campo da sexualidade, mas também em qualquer outro) e em contrapartida a idéia de que o foco do pesquisador deve voltar-se para o campo das relações de força. Neste, articulam-se discursos e práticas, de acordo com objetivos táticos ou estratégicos, e nunca de maneira estagnada ou linear, mas sempre permitindo um grau crescente de complexidade da análise. Quanto ao conceito de
    acontecimentalização [
    événementialisation]: "consiste em recobrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias etc., que, em um momento dado, formaram o que em seguida vai funcionar como evidência, universalidade, necessidade. Tomando as coisas dessa maneira, procede-se a uma espécie de multiplicação causal" (1994a:23). Foucault explica que a
    multiplicação causal "consiste em analisar o acontecimento segundo os processos múltiplos que o constituem" (1994a:24). A tarefa do pesquisador será, então, construir em torno do evento analisado como um processo "um 'polígono', ou melhor, um 'poliedro de inteligibilidade', cujo número de faces não é definido antecipadamente e não pode jamais ser considerado, de pleno direito, como acabado" (1994a:24). A idéia é de saturação progressiva e inacabada e de permanente construção de inteligibilidades externas, que acompanham as decomposições no interior do processo analisado.
  • 7
    É o caso, por exemplo, da nova introdução de
    Making Sex, publicada na edição de 1992, na qual Martin tenta esclarecer alguns pontos do livro que foram alvo de críticas, e recorre a Foucault para reforçar o seu argumento do controle de si através do uso de categorias do conhecimento (1992:XIV).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      Out 1998

    Histórico

    • Revisado
      02 Mar 1998
    • Recebido
      05 Jan 1998
    • Aceito
      16 Mar 1998
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