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ARRANJOS TERRITORIAIS FLUTUANTES DOS LAGOS URBANOS DE TEFÉ E COARI NO AMAZONAS

ARREGLOS TERRITORIALES FLOTANTES DE LOS LAGOS URBANOS DE TEFÉ Y COARI EN EL AMAZONAS

Resumo

Os maiores centros urbanos da região do Médio Solimões no Amazonas, as cidades de Tefé e Coari, possuem centenas de estruturas fluviais tradicionais amazônicas exercendo funções espaciais diversas, são os flutuantes. O objetivo desse artigo é compreender o papel dos flutuantes dessas cidades para o desenvolvimento regional e integração territorial. A princípio, propõe-se uma classificação a partir da identificação das funções domiciliares, comerciais, institucionais e de serviços efetuadas pelos flutuantes em ambos os lagos. Em seguida, elabora-se uma caracterização e classificação dos arranjos territoriais flutuantes dessas cidades. Esta leitura providencia subsídios para a compreensão das relações sociais e econômicas em espaços periféricos fluviais na Amazônia úteis ou não para integrar o território e desenvolver essa complexa região da formação socioespacial brasileira.

Palavras-chave:
Flutuantes; Arranjos Territoriais Flutuantes; Tefé; Coari; Amazônia

Resumen

Los mayores centros urbanos de la región de Solimões en Amazonas, las ciudades de Tefé y Coari, tienen cientos de estructuras fluviales tradicionales amazónicas que ejercen diferentes funciones espaciales, son los flotantes. El objetivo de este artículo es comprender el papel de estas estructuras flotantes en estas ciudades para el desarrollo regional y la integración territorial. Primeramente, se propone una clasificación basada en la identificación de las funciones residenciales, comerciales, institucionales y de servicios realizadas por los flotantes en ambos lagos. Posteriormente, se elabora una caracterización y clasificación de los arreglos territoriales flotantes de estas ciudades. Esta lectura proporciona subsidios para la comprensión de las relaciones sociales y económicas en los espacios fluviales periféricos de la Amazonía útiles o no para integrar el territorio y desarrollar esta compleja región de la formación socioespacial brasileña.

Palabras-clave:
Flotantes; Arreglos Territoriales Flotantes; Tefé; Coari; Amazonia

Abstract

The largest urban centers of the Middle Solimões River region in Amazonas State, the cities of Tefé and Coari, have hundreds of traditional Amazonian fluvial structures exercising different spatial functions, they are the floating ones. The objective of this article is to understand the role of the floatings in these cities for regional development and territorial integration. At first, a classification is proposed based on the identification of the residential, commercial, institutional and service functions performed by the floatings in both lakes. Then, a characterization and classification of the floating territorial arrangements of these cities is elaborated. This reading provides subsidies for the understanding of social and economic relations in peripheral fluvial spaces in the Amazon useful or not to integrate the territory and develop this complex region of brazilian sociospatial formation.

Keywords:
Floating; Floating Territorial Arrangements; Tefé; Coari; Amazon

INTRODUÇÃO

O crescimento demográfico urbano e o aumento da circulação regional permitiu que as águas próximas das principais cidades da região do Solimões no Amazonas, Tefé e Coari (Tabela 1), fossem gradativamente ocupadas por estruturas tradicionais amazônicas conhecidas como flutuantes, construídas geralmente de madeira, mas também de ferro.

Tabela 1
Os territórios de Tefé e Coari no Amazonas. Fonte: Elaboração própria, 2022

Tefé, Cidade Média (IBGE, 2017IBGE. Divisão Regional do Brasil em Regiões Geográficas Imediatas e Regiões Geográficas Intermediárias – 2017. Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.), é o maior centro urbano da região, nó de rede da circulação regional desde o século XIX (QUEIROZ, 2017QUEIROZ, K.O. Integração e globalização relativizada – uma leitura a partir de Tefé no Amazonas. Manaus: UEA Edições, 2017.). Coari, Centro Local (IBGE, 2017IBGE. Divisão Regional do Brasil em Regiões Geográficas Imediatas e Regiões Geográficas Intermediárias – 2017. Coordenação de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.), é sede das operações de exploração de gás e petróleo da Petrobrás na Província Petrolífera do Urucu. São municípios gigantes com pequenas cidades, Coari possui extensão territorial maior que o estado do Rio de Janeiro e o dobro de Tefé.

Por efetuarem diversas funcionalidades sociais e econômicas os flutuantes representam expressões territoriais amazônidas atuando como objetos técnicos fluviais. Nesse sentido, representam “formas geográficas” compreendidas como “objetos técnicos requeridos para otimizar uma produção, via o estabelecimento e aplicação de normas jurídicas, financeiras e técnicas, adaptadas às necessidades do mercado” (SANTOS, 1996, p.252SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009 [1996].). Assumem com eficiência várias funcionalidades tais como residências; postos de combustíveis flutuantes ou pontões; instituições públicas civis e militares; comércios atacadista e varejista; armazéns ou depósitos; atracadouros; bares e restaurantes; oficinas de motores e fabricação de peças; igrejas, fábricas de gelo, frigoríficos pesqueiros, terminais portuários, etc.

A fração dos rios Tefé e Coari situada imediatamente na frente dos seus centros urbanos é conhecida pela força do uso da palavra como “lago” em função de um alargamento natural do rio em formas de “rias”, conceito geomorfológico litorâneo de um rio afogado pelo mar, utilizado por Sioli (1985)SIOLI, H. Amazônia - Fundamentos de ecologia da maior região de florestas tropicais. Petrópolis: Vozes, 1985. como “river lake” para definir situações amazônicas.

Entrementes, o lago urbano é a fração fluvial das cidades resultante das relações empreendidas entre agentes flutuantes do lago e agentes urbanos das cidades por meio de fluxos significativos de pessoas e embarcações de diversos tipos e tamanhos. Como produto desse processo, comunidades flutuantes se constituíram suscetíveis às influências de espectros urbanos (LEFEBVRE, 1999LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Tradução: Sérgio Martins. 3ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.) representados por uma urbanidade fluvial pertinente à presença da diversidade de atividades e informações que provê o ritmo citadino aos que frequentam, trabalham e vivem nos respectivos lagos de Tefé e Coari (Figura 2).

Figura 2
Os lagos urbanos de Tefé (acima) e Coari (abaixo).

O objetivo desse artigo é compreender o papel dos flutuantes dos lagos urbanos de Tefé e Coari para o desenvolvimento regional e a integração territorial. A hipótese de que os flutuantes do lago urbano de Tefé promovem um arranjo territorial solidário gerando repercussões dos resultados econômicos e sociais para toda a região e corroborando para o desenvolvimento e a integração guia esse trabalho. Da mesma forma, orienta esta pesquisa o pressuposto de que o lago urbano de Coari produz um arranjo territorial flutuante hierárquico com pouca difusão dos vetores sociais e econômicos à região em razão de uma compartimentação do território e uma solidariedade organizacional que beneficia agentes de lugares distantes.

A metodologia deste estudo adotou o levantamento bibliográfico e documental bem como o trabalho de campo realizado em ambas as cidades. Foram realizadas entrevistas institucionais nas Capitanias dos Portos de Tefé e da capital Manaus; nas secretarias municipais de Saúde, de Meio Ambiente e de Administração Geral de Tefé; e à “Unidade Básica de Saúde dos Ribeirinhos Enedino Monteiro” em Coari; bem como aos moradores e trabalhadores das respectivas comunidades flutuantes.

Primeiramente, como produto dos procedimentos metodológicos do trabalho de campo apresenta-se a mensuração e identificação dos flutuantes dos lagos urbanos de Tefé e Coari. Conhecer suas estruturas e funções subsidiou uma proposta de classificação a partir dos “elementos espaciais” presentes, tais como: firmas, infraestruturas, instituições e pessoas (SANTOS, 1985SANTOS, M. Espaço e Método. 5 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1985]., p.16), qualificando

suas funcionalidades em domiciliares, institucionais, comerciais e de serviços. Posteriormente, como resultado do diálogo utilizando os dados primários e secundários efetuou-se uma leitura do uso dos flutuantes nos lagos como produto de uma especialização do território (SANTOS, 2002SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008 [2002]., p.87) gerando uma produtividade espacial (SILVEIRA, 1999aSILVEIRA, M. L. Um país, uma região: fim de século e modernidades na Argentina. São Paulo: FAPESP/LABOPLAN-USP, 1999a., p.338) via as atividades realizadas. Essa “especialização geográfica da produção é responsável por uma massificação do capital” (BARTOLI, 2018BARTOLI, E. Cidades na Amazônia, sistemas territoriais e a rede urbana. Mercator, Fortaleza, v. 17, p.1-16, 2018., p.4) produzindo uma “organização espacial” (CORRÊA, 2002CORRÊA, R. L. O espaço urbano. 4ª ed. São Paulo: Editora Ática: 2002., p.83) fluvial com diferentes difusões de seus resultados. Isso permitiu reconhecer um conjunto de flutuantes dispostos no território fluvial com funções espaciais definidas e capacidade de influenciar na dinâmica espacial da região como um arranjo territorial flutuante.

Esse artigo fornece subsídios para compreender as relações socioespaciais em espaços periféricos amazônicos. A adaptação às novas demandas do transporte fluvial e dos serviços contemporâneos permite reconhecer a versatilidade dos flutuantes via a diversificação de funções gerando produtividades espaciais com diferentes desempenhos e repercussões regionais.

OS FLUTUANTES EM SUAS ESTRUTURAS E FUNÇÕES ESPACIAIS

Os flutuantes das águas próximas às cidades de Tefé e Coari (Figura 3) representam o que Boaventura de Souza Santos (2002, p.259)SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008 [2002]. chama em sua “Sociologia das Ausências e Emergências” de ”ecologia dos saberes, dos tempos, das diferenças, das escalas e das produções”; baseia-se na diversidade e multiplicidade das “experiências de conhecimento” e das “experiências de desenvolvimento, trabalho e produção” (IDEM); onde o papel da técnica cabocla e/ou indígena dialoga com a construção de objetos e tecnologias com formas e modos de produção alternativos e regionalizados.

Figura 3
Os flutuantes do lago urbano de Tefé (á esquerda) e Coari (à direita).

“Para se enfrentar a Geografia das Ausências é necessário expandir o presente e enaltecer o local” (PAULA, 2019PAULA, C. Q. Geografias das ausências e geografias das emergências. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 23, n. 1, p. 95-111, abr. 2019., p. 98). Na ausência de investimento estatal em infraestruturas portuárias o conhecimento caboclo e ribeirinho é utilizado via o aperfeiçoamento e ajuste de objetos antigos com o intuito de atender as novas exigências do espaço em constante transformação. Uma modernização pretérita (QUEIROZ, 2019bQUEIROZ, Kristian Oliveira de. As lanchas “ajato” no Solimões: modernização pretérita e integração territorial. Novos Cadernos NAEA, v. 22, n. 1, p. 89-109, jan-abr. 2019b.), ou seja, o uso de objetos antigos e pretéritos para agir contemporaneamente (QUEIROZ, 2020QUEIROZ, K.O. Modernização pretérita e o vigor do atraso: uma leitura geográfica do transporte fluvial e do uso dos recursos naturais na região do Solimões no Amazonas. Jundiaí: Paco Editorial, 2020.), permite que as mesmas estruturas tradicionais elementares dos flutuantes assumam diferentes tarefas e utilidades.

Essas estruturas fluviais flutuantes presentes nas águas territoriais destas cidades amazônidas auxiliam as atividades referentes à fluidez do transporte fluvial da região e às relações entre as comunidades tradicionais rurais e seu centro urbano; ou seja, à circulação fluvial regional. Funcionalidades efetuadas por estruturas muitas vezes suprimidas e marginalizadas no contexto da lógica global, os flutuantes representam objetos de uma “geografia das emergências” (PAULA, 2019PAULA, C. Q. Geografias das ausências e geografias das emergências. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 23, n. 1, p. 95-111, abr. 2019., p.104) atendendo por meio da mesma estrutura o aumento das demandas regionais institucionais, de serviços e do comércio neste período contemporâneo da globalização.

A estrutura do flutuante é resultado do manejo de toras da madeira açacu ou assacu (Huru crepitans) que permite a flutuação da estrutura na superfície da água; da piranheira (piranhea trifoliata Baju Euphorbiaceae) usada nas vigas internas proporcionando estabilidade à casa flutuante; e o gitó (Guarea trichilioides) ou itaúba (Mezilaurus itauba) edificando as paredes. Com menor frequência, a jacareúba e a castanheira também são utilizadas na construção. Trata-se de recursos naturais amplamente disponíveis na natureza.

Um bom flutuante de madeira possui durabilidade de 30 anos. Os flutuantes de ferro, mais estáveis, porém mais custosos possuem durabilidade menor. Um bloco de concreto chamado poita de 1 metro quadrado é mantido no fundo do rio e funciona como uma âncora mantendo o flutuante na posição geográfica a ser lida pela Capitania dos Portos e registrada para providenciar o documento NADAOPOR reconhecendo a legitimidade do flutuante legalizado. Em Tefé há uma Agência da Capitania dos Portos com grande jurisdição territorial na Amazônia; entretanto, em Coari não há Agência da Marinha, logo os procedimentos locais são subordinados à Agência da Capitania dos Portos de Manaus.

As funções espaciais dos flutuantes podem ser classificadas a partir dos elementos espaciais disponíveis: as firmas, as instituições, as infraestruturas, os homens e o meio ecológico (SANTOS, 1985SANTOS, M. Espaço e Método. 5 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1985]., p.16). Com base nisso, para uma melhor apreensão das dinâmicas destas formas geográficas nos lagos urbanos de Tefé e Coari propõe-se uma classificação das funções dos flutuantes do lago de Tefé em: i) institucionais; ii) comerciais; iii) de serviços; iv) domiciliares (Tabela 1).

Tabela 1
Mensuração dos flutuantes nos lagos urbanos de Tefé e Coari. Fonte: Elaboração própria, 2021.

O lago urbano de Tefé possui mais que o dobro dos flutuantes de Coari, 491 e 219 respectivamente. Porém, em ambos os lagos, muitos flutuantes não possuem registros da Capitania dos Portos, ficam acoplados a um flutuante principal legitimamente reconhecido efetuando muitas vezes funções espaciais diferentes da estrutura principal, principalmente, de atracadouro, armazéns ou depósitos de mercadorias para instituições públicas ou firmas da cidade (Tabela 2).

Tabela 2
As funções dos flutuantes dos lagos urbanos de Tefé e Coari. Fonte: Elaboração própria com subsídios da Secretaria Municipal de Administração Geral, Planejamento de Finanças de Tefé; Secretaria Municipal de Saúde de Tefé; Secretaria Municipal de Saúde de Coari; 2021.

Ressalta-se que dos 491 flutuantes de Tefé apenas 276 possuem funções definidas. Em Coari dos 219 existentes 202 tem uma funcionalidade espacial reconhecida. Muitos deles estão aglomerados a um flutuante principal ou abandonados no rio.

As diversas atribuições funcionais dos flutuantes propiciam uma “intercambialidade de funções” (SANTOS, 1985SANTOS, M. Espaço e Método. 5 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1985]., p. 17), ou seja, quando um flutuante exerce mais de uma função espacial; assim, um flutuante com função domiciliar também realiza serviços concomitantes de pequeno comércio ou mercearia familiar, atracadouro, bar, salão de beleza com cortes de cabelo ou manicure, etc. Em Tefé, essa simultaneidade de funções é realizada por algumas instituições que compartilham o mesmo flutuante com outras entidades efetuando serviços diferentes, é o caso das Polícias e órgãos públicos educacionais e da saúde de distintas hierarquias estatais. Esse uso concomitante do mesmo flutuante em diversas funções também é realizado em Coari, porém com maior ênfase nas atividades de serviços em função da baixa presença de flutuantes institucionais.

Todavia, a maior presença de flutuantes institucionais em Tefé expressa a valorização do espaço (MORAES e COSTA, 1999MORAES, A. C. R.; COSTA, W. M. A valorização do espaço: geografia crítica. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.) vinculada à posição da cidade na rede fluxos da circulação regional, uma “potencialidade intrínseca do território” (COSTA, 2008COSTA, Wanderley Messias da. Ordenamento territorial e Amazônia: vinte anos de experiência de zoneamento ecológico e econômico. In: BATISTELLA, M.; MORAN, E. F.; ALVES, D. S. (orgs.). Amazônia: natureza e sociedade em transformação. São Paulo: EDUSP, 2008., p.243) expressa pela localização estratégica na proximidade da foz dos rios Tefé e Japurá e no centro geográfico do estado do Amazonas; “situação geográfica” (SILVEIRA, 1999bSILVEIRA, Maria Laura. Uma situação geográfica: do método á metodologia. Revista Território. Ano IV, nº 6, jan/jun, 1999b., p.27) que proporcionou um processo histórico com ampla seletividade espacial vinculada a uma “hierarquia dos lugares” (BENKO, 2002BENKO, G. Economia, espaço e globalização: na aurora do século XXI. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002., p.53) promovendo os aportes técnicos, normativos e infraestruturais primordiais na manutenção dos fluxos vitais para a integração regional via as atividades institucionais que subsidiam a fluidez territorial (ARROYO, 2001ARROYO, M. Território nacional e mercado externo: uma leitura do Brasil na virada do século XX. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Programa de Pós-graduação em Geografia Humana. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.).

Essa maior presença institucional no lago urbano de Tefé inibe, mas não impede as ações de piratas dos rios ou ratos d’água na comunidade flutuante, criminosos das águas amazônidas que em Coari representam o maior temor dos moradores flutuantes e dos ribeirinhos do município (QUEIROZ, 2020QUEIROZ, K.O. Modernização pretérita e o vigor do atraso: uma leitura geográfica do transporte fluvial e do uso dos recursos naturais na região do Solimões no Amazonas. Jundiaí: Paco Editorial, 2020.). As instituições públicas baseadas em Tefé possibilitam um maior esforço e presença de fiscalização dos agentes estatais para proporcionar a segurança do tráfego das embarcações e dos passageiros do que Coari. A presença em Tefé de uma base logística da 16ª Brigada de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro e da Agência da Capitania dos Portos fornece fluxos militares constantes de navios de guerra como Corvetas, embarcações de pesquisa e de saúde. As polícias Federal, Militar e Civil contam com embarcações atracadas em flutuantes compartilhados para missões na região. Em Coari, o recente estabelecimento de uma Base Arpão no rio Solimões (flutuante com efetivo da Força Nacional de Segurança e da Polícia Militar) visa mitigar os ataques piratas às comunidades e ao lago urbano, bem como repreender o tráfico de drogas e contrabando na região.

Por conseguinte, os flutuantes comerciais somam 45 no lago urbano de Tefé e 15 em Coari. Em Tefé muitos ribeirinhos de comunidades tradicionais e pessoas da cidade usufruem dos atacadões flutuantes com melhores preços praticados na cidade, evidenciando as relações úteis lago-cidade. Os postos de combustíveis flutuantes ou Pontões e fábricas de gelo são fundamentais para abastecer as diversas embarcações do transporte fluvial regional, dos barcos pesqueiros e de firmas na cidade. Em Coari, a demanda por combustível e gelo é relevante pela maior presença de embarcações de empresas terceirizadas da Petrobrás. Enfatiza-se a presença em Coari de flutuantes exclusivos para o comércio de produtos extrativistas; em Tefé isso ocorre por meio das negociações em alguns pontões proporcionando uma intercambialidade de funções; porém em Coari há flutuantes específicos para realizar a compra e venda de castanha, juta, cacau, etc. Isso mostra a presença de agentes do comércio de divisões territoriais do trabalho antigas, quando os regatões (comerciantes navegadores dos rios amazônicos ativos no século XIX e início do século XX) eram os grandes atores do comércio regional.

Os flutuantes de serviços demonstram a versatilidade e diversificação das funções espaciais exercidas por essas estruturas nos lagos urbanos do rio Solimões, promovendo produtividade espacial via a geração de emprego e renda nos lagos. Tefé conta com 99 flutuantes e ocupa 321 pessoas nas atividades de serviços; enquanto Coari possui 21 flutuantes com 70 trabalhadores no setor. Há serviços comuns encontrados em ambos os lagos tais como: bares, restaurantes, depósitos, atracadores, etc. No lago urbano de Tefé, o flutuante de ferro do Terminal das Lanhas Ajato de transporte de passageiros exprime uma modernização dos fixos próprios da circulação fluvial na região (QUEIROZ, 2019aQUEIROZ, Kristian Oliveira de. Transporte fluvial no Solimões: uma leitura a partir das lanchas Ajato no Amazonas. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 23, n. 2, p. 322-341, ago. 2019a.), infraestrutura socializada com outros armadores do transporte regional de passageiros.

Destacam-se as atividades das oficinas flutuantes que podem ser configuradas como “indústrias-serviços” (SANTOS, 2002SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008 [2002]., p. 66) “oficinas de conserto de veículos, suscetíveis a transformar-se em oficinas metalúrgicas, chegando até alimentar indústrias modernas com dificuldades de prover peças sobressalentes”. Tefé possui 15 destas oficinas flutuantes e Coari possui 10 no lago. Em Tefé, ofertam serviços de conserto de motores para veículos diversos. Muitas destas indústrias-serviços flutuantes estão equipadas com tornos industriais e experiência técnica de seus mecânicos na fabricação de diferentes tipos de peças de alumínio para clientes da cidade e de municípios circunvizinhos estabelecendo fluxos locais e regionais. Manufaturam peças para embarcações e até mesmo para pequenas aeronaves encomendadas por empresas regionais em Tefé (QUEIROZ, 2018QUEIROZ, K.O. Globalização e integração territorial – o caso da região de Tefé no Amazonas. Confins Revue. Vol. 35. N.35. Paris: 2018.). Entretanto, a maior presença de “carreiras” ou estaleiros de manutenção de embarcações no lago urbano de Coari mostra a centralidade organizacional pertinente às necessidades das empresas da exploração de gás e petróleo, produzindo uma integração funcional via os serviços efetuados às firmas terceirizadas de transporte da Petrobrás.

E finalmente, os flutuantes domiciliares, em maior quantidade nos dois lagos. Em Coari, 161 flutuantes domiciliares acomodam 536 moradores nas residências fluviais; enquanto Tefé possui 113 flutuantes domiciliares e 555 moradores; ou seja, são mais numerosos em Coari do que Tefé; mas Tefé possui uma população ligeiramente maior de moradores flutuantes. Os residentes do lago urbano de Tefé contam com coleta de lixo, segurança pública e acesso à energia elétrica por meio de cabos submersos, embora grande parte dos flutuantes ainda utilize geradores de energia para obter eletricidade. O custo para aquisição de uma casa flutuante é um terço do valor de uma casa em um bairro na cidade, podem ter acesso à internet via telefones celulares, TV a cabo e eletrodomésticos, além de ficarem próximos de escolas e postos de saúde. Conveniências que atraem muitas famílias para residirem nos flutuantes.

A intercambialidade de funções é mais presente nessa categoria de flutuantes. Em ambos os lagos urbanos é comum muitos domicílios flutuantes exercerem serviços habituais de atracadouro, depósitos, bares, restaurantes, mercearia familiar e lanchonetes.

OS ARRANJOS TERRITORIAIS FLUTUANTES DOS LAGOS URBANOS DO SOLIMÕES

“É a interação entre a situação interna e os processos de penetração do capital de fora que permite a cada sociedade a sua própria trajetória de desenvolvimento urbano” (ARMSTRONG e McGEE, 1985ARMSTRONG, W.; McGEE, T. G. Theatres of accumulation: studies in Asian and Latin American urbanization. Cambridge University Press/Methuen: London/NewYork, 1985., p.32). Nesta fração da região amazônica, as trocas e as relações mais significativas se realizam via os fluxos fluviais em razão da ausência de uma rede rodoviária e ferroviária; são poucos os aeródromos, apesar de Tefé possuir um aeroporto com empresas e fluxos nacionais. É neste ínterim que as águas urbanas se tornam objeto de uma análise social pertinente à integração territorial e ao desenvolvimento regional nas cidades situadas em meio a maior bacia hidrográfica do mundo, a do rio Amazonas.

Os lagos urbanos de Tefé e Coari configuram subespaços agregados à fluidez urbana regional onde as relações entre agentes estatais e privados, internos e externos à cidade se realizam gerando uma produtividade do espaço fluvial. As atividades dos flutuantes permitem que os lagos urbanos atuem como um elo entre o rural e o urbano, um palco de ligações e trocas.

A diversificação das funções dos flutuantes a partir da mesma estrutura tradicional permite o aprimoramento da dinâmica da circulação frente ao avanço das atividades próprias da rede urbana regional. Nesse sentido, os tradicionais flutuantes amazônicos assumem a dinâmica de novas ações, exigências, consumos e processos espaciais contemporâneos ligados ao aumento das relações e à aceleração das atividades em espaços periféricos com poucas infraestruturas portuárias e cidades com limitados elementos espaciais disponíveis.

Entrementes, quando os lugares deixam de atender as necessidades pertinentes às atividades primárias para servir as “necessidades inadiáveis da população” (SANTOS, 2002SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008 [2002]., p.87) há uma verdadeira especialização do espaço. O espaço se especializa quando atende as demandas econômicas e sociais mais rentáveis ao mercado local e regional, depreciando outras menos valorosas. No entanto, objetos, tecidos, processos e formas espaciais do passado continuam agindo de maneira menos vigorosa, regidas e dominadas pelas novas demandas (QUEIROZ, 2019bQUEIROZ, Kristian Oliveira de. As lanchas “ajato” no Solimões: modernização pretérita e integração territorial. Novos Cadernos NAEA, v. 22, n. 1, p. 89-109, jan-abr. 2019b.).

Contudo, as relações de dominação que controlam o processo de urbanização proporcionam especializações e produtividades espaciais com diferentes difusões territoriais dos resultados obtidos. Dessa maneira, arranjos territoriais flutuantes se constituem como um produto de uma organização do espaço fluvial, onde um conjunto de flutuantes efetuando funções espaciais definidas e diversas é capaz de influenciar na dinâmica espacial regional. São arranjos solidários quando repercutem os resultados econômicos e sociais proporcionando integração territorial e desenvolvimento regional; mas também podem ser hierárquicos quando essas repercussões são menores gerando uma integração funcional e uma solidariedade verticalizada.

ARRANJO TERRITORIAL FLUTUANTE SOLIDÁRIO – O LAGO URBANO DE TEFÉ

O lago urbano de Tefé exerce funcionalidades territoriais desde o século XIX quando os navegantes pernoitavam na antiga Vila de Ega em função do lago estar fora das correntezas, intempéries e dos insetos do jovem rio Solimões (BATES, 1979BATES, H. W. Uma naturalista no rio Amazonas. Tradução: Regina Régis Junqueira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979 [1876].). Em 1941, suas águas recebiam o avião anfíbio Catalina da Panair do Brasil com voos semanais entre Manaus, Tefé e Iquitos no Peru (QUEIROZ, 2015QUEIROZ, K.O. A formação histórica do território tefeense. Curitiba: Editora CRV, 2015.). Recentemente, a balsa do “Feirão de Fábrica Chevrolet a Bordo” ofertara veículos no lago, atraindo clientes de municípios circunvizinhos. Essa vitalidade espacial permite que os flutuantes locais participem como fixos da “centralidade periférica” (QUEIROZ, 2016QUEIROZ, K.O. Elementos espaciais e centralidade periférica – o caso de Tefé no Ama-zonas. Acta Geográfica (UFRR), v. 10, p. 92-110, 2016., p.94) de Tefé na Amazônia, produzindo um arranjo territorial flutuante solidário benéfico à repercussão dos resultados econômicos e sociais à região.

As atividades dos flutuantes em Tefé ocupam 1.136 pessoas em uma comunidade fluvial com relações regionais (transporte fluvial), nacionais (relações institucionais como da Marinha e do Exército)

e internacionais (com atividades do ecoturismo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) e da Prelazia de Tefé). Os 491 flutuantes promovem o fermento que anima o espaço fluvial com serviços distintos e comércio variado; propiciando um arranjo territorial flutuante ávido para prover aos moradores do lago áreas sociais com disponibilidade de serviços públicos como: coleta de lixo, energia elétrica e segurança pública. A proximidade dos flutuantes aos bairros do Abial, do Juruá e do próprio Centro da cidade permite o uso de escolas e postos de saúde pelos residentes flutuantes.

O arranjo territorial flutuante solidário do lago urbano de Tefé contribui para a fluidez do entreposto fluvial onde circula a produção agrícola, pesqueira e hortifrutigranjeira de toda a região comercializada no Mercado Municipal local ou direcionada aos atravessadores de Manaus. No lago, o flutuante do cais da cidade recebe os navios-motores (N/M), ferry-boats (F/B), lanchas-motores (L/M) e balsas do transporte de passageiros, bens e mercadorias que abastecem o comércio das cidades de todos os municípios do Médio e Alto Solimões, das 107 comunidades do rio Tefé e de todos os municípios do rio Japurá bem como do Médio e Baixo Juruá.

Tefé é uma das primeiras cidades do Brasil (THÉRY e MELLO, 2009THÉRY, H.; MELLO, N. Atlas do Brasil: desigualdades e dinâmicas do território. São Paulo: EDUSP e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009., p. 53; QUEIROZ, 2015QUEIROZ, K.O. A formação histórica do território tefeense. Curitiba: Editora CRV, 2015.), o seu processo histórico permitiu acumular infraestruturas, firmas, pessoas e instituições capazes de subsidiar suportes econômicos, políticos e sociais; produzindo uma integração orgânica em um território complexo, pobre e distante dos centros de decisões do país. Nesse contexto, o uso do território pelas formas geográficas flutuantes de Tefé constituiu um arranjo territorial flutuante solidário à integração territorial e ao desenvolvimento regional via o auxilio na apreensão e difusão dos resultados da circulação regional.

ARRANJO TERRITORIAL FLUTUANTE HIERÁRQUICO – O LAGO URBANO DE COARI

A presença no lago urbano de Coari de grandes estruturas portuárias flutuantes asfaltadas, uma Instalação Portuária de Pequeno Porte (IP4); e de potentes navios rebocadores marítimos de empresas globais coexistindo com velhos flutuantes de madeira comercializando produtos extrativistas e outros abrigando várias famílias em uma mesma estrutura exibe tanto desigualdades e pobreza quanto uma “dialética espacial” (SILVEIRA, 1999aSILVEIRA, M. L. Um país, uma região: fim de século e modernidades na Argentina. São Paulo: FAPESP/LABOPLAN-USP, 1999a., p.400) e uma deficiente especialização do espaço.

Características de territórios periféricos fragmentados servindo aos interesses de agentes longínquos. O arranjo territorial flutuante hierárquico manifesta maiores complexidades socioespaciais em função de envolver fenômenos geográficos que provocam consequências sociais e econômicas mais danosas à sociedade.

Poucos flutuantes institucionais e muitos flutuantes domiciliares atuam no lago urbano de Coari com notória segregação e restrito dinamismo econômico e social visíveis nas áreas sociais do Bairro do Pêra e próximas ao Centro da cidade. Dentre os impactos sociais mais temidos na comunidade flutuante destaca-se a insegurança em função da presença de meliantes conhecidos como ratos d’água e piratas fluviais. Mesmo com a presença da Base Arpão no rio Solimões (fora do lago urbano) fiscalizando as embarcações advindas do Alto rio Solimões com destino a Coari, o medo dos moradores e trabalhadores dos flutuantes locais ainda permanece.

“O petróleo se tornou uma maldição porque as receitas que ele gera para os governos são anormalmente vultuosas, não são oriundas da tributação dos cidadãos, flutuam de forma imprevisível e são fáceis de esconder do escrutínio público” (ROSS, 2015ROSS, M. L. A maldição do petróleo. Porto Alegre: CDG, 2015., p. 318). Para melhor entendimento, entre 2010 e 2016 Coari recebeu quase 3 bilhões de reais de royalties (2.727.827.571,19 de reais) (QUEIROZ, 2020QUEIROZ, K.O. Modernização pretérita e o vigor do atraso: uma leitura geográfica do transporte fluvial e do uso dos recursos naturais na região do Solimões no Amazonas. Jundiaí: Paco Editorial, 2020.), enquanto Tefé1 neste mesmo período recebeu pouco mais de 83 milhões de reais (83.340.400,18 reais). Valores bilionários geridos de maneira equivocada pela administração pública local provocaram consequências sociais e ambientais refletidas na corrupção e segurança pública.

Nesse cenário, o lago urbano de Coari revelou ser um lugar vulnerável tanto à violência do município (meliantes locais) quanto à violência regional (piratas). A restrita presença de agentes flutuantes institucionais de segurança como a Capitania dos Portos sobrecarrega a Base Arpão corroborando para uma vulnerabilidade territorial. Para um parâmetro institucional, Tefé possui 103 policiais militares em seu efetivo, enquanto Coari conta com apenas 8 policiais militares; ambas as cidades possuem malhas urbanas semelhantes.

O arranjo territorial flutuante hierárquico de Coari é resultante dos impactos de uma solidariedade verticalizada e uma compartimentação do território. A compartimentação territorial constitui um produto do processo de globalização que proporciona funcionalidades vantajosas tanto para determinadas frações territoriais do globo quanto para interesses de empresas e Estados (CATAIA, 2011CATAIA, Márcio. Território usado e federação: novos agentes e novos pactos. In: DANTAS, A.; TAVARES, M. A. A. Lugar-mundo: perversidades e solidariedades: encontros com o pensamento de Milton Santos. Natal: EDUFRN, 2011.; SANTOS, 1996SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009 [1996].; SILVEIRA, 1999aSILVEIRA, M. L. Um país, uma região: fim de século e modernidades na Argentina. São Paulo: FAPESP/LABOPLAN-USP, 1999a.). Isto se realiza a partir de práticas espaciais, ou seja, ações individuais de agentes sociais espacialmente localizados (CORRÊA, 2007CORRÊA, R. L. Diferenciação sócio-espacial, escala e práticas espaciais. CIDADES. v. 4, n. 6, p. 62-72, set. 2007.), conduzindo à realização de atividades produtoras de uma fragmentação territorial oriunda da não repercussão local da produção de empresas-rede mundiais (ARROYO, 2001ARROYO, M. Território nacional e mercado externo: uma leitura do Brasil na virada do século XX. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Programa de Pós-graduação em Geografia Humana. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.).

“Tudo que existia anteriormente à instalação dessas empresas hegemônicas é convidado a adaptar-se às suas formas de ser e agir, mesmo que provoque, no entorno preexistente, grandes distorções, inclusive a quebra da solidariedade social” (SANTOS, 2000SANTOS, M. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.85). Oliveira (2008, p.183)OLIVEIRA, José Aldemir de. A. Espacialidades urbanas como urbanização da sociedade: as cidades e os rios na Amazônia brasileira. In: OLIVEIRA, M. P.; COELHO, M. C. N.; CORRÊA, A. M. (orgs). O Brasil, a América Latina e o Mundo: espacialidades contemporâneas. Rio de Janeiro: Lamparina/ Faperj/ Anpege 2008. afirma que apesar de toda a riqueza advinda do petróleo, Coari possui vínculos pouco relevantes com as demais cidades da rede e o seu desenvolvimento econômico não agrega valor nem local nem regionalmente.

Enfim, a pouca atuação de formas geográficas flutuantes com funções espaciais úteis às relações lago-cidade em Coari gerou reduzida socialização da produtividade espacial e incipientes repercussões sociais e econômicas à região; provocando a atuação de um arranjo territorial flutuante hierárquico com menor contribuição ao desenvolvimento regional e à integração territorial.

CONCLUSÃO

O aumento da população e o avanço da rede urbana regional no rio Solimões permitiram que os espaços fluviais próximos aos principais centros urbanos regionais, Tefé e Coari, fossem ocupados pelos flutuantes tradicionais. No entanto, o aprimoramento e a diversificação das funções espaciais desses objetos técnicos fluviais caboclos permitiram uma produtividade espacial via uma especialização do espaço flutuante que reproduz a dinâmica urbana da cidade.

Verificou-se que arranjos territoriais flutuantes são provenientes das atividades de um conjunto de flutuantes com funções espaciais definidas capazes de influenciar na dinâmica espacial regional via atividades classificadas como institucionais, comerciais, de serviços e domiciliares.

Constatou-se que o arranjo espacial flutuante solidário pode ser discutido a partir da dinâmica espacial do lago urbano de Tefé, cidade que efetua o papel de nó de rede da circulação regional. Esses flutuantes enquanto formas geográficas fluviais promovem: i) geração de emprego e renda; ii) moradia para aqueles de menor poder aquisitivo; iii) aprimoramento da fluidez das atividades de agentes privados e públicos via os fluxos internos (urbanos) e externos (regionais) à cidade. Isso se realiza via o aprimoramento dos fixos e fluxos do transporte fluvial de passageiros e mercadorias assim como da produção agrícola e pesqueira; providenciando melhores difusões econômicas e sociais úteis à integração territorial e ao desenvolvimento regional.

Entrementes, averiguou-se que o arranjo territorial flutuante hierárquico pode ser explanado a partir do lago urbano de Coari, produto das relações hierárquicas decorrentes de uma solidariedade organizacional e uma compartimentação do território resultante da exploração de gás e petróleo pela Petrobrás; isso provoca uma integração funcional em detrimento de uma integração territorial. As principais consequências se revelam na segurança pública e nas desigualdades das áreas sociais da comunidade flutuante advinda da reduzida capacidade espacial de socialização dos resultados econômicos e sociais na cidade e visíveis na baixa presença de flutuantes institucionais e de gestão do território no lago.

As diferentes funções dos flutuantes dos lagos urbanos do rio Solimões no Amazonas permitem refletir sobre a resiliência dos territórios, a criatividade dos “invisíveis” e a eficiência e versatilidade de estruturas tradicionais caboclas. O desempenho desses objetos na periferia amazônica exibe os limites dos espaços onde a racionalidade dominante não age com o mesmo vigor. Logo, outras racionalidades regionalizadas e antigas assumem o papel de difundir as relações fomentadoras da vida e da esperança que articulam o espaço.

NOTA

  • 1
    Ressalta-se que além de Tefé, Manaus e mais 16 municípios do Amazonas, 17 municípios do Pará e 3 do Amapá recebem royalties gerados pelas atividades da Petrobras na Amazônia (GARCIA, 2010GARCIA, E. A Petrobras na Amazônia: a riqueza que vem do Solimões. Manaus: Norma Editora, 2010., p.128).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Aceito
    18 Maio 2022
  • Publicado
    15 Jul 2022
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