No livro Frontier RoadURIBE, Simón. 2017. Frontier road: power, history, and the everyday state in the Colombian Amazon. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons. 270p, Simón Uribe apresenta uma importante contribuição às análises acerca do lugar da fronteira no processo de formação dos Estados nacionais. Sem perder de vista os múltiplos sentidos que perpassam o termo, Uribe escolhe abordá-lo a partir de uma de suas “conotações mais duradouras”: a da “fronteira” como “espaços selvagens e indomáveis pensados como a antítese da civilização” (:5). O cenário de sua etnografia é a região do Putumayo, no Sudeste colombiano, onde está localizada a zona de transição entre a Cordilheira dos Andes e a Floresta Amazônica. Ali, ainda no século XIX, iniciou-se a “história sem fim” da construção da estrada Pasto-Puerto Asís, que conectaria as duas regiões. Apresentada como epítome da retórica civilizatória mobilizada por agentes coloniais/estatais envolvidos no “sonho” de “vencer a barreira dos Andes” para viabilizar a ocupação, a integração e a exploração da “atrasada” e “selvagem” Amazônia colombiana, a estrada se torna o ponto de partida para a construção de uma etnografia sobre as representações, os personagens e os eventos históricos nacionais envolvidos no processo de (re)produção da Amazônia como um “espaço de fronteira”. O projeto é o eixo da análise apresentada pelo autor.
Fruto de pesquisa de doutorado defendida no Departamento de Geografia do London School of Economics em 2013, a obra impressiona pela densidade do material etnográfico apresentado. O livro é dividido em duas partes, com três capítulos cada. Na primeira parte, o autor narra como o projeto da estrada foi concebido e iniciado, explorando sobretudo o material reunido ao longo de extensa pesquisa documental realizada no Arquivo Provincial dos Capuchinos da Catalunha, em Barcelona, no Arquivo da Diocese de Sibondoy no Putumayo e no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional em Bogotá. Na segunda parte, o autor apresenta relatos etnográficos referentes ao trabalho de campo realizado na região do Putumayo em 2010, quando houve uma série de eventos e conflitos relacionados à promessa de um novo projeto de reestruturação na estrada Pasto-Puerto Asís. Reunindo esse conjunto heterogêneo de materiais, Uribe apresenta uma narrativa etnográfica densa sobre o “processo criativo-destrutivo” de (re)produção da fronteira, chamando a atenção para os imaginários coloniais espacializados, mobilizados e atualizados através de práticas e discursos estatais contemporâneos dirigidos à gestão de determinados territórios e populações no contexto colombiano.
No capítulo 1, Uribe inicia sua narrativa em meados do século XIX, quando o explorador “pioneiro” e futuro presidente da Colômbia Rafael Reyes realizou uma “viagem épica” para provar a navegabilidade do rio Putumayo. A jornada se inicia na cidade de Pasto, na região Andina e termina na cidade brasileira de Santo Antônio, onde o Putumayo se une ao rio Amazonas. A empreitada deu origem a um “sonho” que seria (re)atualizado muitas vezes ao longo do tempo: a criação de “um colossal sistema de navegação” que conectaria as repúblicas sul-americanas de Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e Guianas através da imensa hidrovia formada pelo rio Amazonas e seus afluentes. O “ambicioso plano” de Reyes dá início à história da estrada Pasto-Puerto Asís, infraestrutura que conectaria a região dos Andes colombiano à Amazônia, possibilitando o trânsito até o rio Putumayo. A partir das representações mobilizadas por Reyes para narrar sua “conquista”, Uribe inicia sua “análise histórica sobre a constituição da retórica” que produziu a Amazônia como um “espaço de fronteira”.
Nesta perspectiva, o autor retoma a forma como as missões religiosas atuantes no Putumayo durante o século XX contribuíram para a conformação discursiva e física desse projeto civilizatório de integração (capítulos 2 e 3) até chegar às ações contemporâneas conduzidas pelo Estado colombiano para reestruturar o “trampolim da morte”, expressão corrente para se referir à estrada. Em uma narrativa circular, Uribe intercala dados sobre as ações da colonização espanhola na região à descrição sobre as muitas etapas de construção de uma obra de infraestrutura interminável, de modo a enfatizar certa dimensão “imutável” na “linguagem” utilizada por agentes coloniais/estatais para representar a Amazônia no decorrer do tempo, destacando sobretudo o processo paralelo de “racialização do espaço” e de “espacialização da raça” que está na base da “retórica” de governo que recai sobre uma região tradicionalmente ocupada por diversas populações indígenas.
O principal objetivo teórico-analítico de Uribe é demonstrar a dimensão indissolúvel da relação entre o Estado e a “condição da fronteira”. Nesse sentido, sua proposta etnográfica de seguir continuidades a partir de uma narrativa de longa duração não é aleatória, caracterizando uma escolha metodológica fundamental para convencer seu leitor a respeito da interpretação própria que propõe para a relação Estado-fronteira. Para Uribe, na medida em que o Estado (pós-colonial) moderno carrega em seu mito fundacional uma série de antinomias e oposições entre civilização (cultura) e barbárie (natureza), o poder estatal depende da existência de fronteiras civilizacionais para reforçar a crença em sua soberania sobre o território e para legitimar a violência produzida para garanti-la. Em um quadro analítico weberiano, o exercício pleno da soberania estatal está associado à ocupação do território nacional, de modo que se desdobra dessa interpretação a imagem de um “Estado” que, para ser “forte”, deve movimentar-se em direção aos seus “espaços de fronteira” até que estes deixem de existir. Nesse marco, a “fronteira” representaria um espaço exterior à ordem estatal, um espaço onde “o Estado” ainda não teria efetivado sua presença e controle.
Para o autor, é uma incorreção falar nos termos de uma relação de exterioridade entre Estado e fronteira, argumentando que esta deve ser pensada como uma relação mutuamente dependente entre duas ordens indivisíveis. Segundo Uribe, “o Estado”, enquanto “ficção homogênea e monolítica”, encontra na fronteira uma “condição” para apresentar como antagonista; um “espaço de exceção” para (re)encenar a “missão civilizatória” que perpassa seu mito fundacional. Nesta perspectiva, em diálogo com Agambem, Uribe reflete sobre a relação entre Estado e fronteira nos termos de uma “relação de exclusão inclusiva”, destacando que a fronteira é continuamente (re)incluída na ordem estatal através de um processo criativo-destrutivo, no qual tanto os discursos quanto as intervenções estruturais sobre o território reiteram sua exterioridade física e simbólica à mesma ordem. Esse binarismo, destaca o autor, tem como efeito a exaltação dos simbolismos em torno de “o Estado”, legitimando o uso da violência para a proteção da soberania e garantindo sua manutenção.
Sempre retornando ao seu argumento central, ao longo de toda obra Uribe busca chamar a atenção para os percalços político-burocráticos enfrentados nas inúmeras tentativas de finalização do projeto civilizacional de integração simbolizado pela estrada Pasto-Puerto Asís. Assim, o autor nos provoca a seguir os efeitos cotidianos da dimensão indissolúvel da relação Estado-fronteira, convidando-nos a refletir criticamente sobre como esta perpassa as dinâmicas político-estatais direcionadas a atender ou não as demandas por melhorias em regiões marginais como a Amazônia colombiana. Desse modo, a interminável obra da estrada Pasto-Puerto Asís e o sentimento de “abandono” que o projeto incita na população do Putumayo são pensados em sua dimensão ativa, na medida em que o autor - dialogando com referências do campo da Antropologia do Estado - apresenta os eventos, os personagens e as experiências não como uma etnografia sobre as “falhas” de um “Estado que não é como deveria ser”, mas como uma narrativa sobre a “incompletude” inerente ao poder estatal que cotidianamente necessita “refazer-se”, reencenando suas antinomias estruturantes.
No livro, o autor realiza com perfeição um desafio narrativo de equilibrar uma etnografia de inspiração foucaultiana sobre o “processo de normalização” de um campo discursivo “racializado” sobre o “espaço da fronteira” (parte I) com uma descrição sobre a forma como as populações que habitam esses territórios apreendem as representações de longa duração sedimentadas sobre esses espaços, tanto reproduzindo-as como contestando-as em seu cotidiano (parte II). Dando continuidade à sua narrativa circular, nos últimos capítulos o autor não nos deixa perder de vista os imaginários racializados de longo prazo que perpassam os anseios por “desenvolvimento” narrados por seus interlocutores no contexto da especulação de uma nova intervenção a ser realizada na rodovia. Entretanto, partindo dos relatos de três personagens centrais na história do Putumayo e do projeto - um caminhoneiro, um ativista ambiental e um engenheiro (capítulo 4) - Uribe também busca destacar as dificuldades diárias enfrentadas pelos moradores de uma região onde a circulação depende de uma estrada precária carregada de alegorias de morte. Assim, o autor constrói uma contribuição original aos estudos sobre a “fronteira” realizados a partir do contexto colombiano, apresentando uma obra tanto sobre o processo da manutenção discursiva e simbólica dessa “ordem espacial” quanto sobre os efeitos de ordem física, material e destrutiva que recaem sobre os territórios em “conquista” e sobre as populações que os habitam.
Ao final, Uribe busca expandir as interpretações acerca da fronteira, analisando-a tanto como uma “ordem espacial” particular produzida através de um processo histórico colonial específico - a Amazônia colombiana - quanto como uma “condição” que perpassa a forma como determinados territórios e populações são gestados e geridos por agentes estatais. Este último ponto é adensado na descrição do processo de remoção de uma comunidade do Putumayo para a realização de novas obras na estrada e através de uma reflexão sobre a gestão dos “deslocamentos forçados” provocados pela guerra ao narcotráfico e pelo conflito de décadas entre o Estado colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (capítulos 5 e 6). De forma surpreendente, o autor termina a obra provocando-nos a refletir como a “condição da fronteira” perpassa a gestão do conflito e as milhares de mortes que este tem provocado e autorizado. Assim, através de uma proposta etnográfica incomum centrada nas múltiplas camadas de discursos, práticas e experiências relacionadas a uma obra de infraestrutura, Uribe apresenta um livro que põe em destaque os efeitos brutais e cotidianos das fronteiras civilizatórias de fundo colonial que os processos de Estado reificam e fazem perdurar no tempo.
- URIBE, Simón. 2017. Frontier road: power, history, and the everyday state in the Colombian Amazon Hoboken, NJ: John Wiley & Sons. 270p
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Maio 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019