Resumo
O ponto de partida para a discussão proposta neste artigo é a premissa de que a produção dos espaços de lazer está indissociável e dialeticamente relacionada com a produção dos espaços de trabalho nas cidades e metrópoles da contemporaneidade. Parte-se também do pressuposto de que as relações capital-trabalho/trabalho-lazer experimentaram modificações relevantes nas últimas décadas, que devem ser consideradas na análise da temática proposta. Busca-se caracterizar as transformações econômicas, políticas, sociais e culturais das relações capital-trabalho/trabalho-lazer no mundo contemporâneo, a partir da consolidação da sociedade industrial e da era moderna, para, em seguida, apresentar um estudo de caso específico em bairros populares de Salvador e Feira de Santana, sobre o trabalho e o lazer de microempreendedores, microempresários e consumidores dos bairros analisados, indicando e problematizando essas transformações em um contexto espaço-temporal específico. Por fim,com base nos conceitos de "ócio criativo" e "teletrabalho", amplia-se a discussão para refletir como as mudanças nas relações capital-trabalho/trabalho-lazer podem impactar o dia a dia das cidades e metrópoles, aprofundando uma visão prospectiva sobre esses impactos em contexto urbano e metropolitano.
Palavras-chave: Lazer; Trabalho; Empreendedorismo; Ócio Criativo; Cidade; Metrópole
Resumen
Para la discusión propuesta en este artículo, se toma como punto de partida, la premisa de que la producción de los espacios de ocio es indisociable y dialécticamente relacionada con la producción de los espacios de trabajo en las ciudades y metrópolis contemporáneas. Se parte también del supuesto de que las relaciones capital-trabajo/trabajo-ocio experimentaron modificaciones relevantes en las últimas décadas, que deben ser consideradas en el análisis de la temática propuesta. Se busca caracterizar las transformaciones económicas, políticas, sociales y culturales de las relaciones capital-trabajo/trabajo-ocio en el mundo contemporáneo, a partir de la consolidación de la sociedad industrial y de la era moderna, para, después, presentar un estudio de caso específico en barrios populares de Salvador y Feira de Santana, sobre el trabajo y el ocio de microemprendedores, microempresarios y consumidores de los barrios analizados, evidenciando y problematizando esas transformaciones en un contexto espacio temporal específico. Por último, con base en los conceptos de "Ocio creativo" y "teletrabajo", se amplía la discusión para reflexionar en cómo las mudanzas en las relaciones capital-trabajo/trabajo-ocio pueden impactar el día a día de las ciudades y metrópolis, profundizando en una visión prospectiva sobre tales impactos en un contexto urbano y metropolitano.
Palabras clave: Ocio; Trabajo; Iniciativa empresarial; Ocio creativo; Ciudad; Metrópolis
Abstract
The starting point for the discussion proposed in this article is the premise that the production of leisure spaces is inseparable and dialectically related to the production of work spaces in contemporary cities and metropolises. It is also based on the assumption that capital-work/work-leisure relationships have undergone relevant modifications in recent decades, which should be considered in the analysis of the proposed theme. The aim is to characterize the economic, political, social and cultural transformations of capital-work/work-leisure relationships in the contemporary world, starting from the consolidation of industrial society and the modern era, and moving on to present a specific case study of working class neighborhoodsin Salvador and Feira de Santana, about the work and leisure of micro-entrepreneurs, the proprietors of micro-businesses, and consumers in neighborhoods in the study, indicating and problematizing these transformations in a spatial-temporal context. Finally, based on the concepts of "creative idleness" and "telework" the discussion is widened to reflect on how the changes in capital-work/work-leisure relationships may impact on daily life in cities and metropolises, deepening a prospective vision of these impacts in an urban and metropolitan context.
Key words: Leisure; Work; Entrepreneurship; Creative Idleness; City; Metropolis
INTRODUÇÃO
Falar de espaços de lazer na produção das metrópoles implica discutir as relações socioespacias abarcadas pelo fenômeno, vinculando-o a outro que constitui seu par dialético e inseparável: os espaços de trabalho em contexto metropolitano na contemporaneidade. Ou seja: problematizar o lazer implica em pensar também o trabalho, em especial os múltiplos espaços-tempo envolvidos em ambas as atividades. Parte-se aqui do pressuposto - embora reconhecendo e assumindo o risco que esta reflexão possa destoar um pouco das intervenções dos colegas expositores da mesa-redonda - que as relações capital-trabalho/trabalho-lazer sofreram modificações importantes nas últimas décadas que devem ser consideradas na análise da temática proposta.
Com base no pensamento de David Harvey, Hannah Arendt e Richard Sennett, busca-se em um primeiro momento caracterizar as transformações econômicas, políticas, sociais e culturais das relações capital-trabalho/trabalho-lazer no mundo contemporâneo, a partir da consolidação da sociedade industrial e da era moderna, para, em um segundo momento, apresentar um estudo de caso específico em bairros populares de Salvador e Feira de Santana, sobre o trabalho e o lazer de microempreendedores, microempresários e consumidores dos bairros analisados, indicando e problematizando essas transformações em um contexto espaço-temporal específico. Em um terceiro momento, baseado, sobretudo, nos conceitos de "ócio criativo" e "teletrabalho", como concebidos por Domenico de Masi, amplia-se novamente a discussão para refletir como as mudanças nas relações capital-trabalho/trabalho-lazer podem impactar o dia a dia das cidades e metrópoles, aprofundando uma visão prospectiva sobre esses impactos em contexto urbano e metropolitano.
A título introdutório começo pela questão do trabalho e da automação. Trabalho e capital são indissociáveis no modo de produção capitalista, mas o labor da reprodução social não foi (ou o foi de modo marginal) incorporado como trabalho produtivo na dialética do modo de produção. Ou seja: cuidar da casa, dos filhos, de si próprio não é considerado trabalho produtivo. Essa é a lógica do modo de produção e, mesmo com o que chamamos de acumulação flexível do capitalismo em sua fase atual, essa máxima ainda é verdadeira.
Se a lógica do trabalho produtivo nos países centrais e também, embora mais tardiamente, nos países periféricos, tende para a automação e a flexibilização, para a precarização e para o curto prazo, o trabalho da reprodução, no âmbito da esfera privada, da família e do indivíduo, é de longo prazo. Então, o que poderia ser o mundo com menos trabalho produtivo (liberado pela automação) e mais tempo para o labor, para o trabalho reprodutivo?
E é claro que isso também tem consequências para a dialética do lazer e do trabalho nos moldes como a conhecemos hoje. O lazer é reprodução, o trabalho produção, mas o que seriam lazer e trabalho dialeticamente relacionados na esfera da reprodução? Richard Sennett mostra, em"O Declínio do Homem Público" (SENNETT, 1998), por exemplo, como os jogos infantis preparam o futuro adulto para as regras sociais, para o controle de suas emoções e o autodistanciamento, para negociar suas emoções na esfera pública. Ou seja: o lúdico é pré-condição para a cooperação entre seres humanos, para existirmos socialmente. A contradição é que hoje o lúdico também foi capturado pela lógica do modo de produção, o lazer se tornou possibilidade de captura de mais-valias, embora nas brechas e nos interstícios urbano-metropolitanos o lúdico e a arte possam ajudar a subverter as relações nos moldes como elas estão hoje estabelecidas (SERPA, 2007).
SOBRE AS RELAÇÕES CAPITAL-TRABALHO/TRABALHO-LAZER NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Em conferência proferida no XIII SIMPURB, realizado no Rio de Janeiro, David Harvey afirmou que, enquanto o capital vai muito bem, as pessoas, de modo geral, vão muito mal, enfatizando que essa fissura entre o bem-estar do capital e o bem-estar das pessoas cresce cada vez mais rápido tanto em termos quantitativos como qualitativos. Se referenciando em Marx e seu conceito de alienação, Harvey se questiona "qual a relação entre vida profissional e qualidade de vida" e "até quando as pessoas seguirão sem dizer que não se pode viver dessa maneira" (HARVEY, 2014, p. 55).
Harvey se referencia em uma pesquisa sobre satisfação profissional nos Estados Unidos através da qual se revelou que 70% da população do país "têm aversão ou absoluta indiferença ao trabalho que realizam", acreditando "viver em ambientes de trabalho com funções sem qualquer importância, das quais não se orgulham, pelas quais não têm satisfação, que consideram desinteressantes" (HARVEY, 2014, p. 55). O autor lança, nesse contexto, uma questão particularmente pertinente para a discussão aqui proposta: "Por que, em uma sociedade que tem criado todo tipo de tecnologias para poupar tempo, a maioria de nós tem menos tempo para de fato pensar e relaxar?" (op. cit.).
TRABALHO E LAZER NA ERA MODERNA: A SOCIEDADE INDUSTRIAL
A separação funcional (e radical) entre trabalho e lazer - tanto em termos temporais como espaciais - remonta, segundo diversos autores, aos primórdios da sociedade industrial. E isso teve, é claro, consequências para a cidade, que,
por sua vez, também se especializa: desenvolve-se a zona industrial, local onde se produz; os bairros residenciais, onde se descansa; os bairros comerciais, onde se fazem as compras; as zonas de lazer, lugar de diversão, etc. Trata-se da cidade funcional, tão cara a Corbusier (...) A fábrica sincronizada requer uma cidade sincronizada (...) todo mundo tem que sair e voltar para casa no mesmo horário (...) a cidade congestiona-se bairro após bairro, devido ao deslocamento de todos os seus habitantes num só horário, e esse é um dos grandes desperdícios da sociedade industrial (DE MASI, 2000, p. 57).
Segundo Hannah Arendt, o perigo da automação na sociedade industrial não é "tanto a tão deplorada mecanização e artificialização da vida natural", mas uma intensificação sem precedentes do processo vital de reprodução da sociedade, já que o ritmo das máquinas aumenta "enormemente o ritmo natural da vida", minando a durabilidade do mundo humano (ARENDT, 2000, p. 144-145). Seu raciocínio baseia-se na distinção entre labor e trabalho, o primeiro, concentrado "exclusivamente na vida e em sua manutenção, é tão indiferente ao mundo que é como se este não existisse", cujos produtos - resultado do metabolismo dos seres humanos com a natureza - "não duram no mundo o tempo suficiente para se tornarem parte dele" (op. cit., p. 130), enquanto o segundo "fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. Em sua maioria, mas não exclusivamente, essas coisas são objetos destinados ao uso, dotados de durabilidade" (op. cit., p. 149), e as "coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana" (p. 150).
Arendt critica Marx por não estabelecer essa distinção entre labor e trabalho, entre o animal laborans e o homo faber, crítica que ela estende a outros pensadores sociais da chamada "era moderna". Mas, para ela, a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo - ou reprodutivo -, "embora eivada de preconceito", contém, ainda hoje, a "distinção mais fundamental entre trabalho e labor":
A era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase que irresistivelmente a encarar todo labor como trabalho e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar totalmente o labor e a necessidade. Sem dúvida,a evolução histórica que tirou o labor de seu esconderijo e o guindou à esfera pública, onde pôde ser organizado e 'dividido', constituiu poderoso argumento no desenvolvimento dessas teorias (...) Ao contrário da produtividade do trabalho, que acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade do labor só ocasionalmente produz objetos; sua preocupação fundamental são os meios da própria reprodução (...) nunca 'produz' outra coisa senão 'vida' (ARENDT, 2000, p. 98-99).
Sob essa ótica, labor e consumo seriam apenas "dois estágios de um só processo, imposto ao homem pelas necessidades da vida", nivelando "todas as atividades humanas, reduzindo-as ao denominador comum de assegurar as coisas necessárias à vida e de produzi-las em abundância" (ARENDT, 2000, p. 139). Seguindo o raciocínio arendtiano chegamos à clássica oposição entre trabalho e lazer, típica da era moderna e da sociedade industrial:
A (...) tendência de reduzir todas as atividades sérias à condição de prover o próprio sustento é evidente em todas as atuais teorias do trabalho, que quase unanimemente definem o trabalho como o oposto do lazer. Em consequência, todas as atividades sérias, independentemente dos frutos que produzam, são chamadas de 'trabalho', enquanto toda atividade que não seja necessária, nem para a vida do indivíduo nem para o processo vital da sociedade, é classificada como lazer (...) Do ponto de vista de 'prover o próprio sustento', toda atividade não relacionada com o labor torna-se 'hobby' (ARENDT, 2000, p. 139-140).
Dito de outro modo, o trabalho igualado ao labor corresponderia à necessidade e o lazer à liberdade, já que "é realmente notável observar como é plausível, ao pensamento moderno, ver no lazer uma fonte de liberdade" (ARENDT, 2000, p. 139). Arendt acha surpreendente o papel do hobby na sociedade moderna e lança a hipótese de que esteja aí a raiz da experiência nas teorias trabalho-lazer: na sociedade utópica de Marx, livre do trabalho, "todas as atividades seriam exercidas numa forma que lembra muito de perto a maneira dos hobbies" (op. cit., p. 140). Mas, a utopia de Marx, de que as horas vagas emancipariam os homens da necessidade, tornando produtivo o animal laborans, seria falaciosa, já que essas horas vagas "jamais são gastas em outra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são seus apetites" (op. cit.,p. 146).
O fato de que estes apetites se tornam mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida mas ao contrário visa principalmente as superfluidades da vida, não altera o caráter desta sociedade; acarreta o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo (ARENDT, 2000, p. 146).
MUDANÇAS RECENTES NO MUNDO DO TRABALHO
Para Sennett (2006), a automação teve reflexos profundos na pirâmide burocrática das instituições públicas e privadas, especialmente nos países centrais, diminuindo drasticamente sua base a partir do final do século XX. Assim, tanto no trabalho braçal quanto no intelectual, as organizações podem agora, graças às inovações tecnológicas, disseminar tarefas rotineiras de modo mais eficiente: "Não é apenas que se tenha tornado possível reduzir pura e simplesmente o tamanho da força de trabalho, mas também que a gerência pode reduzir as camadas funcionais na base - um exército institucional em que os soldados são circuitos" (SENNETT, 2006, p. 46). E isso dificulta especialmente a inclusão das massas no mundo do trabalho, deixando de fora "os elementos mais vulneráveis da sociedade, os que desejam trabalhar mas não dispõem de capacitações especializadas" (op. cit.).
Sennett defende a ideia de que o final do século XX virou algumas páginas decisivas para o modo de produção capitalista: mudança do poder gerencial para o poder acionário nas grandes empresas; os serviços bancários de investimentos tornaram-se efetivamente internacionais; os investidores assumiram a posição ativa de juízes, turbinando ou desmontando corporações inteiras; foco em resultados a curto e não a longo prazo; "dessedimentação institucional", com delegação de certas funções a terceiros em outras firmas; atração ou descarte de empregados à medida que a empresa transita de uma tarefa a outra; trabalhadores vinculados por contratos de curta duração; encurtamento do tempo operacional da organização com foco cada vez maior nas tarefas imediatas e de pequeno porte (SENNETT, 2006, p. 41-51). O autor aponta também, como consequência dessas transformações estruturais, três déficits principais para as organizações: "baixo nível de lealdade institucional, diminuição da confiança informal entre os trabalhadores e enfraquecimento do conhecimento institucional" (op. cit., p. 62).
O resultado desses processos é o desgaste das identidades de trabalho em um contexto de instituições sempre reinventadas: "Grande parte dos processos corporativos de reestruturação tem (...) o caráter de uma paixão autocomsuptiva em ação, particularmente na busca de 'sinergias' prospectivas nos processos de fusão de empresas" (SENNETT, 2006, p. 131). É essa mesma paixão autocomsuptiva que leva o consumidor a buscar o estímulo da diferença em produtos cada vez mais homogêneos, parecendo-se com "um turista que viaja de uma cidade clonada para outra, visitando as mesmas lojas, comprando em cada uma delas os mesmos produtos. Mas o fato é que viajou: para o consumidor o estímulo está no próprio processo do movimento" (op. cit., p. 137). É desse modo também que trabalhadores, objetos e lugares tornam-se descartáveis, já que a busca contínua de novos estímulos faz a renúncia e o descarte não serem mais experienciados como perdas.
No mundo do trabalho do novo capitalismo desaparecem paulatinamente o emprego vitalício bem como as carreiras dedicadas a uma única instituição e cresce o trabalho temporário, que se constitui no setor da força de trabalho que mais rapidamente cresce em países como Estados Unidos e Grã-Bretanha, representando atualmente
8% da força de trabalho americana. Se acrescentarmos as pessoas empregadas com contratos de curto prazo para evitar despesas com benefícios, no comércio varejista, em restaurantes e outros trabalhos do setor de serviços, o percentual chegaria a algo em torno de um quinto da força de trabalho (SENNETT, 2006, p. 51).
Sennett defende a tese, particularmente interessante para a discussão aqui proposta, de que essas transformações alteram o caráter dos indivíduos a elas submetidos, se perguntando como podem ser buscados objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo, como podem ser desenvolvidas narrativas de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos. Para o autor, "as condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego", corroendo as "qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros" (SENNETT, 2007, p. 27). O lema "não há longo prazo" é o sinal mais tangível das novas maneiras de organização do tempo, sobretudo do tempo do trabalho na contemporaneidade (op. cit., p. 21).
Por outro lado, para fugir da instabilidade do trabalho temporário e de curto prazo, muitos trabalhadores se aventuram como empreendedores individuais, especialmente no setor terciário, com micro, pequenas e médias empresas. Ao contrário da lógica das grandes empresas e instituições, muitos desses empreendimentos têm alcance apenas local ou são negócios de família. Isso ocorre em países centrais como Grã Bretanha e Estados Unidos - onde a maioria das empresas tem menos de três mil empregados e algumas oferecem serviços artesanais, como as empresas de construção em pequena escala (SENNETT, 2006, p. 47) -, mas também em países periféricos como o Brasil, onde o empreendedorismo vem sendo assumido em larga escala pelas classes populares, como passamos a analisar, ainda que brevemente, a seguir.
EMPREENDEDORISMO POPULAR NA BAHIA: SEM TEMPO PARA O LAZER
Antes de enveredar pela análise das relações entre trabalho e lazer no universo da assim chamada "classe C" no Brasil, e, particularmente, em bairros populares de duas cidades na Bahia, apresenta-se aqui, de modo breve e geral, os fundamentos da pesquisa "Empreendedorismo popular e ascensão social em diferentes contextos urbano-regionais" e seus primeiros resultados relativos a dois estudos de caso até aqui realizados: o bairro do Tomba, em Feira de Santana, e o bairro de Paripe, em Salvador, na Bahia.
Nesta pesquisa, parte-se da análise de um fenômeno novo, que vem se manifestando nos bairros populares das cidades brasileiras, que apresentam cada vez mais moradores com renda mais elevada e em processo de "ascensão social" relativa. Essas áreas vêm se tornando mais complexas e autossuficientes, com a multiplicação de subcentros (e sua diversificação). No primeiro ano de levantamentos, foram catalogados e mapeados os estabelecimentos comerciais e de serviços localizados no Tomba e em Paripe, assim como aplicados questionários junto aos consumidores e empreendedores visando a delinear seu perfil nos núcleos comerciais e de serviços mais significativos. Com a caracterização dos empreendimentos e do perfil de consumidores e empreendedores, foram realizadas entrevistas qualitativas com os empreendedores amostrados entre aqueles que responderam aos questionários na primeira fase da pesquisa, de modo a caracterizá-los quanto a sua posição e sua condição na estrutura social, enfatizando suas trajetórias e seu capital (social, cultural e econômico, conforme BOURDIEU, 2007 [1979]).
Essas entrevistas permitiram inferir que a ascensão na estrutura social dos entrevistados implica em endividamento e no empobrecimento do capital social de que dispõem. O capital escolar/cultural permanece praticamente inalterado, a continuidade dos estudos dependendo de um enorme esforço pessoal daqueles que se dispõem a fazê-lo. São fortes os indícios de que essa ascensão se dá mais pela inserção no consumo do que por um incremento dos anos de escolaridade ou por participação em eventos e manifestações culturais. Por outro lado, percebe-se também que a inserção pelo consumo pode interferir na vida de relações sociais dos bairros populares analisados, com o empobrecimento do capital social de empreendedores (e consumidores), em suas trajetórias ascendentes na estrutura social das cidades e regiões onde atuam, com implicações, portanto, na estrutura social dos bairros como um todo.
No contexto nacional, sabe-se também que os bairros populares - em geral populosos e com grande extensão territorial - concentram uma boa parte dos pequenos negócios nas cidades brasileiras. Embora não disponha de pesquisas de cunho estatístico, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) fez um levantamento dos empreendimentos por bairro para elaboração do roteiro Negócio a Negócio, no qual, para Salvador, são classificados como bairros empreendedores: Brotas, Cabula, Cajazeiras, Itapuã, Itapagipe, Liberdade, Pau Miúdo, Pau da Lima, Paripe e Pernambués (SEBRAE, 2013).
Conforme a Associação Brasileira de Franchising, o crescimento dos pequenos negócios nos anos 2000 relaciona-se com a ascensão de mais indivíduos à classe C, que utilizam recursos próprios ou empréstimos bancários para iniciar os novos empreendimentos (BORGES, 2013, p. 1-3). O SEBRAE vem, inclusive, desenvolvendo mutirões itinerantes de "empreendedorismo individual" em bairros populares das cidades baianas, a exemplo de Feira de Santana, onde o mutirão chegou aos bairros de Feira 9 e Morada das Árvores (www.ba.agenciasebrae.com.br/).
Nesse contexto, brevemente caracterizado, retomemos a questão colocada por Harvey para esse universo particular: Por que a maioria de nós tem menos tempo para de fato pensar e relaxar, em uma sociedade na qual a tecnologia tende a cada vez mais liberar tempo livre para o lazer?Em primeiro lugar, entre nossos entrevistados, a maioria expressa a vontade de expandir seus negócios, diversificando suas atividades ou abrindo filiais em outros bairros ou no centro das cidades ou, ainda, em outras cidades das regiões onde atuam. O objetivo é sempre crescer e expandir o empreendimento, o que naturalmente inviabiliza o lazer e a diversão a curto e médio prazos no cotidiano destes agentes.
As entrevistas realizadas forneceram subsídios que também permitem situar as trajetórias dos empreendedores no tempo e no espaço, possibilitando inferir que a ascensão dos entrevistados na estrutura social implica, como já mencionado, no empobrecimento do capital social que dispõem, fato evidenciado pelo lazer restrito bem como pela falta de tempo para os amigos e para frequentar equipamentos culturais. Em comum, apesar de pertencerem a gerações/faixas etárias e contextos urbano-regionais diferentes, nossos entrevistados praticamente restringem seu lazer a atividades com a família e ao descanso em casa.
Com a família, frequentam, quando o tempo livre permite, preferencialmente shoppings, cultos e missas, mais raramente a praia ou um clube social no final de semana. Poucos declararam algum interesse por atividades culturais como cinema, teatro ou shows. Em casos mais extremos afirmam que o lazer é descansar em casa para "reabastecer as baterias" das longas jornadas de trabalho enfrentadas em seu cotidiano, como demonstram alguns extratos selecionados das entrevistas realizadas:
Olha, aqui em Paripe não, eu entro meio dia e saio seis horas, não tenho tempo. Em Stella Maris [bairro onde a entrevistada mora], o que eu faço é ir à praia, eu gosto muito do mar. Mas, lhe confesso que hoje, se você disser assim "o que é que você faz fora do horário de trabalho?", eu vou pra minha casa, boto meu cachorro no colo, ligo a televisão e fico viajando no que a televisão está passando, para esvaziar minha mente de tão sobrecarregada que ela fica (Márcia Virgínia Medrado Vasconcelos, dona de uma loja de roupas e produtos para bebês no bairro de Paripe, Salvador).
Hoje eu não tenho tempo, não temos finais de semana, não temos folga, não temos feriado, não podemos marcar uma reunião com a família, porque geralmente a gente está cansado e tem que descansar, todo tempo que a gente pode descansar é prioridade. Hoje nosso tempo de descanso virou uma coisa prioritária, porque nós não temos uma rotina de descanso normal, você tem que abrir 7:00 da manhã e não sabe o horário de fechar, você trabalha feriado, você trabalha sábado o dia todo, domingo até 13:00 ou 14:00. Eu digo isso porque eu não trabalho domingo, mas meu esposo trabalha, tem que abrir, ele sai de casa 4:30 da manhã para pegar a feira e fica até 14:00 que é o movimento, então eu perdi aquela parte de lazer, eu não tenho lazer (Joseany Santos, dona de uma loja de embalagens no bairro do Tomba, Feira de Santana).
Só futebol e algum evento aí na praça. No tempo livre, eu descanso, aqui é das 7 da manhã até às 7 da noite, tem vezes que eu fecho a oficina e ainda fico aqui trabalhando (Orlando dos Santos Silva, dono de uma oficina de bicicletas no bairro do Tomba, Feira de Santana).
Geralmente eu fico em casa final de semana, quando a gente sai é coisa rápida. Geralmente é mais em casa mesmo, quando não vai visitar algum parente é em casa mesmo. Paripe mesmo a gente não... (Vocês não frequentam a praia aqui?) Não, geralmente quando a gente frequenta alguma praia é um pouco mais distante. (Mas vão à praia?) Vamos. (E outros lugares mesmo que não em Paripe? De lazer, de cultura, vocês frequentam?) Frequentamos, como a gente tem filha pequena, frequentamos zoológico, cinema, shopping, praça de alimentação... (Leandro Santana, dono de uma loja de enxoval para bebês no bairro de Paripe, Salvador).
Em meu tempo livre, a gente procura ir num clube aqui próximo chamado Águas Claras para descontrair a mente ali. As opções de lazer em Feira de Santana são poucas, meu maior lazer também, eu não sei se é lazer, é a noite estar congregando, participando das atividades da igreja (Joelio dos Santos Guerra, dono de uma loja de confecções no bairro do Tomba, Feira de Santana).
Concorda-se com Jessé Souza, a partir dos resultados iniciais de nossas pesquisas, que a chamada classe C nos bairros populares de nossas cidades reúne "elementos de uma classe trabalhadora 'pós-fordista' (...) superexplorada, sem tradição de solidariedade de classe e se acreditando empresários de si mesmos, com elementos de uma pequena burguesia (...), no sentido de empreender pequenos negócios (...)" (SOUZA, 2015, s/p). O sociólogo classifica esses trabalhadores como "batalhadores brasileiros", título de um de seus livros mais recentes (SOUZA, 2010):
A vida dos 'batalhadores' é completamente outra. Ela é marcada pela ausência dos 'privilégios de nascimento' que caracterizam as classes médias e altas. Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias 'verdadeiras', quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de superexploração da mão de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras, daí nossa hipótese de trabalho desenvolvida no livro que nega e critica o conceito de 'nova classe média' e tenta construir um conceito de 'nova classe trabalhadora', produto das novas condições da divisão de trabalho internacional e da nova dominância global do capital financeiro. Esses fatores fazem com que essa nova classe não tenha nada de 'especificamente brasileira', já que países como China, Índia e grande parte do sudeste asiático também devem boa parte de seu dinamismo atual a este mesmo fenômeno (SOUZA, 2012, s/p).
Pode-se afirmar, portanto, que, nos dois bairros populares analisados, tanto empreendedores como consumidores reúnem exatamente as características elencadas por Souza para a "nova classe trabalhadora", um estrato "que dinamizou a economia brasileira na última década e estimulou o mercado de consumo de bens duráveis" (SOUZA, 2015, s/p). Trata-se de uma "classe muito heterogênea, com distinções regionais importantes e abrangendo desde pequenos empresários até trabalhadores superexplorados e sem direitos sociais" (op. cit.). A superexploração de que fala Souza também compromete, como destacado aqui, o tempo livre dos empreendedores e consumidores alcançados por nossas pesquisas, que trabalham muitas horas por dia e, em termos de escolaridade, não conseguem em geral ascender ao ensino superior, alguns, inclusive, possuem apenas o ensino fundamental completo.
As observações de Souza remetem, por outro lado, à reflexão de Sennet em relação ao capital social disponível entre as diferentes classes sociais, fato relevante também no contexto dos países centrais:
Aqui classe é tudo. Uma pessoa de origem privilegiada pode se dar ao luxo da confusão estratégica, o que não acontece com o filho das massas. Oportunidades casuais podem oferecer-se ao filho do privilégio em virtude do meio familiar e das redes educacionais; o privilégio diminui a necessidade de traçar estratégias. Redes humanas amplas e fortes permitem que aqueles que estão no alto da escala lidem com o presente; as redes constituem uma rede de segurança que diminui a necessidade de planejamento estratégico de longo prazo (...) A massa, no entanto, dispõe de uma rede mais rala de contatos e apoios informais, permanecendo, portanto, mas dependente das instituições (SENNETT, 2006, p. 76).
TELETRABALHO E ÓCIO CRIATIVO: A AMPLIAÇÃO DO TEMPO LIVRE
Em seu livro "O ócio criativo", De Masi se questiona sobre determinado fato, constatado, segundo ele, com muita frequência no Brasil, mas por vezes também na Itália, onde ele viu, em hotéis e diretorias empresariais, "rapazes que, para ganhar o pão de cada dia, passam o dia inteiro dentro de um elevador, apertando os botões correspondentes aos andares onde os clientes desejam sair". Diante disso, ele se pergunta o porquê de "depreciar a este ponto a vida e a inteligência de um rapaz, mantendo-o fechado (...) oito horas por dia num elevador, para fazer um trabalho idiota e inútil", se não seria melhor para a sociedade de modo geral que "lhe dessem a mesma importância de dinheiro, pedindo-lhe em troca que continuasse a estudar" (DE MASI, 2000, p. 265).
Para De Masi, a sociedade pós-industrial, diferente da sociedade rural e da sociedade industrial, se caracteriza por "uma progressiva delegação de trabalho a aparelhos eletrônicos e por uma relação cada vez mais desequilibrada entre o tempo dedicado ao trabalho e o tempo livre" (op. cit., p. 101). Seguindo este raciocínio, os empregados atualmente realizam em dez horas o que poderiam concretizar em metade do tempo, mas "mesmo que se reduzisse à metade o (...) expediente, não seriam criadas as exigências de contratação de novo pessoal. Para (...) isso, seria necessário reduzir o expediente a três horas", e esta redução "deveria ser logo acompanhada de uma semana feita de, no máximo, três dias úteis, e cada mês teria, no máximo, três semanas de trabalho". Ainda assim, ele acredita que o overtime não seria resolvido, pois as pessoas permaneceriam no trabalho muitas horas além do expediente regular, já que "não estão mais habituadas a ficar em casa, a ter tempo para si. (...) E só a longo prazo poderiam começar a apreciar o tempo livre, aprendendo a valorizá-lo" (op. cit., p. 164).
Em acordo com as tendências apontadas por Harvey e Sennett, De Masi também acredita que grande parte dos novos empregos gerados nos EUA, Japão e alguns países europeus são trabalhos de meio expediente, "de baixa qualidade e baixa remuneração, realizados em sua grande maioria por imigrantes" (op. cit., p. 100). De Masi diferencia, no entanto, esse tipo de trabalho dos empregos part-time, que, em sua opinião, seriam talvez "a única forma de redistribuição do trabalho que possa ser aceita pelas empresas" (op. cit.), algo que já ocorria, no início dos anos 2000, em países como a Holanda, Inglaterra e Estados Unidos, onde os empregos part-time correspondiam, respectivamente, a 36%, 22% e 20% da população empregada. Mesmo admitindo que alguns são sobrecarregados de trabalho por uma distribuição mal feita do tempo e das atividades, o autor acredita que, "para a maioria, diminui o trabalho, de modo que muitas pessoas poderiam se limitar a trabalhar cinco ou, no máximo, seis horas por dia" (op. cit., p. 160).
Outro argumento utilizado por De Masi, para sustentar que trabalhamos em geral o dobro do tempo necessário, são as pesquisas sobre o "teletrabalho", "o trabalho que não é realizado nos escritórios, mas na própria residência" (op. cit., p. 163). Estas pesquisas "evidenciam que as tarefas que na empresa requerem de oito a dez horas para serem realizadas, em casa se realizam, comodamente, na metade do tempo: de quatro a cinco horas, no máximo" (op. cit.). É com base nessas ideias que o autor propõe a introdução do teletrabalho e da "semana brevíssima", não só para modificar radicalmente a organização do trabalho, mas também da vida, já que "as pessoas serão obrigadas a planejar um fim de semana de três ou quatro dias, no lugar do de só dois dias, a recuperar o relacionamento com mulher e filhos, a participar da vida civil" (op. cit., p. 166). Segundo De Masi, "pela primeira vez, (...) desde os tempos de Taylor, mudar a organização do trabalho pode significar 'mudar a organização de toda uma existência'" (op. cit., p. 167), mesmo diante do fato de que para isso seria necessário uma "reeducação para o tempo livre" (op. cit.). Em suma:
Agora é possível produzir sempre mais bens e serviços com sempre menos trabalho humano. Isto significa que para um jovem com 20 anos, hoje, o trabalho representa só um sétimo de todo o tempo que ele irá viver (...) Uma vez delegadas às máquinas as tarefas executivas, para a maioria das pessoas sobra só o desempenho de atividades de tipo intelectual, flexível, criativo, empreendedor: atividades que, pela sua própria natureza, desembocam no estudo e no jogo. (...) Em outras palavras, nos anos passados foi o trabalho que colonizou o tempo livre. Nos anos futuros será o tempo livre a colonizar o trabalho (DE MASI, 2000, p. 298).
Ainda de acordo com De Masi, a sociedade atual deve assumir a reeducação para o tempo livre, que é também uma educação para o ócio e a criatividade. Deve-se ensinar sob essa ótica aos indivíduos o "prazer do convívio, da introspecção, do jogo e da beleza" (op. cit., p. 313), o hábito "às atividades domésticas e à produção autônoma de muitas coisas que até o momento comprávamos prontas" (op. cit.), a escolha atenta dos lugares "para se repousar, para se distrair e para se divertir" (op. cit.), educando os jovens não só para os meandros do mundo do trabalho, mas também para os "meandros dos vários possíveis lazeres" (op. cit.). A reeducação para o lazer, a criatividade, a solidariedade e o convívio seria, portanto, uma necessidade da sociedade pós-industrial, na qual "a grande maioria das pessoas não sabe como se distrair nem como descansar. Quando tem tempo se entedia" (op. cit., p. 314).
Em contraposição ao "universo da precisão que coincide com a sociedade industrial", um universo que é "um universo rígido, programado, linear, matematizado, no qual a abundância afluente de produtos estandardizados é produto do trabalho criativo de uma elite restrita de engenheiros e do trabalho mecânico de uma massa sem fim de executores" (op. cit., p. 295), a sociedade pós-industrial, do ócio criativo e do teletrabalho, é um universo da aproximação, "uma 'aproximação' refletida, madura, consciente, complexa, que procede da consciência científica e da precisão, abrangendo-as e superando-as" (op. cit., p. 297). Essa nova sociedade da aproximação teria, para De Masi, vantagens não só para as empresas e repartições públicas, mas também para os trabalhadores, como "autonomia dos tempos e dos métodos, coincidência entre o lar e o local de trabalho, redução dos custos e do cansaço provocado pelos deslocamentos", entre outras (op. cit., p. 206).
Apesar de polêmicas e consideradas utópicas por seus críticos, vale a pena refletir prospectivamente sobre as proposições de DeMasi e suas consequências para a vida nas cidades e para a produção de espaços de trabalho e lazer nas cidades e metrópoles. Em relação ao teletrabalho, por exemplo, abre-se a possibilidade, por um lado, de "desempenhar as próprias atividades sem sair de casa, economizando assim o tempo que era gasto para os deslocamentos cotidianos entre o lar e o escritório" (DE MASI, 2000, p. 155); e, por outro lado, "as exigências de estudos especializados, de trabalho e de cultura impõem cada vez mais frequentemente a mudança de cidade, de país, de um continente ao outro" (op. cit.). É óbvio que isso tem impactos na organização do espaço urbano e metropolitano já que diminuem os micro-deslocamentos nessa escala, enquanto "multiplicam-se (...) os deslocamentos de maior raio de distância e duração" (op. cit.).
Concorda-se com De Masi, que, se tomadas como verdadeiras, suas assertivas levariam fatalmente a uma readequação não só das cidades (e metrópoles), mas também das nações, igrejas e empresas, que deveriam se aparelhar "em função de uma vida coletiva na qual predomina o lazer e um número crescente de atribuições que devem ser realizadas não em função de quem trabalha, mas em função de quem repousa e se diverte" (DE MASI, 2000, p. 305). Isso, é claro, irá afetar também as férias e viagens, a infraestrutura e os fluxos turísticos, bem como a vilegiatura marítima e as estratégias do mercado turístico-imobiliário.
Mudaria também a dicotomia entre os exércitos de turistas e veranistas que se norteiam por uma "cultura do consumismo", das "milhões de pessoas que consideram 'fúnebre' tudo o que não seja invasivo, barulhento, cheio de confusão e de pressa" e aqueles, bem menos numerosos, que concebem suas férias e seu tempo livre com "a cultura do repouso, da leitura e da privacidade" e que consideram "um inferno tudo o que não seja silêncio, ordem, calma, beleza e limpeza" (op. cit., p. 307). Talvez a balança pendesse para o segundo grupo, no médio e no longo prazos, com a reeducação para o tempo livre e o ócio criativo, ou, na pior das hipóteses, se aprofundassem ainda mais, no curto prazo, as fissuras e a segmentação/padronização dos espaços de lazer nas cidades e metrópoles contemporâneas. "Enquanto isso, os congestionamentos nas autoestradas, ferrovias e aeroportos" se tornam ainda maiores e a rede de hotéis superlotada indica de modo evidente sinais de degradação acelerada (op. cit., p. 308).
Na escala dos Estados-Nação as mudanças norteadas pelo fenômeno do desenvolvimento sem trabalho também deveriam afetar os governos e as políticas de geração de empregos a médio e longo prazos, embora não seja isso o que vem ocorrendo até aqui:
Perseguidos e ameaçados por uma tecnologia onívora, que devora com a mesma velocidade tanto as tarefas atribuídas aos operários, quanto aos funcionários ou aos executivos, os governos, em vez de reduzirem drasticamente o horário de expediente e o número dos cargos, reduziram as taxas e impostos a serem pagos pelos empregadores, incentivaram os investimentos estrangeiros nos próprios países, exumaram mais uma vez formas gangrenadas de protecionismo e incentivaram a flexibilidade contratual (DE MASI, 2000, p. 100).
E, com a redução drástica do horário de expediente, haveria também mudanças vantajosas na organização espacial do emprego para a sociedade como um todo, já que o trabalho poderia ser "difundido até em zonas isoladas, deprimidas ou periféricas" (op. cit., p. 208). Haveria também "mais trabalho disponível para categorias que até o momento eram excluídas, como deficientes físicos e idosos" e seria possível "descongestionar as áreas superpovoadas e sobretudo reduzir o tráfego e a poluição, além da manutenção das ruas e estradas" (op. cit.). Entre as possíveis desvantagens estariam os custos com infraestrutura (de cabos, por exemplo), a necessidade de controle das tarifas dos serviços de informação e comunicação e "o possível surgimento de áreas de trabalho pouco protegidas, de trabalho informático não declarado ao fisco, que é bem mais difícil de ser controlado que o tradicional" (op. cit.).
Por fim, cabe uma derradeira questão em resposta àqueles que consideram utópicas ou irrealistas as proposições de De Masi: Como seria gerado "valor" nessa nova sociedade do ócio criativo, norteada pelo tempo livre e não mais pelo tempo do trabalho. A essa questão, o autor responde que:
Nego (...) que a criatividade e a inovação possam brotar nas organizações que ainda são administradas com tempos, métodos e sistemas de comando concebidos há cem anos, não para inovar ou criar, mas para executar. Isso é tudo. (...) E quem é que paga? Os cidadãos que trabalham sempre mais. (...) O que não quer dizer que ele passa a ficar de pernas para o ar, mas significa que não deverá mais se matar de trabalho (...) Neste novo modelo de sociedade (...) quem ganha, além do indivíduo, é a ciência, a arte - portanto com ulterior produção de riqueza - e a qualidade de vida. (...) Onde as operações tediosas, cansativas e perigosas sejam desempenhadas pelas máquinas e a riqueza por elas produzida seja distribuída com base num princípio de solidariedade, e não de competitividade (DE MASI, 2000, p. 309-310).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final cabe ressaltar a principal tese aqui defendida, de que não se pode desvincular a discussão sobre os espaços de lazer e reprodução nas cidades e metrópoles daquela relativa aos espaços de trabalho e produção. Há aí uma dialética que torna trabalho e lazer indissociáveis nos processos de produção do espaço em todas as escalas passíveis de uma abordagem assim. E é claro que isso deve ter consequências para as pesquisas de Geografia Urbana que se ocupam da temática dos espaços de lazer na contemporaneidade.
É preciso também sublinhar que as relações capital-trabalho sofreram inflexões no modo de produção capitalista e que é necessário destrinchar e revelar essas transformações espaço-temporais para melhor compreender a produção dos espaços de lazer e trabalho no mundo contemporâneo, refletindo sobre a relação entre produção e organização do espaço em nossas cidades e metrópoles, sobre suas tendências e perspectivas futuras.
Espera-se também ter evidenciado que a discussão sobre os espaços de lazer e de trabalho nas cidades e metrópoles exige um aprofundamento teórico-conceitual do conceito de classe social, aqui apenas enunciado, visto que as diferentes classes e frações de classe vivem as contradições do modo de produção de maneira diversa.Isso implica numa abordagem radicalmente dialética da produção dos espaços de lazer e trabalho nas cidades e metrópoles para as diferentes classes sociais, evitando-se a tendência atual de priorizar a análise, muito evidente nas pesquisas atuais sobre lazer em Geografia, de espaços destinados a segmentos sociais específicos, sem que isso apareça explicitado nas pesquisas e nos resultados apresentados.
Nesse contexto, é também necessário se ocupar das brechas e dos interstícios do lúdico e do jogo em nossas cidades e metrópoles, evidenciando a ação e as estratégias dos diferentes grupos, classes e frações de classe envolvidos nesses processos não hegemônicos de produção do espaço (SERPA, 2007). Isso requer também alguma imaginação geográfica (SERPA, 2008) para pensar prospectivamente a produção dos espaços de lazer e trabalho nas cidades e metrópoles do futuro, inclusive levando-se em consideração perspectivas utópicas para sonhar outros mundos possíveis.
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» http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=41&cod_noticia=16935
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Dez 2015
Histórico
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Recebido
Dez 2015 -
Aceito
Jan 2016