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A MITOPOESIA COMO PONTE ENTRE O QUILOMBISMO E A METAFÍSICA DO ARTISTA IORUBÁ1 1 Este trabalho faz parte de pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília (UnB), sob orientação do professor doutor wanderson flor do nascimento.

Mythopoeia as Bridge between the Quilombism and Methaphysics of Yoruba Artist

RESUMO

O conceito de quilombismo criado por Abdias Nascimento é muito utilizado pelos movimentos sociais. Este trabalho pretende analisar como esse conceito é construído, tendo como hipótese que ele se ampara no conceito de mitopoesia, desenvolvido na metafísica do artista iorubá de Wole Soyinka.

PALAVRAS‑CHAVE:
mitopoesia; metafísica; quilombismo; Abdias Nascimento; Wole Soyinka

ABSTRACT

The concept of Quilombism developed by Abdias Nascimento is frequently used by social movements. This work intends to analyze how this concept is constructed, having as a hypothesis that it is based on the concept of mythopoeia, developed in Wole Soyinka’s metaphysics of the Yoruba artist.

KEYWORDS:
mythopoeia; methaphysics; Quilombism; Abdias Nascimento; Wole Soyinka

O QUILOMBISMO E A RESISTÊNCIA PAN-AFRICANA

Ao nos debruçarmos sobre o livro O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, de Abdias Nascimento, a questão que salta aos olhos é o título escolhido pelo autor, pois notamos duas palavras pouco usadas cotidianamente, a saber, “quilombismo” e “pan-africanista”.

Talvez tenha sido a primeira vez que a palavra quilombo foi acrescida do sufixo “-ismo”. Segundo Kabengele Munanga, esse emprego pode estar relacionado às “ideologias, filosofias e visões do mundo e da vida” (Munanga, 2019Munanga, Kabengele. “À guisa de um prefácio”. In: Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro, 2019., p. 20). Contudo, antes de lermos o livro, parece estranha uma concepção filosófica que se ampare no quilombo, se este é entendido apenas como “refúgio de escravos fugidos” (Ferreira, 2001Ferreira, Aurélio. Mini-Aurélio século XXi escolar: minidicionário da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 575).

Abdias Nascimento não pressupõe a ideia do quilombo como um refúgio, mas sim, conforme Beatriz Nascimento, como “um local onde a liberdade era praticada, onde os laços étnicos e ancestrais eram revigorados” (B. Nascimento, 1979, p. 17 apud A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 283). Assim, o quilombo é entendido como um ambiente onde se pode usufruir tão amplamente da liberdade que a cultura dos escravizados é retomada e vivenciada.

Beatriz Nascimento impõe uma nova significação à ideia de quilombo, apontando uma positivação dessa noção, na qual se retira a concepção do quilombola como um ser passivo e o mostra como um produtor ativo de cultura e sociabilidade. Relacionando essa noção com a compreensão que Munanga dá ao termo quilombismo, torna-se evidente que Abdias Nascimento utiliza essa transfiguração do termo para construir uma concepção filosófica amparada no poder de agência dos indivíduos pertencentes ao quilombo.

Desse modo, o quilombismo não está associado apenas aos locais onde se refugiavam trabalhadoras e trabalhadores negros escravizados, mas também a toda forma de resistência negra no Brasil.

O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio da floresta de difícil acesso, que facilitava sua defesa e organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de organização permitidos ou tolerados, frequentemente com ostensivas atividades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente, todas elas preencheram uma importante função social para a comunidade negra, desempenhando um papel relevante na sustentação da comunidade africana. Genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta práxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo. (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., pp. 281-2).

Portanto, o quilombismo deve ser entendido como qualquer meio de resistência do povo negro brasileiro que expresse a própria narrativa histórica, afirmando-se como sujeito dessa história - e essa afirmação humana, racial, étnica e cultural é que caracterizará a liberdade. O quilombismo, em outras palavras, é a maneira pela qual os negros no Brasil buscaram se emancipar do imperialismo e do colonialismo europeu, unindo-se de diversas formas e possibilitando o resgate de sua cultura ancestral como método de resistência. Com essa concepção, Abdias Nascimento se alia a uma luta internacional, o pan-africanismo, o que demonstra a amplitude de seu pensamento. O primeiro pensador a utilizar o termo pan-africanismo foi Henry Sylvester-Williams, em 1900. Diante da violência devastadora do domínio colonial britânico e do racismo sofrido pelos africanos em Londres, Sylvester-Williams convocou uma reunião com o intuito de proteger os africanos das depredações imperiais (Khapoya, 2016Khapoya, Vincent. A experiência africana. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 222). Apesar da origem britânica, o termo é consequência de diversas discussões que ocorriam desde 1870 acerca do tratamento que os africanos e seus descendentes recebiam nos Estados Unidos e na Libéria (Barbosa, 2012Barbosa, Muryatan. “Pan-africanismo e teoria social: uma herança crítica”. África, 2011/2012, v. 31-32, pp. 135-55., pp. 136-7). Um dos grandes nomes desse debate foi o afro-americano W.E.B. Du Bois, reconhecido como

o “pai do pan-africanismo” (Khapoya, 2016Khapoya, Vincent. A experiência africana. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 228). Desse modo,

o pan-africanismo surge como um meio de resistência àquilo que Muryatan Barbosa (2012Barbosa, Muryatan. “Pan-africanismo e teoria social: uma herança crítica”. África, 2011/2012, v. 31-32, pp. 135-55., p. 136) chamará de colonialismo interno e colonialismo externo. O primeiro é entendido como uma forma de subalternização e discriminação dos negros na metrópole colonial e é evidenciado principalmente pela escravização e pelo racismo sofrido pelos negros livres. O segundo, por sua vez, relaciona-se diretamente à maneira devastadora como se expandia o domínio europeu e estadunidense nas colônias africanas.

Os grandes nomes vinculados ao pan-africanismo, além dos já citados, são Marcus Garvey, Cheikh Anta Diop, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Léopold Senghor, entre outros. Todos, apesar de possuírem concepções diferentes das formas de resistência nas lutas contra-hegemônicas, acreditavam que apenas pela união dos africanos e de seus descendentes será possível pôr o fim à discriminação racial e, consequentemente, valorizar essas culturas. Existem diversas concepções e correntes do pan-africanismo, mas, para Vincent Khapoya (2016Khapoya, Vincent. A experiência africana. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2016., p. 65), ele possui “dois elementos fundamentais: a herança comum das pessoas descendentes de africanos em todo o mundo e a incumbência dos povos africanos de trabalhar pelos interesses e pelo bem-estar uns dos outros em qualquer lugar”. De um lado, essa herança pode ser entendida a partir dos elementos culturais: as características artísticas, a religião, os ritos, os quais, apesar de se manifestarem de maneiras diferentes no continente africano, possuem traços comuns que demarcam sua unidade ou sua africanidade.2 2 Sobre diversidade e unidade africanas, assim como a noção de africanidade, ver Kabengele Munanga (2009, pp. 20-40). De outro lado, essa herança se evidencia no racismo e na discriminação provenientes da colonização, do imperialismo e do escravismo, que subjugaram os africanos e seus descendentes à escravidão nas Américas, dividiram o continente africano e tomaram o poder de diversos grupos sociais locais, de modo extremamente cruel e sanguinário, exemplificados anteriormente a partir dos conceitos de colonialismo externo e interno.

Na medida em que o racismo e a discriminação fazem parte da herança dos africanos e de seus descendentes das mais diversas maneiras, é necessário para a sua própria libertação que eles se unam. Por meio dessa união será possível a construção de novas narrativas, assim como o resgate e a vivência da cultura africana, viabilizando “a construção de visões positivas e internacionalistas acerca desta identidade, entendida como comunidade negra: africana e afrodescendente” (Barbosa, 2012Barbosa, Muryatan. “Pan-africanismo e teoria social: uma herança crítica”. África, 2011/2012, v. 31-32, pp. 135-55., p. 31).

É a essa unidade que Abdias Nascimento se refere no conceito de quilombismo e, para o filósofo, o pan-africanismo é o pressuposto de todas as lutas e insurgências contra a escravidão nas Américas: ele “estava presente em Palmares, que congregava africanos de todas as origens, assim como seus descendentes, em busca da mesma liberdade por que lutaram os maroons do Caribe, os revoltosos da Centro-América e os revolucionários libertadores do Haiti” (A. Nascimento, 1997Nascimento, Abdias. “Marcus Garvey e a causa pan-africana”. Thoth. Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, n. 2. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997., p. 90). Assim, na medida em que o quilombismo é “inspirado no modelo da República de Palmares” e refere-se à união das diversas formas de resistência negra no Brasil (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 305), ele deve ser compreendido como uma forma de resistência pan-africanista. Contudo, Abdias Nascimento entende que a exploração dos negros, bem como a resistência a essa opressão, manifestara-se de maneiras diferentes em cada caso diaspórico.3 3 A diáspora, para Abdias Nascimento, não é apenas a expulsão dos negros da África, causada pelo colonialismo, pelo imperialismo e pelo capitalismo a partir do século XVI, mas é também um movimento que “incorpora populações asiáticas, como os dravíticos da Índia e os aborígenes australianos, saídos do continente africano há dezenas de milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída, fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e Caribe” (A. Nascimento, 1997, p. 91). O quilombismo é a forma como se apresenta a resistência negra no Brasil.

Visto que uma das características do quilombismo é a construção de narrativas históricas nas quais o negro aparece como sujeito, pretendemos mostrar como a noção de quilombismo, proposta por Abdias Nascimento em O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, é construída. Nossa hipótese é que ela está alicerçada no conceito de mitopoesia, presente na metafísica do artista iorubá proposta por Wole Soyinka em “The Fourth Stage” (2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60.). Intentamos, assim, apresentar a amplitude do conceito de mitopoesia e sua importância para construção do conceito de quilombismo: para nós, a mitopoesia deve ser entendida como um dos pressupostos fundamentais da proposta política e epistemológica do quilombismo.

Para realizar essa tarefa, abordaremos a noção de mitopoesia apresentada no pensamento de Abdias Nascimento e procuraremos evidenciar sua importância para a construção do quilombismo. E, para tornar o conceito de mitopoesia mais evidente, demonstraremos como ele pode ser compreendido a partir da história lendária de Chico-Rei,4 4 Também grafado Chico Rei (Silva, 2007). Optamos por utilizar a grafia Chico-Rei, conforme Abdias Nascimento (2019). apresentada por Abdias Nascimento como o grande exemplo mitopoético.

Em seguida, vamos nos debruçar sobre o texto “The Fourth Stage”, de Wole Soyinka, com a pretensão de apresentar sua teoria metafísica do artista iorubá. Nosso objetivo é mostrar a originalidade da teoria do filósofo nigeriano, destacando as diferenças entre seu pensamento e a metafísica do artista nietzschiano.

Feito isso, mostraremos as relações existentes entre o pensamento de Soyinka e o de Nascimento e como a teoria do artista trágico iorubá pode ser encontrada na história de Chico-Rei.

Por fim, apresentaremos algumas citações históricas e literárias que reforçam a relação de proximidade entre os dois pensadores aqui discutidos. Tal interação aponta que o filósofo quilombista conhecia a metafísica iorubá soyinkiana e tem elementos que fundamentam melhor a hipótese de que a concepção política quilombista é amparada na metafísica do artista iorubá.

ABDIAS NASCIMENTO E O CONCEITO DE MITOPOESIA

Ao pensarmos o quilombismo como um espaço de liberdade onde a cultura pode ser vivenciada, a questão que se coloca é o que pode ser entendido como cultura. Tendo como base que a cultura dos africanos e de seus descendentes é o fundamento para a construção do pan-africanismo, já que seu resgate é um dos principais elementos de resistência, Abdias Nascimento (2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 65) afirma a importância do resgate cultural crítico, ou seja, essa volta ao passado não pode retomar os costumes africanos sem uma avaliação prévia: somente após uma análise crítica poderá determinar se eles se encaixam nos moldes culturais e morais contemporâneos. Esse processo expressa o movimento constante de retorno ao passado, transformação e aplicação no presente que existe na cultura e a caracteriza como elemento criador de unidade, liberdade e progresso. Além disso, a cultura também será concebida como aglutinadora, na medida em que une costumes, saberes e manifestações de comunidades diferentes, respeitando suas peculiaridades e exaltando as características comuns existentes entre elas.

Ao pensar o pan-africanismo, a cultura e a resistência como elementos indissociáveis, Abdias Nascimento entende que o quilombismo está intrinsecamente relacionado ao passado histórico, de modo que sua preservação, como diz Amílcar Cabral (1973Cabral, Amílcar. “La cultura, fundamento del movimento de Liberácion”. El correo de la Unesco, ano 26, nov., 1973, pp. 12-20., p. 14 apud A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 65), é necessária para a construção histórica e a criação da cultura. Destarte, Abdias Nascimento conceitua cultura como uma “unidade criativa de forças que de outra forma poderiam estar dispersas e enfraquecidas em suas próprias singularidades” (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 65). Portanto, na medida em que o quilombismo é definido como formas associativas de resistência, a cultura aparece como um dos motores fundamentais de sua realização.

Para exemplificar a ideia de cultura do quilombismo, o filósofo cita uma forma de comunalismo aplicada na Tanzânia: o Ujamaa. Essa concepção intenta, de maneira crítica, resguardar os valores tradicionais para construir um futuro baseado na ancestralidade, ou seja, retoma valores culturais africanos anteriores ao colonialismo, mas verifica se já estão ultrapassados e, portanto, se devem ou não ser aplicados contemporaneamente.

Baseado em nossa rica e dinâmica herança socioeconômica e política africana e afro-brasileira, a filosofia e a ciência política afro-brasileira do quilombismo propõem determinados princípios básicos de organização social. Entre estes se inclui o princípio de Ujamaa, economia coletiva e cooperativa, prescrevendo que a terra, as instalações industriais e os recursos naturais são de propriedade nacional, destinados ao uso coletivo da sociedade... O trabalho, para o Quilombismo, assim como era nas sociedades africanas e quilombos, é um direito e uma obrigação social. (A. Nascimento, 1982Nascimento, Abdias. “Uma mensagem do quilombismo”. In: Nascimento, Abdias (org.). O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1982., p. 33)

Abdias Nascimento procura aliar as especificidades das diferentes culturas negras numa unidade cultural comum - que se apresenta dinamicamente, na medida em que se conforma à realidade dos sujeitos. Para tanto, ele busca elementos culturais ancestrais que sejam compartilhados pelos diferentes povos africanos (como o Ujamaa) e que também respeitem as diferenças existente entre essas comunidades. Note que essa unidade criativa de forças que caracteriza a cultura reside nas semelhanças culturais que são compartilhadas pelos diferentes povos africanos, de tal modo que essa afinidade fortalecerá as suas formas de resistência. Assim, para Abdias Nascimento, deve ser engendrada uma nova forma de estrutura social que construa uma unidade entre os mais diversos grupos: é ela que os agregará e manterá unidos, em resistência, ao mesmo tempo que valorizará a cultura ancestral de cada um.

Ademais, é importante ressaltar que o primeiro exemplo de cultura apontado por Abdias Nascimento (2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019.) está relacionado a um sistema econômico ancestral, o que denota a amplitude da concepção de cultura para o filósofo: para ele, a cultura não está circunscrita aos costumes particulares de cada comunidade, mas a um espectro amplo da estrutura social.

Fique bem claro que, insistindo tanto na defesa dos valores africanos de cultura, religião, de arte, organização social, de história e visão de mundo, não os estou enfatizando apenas como uma forma defensiva no meio agressivo do Brasil. Tampouco separo a afirmação da cultura afro-brasileira das outras reivindicações fundamentais da gente negra, como as de ordem eco-nômica e de sentido político. Há um entrelaçamento inseparável de aspectos que somados constituem a totalidade histórico-existencial e metafísica, que entendo como sendo a cultura. (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 177)

Abdias Nascimento (2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 66) ainda salienta a importância do Ujamaa como uma autêntica produção africana que se opõe diretamente ao capitalismo e ao socialismo doutrinário, pois se o primeiro se alicerça na “exploração do homem pelo homem”, na medida em que extrai lucro do trabalho excedente do proletário, o segundo se funda “nas crises entre o homem e o homem” advindas da forma como o ser humano é explorado, ou seja, nas crises do capital. Assim, o Ujamaa é concebido como uma cultura ancestral que se baseia não na crise ou no conflito entre seres humanos, mas numa relação cooperativa e coletiva, significando uma forma de resistência de origem africana independente dos modelos econômicos eurocêntricos. Trata-se, portanto, de uma forma de autossuficiência.

Chegou a hora em que os africanos podem substituir os sistemas de pensamento eurocêntricos pelos seus próprios. Qualquer povo soberano, qualquer cultura genuína, tem instalado dentro de si mesmo seu centro de gravidade. Nós, como descendentes africanos desalienados do supremacismo branco, assumimos a África como o nosso ancestral centro vital. Esta perspectiva, esta visão de mundo, elaborada desde um ponto focal africano e afro-brasileiro, não só constitui uma resposta à violência cultural, econômica e física cometida contra nós pela expansão colonial-imperialista do eurocentrismo, como também constitui um sistema de valores, autóctones, gerados e desenvolvidos independentemente de qualquer outra matriz cultural. (A. Nascimento, 1982Nascimento, Abdias. “Uma mensagem do quilombismo”. In: Nascimento, Abdias (org.). O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1982., pp. 31-2)

Essa autossuficiência é alicerçada no conceito de mitopoesia. Segundo as palavras do filósofo quilombista: “a noção de autossuficiência (self-reliance) mergulha suas raízes na mitopoesia, isto é, no espaço profundo onde a cultura exerce uma função crítica imanente ao seu fundamento criativo e libertador do ser humano” (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 66). A mitopoesia tem, portanto, uma grande importância: é o espaço de ação e transformação da cultura, onde o resgate ancestral faz uma volta ao passado e expurga qualquer romantização. Em outras palavras, a mitopoesia realiza a atualização cultural no tempo histórico vigente e não aceita os valores ancestrais como dogmas, mas como algo que está em constante transformação:

De um lado, é necessário reafirmar nossa tradicional integridade presidida pelos valores igualitários de nossa sociedade pan-africana: cooperação, criatividade, propriedade e riqueza coletivas. Ao mesmo tempo, torna-se imperativo transformar a tradição em um ativo, viável e oportuno ser social, fazendo passar pelo crivo crítico seus aspectos ou valores anacrônicos; em outras palavras, atualizando a tradição, modernizando-a. Tornar contemporâneas as culturas africanas e negras na dinâmica de uma cultura pan-africana mundial, progressista e anticapitalista, me parece ser o objetivo primário, a tarefa básica que a história espera de nós todos. (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 67)

Parece-nos, portanto, que a mitopoesia possui um papel crucial na resistência negra por sua função de atualização dos valores culturais, propiciando liberdade a partir da transformação crítica da cultura.

Etimologicamente, mitopoesia é a justaposição de dois termos gregos: mýthos e poíesis. Segundo Marilena Chauí, o mýthos é transmitido oralmente, “boca a boca”, e possui uma mensagem ou conselho. Segundo a pensadora, o verbo derivado do termo é entendido como um anúncio, uma história contada - segundo Heródoto, é uma história que pode ser confirmada por testemunhos. Contudo, a partir de Platão e Aristóteles, a acepção do termo muda para algo irreal, uma ficção tão forte que pode ser confrontada com a própria concepção de logos (Chauí, 2002Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, v. I. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 506).

Por sua vez, o termo poíesis se aproxima da ideia de construção artesanal, seja de um objeto, seja de uma obra poética. Ao mesmo tempo que pode ser concebido como responsável por sentimentos como a alegria ou a tristeza, também se relaciona com uma ação voltada para determinado fim, como uma guerra ou um remédio. Para Aristóteles, a noção de poíesis diz respeito a uma prática na qual o resultado não se identifica com o sujeito, relacionando-se, desse modo, com sua concepção de téckne (Chauí, 2002Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, v. I. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 509).

Portanto, mitopoesia pode ser entendido como um espaço no qual se formulam e se fundamentam, de maneira crítica, narrativas, histórias e conselhos para os negros; um local de construção de histórias que revitalizam a cultura negra; um local baseado na oralidade, nas conversas do cotidiano, de tal modo que esse conhecimento seja presente na vida dessas pessoas. Por outro lado, segundo certa tradição, a mitopoesia pode ser interpretada como fantasiosa, a tal ponto que pode ser compreendida como contrária à razão. A concepção de mitopoesia apresentada por Abdias Nascimento se aproxima da primeira acepção. O primeiro exemplo que ele traz da noção de mitopoesia tem relação com a história de Chico-Rei.5 5 Chico-Rei, também conhecido como Galanga, Francisco da Natividade, Francisco da Anunciação e Francisco Lázaro, é dado como a origem da festa do reinado (Silva, 2007). Segundo Rubens da Silva (2007),que entrevistou folcloristas, sociólogos e antropólogos, entre outros, não há prova histórica da existência de Chico-Rei, mas sua história é repassada e atualizada por fontes orais e escritas. Depois de chegar virtualmente a chefe da província de Minas Gerais, Chico-Rei teria mandado construir uma igreja para Nossa Senhora do Rosário e ali teria introduzido a festa do reinado em homenagem à santa. Nas atualizações e resgate dos mitos, Rubens da Silva enfatiza a importância da valorização de Chico-Rei, além de Zumbi e Chica da Silva, pelos movimentos negros, que se empenham “no esforço intelectual e político da construção de referenciais simbólicos para esta população” (Silva, 2007, pp. 78-9). A atuação dos movimentos negros nos parece diretamente relacionada com as ideias de Abdias Nascimento, que dá a Chico-Rei o mesmo grau de importância de personalidades históricas como Zumbi dos Palmares, Luísa Mahin, Luís Gama e João Cândido (A. Nascimento, 2019, p. 154). Segundo o filósofo, Chico-Rei “atingiu a legendária imortalidade da mitopoesia, na qualidade de primeiro abolicionista da escravização de seu povo” (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 87). Segundo Nascimento, apesar de o principal modo de libertação dos africanos no Brasil se caracterizar pela formação de quilombos, a história de Chico-Rei propõe uma nova forma de resistência.

Chico-Rei era rei na África antes de ser trazido para o Brasil com seus conterrâneos. Foi levado como escravizado para as minas de ouro de Minas Gerais, contudo ele tinha direito ao rendimento de um dia de trabalho na semana. Dessa forma, ele conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar a alforria de seu filho e este, em liberdade, juntou dinheiro para comprar a alforria do pai. Esse método foi utilizado até que toda a comunidade foi libertada. Após conseguir esse feito, Chico-Rei comprou a mina Encardideira.

A mina seguia o modelo pan-africanista do Ujamaa, ou seja, não praticava a exploração do trabalho. A riqueza política e econômica de Chico-Rei cresceu tanto que ele chegou a ser virtualmente chefe de Estado da província de Minas Gerais. Entretanto, ele e sua comunidade foram dizimados pelo império brasileiro (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., pp. 85-6).

Abdias Nascimento mostra a maneira criativa pela qual Chico-Rei consegue libertar a si e a seu povo da escravidão. Chico-Rei aparece como um exemplo da mitopoesia por aprender como funciona a estrutura da sociedade escravista e, por meio das singularidades dessa estrutura, formular novas formas de resistência, sem abandonar sua cultura ancestral. Ao mesmo tempo, ele possibilita uma unidade cultural africana, adaptada ao momento sócio-histórico em que vive, e constrói uma história, uma lenda, uma narrativa de resistência para o povo negro que lhe servirá de conselho e apoio.

Essa nova narrativa histórica proposta por Abdias Nascimento mostra a importância do povo negro e de suas formas de resistência, apresentando-os como sujeitos históricos. Destarte, ele propõe uma teoria que pretende destruir uma concepção de história colonizadora, na qual a narrativa é branca e eurocêntrica.

Chico-Rei foi escravizado pela colonização, de modo que seu local de origem e sua cultura foram retirados dele. Com isso, ele perde a unidade de sua vida: ele é colocado em um local desconhecido, do qual não compartilha nem os costumes nem a cultura e onde é tratado como objeto e não mais como sujeito.6 6 Para uma discussão sobre do sujeito negro e sua coisificação, ver Frantz Fanon (2008, pp. 175-84) e Deivison Faustino (2015, pp. 57-74)

Diante de tal sofrimento, da falta que lhe faziam seu lugar de nascença, sua vida cultural, a organização social e os costumes nos quais estava inserido, ele buscou uma forma de se livrar desse terror. Economizando seus rendimentos, comprou a alforria de seu filho e de todos os membros de sua antiga comunidade. Com a conquista da liberdade, Chico-Rei constrói uma sociedade nos moldes ancestrais, de acordo com a que ele vivia antes da escravização, atualizada no tempo histórico. Ele retoma a unidade de sua vida a partir da reconstrução cultural de seu país natal no Brasil, sendo reconhecido novamente como sujeito de sua história.

Os pontos cruciais do mito de Chico-Rei são: a retomada da cultura ancestral e dos valores passados e a atualização destes para criar uma estrutura de resistência. Esses mesmos pontos retratam a revitalização ou revolução cultural de valores que fundamenta a reconstrução histórica negra apresentada no quilombismo de Abdias Nascimento:

O sistema de valores é a espinha dorsal de todas as culturas. Os valores impregnam nosso espírito criativo, e, consequentemente, dão forma ao complexo dos mitos inaugurais: nisto consiste a mitopoesia de uma cultura. Imagens quintessenciadas da experiência, os mitos fundam a matriz reprodutora de nossas ações diárias. Eles incorporam os aspectos mais profundos, significativos e originais de nossa ontologia. (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 100)

A partir da análise da estrutura da história de Chico-Rei, reconhecida como o grande exemplo da mitopoesia, torna-se evidente a importância dada por Abdias Nascimento aos mitos, fundamentando neles as nossas ações cotidianas, o que denota uma relação intrínseca entre o mito, os valores e, por conseguinte, a moral, sendo a mitopoesia a reprodução imagética da experiência do sujeito negro. É nesse plano existencial que percebemos algumas relações entre o pensamento de Abdias Nascimento e a metafísica construída por Wole Soyinka.

A MITOPOESIA NA METAFÍSICA DE WOLE SOYINKA

Nos anexos do livro Myth, Literature and the African World, de Wole Soyinka (2005a)Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World. Londres: Cambridge, 2005a., encontramos o texto “The Fourth Stage”, no qual o poeta busca a origem da tragédia iorubá. Segundo ele, as definições do nascimento da tragédia ocidentais são insuficientes para explicar o surgimento da tragédia iorubá (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 140).

Soyinka afirma que a dualidade nietzschiana simbolizada pelos deuses Apolo e Dioniso como forma de compreensão do nascimento da tragédia não serve para entender a origem da tragédia iorubá, embora, à primeira vista, pareça haver um paralelo entre aqueles deuses e a arte serena de Obatalá e o eixo criativo de Ogum (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., pp. 140-1).

Esse paralelo não é possível, pois enquanto Apolo é entendido como o deus da ilusão, da aparência, do sonho (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 26), Obatalá se relaciona com a própria essência interior, “como uma declaração de resolução do mundo” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 141; tradução nossa). Por sua vez, relacionar Ogum a Dioniso é retirar as características de Ogum concernentes à forma e aos limites, apontados por Nietzsche como atributos de Apolo. Isso pode ser notado pelo fato de Ogum ser entendido como o deus que deu aos homens a capacidade técnica de manusear o ferro7 7 Sobre o mito de Ogum, ver Reginaldo Prandi (2020, pp. 86-8). (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 142). Segundo Soyinka:

Tais virtudes colocam Ogum à parte das danças distorcidas às quais o frenesi dionisíaco de Nietzsche o levou em sua busca por uma seletiva alma “ariana”, porém não prejudicam a grandeza revolucionária de Ogum. Ironicamente, é a iluminação profunda da intuição de Nietzsche dos impulsos universais básicos que nega suas conclusões exclusivamente raciais sobre a natureza da arte e da tragédia. Em nossa jornada ao coração da arte trágica iorubá, que de fato pertence aos Mistérios de Ogum e ao êxtase coral dos foliões, não descobrimos que os iorubás, como o grego fez, “construíram para o seu coro o cadafalso de um fictício reino subterrâneo e colocaram nele espíritos fictícios da natureza...”, fundamento sobre o qual, afirma Nietzsche, a tragédia grega desenvolveu: em suma, o princípio de ilusão. (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 142; tradução nossa)

Assim, um dos problemas da aplicação da metafísica nietzschiana para compreender a tragédia iorubá é que as conclusões de Nietzsche possuem um pressuposto racial, que exalta a mitologia grega em detrimento de outras mitologias, como a iorubá. Para Soyinka, o fundamento trágico nietzschiano se relaciona com a criação de um mundo ilusório e fictício, enquanto a tragédia iorubá remete à própria realidade.

É importante notar que Soyinka se refere ao seguinte trecho de O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo: “O grego construiu para esse coro a armação suspensa de um fingido estado natural e colocou nela fingidos seres naturais. Sobre tais fundamentos, a tragédia cresceu muito e, na verdade, por causa disso, ficou desde o começo desobrigada de efetuar uma penosa retratação servil da realidade” (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 51).

Ao nos debruçarmos somente sobre esse trecho, parece que Soyinka apresenta a concepção trágica nietzschiana como a produção de um mundo fictício. Contudo, Nietzsche escreve logo em seguida: “No entanto, não se trata de um mundo arbitrariamente inserido pela fantasia entre o céu e a terra; mas, antes, de um mundo dotado da mesma realidade e credibilidade que o Olimpo, com os seus habitantes, possuía para os helenos crentes” (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 51).

Desse modo, esse mundo criado, para Nietzsche, possui a mesma realidade e veracidade que o Olimpo dos deuses, o que pareceria uma contradição no texto de Soyinka. Porém, para o poeta,

a tragédia iorubá mergulha diretamente no “reino subterrâneo”, o caldeirão fervilhante do sombrio mundo da vontade e da psiquê, a ainda rudimentar matriz transitória da morte e do vir a ser. Neste ventre universal Ogum, uma vez, mergulhou e emergiu, o primeiro ator, desintegrando-se dentro do abismo. Sua remontagem espiritual não requer uma “cópia da realidade” na reencenação ritual de seus devotos [...]. (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 142; tradução nossa)

Dessa maneira, no pensamento nietzschiano há um mergulho no mundo dionisíaco, no qual há a entrega completa do indivíduo à vontade, sendo necessário um resgate de Apolo, que cria um mundo ilusório, transfigurando todo o terror dionisíaco em belas formas, a partir da medida e da forma. Por sua vez, Soyinka apresenta uma metafísica na qual Ogum mergulha no profundo abismo da vontade, desintegra-se ao entregar-se ao abismo transitório e, somente após esse percurso, emerge para que haja a união dos deuses, não nascidos, vivos e ancestrais. Portanto, toda a metafísica é fundamentada na experiência de Ogum, não havendo nenhuma representação ou cópia da realidade como na concepção nietzschiana.

Na concepção iorubá soyinkiana, deuses, não nascidos, vivos e ancestrais não estão separados temporalmente, mas coexistem num só tempo. O objetivo da tragédia é a reunião desses entes na Unidade Original vista em Orisa-nla. Esse deus foi atingido por uma pedra arremessada por um escravo ciumento e fragmentou-se em diversos pedaços, surgindo todo o panteão iorubá, entre eles Obatalá, que será responsável pela criação dos homens (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 152).

Essa fragmentação terá como consequência o que Soyinka chama de “angústia de ruptura, a fragmentação da essência de si mesmo” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. Myth, Literature and the African World. Londres: Cambridge, 2005a., p. 145), a concepção da tragédia iorubá. Assim, ao mesmo tempo que essas pequenas partes remetem à criação dos seres existentes, elas também denotam uma carência, uma falta, a “angústia de ruptura” de um organismo que reunia todos os seres. Destarte, a metafísica soyinkiana tem como intuito voltar à unidade original para sanar essa angústia.

Contudo, para realizar esse retorno é necessário passar por uma cosmologia dividida em três estágios: o mundo dos não nascidos, dos ancestrais e dos vivos. Ogum deve sair do mundo dos deuses, submergir no mundo da vontade, do estado natural, no qual estão os ancestrais e, após a sua fragmentação, emergir no mundo dos vivos; desse modo, ele constrói uma ponte entre o mundo dos vivos e o dos deuses que passa pelo mundo dos ancestrais (Maduakor, 1986Maduakor, Obi. “Soyinka as a Literary Critic”. Research in African Literatures, v. 17, n. 1, 1986, pp. 1-38., pp. 10-5). Essa ponte liga os três mundos numa relação atemporal, conceituado por Soyinka como quarto estágio, no qual se encontra a harmonia universal:

E assim acontece também com os outros deuses que não se aproveitaram, como Ogum, da possibilidade de um combate redentor onde cada um poderia se recriar por submissão a um processo de desintegração dentro da matriz da criatividade cósmica, de onde a Vontade performa a reunião final. O fardo mais pesado do rompimento é aquele de cada um a partir de si mesmo, não o da divindade a partir da humanidade, e o aspecto mais perigoso da jornada de deus é aquele no qual a divindade deve realmente submeter-se à experiência de transição. É uma análise do fundo do coração dos fenômenos. Moldar uma ponte através dela não era apenas uma tarefa de Ogum, mas sua própria natureza, e ele teve que ter a primeira experiência, para renunciar sua individuação mais uma vez (a primeira vez, como uma parte da Unidade original de Orisa-nla) ao processo de fragmentação; para ser reabsorvido dentro da Unidade universal, o Inconsciente, o profundo turbilhão negro de forças mitopoéticas, para mergulhar completamente dentro dela, entender sua natureza e ainda, pelo valor combativo da vontade, resgatar, remontar-se e emergir mais sábio, poderoso a partir da corrente dos segredos cósmicos, organizando as forças místicas e técnicas da Terra e do Cosmos para forjar uma ponte para seus companheiros seguirem. (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., pp. 153-4; tradução nossa)

Notemos que, no quarto estágio, encontra-se a unidade original - entendida por Soyinka como “o profundo turbilhão negro de forças mitopoéticas” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60.b, p. 153; tradução nossa) -, que forma uma unidade entre os deuses, os não nascidos, os ancestrais e os vivos.

Mas como isso é realizado na tragédia iorubá? Segundo Soyinka, o quarto estágio de experiência se realiza por meio da linguagem, contrapondo-se à concepção nietzschiana de que a música é um medium entre o mundo da vontade (essência) e o mundo da representação (fenômenos) (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., pp. 47-8).

Se nos é lícito, portanto, considerar a poesia lírica como a fulguração imitadora da música em imagens e conceitos, neste caso podemos agora perguntar: como é que aparece a música no espelho da imagística do conceito? Ela aparece como vontade, tomando-se a palavra no sentido de Schopenhauer, isto é, como contraposição ao estado de ânimo estético, puramente contemplativo, destituído de vontade. (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 47)

Para Nietzsche, a poesia é a transfiguração da música em palavras, não expressando todo o conteúdo existente na música, por isso a linguagem depende, necessariamente, da existência musical e, portanto, não é possível o acesso ao mundo da vontade a partir da linguagem (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 48).

Toda essa discussão se prende firmemente ao fato de que a lírica depende tanto do espírito da música, quanto a própria música, em sua completa ilimitação, não precisa da imagem e do conceito, mas apenas os tolera junto de si. A poesia do lírico não pode exprimir nada que já não se encontre, com mais prodigiosa generalidade e onivalidade, na música que o obrigou ao discurso imagístico. Justamente por isso é impossível, com a linguagem, alcançar por completo o simbolismo universal da música, porque ela se refere simbolicamente à contradição e à dor primordiais no coração do Uno-primigênio, simbolizando uma esfera que está acima e antes de toda aparência. (Nietzsche, 2007Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 51)

Partindo da concepção nietzschiana, Soyinka afirma que a concepção europeia de música não é suficiente para explicar “a relação da música com o ritual e o drama entre os iorubás” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 147; tradução nossa).

Na concepção europeia, a música tem um papel preponderante na tragédia, sendo conceituada como isolada do mito e da poesia, contudo, para Soyinka, na música iorubá, esse afastamento não é possível, pois a separação entre música, mito e drama é entendida como algo completamente externo à música. O poeta compreende que a linguagem não deve ser concebida como uma barreira que diminui a intensidade musical, mas como a explicação do significado da música, sendo, dessa forma, uma das maneiras pela qual a música se apresenta. Para elucidar esse ponto, Soyinka apresenta o exemplo dos cultos funerários.

Nos cantos desses cultos, as palavras são levadas às suas origens poéticas, de modo que seu movimento se apresenta como a transformação da música e da dança em imagens. Por conseguinte, a linguagem deve ser interpretada como “o embrião do pensamento e da música, onde o mito é companheiro diário, pois aí a linguagem é constantemente mitopoética” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 147; tradução nossa).

Assim, a linguagem se submete à sua transformação em símbolo da tragédia, que se realizará através do mito, propiciando a apresentação das “emoções espirituais dentro do coração da união coral” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 148; tradução nossa). Isso é necessário para que a linguagem transcenda ao mundo do universal, onde se originam as melodias estranhas, dando às palavras aquela sua característica singular e particular (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 148).

Segundo Soyinka, nessa relação entre símbolo e melodia é revelado ao cantor o poder da criação. E, ao se deparar com a totalidade da vontade, ele passa a ter um sentimento de angústia que a razão não consegue interpretar. Nesse momento, os sentidos são suspensos, dando lugar à “experiência essencial da realidade cósmica” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 148; tradução nossa), cessa a relação com o mundo físico, de tal modo que todos, deuses, não nascidos, vivos e ancestrais, estão sujeitos às mesmas leis e o cantor será o porta-voz das forças naturais.

As divindades encontram-se na mesma situação em que vivos, assim como os ancestrais e os não nascidos obedecem às mesmas leis, sofrem as mesmas agonias e incertezas, empregam a mesma inteligência maçônica dos rituais para o mergulho perigoso na quarta etapa da experiência, o imensurável golfo de transição. Seu diálogo é liturgia, sua música toma forma a partir da imersão incompreensível do homem nesta área de existência, inteiramente escondida do reconhecimento racional. A fonte do lírico possuído, entoando até então desconhecidas tensões mitopoéticas, cujo refrão antifonal é, no entanto, instantaneamente capturado e lançado com todo o seu terror e intimidação na noite por devotos convincentes, esta fonte é resíduo da área numinosa de transição. Esta é a quarta etapa, o vórtice dos arquétipos e lar do espírito trágico.

(Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., pp. 148-9; tradução nossa)

A partir desse percurso na metafísica soyinkiana, notamos que a mitopoesia apresenta-se como elemento fulcral, representando a própria ponte construída por Ogum que possibilitará a harmonia cósmica. Destarte, ela é análoga ao quarto estágio da experiência, momento no qual Ogum, após sua fragmentação no estado natural, emerge de todo o sofrimento e acaba com a angústia de ruptura:

para ser reabsorvido dentro da Unidade universal, o Inconsciente, o profundo turbilhão negro de forças mitopoéticas, para mergulhar completamente dentro dela, entender sua natureza e ainda, pelo valor combativo da vontade, resgatar e remontar-se e emergir mais sábio, poderoso a partir da corrente dos segredos cósmicos, organizando as forças místicas e técnicas da Terra e do Cosmos para forjar uma ponte para seus companheiros seguirem. (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., pp. 153-4; tradução nossa)

Portanto, a mitopoesia poderia ser compreendida como o ápice da tragédia iorubá. Contudo, de acordo com o que foi apresentado, nos inquieta a seguinte questão: como podemos pensar a relação entre a concepção metafísica soyinkiana e a noção de mitopoesia apresentada por Abdias Nascimento?

A MITOPOESIA EM ABDIAS NASCIMENTO E WOLE SOYINKA

O que nos leva a acreditar no vínculo existente entre esses dois pensadores está relacionado com algumas indicações no texto de Soyinka que associam o abismo de transição ao drama e como ele pode ser visto na realidade contemporânea.

Espiritualmente, a inquietação primordial da psique iorubá pode ser expressa como a existência na memória coletiva de uma ruptura primitiva no éter transitório, cujo primeiro desafio efetivo é simbolizado no mito da descida dos deuses à terra e na batalha com imenso crescimento caótico que interditou a reunião com o homem. (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 144; tradução nossa)

Ao afirmar que a descida dos deuses para a união com os homens, que resultaria na unidade e na harmonia cósmica, foi impossibilitada por batalhas, Soyinka explica em nota de rodapé como isso pode ser interpretado contemporaneamente: “Eu tornaria isso hoje mais irrefutável em termos de origem, desenraizamento, errância e estabelecimento racial. Essa experiência de grupo é menos remota e faz paralelo com a mitologia do caos primordial, bem como os ritos de transição (nascimento, morte etc.)” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 144; tradução nossa). Nesse trecho, percebemos que o abismo de transição pode ser compreendido a partir da colonização e da escravização negra, as quais se apresentam como uma ruptura da harmonia existente, como um desenraizamento dos indivíduos negros, entendidos, consequentemente, como sem lugar, perambulando pelo mundo. Isso constrói uma memória coletiva nos negros de terror, angústia e fragmentação do indivíduo: ele é imergido em uma cultura completamente alheia à sua, denotando uma “angústia de ruptura” que se assemelha ao abismo de transição apontado por Soyinka.

No trecho a seguir, Soyinka explica o abismo de transição a partir do mundo dos vivos, os quais servirão como materiais do drama:

É nesses momentos que a memória transitória toma controle dele [do homem] e as insinuações o arrancam desse intenso paralelo de seu progresso através do abismo de transição, da dissolução de si mesmo e de sua luta e triunfo sobre a subsunção por meio da agência da vontade. É essa experiência que o dramaturgo trágico moderno recria por meio da ação física contemporânea, refletindo emoções da primeira batalha ativa da vontade através do abismo da dissolução. (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. Myth, Literature and the African World. Londres: Cambridge, 2005a., p. 149, tradução nossa)

Notemos que o material do drama é coletado a todo momento, ou melhor, em qualquer período histórico, de modo que as ações remeterão à primeira batalha, a batalha de Ogum para fazer a ponte da harmonia cósmica.

Mais adiante, Soyinka reafirma a memória coletiva a partir de um vir a ser racial, o qual pode ser tema dos dramas, desde que respeitem a essência da transição: “ou novamente a memória coletiva de dispersão e reunião do vir a ser racial. Tudo isso e, claro, a experiência recorrente de nascimento e morte são temas psico-históricos para a experiência trágica: a essência da transição” (Soyinka, 2005bSoyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60., p. 149). Acreditamos que essas indicações de Soyinka nos autorizam afirmar uma relação entre a concepção de mitopoesia proposta em sua metafísica e a apresentada por Abdias Nascimento. Se nossa interpretação está correta, podemos entender o abismo de transição, marcado pelo terror e pela fragmentação do ser, como o movimento de dispersão da população africana e de seus descendentes ao redor do mundo, especialmente durante os períodos de escravidão e colonização. Assim, Abdias Nascimento, a partir do conceito de mitopoesia, pretende ultrapassar esse estado de fragmentação e emergir desse golfo de transição por meio da construção de novas narrativas que valorizem a resistência negra.

Ao relacionar o pensamento de Soyinka com a concepção apresentada por Nascimento, segundo a qual a mitopoesia é um espaço profundo onde a cultura realiza sua função, podemos inferir que esse espaço é o mundo da vontade que busca os valores ancestrais. Essa busca é realizada por meio da cultura, visto que, de acordo com Nascimento, ela é unidade de forças e, sem ela, essas forças seriam esquecidas em suas singularidades. Para se realizar essa união de forças no mundo mitopoético é necessário a busca da cultura ancestral, como o Ujamaa. Parece que essa concepção de cultura está estreitamente relacionada à construção da ponte por Ogum que une os seres humanos e os deuses. Voltando à história de Chico-Rei, note que ela se apresenta da seguinte maneira: Chico-Rei foi escravizado pela colonização, foi retirado de seu local de origem e, ao mesmo tempo, tentaram afastá-lo de sua cultura. Com tal ação pretendia-se remover a unidade de sua vida: ele foi colocado em um local desconhecido, cujos costumes e a cultura ele não compartilhava, e onde ele era tratado como objeto e não mais como sujeito.

Diante desse sofrimento, do fato de Chico-Rei sentir falta de seu lugar de nascença, sua vida cultural, a organização social e os costumes de sua terra, ele busca uma forma de se livrar desse infortúnio a partir da economia de seus rendimentos. Com a conquista da liberdade, Chico-Rei constrói uma sociedade nos moldes ancestrais, de acordo com a que ele vivia antes da sua escravização, retomando a unidade de sua vida a partir da reconstrução cultural de seu país natal no Brasil, sendo reconhecido novamente como sujeito de sua história.

Portanto, é possível encontrar na história de Chico-Rei a mesma estrutura que é apontada na metafísica soyinkiana: Chico-Rei é fragmentado e mergulhado no abismo do mundo quando é escravizado. Em seguida, ele une forças, consegue se libertar e retornar à Unidade original, reintegrando os valores culturais ancestrais à sua vida. Isso evidencia o pressuposto metafísico soyinkiano na concepção de mitopoesia de Abdias Nascimento.

A PROXIMIDADE EXISTENTE ENTRE ABDIAS NASCIMENTO E WOLE SOYINKA

Não é de menos importância mostrar que havia uma proximidade entre Abdias Nascimento e Wole Soyinka, como se pode perceber pela solidariedade do autor nigeriano ao brasileiro. Primeiro, quando o Itamaraty tentou vetar a participação de Nascimento no Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac) em Lagos, na Nigéria, em 1977 (E. Nascimento, 2014Nascimento, Elisa Larkin. Grandes vultos que honraram o Senado: Abdias Nascimento. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnica, 2014., pp. 17 e 225). E depois, em 2014, quando Soyinka participou da homenagem a Abdias Nascimento, realizada em Audiência Pública pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, em Brasília (Senado Federal, 2015Senado Federal. 69ª, Extraordinária, trechos 10 e 11, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/reuniao?0&reuniao=3756 >. Acesso em: 16/5/2023.
https://legis.senado.leg.br/comissoes/re...
).

Abdias Nascimento mostra que, além dos vínculos de amizade com o pensador nigeriano, ele conhecia muito bem a metafísica soyinkiana. Isso é evidenciado na introdução de seu livro O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, quando ele lembra o Encontro sobre Alternativas para o Mundo Africano, realizado no Senegal, em 1976:

O Capítulo 2 e o meu discurso ao Encounter: African World Alternatives, promovido em Dacar, Senegal, e organizado pelo esforço enérgico de Wole Soyinka, manejando as armas forjadas por Ogum em seu nunca acabado salto transitório através do abismo existencial, rumo à liberdade africana. (A. Nascimento, 1980Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . Petrópolis: Vozes , 1980., p. 30)

Notemos que Nascimento menciona Soyinka, relacionando-o com sua teoria metafísica, o que evidencia que o pensador brasileiro conhecia a teoria trágica iorubá. Ademais, é importante salientar que o capítulo ao qual Nascimento faz referência é exatamente o documento no qual ele apresenta sua concepção mitopoética.

Entretanto, na terceira edição do mesmo livro, Nascimento afirma que o trabalho apresentado no evento constava no Documento 6, que trata da questão da mulher e das relações raciais no Brasil. Mesmo havendo essa divergência em relação a qual trabalho foi apresentado no Encontro sobre Alternativas para o Mundo Africano, Abdias menciona novamente Soyinka:

Trata-se da primeira reunião da União dos Escritores dos Povos Africanos organizada pelo esforço enérgico do poeta, dramaturgo e pensador Wole Soyinka, manejando as armas forjadas por Ogum em seu jamais acabado salto transitório através do abismo existencial rumo à liberdade africana. Nessa tarefa, Soyinka contou com a ajuda de outro aventureiro desse salto libertário, Carlos Moore. (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 50)

Ao comparar as duas citações, notamos que Nascimento trata Soyinka agora como dramaturgo, poeta e, principalmente, pensador, cujo objetivo, nesse salto transitório através do abismo existencial, é a liberdade africana. O filósofo nigeriano também é comparado a Ogum, quando recebe a alcunha de aventureiro.

Mais adiante, exatamente no Documento 2, em que apresenta o conceito de mitopoesia, Nascimento utiliza como epígrafe uma citação de Wole Soyinka. Tal fato reforça a ideia da estreita relação entre esses pensadores e, por conseguinte, a relação entre a metafísica soyinkiana e a concepção de mitopoesia de Nascimento:

Nós, negros africanos, temos sido convidados, sem muita insistência, a nos submetermos a uma segunda época de colonização - desta vez por uma abstração universal-humanoide definida e conduzida por indivíduos cujas teorias e prescrições são derivadas da apreensão do seu mundo e de sua história, de suas neuroses sociais e de seus valores. (Soyinka, 2005aSoyinka, Wole. Myth, Literature and the African World. Londres: Cambridge, 2005a., apud A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 61)

Ao citar Wole Soyinka, Nascimento parece se referir a uma nova maneira de colonização, uma forma eurocentrista de conhecer as coisas que não respeita outras concepções de mundo. Assim, ele mostra um aprofundamento do terror do mundo e da vontade que fragmenta ainda mais os negros. Esse fato é ainda mais evidente quando buscamos no livro de Soyinka a continuação da citação:

É, claramente, o momento de responder a essa nova ameaça, cada um em seu próprio campo... Porque depois de (ou simultaneamente a) um confronto conclusivo e dirigido externamente no continente deve vir um restabelecimento dos valores autênticos dessa sociedade, modificados apenas pelas demandas de um mundo contemporâneo. Isso parece um processo bastante óbvio nos esquemas de histórias interrompidas. Será que é por isso que, ultimamente, nós, africanos, estamos enfrentando um ataque conjunto, decorado com respeitabilidade ideológica, em todas as tentativas de reafirmar o mundo autêntico dos povos africanos e garantir sua apreensão contemporânea através de estruturas apropriadas? (Soyinka, 2005aSoyinka, Wole. Myth, Literature and the African World. Londres: Cambridge, 2005a., p. x)

No trecho acima, Soyinka afirma a necessidade de resposta, mas a forma como isso acontece historicamente remonta à sua teoria metafísica: sempre após um confronto há uma reintegração dos valores autênticos da sociedade, ou seja, essa segunda fase de colonização pode ser entendida como um abismo de ruptura que se aprofunda cada vez mais no terror, mas, depois do confronto direto, há um retorno à ancestralidade, permeado pelas demandas da atualidade. Remontando a mesma estrutura exemplificada da mitopoesia de Chico-Rei apresentada por Abdias Nascimento, parece mais evidente a inspiração soyinkiana do filósofo quilombista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Soyinka, Wole. ‘‘The Fourth Stage”. In: Soyinka, Wole. Myth, Literature and the African World . Londres: Cambridge , 2005b, pp. 140-60.
  • 1
    Este trabalho faz parte de pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília (UnB), sob orientação do professor doutor wanderson flor do nascimento.
  • 2
    Sobre diversidade e unidade africanas, assim como a noção de africanidade, ver Kabengele Munanga (2009Munanga, Kabengele. Origens africanas do Brasil contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Global, 2009., pp. 20-40).
  • 3
    A diáspora, para Abdias Nascimento, não é apenas a expulsão dos negros da África, causada pelo colonialismo, pelo imperialismo e pelo capitalismo a partir do século XVI, mas é também um movimento que “incorpora populações asiáticas, como os dravíticos da Índia e os aborígenes australianos, saídos do continente africano há dezenas de milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída, fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e Caribe” (A. Nascimento, 1997Nascimento, Abdias. “Marcus Garvey e a causa pan-africana”. Thoth. Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, n. 2. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997., p. 91).
  • 4
    Também grafado Chico Rei (Silva, 2007Silva, Rubens Alves da. “Chico Rei Congo do Brasil”. In: Silva, Vagner G. da (org.). Imaginário, cotidiano e poder, v. 3. São Paulo: Selo Negro, 2007.). Optamos por utilizar a grafia Chico-Rei, conforme Abdias Nascimento (2019)Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019..
  • 5
    Chico-Rei, também conhecido como Galanga, Francisco da Natividade, Francisco da Anunciação e Francisco Lázaro, é dado como a origem da festa do reinado (Silva, 2007Silva, Rubens Alves da. “Chico Rei Congo do Brasil”. In: Silva, Vagner G. da (org.). Imaginário, cotidiano e poder, v. 3. São Paulo: Selo Negro, 2007.). Segundo Rubens da Silva (2007)Silva, Rubens Alves da. “Chico Rei Congo do Brasil”. In: Silva, Vagner G. da (org.). Imaginário, cotidiano e poder, v. 3. São Paulo: Selo Negro, 2007.,que entrevistou folcloristas, sociólogos e antropólogos, entre outros, não há prova histórica da existência de Chico-Rei, mas sua história é repassada e atualizada por fontes orais e escritas. Depois de chegar virtualmente a chefe da província de Minas Gerais, Chico-Rei teria mandado construir uma igreja para Nossa Senhora do Rosário e ali teria introduzido a festa do reinado em homenagem à santa. Nas atualizações e resgate dos mitos, Rubens da Silva enfatiza a importância da valorização de Chico-Rei, além de Zumbi e Chica da Silva, pelos movimentos negros, que se empenham “no esforço intelectual e político da construção de referenciais simbólicos para esta população” (Silva, 2007Silva, Rubens Alves da. “Chico Rei Congo do Brasil”. In: Silva, Vagner G. da (org.). Imaginário, cotidiano e poder, v. 3. São Paulo: Selo Negro, 2007., pp. 78-9). A atuação dos movimentos negros nos parece diretamente relacionada com as ideias de Abdias Nascimento, que dá a Chico-Rei o mesmo grau de importância de personalidades históricas como Zumbi dos Palmares, Luísa Mahin, Luís Gama e João Cândido (A. Nascimento, 2019Nascimento, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista . São Paulo/Rio de Janeiro: Perspectiva/Ipeafro , 2019., p. 154).
  • 6
    Para uma discussão sobre do sujeito negro e sua coisificação, ver Frantz Fanon (2008Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008., pp. 175-84) e Deivison Faustino (2015Faustino, Deivison M. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese (doutorado em sociologia). São Carlos: ppGs/Universidade Federal de São Carlos, 2015., pp. 57-74)
  • 7
    Sobre o mito de Ogum, ver Reginaldo Prandi (2020Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras , 2020., pp. 86-8).

Editora responsável:

Renata Francisco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2023
  • Aceito
    15 Mar 2024
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