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DA ORLA À SALA DE JANTAR: Gênero e domesticidade na bossa nova e na tropicália

From the Shore to the Dining Room: Gender and Domesticity in Bossa Nova and Tropicalia

RESUMO

O artigo revisita a bossa nova e o tropicalismo por meio de uma dimensão até hoje pouco analisada: as relações entre modos de compor e modos de morar, com foco no entrelaçamento entre domesticidade, gênero e produção musical. Sustentado pelo pressuposto de que as casas envolvem a produção e a internalização de princípios hierárquicos, dispositivos classificatórios e mecanismos de subjetivação, atiçados e enredados pelos marcadores sociais de classe, gênero, geração e raça, o artigo analisa os apartamentos de Nara Leão e de Caetano Veloso. Amplia, assim, a compreensão dos vínculos da bossa nova com experiência urbana no Rio de Janeiro e do tropicalismo com a dinâmica cultural e urbana de São Paulo.

PALAVRAS-CHAVE:
bossa nova; tropicalismo; Nara Leão; Caetano Veloso; casas; gênero e domesticidade

ABSTRACT

The article intends to understand two important musical movements within the Brazilian culture, bossa nova and tropicalismo, through a dimension seldom explored, that is, the way the artists´ homes, spaces for subjectivity as well as for living domesticity, helped to shape the sociability, the musical practices and the gender relations within the artistic production in the two biggest Brazilian metropolis. As far as bossa nova is linked to the urban experience in Rio de Janeiro, tropicalismo is rooted, for a while, to the cultural and urban dynamics of São Paulo. The article is founded on interconnected grounds: first, in the idea that houses depend on the making of and on the internalization of hierarchical principles, of classifying patterns and of subjective dispositions; second, houses as artifacts which express worldviews and manners of behaving in space. These intertwined fundamentals open up promising ways of tackling the relations between the city and the cultural production, rooted in social marks of class, gender, race and generation.

KEYWORDS:
bossa nova; tropicalismo; Nara Leão; Caetano Veloso; houses; gender and domesticity

INTRODUÇÃO

Dentre os diversos artefatos culturais produzidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), o disco Tropicália ou Panis et circensis (Imagem 1) assinalou a um só tempo um choque e uma inflexão no modo de fazer e pensar a música popular do país. Lançado às vésperas da promulgação do Ato Institucional n. 5, de dezembro de 1968, ele trazia em sua concepção frescor inventivo e irreverência. As canções do disco, na maioria compostas e executadas pelos próprios tropicalistas, propunham sonoridades distintas sem se filiarem a um gênero musical determinado e manifestavam, em conjunto, uma oposição tanto à direita pró-regime quanto às frações da esquerda que buscavam separar o trigo “autêntico” da cultura nacional de seu joio “impuro” e subdesenvolvido.1 1 O maestro Júlio Medaglia (1938), simpático às ideias tropicalistas, define com propriedade essa dinâmica de convergência de elementos díspares: “Tudo o que havia naquele convulsionado final de anos [19]60 estava presente dentro do tropicalismo. Era música fina, era música cafona, era música de vanguarda, era música do passado, era a refinada música debussyiana celestial, mas era também o Vicente Celestino, era o teremim e era o berimbau, era a poesia concreta e era o Cuíca de Santo Amaro. Então, tudo se misturava num gigantesco sarapatel fervendo que fazia com que nenhum valor se tornasse absoluto e nenhum valor sobrevivesse àquela crônica de costumes, de acontecimentos e comportamentos da época”. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=_yyMucfbwbo>. Acesso em: 18/09/2018.

Imagem 1
Capa do álbum Tropicália ou Panis et circenses, gravado em São Paulo em maio de 1968 e lançado em julho do mesmo ano pelo selo Philips do Brasil.

Com um apreço particular pelos recursos da paródia, do pastiche e, sobretudo, da alegoria, o tropicalismo retirou das contradições da sociedade brasileira a matéria-prima de sua produção simbólica. Inspirada nas instalações de Hélio Oiticica, nos filmes de Glauber Rocha e no teatro de José Celso Martinez Corrêa, a ideia de contrapor realidades socioculturais antagônicas - o arcaico e o moderno, o regional e o cosmopolita, os modos de vida tradicionais e a indústria cultural - subjazia a todas as iniciativas tropicalistas no intuito de formar uma imagem potente, porém irresolvida, de país (Schwarz, 2014______. “As ideias fora do lugar”. In: As ideias fora do lugar. São Paulo: Companhia das Letras. 2014. ; Ridenti, 2014Ridenti, Marcelo. “Caleidoscópio da cultura brasileira (1964-2000)”. In: Miceli, Sergio; Pontes, Heloisa (orgs.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: Edusp, 2014.). Nesse sentido, a opção pelo “excesso” (de sonoridades, de cores e de simbolismos) foi, segundo Santuza Naves (2000Naves, Santuza Cambraia. “Da bossa nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, 2000, pp. 35-44.), a principal estratégia adotada por eles para romper com as formas culturais disponíveis à sua geração.

Não menos alegórica que as personagens de Terra em transe ou O rei da vela,2 2 Tanto o filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, quanto a peça O rei da vela (1967), dirigida por José Celso Martinez Corrêa, foram considerados marcos de um tipo de arte crítica e engajada politicamente. Para Caetano Veloso, ambos foram fundamentais na concepção do movimento tropicalista. a capa do álbum Tropicália ou Panis et circensis conferiu um rosto definitivo à contraparte musical daquilo que acabaria sendo identificado como movimento, além de expressar de forma notável as intenções de seus membros. O cenário escolhido - a casa do fotógrafo Olivier Perroy, situada no Jardim Paulistano, bairro nobre de São Paulo (Rosatti, no preloRosatti, Camila Gui. “Habitar, narrar e construir: a casa moderna nos relatos biográficos de seus moradores”, Século XXI: Revista de Ciências Sociais, v. 8, n. 3, 2018, pp. 851-88. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5902/2236672537526>.
http://dx.doi.org/10.5902/2236672537526...
)3 3 Nesse momento, o bairro chic Jardim Paulistano, muito mais comportado e protegido que o centro da cidade, acolhia uma burguesia cultivada e próxima ao mundo das artes, como mostra Camila Rosatti (no prelo). Agradecemos à autora pela leitura atenta do artigo, pelas sugestões valiosas e pela localização da casa de Olivier Perroy. - conta com um grande vitrô ao fundo. Em frente a ele, um sofá branco ladeado por plantas ornamentais reúne os artistas, que miram sérios a lente. De autoria do próprio Perroy, a fotografia chama atenção por evocar os retratos de grupos vanguardistas do início do século XX, entre eles os dadaístas e os modernistas (Barat, 2018Barat, Aïcha Agoumi de Figueiredo. Capas de disco: modos de ler. Tese (doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade), Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2018.), e por colocar em primeiro plano as dimensões da família e da domesticidade. Segundo o historiador Christopher Dunn (2001Dunn, Christopher. Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill/Londres: University of North Carolina Press, 2001.), a posição de cada integrante na imagem parodiava deliberadamente as convenções hegemônicas de gênero, classe e sexualidade sob as quais haviam sido criados na primeira metade do século XX.

[Gal] Costa e [Torquato] Neto aparecem como um casal convencional e bem-comportado; [Gilberto] Gil senta-se no chão trajando um robe com motivos tropicais e segurando um retrato de [José Carlos] Capinan; [Rogério] Duprat segura delicadamente um penico como se fosse uma xícara de chá; Tom Zé interpreta o migrante nordestino, segurando um alforje de couro; Os Mutantes ostentam suas guitarras […] (Dunn, 2001Dunn, Christopher. Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill/Londres: University of North Carolina Press, 2001., p. 93).

Posando como típicos burgueses, esses jovens na faixa dos trinta anos de idade representavam uma juventude escolarizada e sem medo de exercer a crítica às ideias, aos costumes e à moralidade vigentes num país sob forte repressão. No entanto, mais que a simples negação dos valores da família burguesa, a atitude debochada dos tropicalistas indicava a tensa coexistência de propostas políticas e estéticas até então inconciliáveis para a classe artística e intelectual brasileira. Enquanto elementos culturais considerados “de massa” (de Carmen Miranda a Beatles, passando pelos boleros cantados em espanhol) convergiam com o que havia de mais rústico na música folclórica, o ideário antropofágico de Oswald de Andrade era seguido à risca, para horror dos adeptos do Centro Popular de Cultura (CPC) e das músicas de protesto ao estilo voz e violão.

Situado ao centro tanto do movimento tropicalista quanto da capa de seu disco-manifesto, Caetano Veloso (nascido em 1942) segura um retrato em preto e branco de Nara Leão (1942-1989) em que ela veste chapéu de praia e blusa regata - indumentária que contrastava fortemente com o “figurino ultrarrebelde” (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. In: Martinha versus Lucrécia, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110., p. 91) dos demais. O gesto, inusitado à primeira vista, reconhecia a importância da bossa nova para o tropicalismo e atestava a adesão tardia de sua antiga “musa” ao movimento que ali se inaugurava. De fato, Nara Leão, que ao contrário de seus colegas já tinha uma carreira consolidada como cantora em 1968, apenas lateralmente integrou a tropicália. Durante uma turnê pelo Nordeste brasileiro, quatro anos antes, ela conhecera Caetano e Gil, além de Maria Bethânia, e se entusiasmara com a vitalidade daqueles jovens que, em Salvador, começavam a gestar uma visão renovada da música popular brasileira.

Em Panis et circensis Nara canta uma única música, “Lindoneia”, um bolero composto por Caetano e Gil a pedido da própria artista. A canção, que também integrou o álbum Nara Leão, lançado no mesmo ano, foi inspirada no quadro do artista Rubens Gerchman - que estreitou ainda mais as relações entre músicos e artistas plásticos do período.4 4 O jornalista Sérgio Cabral conta que Nara Leão, ao ver a obra Lindonéia, Gioconda do subúrbio, de Gerchman, fez o pedido a Caetano. “Nara sentiu que a obra daria música porque, sob inspiração do autor [Gerchman], o quadro ia além da moldura, começando pelo título ‘Um amor impossível’ e a frase ‘A bela Lindonéia, de 18 anos, morreu instantaneamente’” (Cabral, 2008, p. 134). “A ideia de incluir Nara no disco coletivo”, comenta Caetano Veloso em Verdade tropical, “me pareceu certa não só porque ela havia feito essa ponte entre nós e a pintura de Gerchman, mas também por significar uma espécie de realização do sonho inicial de Gil de que o movimento fosse de toda a geração de músicos”. Assim, para os jovens tropicalistas, “Nara representava a bossa nova em sua origem e liderara a virada para a música participante - era, portanto, a música brasileira moderna em pessoa” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 275).

No campo de investigação acadêmica sobre música brasileira, poucos objetos foram tão amplamente estudados como a música considerada popular. O termo, que teve nas preocupações modernistas de Mário de Andrade (1928Andrade, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins Fontes. 1972 [1928].) um marco inegável em nossa tradição intelectual, atravessou os séculos XX e XXI cativando pesquisadoras e pesquisadores da sociologia, da antropologia e da história social e cultural (Fernandes, 2018Fernandes, Dmitri Cerboncini. Sentinelas da tradição: a constituição da autenticidade no samba e no choro. São Paulo: Edusp, 2018.; Moraes, 2012Moraes, José Geraldo Vinci de. “Entre a memória e a história da música popular”. In: Moraes, José Geraldo Vinci; Saliba, Elias Thomé (orgs.). História e música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2012.). Preservando-se os enfoques e as idiossincrasias de cada área, inúmeros trabalhos destacaram a correlação entre os gêneros musicais “populares” e as transformações socioculturais produzidas pelo arranque da modernização no Brasil. Pesquisas de feitio biográfico sobre a vida deste ou daquele artista, ou atentas a um gênero musical específico (com destaque para o choro e o samba), por vezes conectam-se a análises de maior alcance como a formação das classes sociais, as clivagens de raça e a construção da nacionalidade na tentativa de apreender o fenômeno na totalidade (Pereira, 1967Pereira, João Baptista Borges. Cor, profissão e mobilidade. São Paulo: Pioneira, 1967.; Wisnik, 1977Wisnik, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.; Moura, 1983Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.; Vianna, 1995Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Zahar. 1995.; Travassos, 1997Travassos, Elizabeth. Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro: Zahar/Funarte, 1997.; Garcia, 1999Garcia, Walter. Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999.; Sandroni, 2001Sandroni, Carlos. Feitiço decente: transformações no samba do Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Editora UFRJ, 2001.; McCann, 2004McCann, Bryan. Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil. Durham/Londres: Duke University Press, 2004.; Napolitano, 2007Napolitano, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.; Machado, 2007Machado, Cacá. O enigma do homem célebre: ambição e vocação de Ernesto Nazareth. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2007.; Bessa, 2010Bessa, Virgínia de Almeida. A escuta singular de Pixinguinha: história e música popular no Brasil dos anos 1920 e 1930. São Paulo: Alameda. 2010.; Hertzman, 2013Hertzman, Marc. Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil. Durham/Londres: Duke University Press, 2013.; Carvalho, 2013Carvalho, Bruno. Porous City. A Cultural History of Rio de Janeiro. Liverpool: Liverpool University Press, 2013.; Fléchet, 2017Fléchet, Anaïs. Madureira chorou… em Paris: a música popular brasileira na França do século XX. São Paulo: Edusp. 2017.; Queiroz, 2019Queiroz, Vitor. Dorival Caymmi: a pedra que ronca no meio do mar. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019.).

Se a sensibilidade dos pesquisadores da música popular brasileira para as questões de gênero e sexualidade começa a se aguçar (Carvalho, 2013Carvalho, Dalila Vasconcellos de. O gênero da música: a construção social da vocação. São Paulo: Alameda, 2012. ; Hertzman, 2013Hertzman, Marc. Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil. Durham/Londres: Duke University Press, 2013.; Cesar, 2015Cesar, Rafael do Nascimento. A composição de uma pioneira. De Francisca a Chiquinha. Dissertação (mestrado em Antropologia Social). Campinas, Unicamp, 2015. ; Ramos, 2016Ramos, Izabela Nálio. “B-girls e funkeiras: intersecções e identidades de mulheres no hip-hop e no funk”. Dissertação (mestrado em Antropologia Social), São Paulo, USP, 2016.), a reflexão sobre modos de compor e modos de morar, em particular sobre o entrelaçamento entre domesticidade, gênero e produção musical, ainda é uma trilha a ser percorrida. Nessa direção, propomos uma incursão ensaística e exploratória sobre a importância dos apartamentos onde viveram Nara Leão e Caetano Veloso para a invenção da bossa nova e do tropicalismo. Na pegada dos estudos antropológicos, sociológicos, históricos e arquitetônicos sobre as casas, entendidas como artefatos que expressam visões de mundo e maneiras de estar no espaço, partilhamos o pressuposto de que casas envolvem a produção e a internalização de princípios hierárquicos, dispositivos classificatórios e mecanismos de subjetivação, atiçados e enredados pelos marcadores sociais de gênero, classe, raça e geração.5 5 Dentre a bibliografia que tratou da casa, ver: Anne McClintock (2010) para um análise potente da ligação entre casa, domesticidade e império; Janet Carsten (2000) para a discussão da ideia de que as casas fazem o parentesco e, por extensão, as pessoas e os corpos; Pierre Bourdieu (2002) para uma análise iluminadora sobre as casas kabila como microcosmo do mundo social; Joelle Bahloul (1986) para a reflexão sobre as casas como espaço de expressão de tensões étnicas e políticas e lugar de inscrição da memória, assunto abordado também por Pamela Salen (2017); Marcel Mauss (1968) para a análise da estreita relação entre o aspecto morfológico da casa e a estrutura do grupo que ela abriga; Lévi-Strauss (1986) para a ligação entre casa, parentesco, aliança e pessoa moral; Norbert Elias (1974) para a análise densa das conexões entre casas, estrutura social, simbolismo e hierarquia; Tim Ingold (2012) para as implicações da ideia de que as casas são experimentadas antes como coisas que como objetos. Na bibliografia brasileira sobre o assunto, ver Louis Marcelin (1999) sobre a organização e a linguagem da casa entre os negros do Recôncavo Baiano; Luiz Fernando Duarte e Edlaine Campos (2008) para a discussão da casa como espaço moral e da memória e termo irmanado à família; Vânia Carvalho (2008) para uma análise inovadora do sistema doméstico na perspectiva da cultura material e das relações de gênero; Silvana Rubino (2017) para a análise da Casa de Vidro, da arquiteta Lina Bo Bardi; Ceres Brum (2014) para a análise da Maison du Brésil como território brasileiro em Paris; Marilza Friche (2016) para o significado do quarto dos adolescentes nas camadas médias; Camila Rosatti para as implicações das narrativas sobre a casa moderna nos relatos biográficos de seus moradores (2018).

Para avançarmos nessa rota, no entanto, temos de nos livrar da ideia do doméstico como avesso do público - um “invisível” e o outro “visível” - e também de seguir com a bibliografia empenhada em descortinar a polissemia, a maleabilidade, as experiências, as relações e as subjetividades materializadas nos espaços físicos enfeixados pela domesticidade (Nascimento et al., 2017Nascimento, Flavia; Mello, Joana; Lira, José; Rubino, Silvana (orgs.). Domesticidade, gênero e cultura material. São Paulo: Edusp/CPC, 2017.; Heynen e Baydar, 2005Heynen, Hilde; Baydar, Gülsüm (orgs.). Negotiating Domesticity: Spatial Productions of Gender in Modern Architecture. Londres: Routledge, 2005.). Nessa linha, dois autores nos parecem cruciais: Gilberto Freyre e Beatriz (hoje Paul B.) Preciado. Adotando um “ponto de vista quase proustiano de estudo e interpretação da casa em suas relações mais íntimas com as pessoas” (2003, p. 38), Freyre descortinou um objeto potente de análise; em contrapartida, deixou leitores inconformados com o que lhes parecia ser uma “sociologia do interior da casa ou do interior da alcova”, nutrida por “preocupações apenas femininas, em torno de assuntos melancolicamente mornos ou docemente inofensivos” (Freyre, 2003Freyre, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 14. ed. São Paulo: Global, 2003 [1936]., p. 81). Presos, segundo Freyre, a “noções de varonilidade sociológica” e interessados apenas em questões jurídicas e políticas do país, eles receberam o livro Sobrados e mucambos (1936) como “uma sociologia de casas velhas” (2003, p. 100).

Rebaixada como assunto sociológico menor por sua associação simbólica e metonímica com o universo feminino, a casa, no entanto, longe de ser um tema banal, foi a via utilizada por Freyre para conferir importância “à presença da mulher e do menino em nossa história” (2003Freyre, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 14. ed. São Paulo: Global, 2003 [1936]., p. 101). Muitos anos depois, em outro contexto intelectual, a arrojada tese de doutorado em arquitetura defendida por Beatriz Preciado na Universidade de Princeton deu nova torção de perspectiva ao assunto. Na bibliografia da tese - publicada primeiro em espanhol em 2010 com o título Pornotopía, arquitectura y sexualidad en Playboy durante la Guerra Fría -, Freyre não está presente. Mas o que ela revela sobre a casa de Hugh Hefner, o criador da revista Playboy, ecoa os achados do sociólogo pernambucano e nos incita a relê-los na chave da economia dos afetos e de seus engates com dimensões fulgurantes (e cruciais) da dinâmica social, materializadas nos espaços domésticos.

A junção da revista Playboy com um conjunto de espaços - entre eles, o apartamento em Chicago do criador da revista e, depois, a mansão que ele construiu em Los Angeles - funcionou como “um laboratório crítico para explorar o imaginário de um novo discurso sobre o gênero, a sexualidade, a pornografia, a domesticidade e o espaço público durante a Guerra Fria” (Preciado, 2010Preciado, Beatriz. Pornotopia: arquitectura y sexualidad en Playboy durante la Guerra Fría. Barcelona: Anagrama, 2010., p. 11). Os apartamentos de solteiro exibidos na revista, com móveis e objetos modernos, assim como a mansão de Hugh Hefner, equipada com a cama redonda e giratória, o salão de jogos, o bar subterrâneo e a piscina onde as “coelhinhas” nuas se exibiam para os convidados, compõem ao mesmo tempo um dispositivo arquitetônico e uma “máquina performativa de gênero” (2010, p. 89). Eles condensam a “produção pública do privado e da espetacularização da domesticidade” (idem, p. 12), em contraposição à “casa familiar suburbana, espaço heterossexual dominante [na] cultura norte-americana do pós-guerra” (idem, p. 15).

A ideia de máquina performativa de gênero associada às casas se aplica a todo e qualquer espaço destinado à habitação, sejam eles as casas-grandes, os sobrados e mucambos, as casas do subúrbio norte-americano ou os apartamentos de solteiro expostos na revista Playboy. Cunhada por Preciado, essa ideia potencializa, a nosso ver, a atualidade da obra de Freyre e a releitura dela à luz do livro Pornotopía. Como máquinas performativas de gênero, as casas - e o que acontece dentro delas em termos da economia dos afetos e dos regimes de sexualidade - dão o que pensar. Daí nosso interesse na transfiguração espacial da imaginação social em registro musical, com o objetivo de iluminar a produção da bossa nova e do tropicalismo pelo prisma das relações entre os modos de compor e os modos de morar.

“MUSIQUINHA DE APARTAMENTO”

No mesmo ano em que conheceu Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, Nara Leão rompeu com a bossa nova. Em uma entrevista concedida ao jornalista Juvenal Portella e publicada na revista Fatos & Fotos de outubro de 1964, ela foi contundente em sua declaração contra o gênero musical no qual se lançou profissionalmente.

Chega de bossa nova. Chega disso, que não tem sentido. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo e não uma coisa feita de um grupinho para um grupinho. […] Eu não tenho nada, mas nada mesmo, com um gênero musical que, sinto, não é o meu e nem é verdadeiro.

A negação radical de Nara acerca de seu vínculo com a bossa nova aludia a críticas feitas a ela nos anos anteriores, quando canções de cunho social, vinculadas ao tradicional samba de morro, começaram a ser incorporadas em seu repertório. Naquele momento, os mais ortodoxos entre os sambistas levantaram suspeitas acerca da autenticidade de seu engajamento político. Vinda da elite do Rio de Janeiro e branca para os parâmetros nacionais, Nara era a personagem improvável de uma cena em que novos protagonistas, vindos de outras regiões da cidade e trazendo outras marcas de diferença, afirmavam seu lugar nos flancos da produção cultural. Tão improvável era que, em carta ao escritor e amigo Carlinhos (José Carlos de Oliveira), Nara procurava justificar, num desabafo, suas últimas escolhas artísticas. “[Acho] perfeitamente normal que eu cante aquelas músicas, embora não tenha nascido no morro ou no Nordeste. Se não fosse assim, Carlinhos, só os franceses poderiam encenar peças francesas, só os ingleses poderiam apresentar peças inglesas” (apudCabral, 2008Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2008., p. 73).

O “chega!” de Nara Leão ecoou pela orla carioca, suscitando entre os adeptos da bossa nova reações que iam da incompreensão ao descrédito. Ainda assim, a maioria deles foi unânime em ressaltar positivamente aquilo que ela havia relegado a mera veleidade do gênero: a “musiquinha de apartamento”. A cantora Silvinha Telles disse que “a bossa nova é a música da época em que todo mundo mora em apartamento”; Roberto Menescal asseverou que, a despeito de Nara, eles continuavam “nos apartamentos fazendo bossinha nova para vender”, e Aloysio de Oliveira, dono da gravadora Odeon e produtor do primeiro disco da artista, chamou-a, num tom nada pejorativo, de “uma típica cantora de apartamento” (Cabral, 2008Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2008., p. 71). Assim, para seguir rumo ao “samba puro” e desvencilhar-se do epíteto, Nara precisaria se defrontar com aspectos da própria trajetória até então encobertos pelo sucesso arrebatador que a tal “musiquinha” tivera junto ao público da época, dentro e fora do Brasil.

A partir do fim da década de 1930, a chamada Zona Sul apresentou-se como o novo centro gravitacional da cultura carioca. Pouco a pouco, a agitação migrou dos casebres assobradados da Lapa e da Cidade Nova para edifícios modernistas à beira-mar; os cabarés e teatros da região da praça Tiradentes foram ofuscados pelas boates e pelos cinemas de Copacabana; o automóvel, o uísque, os discos e o hábito de ouvi-los em casa na companhia de amigos surgiram como sinônimos de sofisticação para homens e mulheres de extração social elevada. E a praia, com seus banhistas jovens e sadios, tornou-se uma extensão dessa nova maneira de reivindicar um Rio de Janeiro moderno e tropical (O’Donnell, 2016O’Donnell, Julia. “‘Un buen lugar para encontrar’. Cosmopolitismo, nación y modernidad en Copacabana (años 1950)”. In: Gorelik, Adrián; Peixoto, Fernanda Arêas (orgs.). Ciudades sudamericanas como arenas culturales. Buenos Aires: Siglo XXI, 2016.).

Paralela à verticalização da cidade, outra, de natureza simbólica e econômica, acentuou a estratificação social e, com ela, as desigualdades entre pobres e ricos, negros e brancos. Nesse realinhamento de fronteiras, muitos dos espaços de produção e consumo de música popular - como as praças e as famosas casas das “tias baianas”, pontos de encontro e de sociabilidade de pessoas de classes sociais distintas - foram negligenciados em termos de saneamento e ocupação ou simplesmente sumiram do mapa em decorrência dos sucessivos projetos de reurbanização do Rio de Janeiro (Needell, 1993Needell, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras. 1993.; Sevcenko, 2003Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.; Carvalho, 2013Carvalho, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.; Pontes e Cesar, 2017______. “Casas e domesticidade encenadas na metrópole”. In: Nascimento, Flavia; Mello, Joana; Lira, José; Rubino, Silvana (orgs.). Domesticidade, gênero e cultura material. São Paulo: Edusp/CPC, 2017, pp. 275-87.).

Com isso, o âmbito da intimidade doméstica tornou-se um lugar privilegiado de aperfeiçoamento e propagação dos signos de distinção mobilizados pelos estratos médios da cidade (Atique, 2005Atique, Fernando. “Ensinando a morar: o Edifício Esther e os embates pela habitação vertical em São Paulo (1930-1962)”. Risco, v. 2, n. 2, 2005, pp. 38-55.). Aos poucos, as representações e os usos referentes aos espaços internos dos apartamentos remodelaram a noção de morar e possibilitaram a formação de estilos de vida que terão como traço distintivo certa “satisfação autobiográfica”, segundo o antropólogo Gilberto Velho (1981Velho, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 135). Contrapondo-se à experiência dos cortiços e casarões do centro da cidade, esse novo modo de morar também produziu novas performatividades de classe, raça e gênero ao redefinir os limites entre interioridade e exterioridade, branquitude e negritude, masculinidade e feminilidade.6 6 Oriundo da filosofia da linguagem, o conceito de performatividade ganhou interesse renovado nos estudos de gênero graças a trabalhos como o de Judith Butler (1993, 2003). Alinhada a uma vertente pós-estruturalista bastante inspirada nas ideias foucaultianas, Butler trasladou para seu campo a teoria desenvolvida por John Austin (1975) na tentativa de compreender as formas de reconhecimento e representação dentro do feminismo como ações produtoras de um sujeito determinado e de suas demandas. Nessa perspectiva, gênero é encarado não como essência ou atributo de um sexo, mas como conjunto de práticas e discursos materializados em corpos e produtores de subjetividades. Para uma análise do conceito de performatividade aplicado às gramáticas raciais, ver Cesar (2018).

Na entrevista que deu a Fatos & Fotos, Nara utilizou a locução “de apartamento” de maneira pejorativa para opor-se a essa noção de intimidade doméstica associada a um ethos burguês elitista e muito distante da “expressão do povo” almejada por ela. Em sua visão, “cantar para dois ou três intelectuais” ou fazer música “de um grupinho para um grupinho” ofuscava a desigualdade entre pobres e ricos e, consequentemente, o próprio “povo”. Além do posicionamento ideológico, Nara tinha motivos mais mundanos para desclassificar a bossa nova como “musiquinha de apartamento”. Na mesma entrevista, afirmou com convicção que “essa história de dizer que a bossa nova nasceu na minha casa é uma grande mentira”, emendando que a “turma se reunia aqui e também em muitos outros lugares”. Tratava-se de desmistificar algo que em 1964 era apenas uma brincadeira entre amigos, mas depois ganhou grande repercussão na pena dos principais cronistas da bossa nova, tornando-se parte do anedotário oficial da música popular brasileira (Castro, 1990Castro, Ruy. Chega de saudade: a histórias e as histórias da bossa nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.).

A ANTIMUSA DA BOSSA NOVA

Na época das primeiras reuniões com a “turma” da bossa nova, por volta de 1957, Nara Leão morava com a família no terceiro andar do luxuoso Champs-Elysées, um edifício de frente para o mar localizado na avenida Atlântica, no coração de Copacabana. Além de Nara e da primogênita Danuza, o pai e a mãe formavam uma família pouco convencional para os padrões da época: “Sem bonecas, árvores de Natal, nem festas de aniversário, por convicção do pai” (Leão, 2005Leão, Danuza. Quase tudo: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 19). Muito liberais, os pais de Nara permitiam que os amigos da filha caçula frequentassem a casa diariamente e pareciam não se importar que as reuniões se estendessem noite adentro regadas a comida, uísque e música. “Aos poucos”, escreveu Ronaldo Bôscoli em suas memórias, “o apartamento de Nara transformou-se numa verdadeira sede da Bossa Nova. Foi lá que nasceu tudo. Espontaneamente” (Bôscoli et al., 1993Bôscoli, Ronaldo; Maciel, Luiz Carlos; Chaves; Ângela. Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.).

Tal espontaneidade de que fala Bôscoli tem a ver com o clima de intimidade doméstica propiciado pelo convívio no apartamento da avenida Atlântica, onde a etiqueta social adotada pelas famílias da elite carioca não tinha o mesmo peso. Uma reportagem publicada na revista Singra, em junho de 1960, retrata em detalhe o ambiente descontraído da família Leão.

Tempo: 20 horas. Dia: qualquer. Ano: [19]60. Cenário: apartamento no terceiro andar de um edifício da avenida Atlântica, no posto 4 de Copacabana. Personagens: jovens de vinte a trinta anos. Material de cena: uísque, guaraná, violão, trompa, saxofone, piano e pandeiro. Além disso, vozes bonitas e belas composições. Reunião: “Bossa Nova” […].

O tempo vai passando e já são 22 horas. A mãe da cantorinha Nara Leão, irmã de Danuza Wainer e namorada de Ronaldo Bôscoli, aparece na sala.

- Nara, está na hora de dormir. Amanhã tem mais “bossa nova”.

Protestos.

O pai fala:

- Isso de “bossa nova” é que eu não entendo. Onde é que está a bossa? De onde surgiu? Em que diferem das outras as músicas dessa rapaziada? […].

A mãe de Nara diz que já é meia-noite. As moças vão para casa e os rapazes, fazer poesia com a lua. A mesma lua que inspirou Noel, Caymmi e outros. De manhã vão trabalhar. Uns são jornalistas, outros radialistas e comerciários. A garoa da madrugada leva a “bossa nova” pela rua…

A descrição do espaço, feita no estilo das rubricas dramatúrgicas, captura o leitor para dentro da “cena” narrada. As “personagens”, o “cenário”, os “materiais” e a data não especificada dão um toque ficcional ao estilo de vida da elite carioca e a impressão de que as reuniões no apartamento da família Leão não tinham dia certo para acontecer. Até mesmo os pais, antagonistas típicos da sociabilidade jovem, entram em cena como coadjuvantes. Enquanto a mãe de Nara luta, com empatia e sem muito sucesso, para fazer valer alguma regra, o pai inquire os “jovens de vinte a trinta anos” sobre suas aspirações artísticas. Apenas com o fim da soirée a ficção cede lugar à realidade: as moças submetem-se às normativas de classe da respeitabilidade feminina vigente e “vão para casa”, enquanto os rapazes seguem madrugada afora buscando adiar o inevitável - “De manhã vão trabalhar”.

Aos dezesseis anos, Nara era a mais jovem - e uma das únicas mulheres - de um seleto grupo que incluía nomes ilustres como Vinicius de Moraes e Tom Jobim (João Gilberto era uma visita rara), além dos habitués Carlos Lyra, Roberto Menescal e o próprio Bôscoli. E embora tocasse violão muito bem (“como um homem!”, disse, em tom provocador, durante depoimento concedido ao Museu da Imagem e Som em 1977), ocupava a posição ambígua de anfitriã e coadjuvante das noitadas que promovia.

Eu funcionava para o grupo como uma espécie de computador. Sabia de cor todas as letras, melodias e acordes, mas só podia abrir a boca para cantar quando alguém precisava que alguma música fosse lembrada. E assim mesmo a malhação era geral: “fanhosa”, “desafinada” e outros elogios desse tipo (Leão apudCabral, 2008Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2008., p. 32).

É curioso que uma das cantoras brasileiras mais reconhecidas do século XX chamasse atenção pela aparente falta de talento. De fato, o começo da carreira de Nara foi marcado por passos inseguros e pouco arrojados para quem estava cercada de possibilidades no mundo musical. “Um dia”, conta ela, “uma gravadora insistiu muito para eu fazer um teste. [Eu] Não queria, mas insistiram. Fui. Cheguei lá, fiquei esperando quatro horas. Não fui embora porque eu queria que tudo acontecesse comigo, para ver como eram as coisas. Eu estava no mundo só de testemunha” (apudCabral, 2008Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2008., p. 49). O convívio intenso de Nara com a “turma” da bossa nova, fosse em seu apartamento, fosse no de outras pessoas, conferiu um sentido afetivo à prática musical, mas não estimulou na jovem o desejo de lançar-se profissionalmente. Ao afirmar que, até 1964, “não gostava de cantar em público”, Nara mantinha-se fiel ao registro vocal típico da música que fazia com os amigos - íntimo e “contido”, na terminologia adotada por Naves (2000Naves, Santuza Cambraia. “Da bossa nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, 2000, pp. 35-44.). Contrapunha-se, assim, ao ideal de cantora corporificado por artistas como Angela Maria, Dolores Duran, Elza Soares e Maysa, mulheres cujo estilo dramático e carregado era avesso a quem “estava no mundo só de testemunha”.

No que diz respeito à relação entre performance musical e performatividade de gênero, Nara ocupava a posição contrária à dessas e de outras cantoras, distanciando-se do modelo hegemônico de feminilidade das intérpretes de música popular. Recusando-se a “colocar a voz no nariz” (Mello, 1976Mello, José Eduardo Homem de. Música Popular Brasileira. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1976., p. 98) e cantar boleros derramados - coisa que faria em “Lindoneia” de maneira paródica -, ela criticava as noções e fantasias de feminilidade atiçadas pelo universo do entretenimento. O canto diáfano, o vestuário discreto e a postura de palco um tanto blasé eram reforçados por seu violão, instrumento musical associado à masculinidade “malandra” dos sambistas (Hertzman, 2013Hertzman, Marc. Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil. Durham/Londres: Duke University Press, 2013.). Nara era avessa também aos exageros que delinearam o ethos boêmio da maioria dos artistas das décadas anteriores. “Não estava habituada a ficar acordada até tarde”, comenta ela em entrevista à revista Manchete. “Depois do sono, o pior é ter de conversar com quem não conheço, após o espetáculo. Não é por esnobismo que saio todas as noites da boate logo depois do show. Já conheço bastante gente, e em número suficiente”. Considerada “antiboêmia” por seu biógrafo Sérgio Cabral (2008Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2008., p. 56), Nara corporificou a “contenção” de que fala Santuza Naves a respeito da bossa nova ao reproduzir no palco o clima de despojamento e intimidade engendrados pelo espaço doméstico dos apartamentos. Mais tarde, esses atributos, compartilhados em maior ou menor grau pelos demais bossa-novistas, disseminaram-se até plasmar um estilo indissociável daquele gênero musical.

Embora pouco usuais, essas características eram orquestradas com habilidade pela irreverência de quem cresceu em um lar confortavelmente liberal em Copacabana. De fato, o ato reiterado de contrapor-se às convenções musicais (e, com elas, as de gênero e sexualidade) fez com que Nara forjasse um tipo positivo de performance próximo à noção de “espontaneidade” materializada nos modos de morar da elite carioca. Assim, seu relativo desprendimento acerca do convencional - denominado “antiestrelato” por Caetano Veloso (1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 79) - foi uma das forças motrizes que estimularam nela o desejo de alçar novos voos, e não apenas em matéria de música. Em 1964, ela estreou nos palcos com Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho e direção de Augusto Boal, e, no ano seguinte, compôs o elenco de Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. Peças consideradas decisivas na história do teatro engajado brasileiro, ambas tiveram um impacto significativo na conversão política da artista à esquerda, para descontentamento de alguns bossa-novistas que, embora tenham depois criticado o regime militar que se anunciava, jamais o fizeram com sua música.

Vista desse ângulo, a recusa de Nara em relação à bossa nova sinalizou uma ruptura com os modos de compor gestados por ela e seus colegas, indicando a intenção de se distanciar do imaginário das classes médias da Zona Sul carioca, que começava a lhe parecer antiquado e alienado. “Antiboêmia” e “antiestrela”, Nara foi também uma espécie de antimusa da bossa nova pela maneira ativa e ambígua com que se posicionou em relação a ela. Contrariando as expectativas sociais reservadas às mulheres da música popular, que frequentemente assumiam o papel de coadjuvantes inspiradoras de seus pares masculinos (às vezes pelo talento, às vezes só pela beleza), ela recusou o epíteto de “musa” como forma de preservar sua mobilidade. E quando perguntada sobre tal alcunha, Nara encerrava a questão com bom humor: “Musa, não. Talvez eu seja a muda da bossa nova” (apudCabral, 2008Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2008., p. 67).

VERDADES TROPICAIS

Quase trinta anos depois do lançamento do disco-manifesto Tropicália ou Panis et circencis, cuja capa analisamos no início do artigo, Caetano Veloso publicou Verdade tropical. Crônica de uma geração e história do tropicalismo, o livro é mais que uma autobiografia. Nas palavras de Roberto Schwarz, “é um excelente romance de ideias, em que as circunstâncias históricas, o debate da época e a figura do biografado, um herói reflexivo e armado intelectualmente, além de estranho, se entrelaçam em profundidade, fazendo ver uma etapa-chave da vida nacional”. (Schwarz, 2012, p. 52). O qualificativo “estranho”, empregado pelo crítico atilado, passa a léguas do julgamento moral. Seu efeito dissonante cria o distanciamento necessário para aquilatar o feito artístico de Caetano Veloso (1942), plasmado de início em Santo Amaro da Purificação, onde nasceu em 1942 - o quinto dos sete filhos de uma família bem instalada na cidade.

Quem primeiro alertou o músico sobre a existência de uma vida diversa da vivida na cidade provinciana foi a prima que queria “morar em Paris e ser existencialista” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 60). O desejo da moça atiçou a curiosidade do menino e a suspeita de uma vida mais ampla e arejada, que foi ganhando forma à medida que ele crescia. O uso de meias descombinadas, a dúvida sobre a existência de Deus e o flerte com padrões mais livres de sexualidade eram acompanhados do questionamento das presilhas estéticas que levavam as meninas negras a alisar os cabelos. Essas mudanças foram se sedimentando em meio à paixão pelos filmes italianos e franceses que chegavam a Santo Amaro, à descoberta da bossa-nova, ao assombro diante da novidade musical trazida por João Gilberto, ao contato com o rock, que lhe parecia “relativamente desprezível durante os anos decisivos da formação” (Veloso, 2003, p. 52). Tudo isso experimentado com uma “rebeldia embebida no contexto local, mas aberta para o mundo”, na formulação precisa de Roberto Schwarz (2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. In: Martinha versus Lucrécia, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110., p. 60).

Atento à importância de Santo Amaro - ângulo a partir do qual Caetano vivenciou a juventude e misturou o “recesso familiar e da cidade provinciana à corrente geral do mundo moderno” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 57) -, Schwarz não se deteve nas detalhadas descrições que o músico faz ao longo do livro das casas onde morou. Não só as que habitou com a família em Santo Amaro, como aquelas em que residiu em Salvador,7 7 Ao se mudar para lá com a irmã Bethânia (a primeira da família a ganhar fama), com a finalidade de completarem os estudos, o que atraiu a atenção de ambos na cidade foi a efervescência. Na virada dos anos 1950, Salvador vivia a desprovincianização propiciada pela abertura do Museu da Arte Moderna e de novas faculdades (música, teatro e dança) — graças à iniciativa de um reitor esclarecido, Edgar Santos, à frente da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sobre a ambiência cultural e urbana de Salvador no período, ver Silvana Rubino (2016). no Rio de Janeiro e em São Paulo, no momento de eclosão do tropicalismo.

Caetano viveu em Salvador no período em que a cidade vivia a mistura de “experimentalismo artístico sem fronteiras nacionais, subdesenvolvimento, radicalização política, cultura popular onipresente, além da hipótese socialista no horizonte” (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. In: Martinha versus Lucrécia, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110., p. 63). Ali, a rua (e não a casa) foi o espaço que aglutinou sua sociabilidade, seus interesses e suas descobertas. Na cidade de cotidiano “denso e oleoso” retratada por Jorge Amado, na “terra do branco mulato e do preto doutor” cantada por Caymmi,8 8 Para uma discussão alentada da visão de Dorival Caymmi, de Jorge Amado e de seu círculo de amigos na cidade de Salvador, ver Gustavo Rossi (2009; 2015) e Vitor Queiroz (2017). na “Roma negra” do amigo e parceiro Gilberto Gil, Caetano fruiu um ambiente diverso daquele das casas amplas de Santo Amaro, imerso nas malhas da família numerosa, um mundo dentro do mundo.

De Salvador, Caetano partiu para o Rio de Janeiro em 1966, seguindo a irmã Bethânia, àquela altura indicada por Nara Leão para substituí-la no show Opinião. Lá morou no “Solar da Fossa”, um precursor dos apart-hotéis, estrategicamente localizado na confluência de Copacabana, Botafogo e Urca. Nele, compôs sua primeira canção (“Paisagem útil”) e, um pouco depois, “Alegria, alegria”, o maior sucesso de público de toda a sua carreira. Ali ele passava os dias compondo, conversando e namorando Dedé, com quem se casaria aos 24 anos. Dali, saía para a sociabilidade noturna, entusiasmava-se com os achados estéticos dos filmes Glauber Rocha, reunia-se com os baianos que estavam na cidade. No “Solar da Fossa”, Caetano esboçou os contornos estéticos do que viria a ser o tropicalismo.

O APARTAMENTO TROPICALISTA

O sonho de “casas modernas”, de “morar num apartamento novo e retilíneo” que o livrasse “do peso daqueles casarões cobertos de limo em meio aos quais nascera e crescera” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 115), se concretizou em meio à eclosão do movimento tropicalista. Não no Rio de Janeiro, que continuava lindo, mas em São Paulo, no 22-º andar de um edifício localizado na esquina da avenida Ipiranga com a São Luís. De lá, Caetano mirou a cidade que chamou de mau gosto - com “a dura poesia concreta de suas esquinas” e “a deselegância discreta de suas meninas” - e, vindo de “outro sonho feliz de cidade”, deu ao que viu forma musical na canção “Sampa”, em 1978.

No fim de 1967, porém, o que primeiro sobressaiu na experiência paulistana do músico foi a sensação de liberdade e vigor materializada no apartamento que escolheu para morar, descrito com riqueza de detalhes em Verdade tropical. Para um livro mais próximo do romance de ideias que da autobiografia - pouco interessado nos pormenores da vida do autor e concentrado na experiência de uma geração em rota de colisão com a esquerda engajada nos ideários do nacional-popular -, é notável que Caetano tenha dedicado um capítulo inteiro ao apartamento que dividiu com Dedé, antes de sua prisão e exílio em Londres.

Até se decidir pela mobília que usariam nas salas de visitas e de jantar, o casal passou um mês curtindo os “imensos espaços vazios” do apartamento, “onde era maravilhoso estar” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 201). O chão “refletia a luz das paredes”, e eles, a sós ou na companhia dos amigos que os visitavam, se “sentavam nele para conversar, cantar, ler”. De início, compraram apenas uma cama, móveis de quarto, geladeira e fogão. E uma vitrola, alojada no “quarto do som”. O despojamento foi se desfazendo pelas sugestões e intervenções de Piero, um italiano sem sobrenome declinado por Caetano, misto de artista plástico e decorador, que propôs ao casal a aquisição de móveis de acrílico e intermediou a compra junto ao dono de uma fábrica do ramo. A sala de visitas foi ocupada com “móveis transparentes de cores variadas e ácidas”, entre eles, duas “imensas poltronas infláveis de plástico, também transparentes”, que produziam um efeito “divertido, diferente e delicado” (idem, p. 203). A única “nota agressiva” eram alguns ganchos de prender carne dispostos no teto, que cortavam - frisa Caetano - “a doçura que a transparência emprestava às cores ácidas”. Na sala de jantar, comiam em uma mesa de pingue-pongue, sempre com a rede armada.

No amplo pórtico que separava a sala de visitas da sala de jantar, foi alocado “um manequim de fibra de vidro, uma figura de mulher nua e careca, em tamanho natural” (idem, ibidem). Sobre sua cabeça, instalou-se uma porção de lâmpadas coloridas cujos fios, de alturas diversas, eram ligados à vitrola no quarto do som. Assim que ela começava a funcionar, “os sons graves acendiam as lâmpadas azuis, os médios, as verdes e as amarelas, e os agudos, as vermelhas” (idem, ibidem).

No período em que decoraram o apartamento, Caetano, que já vinha “observando a beleza dos anúncios, das revistas vulgares, dos produtos de consumo”, passou a percorrer os supermercados “só para olhar as latas e as caixas empilhadas, desbravar os corredores multicoloridos com seu clima de ficção científica e decoratividade mística” (idem, p. 202). Dessas incursões focadas nos outdoors e nos produtos de consumo industrializados, surgiu o desejo de decorar uma das paredes do apartamento com um vistoso anúncio de açúcar que exibia uma “moça bonita jogando tênis contra um imenso fundo azul” (idem, p. 202). A “saúde” do mercado, replicando a “saúde e a beleza sexual da moça que jogava tênis no cartaz”, incendiou a imaginação de Caetano.

O anúncio não chegou a ser colocado na parede de sua sala de jantar. Mas as imagens e as alegorias que orbitavam em torno do mercado (e do consumo) foram aproveitadas nos procedimentos estéticos do tropicalismo - a colagem metódica de “traços formais ultramodernos, tomados à linha de frente da moda internacional, e aspectos característicos do subdesenvolvimento do país” (Schwarz, 2012Schwarz, Roberto. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. In: Martinha versus Lucrécia, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110., p. 94). Nesse procedimento de justaposição em que os elementos não se casam, como sintetizou Roberto Schwarz, o “contraste estridente entre as partes descombinadas agride o bom gosto, mas ainda assim, ou por isso mesmo, o seu absurdo se mostra funcional como representação da atualidade do Brasil, de cujo desconjuntamento interno, ou modernização precária, passa a ser uma alegoria das mais eficazes” (idem, ibidem). Antes de ser formalizado pelo tropicalismo, esse procedimento estético foi experimentado e materializado no apartamento de Caetano. Ele queria que sua “primeira morada paga com o próprio dinheiro fosse ela mesma uma profissão de fé tropicalista” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 202).

Assim como o apartamento de Nara, o de Caetano e Dedé era um ponto obrigatório de encontro dos amigos. Muitos deles, em geral os mais íntimos e informais, apareciam sem aviso prévio, fazendo com que o casal se sentisse vivendo “em regime comunitário” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 217); outros, como os poetas concretistas Décio Pignatari e Augusto e Haroldo de Campos, telefonavam antes para saber a que horas podiam ser recebidos - seguindo as prescrições “burguesas” (e, acrescentaríamos, “paulistanas”) de sociabilidade. Mas não só de (muita) interação nutria-se Caetano.

O “2002”, alcunha dada ao apartamento por Pignatari, foi também um espaço para a ampliação do repertório musical do artista. Enquanto os estudantes engajados (e os nem tanto) se valiam das salas de aula da Universidade de São Paulo, Caetano Veloso, então músico profissional, fazia de seu apartamento um centro de formação. No “quarto do som”, ele se atualizava com a cena musical internacional e ampliava a conexão com a tradição da música popular brasileira, refazendo, por conta própria, o percurso musical de João Gilberto. Sozinho, com Dedé ou na companhia dos amigos músicos, Caetano ouvia com atenção os long-plays de Carmen Miranda, Noel Rosa, Francisco Alves, Lupicínio Rodrigues e, claro, os contemporâneos Roberto Carlos e Jorge Ben. Além desses nomes, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Beatles, James Brown, Bob Dylan, Rolling Stones e muitos outros compunham a parte internacional da coleção. Embalada pelo “espetáculo de lâmpadas coloridas em volta da boneca de fibra de vidro segundo os sons da gravação” (Veloso, 1997, p. 270), a escuta metódica de Caetano ganhava corpo e rendia frutos. Dentre eles, a iniciativa de “fazer um disco-manifesto, um disco coletivo que explicitasse o caráter de movimento” (idem, p. 272) do trabalho que ele e seus companheiros vinham fazendo. Em junho de 1968, tal iniciativa se concretizaria em Panis et circenses (idem, p. 301 e 303).9 9 Dois meses depois do lançamento do disco-manifesto, Caetano e Gil voltaram, assustados, para o “2002” após um embate político-musical no auditório do TUCA (Teatro da Universidade Católica). Nesse evento — a eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção (FIC), patrocinado pelo TV Globo —, ambos se indispuseram com a plateia “predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de esquerda” (Veloso, 1997, p. 301). Vestido com roupa de plástico, Caetano cantou “É proibido proibir” e foi vaiado. Gilberto Gil também, que o acompanhou no palco após receber a notícia de sua desclassificação pelo júri. O público vivia os festivais de música com divisões e apelos que lembravam os das torcidas esportivas. Nesse clima incandescente, Caetano proferiu um de seus discursos mais memoráveis: “Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos” (idem, p. 303). Ele e Gil receberam uma vaia estridente da plateia, além de papéis, copos de plástico e outros objetos do tipo. Amedrontados, ambos deixaram o TUCA e voltaram ao apartamento de Caetano, confortados pelos telefonemas de apoio dos amigos e pela visita de José Celso Martinez Corrêa, o diretor do Oficina que, no ano anterior, eletrizara o teatro paulista com a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade.

Foi da varanda do “2002” que Caetano, também em 1968, ao mirar a rua conflagrada pela polícia a reprimir uma passeata estudantil, levou às últimas consequências as propostas estéticas do tropicalismo, encarnando-as em seu próprio corpo. Ladeado por dois amigos, desceu do apartamento com “um casaco militar antigo (um ‘casaco de general’) sobre o torso nu, jeans, sandálias e um colar de índio feito de dentes grandes de animal” (idem, p. 318). Como seu cabelo estava “enorme e emaranhado, indo alto acima da cabeça e quase chegando aos ombros”, parecia ali um misto de profeta, santo e louco. Em meio a homens e mulheres apressados e temerosos do confronto que se desenrolava entre a polícia e os manifestantes, a performance do músico mesclava audácia, provocação e nonsense. Andando na direção contrária à dos estudantes e da polícia, Caetano se sentiu “um artista realizando uma peça improvisada de teatro político”. Liberto das amarras tradicionais, transformou-se “no tropicalista” (idem, p. 319).

Não demorou muito para que as forças repressivas o identificassem como tal, menos pelo conteúdo estético e programático do tropicalismo e mais por enxergarem nele um disruptor da ordem, dos “bons costumes” e dos padrões vigentes de masculinidade. A polícia invadiu o “2002” tarde da noite para levá-lo preso, sem mandado oficial nem destino definido, enquanto Gil dormia com a namorada Sandra (irmã de Dedé) em um dos quartos do apartamento. Após sair da prisão, em fevereiro de 1969, Caetano seguiu em exílio para Londres. Ele nunca mais voltou ao apartamento de São Paulo, mas registrou-o com eloquência em Verdade tropical.

OS GÊNEROS DA INTIMIDADE

A correlação entre modos de compor e modos de morar explorada neste artigo é inteligível à luz das formas pelas quais noções de domesticidade, imaginadas e materializadas por frações de classe específicas, sedimentaram-se no discurso musical da bossa nova e da tropicália. Nesse sentido, os apartamentos onde moraram Nara Leão e Caetano Veloso não são meros “panos de fundo” da história desses gêneros musicais, tampouco fornecem um “contexto” mais amplo sobre o qual atuaram seus principais artistas. Ao contrário, tanto os expedientes criativos - em termos de melodia, harmonia, ritmo ou letra - quanto as representações evocadas por esses artistas acerca de uma música popular “moderna” devem ser compreendidos na imbricação com o desenvolvimento das “máquinas performativas de gênero” de que fala Preciado.

No caso da bossa nova, a importância dada a arranjos musicais enxutos, bem como à maneira sutil de cantar versos sobre “o amor, o sorriso e a flor”,10 10 Alusão à “Noite do amor, do sorriso e da flor”, show ocorrido em 21 de maio de 1960 na Faculdade de Arquitetura da UFRJ e que contou com a participação de grandes nomes da bossa nova, como Ronaldo Bôscoli, Claudete Soares, Nara Leão, Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim, Roberto Menescal e Johnny Alf. está diretamente relacionada a uma experiência social circunscrita ao espaço doméstico dos apartamentos da Zona Sul carioca. Ou mesmo dos bares e boates que, à diferença dos cabarés e cassinos, buscavam mimetizar o clima intimista próprio desse novo modo de morar. As ideias modernistas de objetividade e funcionalidade que orientavam o desenho dos edifícios de Copacabana e Ipanema também estão presentes na poética das canções de Vinicius de Moraes e nos acordes do violão de João Gilberto. Por essa razão, o apartamento de Nara, a despeito de ter sido ou não a “verdadeira sede da bossa nova”, de fato figurou como uma espécie de ateliê musical para jovens brancos de mesma extração social. Situado numa região da cidade verticalizada arquitetônica e socioeconomicamente, ele converteu-se em espaço não só de sociabilidade, mas de transfiguração do imaginário doméstico da classe média para um registro propriamente musical.

O tropicalismo, por sua vez, fincou solo em São Paulo antes de irradiar-se pelo país, em meio à paisagem desordenada de edifícios que apontavam para o céu e competiam em altura, no momento em que o otimismo enlaçado nas representações de modernidade e a certeza de futuro que acompanharam o processo de metropolização da cidade emitiam sinais claros de esgarçamento (Zorek, 2019Zorek, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950. Tese (doutorado em História), Campinas, Unicamp, 2019.).11 11 Em menos de três décadas, a população de São Paulo quadruplicara, passando de 579 mil habitantes em 1920 para 2,198 milhões na década de 1950. A cidade, “explodindo em número de habitantes, quebrava a sua velha carapaça quatrocentona, internacionalizando-se”, nas palavras de Décio de Almeida Prado (1998, p. 7). A consequência disso era a crença partilhada no futuro, “a substituição simétrica de estilos de vida e não o lento desaparecimento de um mundo cuja agonia se pudesse acompanhar com lucidez” (Mello e Souza, 1980, p. 110). Para um desenvolvimento do assunto no plano da produção cultural e da criação de novas linguagens na cidade, ver Arruda (2001) e Pontes (2010; 2016) Nos anos em que Caetano morou no centro da cidade - de 1966 a 1969 -, essa região já havia perdido a aura distintiva da urbanidade elegante para dar lugar a representações mais inquietantes, ligadas aos prazeres perigosos, ao sexo pago com dinheiro, às ruas conflagradas pelo embate dos estudantes com a polícia, à linguagem do medo acionada diante da população socialmente heterogênea que circulava e residia nela. E também ao saber de alta densidade, por isso mesmo contestatório, produzido na “inquieta república de que a faculdade da rua Maria Antônia era um dos centros de irradiação” - na imagem precisa de Antonio Candido (1986Candido, Antonio. “Vereda da salvação”. In: Andrade, Jorge. Marta, a árvore, o relógio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. , p. 525) sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Ao mesmo tempo e na mesma cidade, as peças Fala baixo, senão eu grito, de Leilah Assumpção, e À flor da pele, de Consuelo de Castro, estrearam nos palcos driblando a censura inclemente, que deixara escapar a novidade intrigante do assunto encenado (Pontes, 2013______. “Mariazinha e Verônica: classe e gênero nos palcos da metrópole”. Novos Estudos Cebrap, n. 97, 2013, pp. 149-66.). Mariazinha e Verônica, as protagonistas das peças, sintetizaram uma parte da experiência de domesticidade vivida pelas mulheres que buscavam modelos mais arejados de expressão da feminilidade.12 12 Em Fala baixo, senão eu grito, o quarto de pensão de Mariazinha é o lugar de inscrição da família ausente e o espaço de seu aprisionamento no universo das restrições sociais e psíquicas da classe média rebaixada. O aceno de uma vida mais livre, propiciado pelo passeio imaginário por São Paulo na companhia de um homem sem nome definido que invadiu seu quarto, opõe a casa à rua, a domesticidade à metrópole fervilhante. Verônica, por sua vez, em À flor da pele, já é produto dessa metrópole, e seu drama, a um só tempo pessoal e de classe, encerra-se na domesticidade do apartamento destinado ao encontro com o professor e amante (Pontes, 2017). As personagens e o apelo que produziram junto ao público condensaram os impasses materiais, profissionais, sexuais e éticos da geração de suas autoras. Leilah Assumpção (1943) e Consuelo de Castro (1946), ao constituírem as protagonistas femininas em sujeito da ação, fizeram com que a temática da mulher invadisse o cerne da trama e se convertesse em filtro privilegiado das mudanças sociais em curso, prensadas entre o desgaste dos modelos tradicionais de classe e de gênero, o influxo de energias represadas, o acerto de contas com as utopias e os desacertos políticos do passado recente. Tudo isso em meio ao deslocamento dos ideais de domesticidade que conformaram a experiência das mulheres das classes médias urbanas antes que elas pudessem (ou decidissem) ocupar as ruas e os espaços públicos.

Corporificação espacial do tropicalismo, o apartamento de Caetano e Dedé reconfigurou alguns dos espaços tradicionais de domesticidade. Assim como muitos jovens recém-casados em busca de suportes materiais (a indumentária e a casa) para a expressão de novos estilos de feminilidade e masculinidade, bem como de regimes de sexualidade e visualidade distintos daqueles praticados pela geração dos pais, eles embaralharam as noções de domesticidade e de visibilidade pública.13 13 A associação entre juventude, casa jovem e camadas médias é um fenômeno que aconteceu em várias partes do mundo. Para uma análise sofisticada de sua incidência na Argentina, ver Ballent (2017). A descrição minuciosa de Caetano sobre o “2002” e a capa do disco inaugural do movimento que ele protagonizou são exemplos eloquentes nesse sentido. Com os recursos da paródia, Tropicália ou Panis et circensis, como visto antes, enquadra o retrato de corpo inteiro de jovens músicos num ambiente doméstico. A atitude debochada é acentuada tanto pelo uso de objetos inusitados (o penico no lugar da xícara) quanto pelas poses sérias e compenetradas com que se fizeram retratar. A graça do invento advém justamente da alusão à gestualidade ora empertigada, ora levemente displicente que compõe a héxis corporal parodiada dos estratos burgueses.

No “2002”, o apartamento moderno que concretizou o sonho juvenil de Caetano em matéria de moradia, a vitalidade irreverente impregnada no mobiliário e nos arranjos do espaço doméstico é posta a serviço da invenção musical e da criação de um estilo de vida autoral. A atenção dispensada ao apartamento por Caetano Veloso na redação da crônica de sua geração e da história do tropicalismo ecoa a experiência de outros artistas performáticos, como o modernista Flávio de Carvalho (1899-1973), que fez de sua casa de campo um espaço privilegiado para a recepção de amigos, namoradas, intelectuais, artistas e convidados estrangeiros. Verdadeiro dispositivo cênico, a casa projetada por ele em 1929 era “uma máquina de emoções, a fabricar performances e personas desviantes” (Lira, no preloLira, José. “Modernismo, erotismo e domesticidade masculina: a casa Capuava de Flávio de Carvalho”. In: Nascimento, Flavia; Mello, Joana; Lira, José; Rubino, Silvana (orgs.). Domesticidade, gênero e cultura material. São Paulo, Edusp/CPC, 2017, pp. 289-321., p. 7).

Enquanto Nara Leão se insurgiu contra a “musiquinha de apartamento” que se tornou conhecida na cena musical internacional para afirmar seu distanciamento do imaginário da classe média carioca e apostar as fichas no potencial transformador da cultura politicamente engajada, Caetano Veloso construiu sua performance pública em compasso com a experimentação de uma arrojada vivência da domesticidade. Entre o início da bossa nova e o do tropicalismo passaram-se onze anos. Mas, do ponto de vista das reordenações das relações entre cultura e sociedade, das transformações urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo, dos rearranjos nas relações sociais, do aquecimento da conjuntura política, das alterações nas representações sobre a domesticidade e as relações de gênero, esse curto intervalo de tempo ganhou uma temporalidade alargada e incandescente.

Assim, não é aleatório que o músico tropicalista, irreverente e transgressivo em relação aos padrões vigentes de masculinidade, tenha se permitido uma atenção acurada à domesticidade de seu apartamento paulistano, enquanto Nara Leão, a “moça típica da Zona Sul do Rio de Janeiro - branca, bonitinha e moderna” (Veloso, 1997Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 75), tenha se afastado dela ao romper com a convenção intimista da bossa nova para se engajar no repertório cênico e musical do polo mais à esquerda da produção cultural. Com o recrudescimento da ditadura militar após o AI-5 no fim de 1968, Caetano e Nara deixaram o país. Ele foi com Dedé para Londres; ela partiu com o marido, o cineasta Cacá Diegues, para Paris. Caetano, depois de sair da prisão; Nara, para não correr o risco de acabar nela e sofrer as arbitrariedades, a violência e a tortura perpetradas pelo regime militar.

Se a história social da cultura pressupõe a atenção às marcas da experiência social e sua retradução em formas simbólicas específicas, temos de estar atentos a todas as dimensões que as conformam.14 14 Para análises imprescindíveis a todos os que trabalham na intersecção da antropologia das formas simbólicas com a história social da cultura, ver Auerbach (2003, 2007), Baxandall (1988), Bourdieu (1992), Braudel (1994), Charle (2012), Schorske (1993), Williams (1982), Casanova (2011), Sarlo (1998) e Miceli (2018). Neste artigo, procuramos desvelar as conexões entre os modos de compor e os modos de morar presentes em dois momentos decisivos de nossa produção musical sob esta prerrogativa: se a canção ocupou, no Brasil, “o papel de catalisadora das questões da sociedade”,15 15 Citação da entrevista de José Miguel Wisnik ao Nexo Jornal, 28/02/2019. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=k3uSywuij5Q. Acesso em 9/4/2019. ela não o fez independentemente da maneira como tais questões se colocaram em termos das relações de gênero e da domesticidade.

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  • Zorek, Bruno. O futuro de São Paulo na década de 1950 Tese (doutorado em História), Campinas, Unicamp, 2019.
  • 1
    O maestro Júlio Medaglia (1938), simpático às ideias tropicalistas, define com propriedade essa dinâmica de convergência de elementos díspares: “Tudo o que havia naquele convulsionado final de anos [19]60 estava presente dentro do tropicalismo. Era música fina, era música cafona, era música de vanguarda, era música do passado, era a refinada música debussyiana celestial, mas era também o Vicente Celestino, era o teremim e era o berimbau, era a poesia concreta e era o Cuíca de Santo Amaro. Então, tudo se misturava num gigantesco sarapatel fervendo que fazia com que nenhum valor se tornasse absoluto e nenhum valor sobrevivesse àquela crônica de costumes, de acontecimentos e comportamentos da época”. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=_yyMucfbwbo>. Acesso em: 18/09/2018.
  • 2
    Tanto o filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, quanto a peça O rei da vela (1967), dirigida por José Celso Martinez Corrêa, foram considerados marcos de um tipo de arte crítica e engajada politicamente. Para Caetano Veloso, ambos foram fundamentais na concepção do movimento tropicalista.
  • 3
    Nesse momento, o bairro chic Jardim Paulistano, muito mais comportado e protegido que o centro da cidade, acolhia uma burguesia cultivada e próxima ao mundo das artes, como mostra Camila Rosatti (no prelo______. “Habitar o moderno: habitus e estilo de vida conformando modos de morar”. PROA. Revista de Antropologia e Arte, v. 2, n. 10, dossiê Antropologia, Arquitetura e Design (Orgs. Heloisa Pontes e Nathanael Araújo), no prelo.). Agradecemos à autora pela leitura atenta do artigo, pelas sugestões valiosas e pela localização da casa de Olivier Perroy.
  • 4
    O jornalista Sérgio Cabral conta que Nara Leão, ao ver a obra Lindonéia, Gioconda do subúrbio, de Gerchman, fez o pedido a Caetano. “Nara sentiu que a obra daria música porque, sob inspiração do autor [Gerchman], o quadro ia além da moldura, começando pelo título ‘Um amor impossível’ e a frase ‘A bela Lindonéia, de 18 anos, morreu instantaneamente’” (Cabral, 2008, p. 134).
  • 5
    Dentre a bibliografia que tratou da casa, ver: Anne McClintock (2010McClintock, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora Unicamp, 2010.) para um análise potente da ligação entre casa, domesticidade e império; Janet Carsten (2000Carsten, Janet. After Kinship. Nova York: Cambridge University Press, 2000.) para a discussão da ideia de que as casas fazem o parentesco e, por extensão, as pessoas e os corpos; Pierre Bourdieu (2002Bourdieu, Pierre. Les Règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992.) para uma análise iluminadora sobre as casas kabila como microcosmo do mundo social; Joelle Bahloul (1986Bahloul, Joëlle. The Architecture of Memory: A Jewish-Muslim Household in Colonial Algeria, 1937-1962. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.) para a reflexão sobre as casas como espaço de expressão de tensões étnicas e políticas e lugar de inscrição da memória, assunto abordado também por Pamela Salen (2017Salen, Pamela. “The Communication of Memory and the Inhabited Experience”. MEI - Mediation and Information, n. 40, 2017, pp. 117-130. Disponível em: <www.mei-info.com/wp-content/uploads/2017/06/MEI40-119-132-The-Communication-of-Memory.pdf>.
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    ); Marcel Mauss (1968Mauss, Marcel. “Essai sur les variations saisonnières des sociétés eskimos. Étude de morphologie sociale”. Sociologie et Anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1968 [1906], pp. 389-477. ) para a análise da estreita relação entre o aspecto morfológico da casa e a estrutura do grupo que ela abriga; Lévi-Strauss (1986Lévi-Strauss, Claude. “A noção de casa”. Minhas palavras. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 185-7.) para a ligação entre casa, parentesco, aliança e pessoa moral; Norbert Elias (1974Elias, Norbert. La Société de cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974. ) para a análise densa das conexões entre casas, estrutura social, simbolismo e hierarquia; Tim Ingold (2012Ingold, Tim, “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes Antropológicos, n. 37, 2012, pp. 25-44.) para as implicações da ideia de que as casas são experimentadas antes como coisas que como objetos. Na bibliografia brasileira sobre o assunto, ver Louis Marcelin (1999Marcelin, Louis Herns. “A linguagem da casa entre os negros no Recôncavo Baiano”. Mana, v. 5, n. 2, 1999, pp. 31-60. ) sobre a organização e a linguagem da casa entre os negros do Recôncavo Baiano; Luiz Fernando Duarte e Edlaine Campos (2008Duarte, Luiz Fernando; Campos, Edlaine. Três famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.) para a discussão da casa como espaço moral e da memória e termo irmanado à família; Vânia Carvalho (2008) para uma análise inovadora do sistema doméstico na perspectiva da cultura material e das relações de gênero; Silvana Rubino (2017Rubino, Silvana. “Salvador. El renacimiento bahiano”. In: Gorelik, Adrián; Peixoto, Fernanda Arêas (orgs.). Cidades sudamericanas como arenas culturales. Buenos Aires: Siglo XXI, 2016, pp. 264-83.) para a análise da Casa de Vidro, da arquiteta Lina Bo Bardi; Ceres Brum (2014Brum, Ceres Karam. Maison du Brésil: um território brasileiro em Paris. Porto Alegre: Evangraf, 2014.) para a análise da Maison du Brésil como território brasileiro em Paris; Marilza Friche (2016Friche, Marilza de Lima. “A casa dentro da casa: o sentido do quarto para o adolescente na contemporaneidade”. Dissertação (mestrado em Psicologia), Belo Horizonte, PUC-MG, 2016.) para o significado do quarto dos adolescentes nas camadas médias; Camila Rosatti para as implicações das narrativas sobre a casa moderna nos relatos biográficos de seus moradores (2018).
  • 6
    Oriundo da filosofia da linguagem, o conceito de performatividade ganhou interesse renovado nos estudos de gênero graças a trabalhos como o de Judith Butler (1993Butler, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Verso, 1993., 2003Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). Alinhada a uma vertente pós-estruturalista bastante inspirada nas ideias foucaultianas, Butler trasladou para seu campo a teoria desenvolvida por John Austin (1975Austin, John L. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1975.) na tentativa de compreender as formas de reconhecimento e representação dentro do feminismo como ações produtoras de um sujeito determinado e de suas demandas. Nessa perspectiva, gênero é encarado não como essência ou atributo de um sexo, mas como conjunto de práticas e discursos materializados em corpos e produtores de subjetividades. Para uma análise do conceito de performatividade aplicado às gramáticas raciais, ver Cesar (2018______. “A Fragata Negra: tradução e vingança em Nina Simone”. Mana, v. 24, n. 1, 2018, pp. 39-70.).
  • 7
    Ao se mudar para lá com a irmã Bethânia (a primeira da família a ganhar fama), com a finalidade de completarem os estudos, o que atraiu a atenção de ambos na cidade foi a efervescência. Na virada dos anos 1950, Salvador vivia a desprovincianização propiciada pela abertura do Museu da Arte Moderna e de novas faculdades (música, teatro e dança) — graças à iniciativa de um reitor esclarecido, Edgar Santos, à frente da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sobre a ambiência cultural e urbana de Salvador no período, ver Silvana Rubino (2016______. Lugar de mulher: arquitetura e design modernos, gênero e domesticidade. Tese (livre-docência), Campinas, Unicamp, 2017.).
  • 8
    Para uma discussão alentada da visão de Dorival Caymmi, de Jorge Amado e de seu círculo de amigos na cidade de Salvador, ver Gustavo Rossi (2009Rossi, Gustavo. As cores da revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30. São Paulo: Annablume/Fapesp/PPGAS Unicamp, 2009.; 2015______. O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2015.) e Vitor Queiroz (2017).
  • 9
    Dois meses depois do lançamento do disco-manifesto, Caetano e Gil voltaram, assustados, para o “2002” após um embate político-musical no auditório do TUCA (Teatro da Universidade Católica). Nesse evento — a eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção (FIC), patrocinado pelo TV Globo —, ambos se indispuseram com a plateia “predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de esquerda” (Veloso, 1997, p. 301). Vestido com roupa de plástico, Caetano cantou “É proibido proibir” e foi vaiado. Gilberto Gil também, que o acompanhou no palco após receber a notícia de sua desclassificação pelo júri. O público vivia os festivais de música com divisões e apelos que lembravam os das torcidas esportivas. Nesse clima incandescente, Caetano proferiu um de seus discursos mais memoráveis: “Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos” (idem, p. 303). Ele e Gil receberam uma vaia estridente da plateia, além de papéis, copos de plástico e outros objetos do tipo. Amedrontados, ambos deixaram o TUCA e voltaram ao apartamento de Caetano, confortados pelos telefonemas de apoio dos amigos e pela visita de José Celso Martinez Corrêa, o diretor do Oficina que, no ano anterior, eletrizara o teatro paulista com a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade.
  • 10
    Alusão à “Noite do amor, do sorriso e da flor”, show ocorrido em 21 de maio de 1960 na Faculdade de Arquitetura da UFRJ e que contou com a participação de grandes nomes da bossa nova, como Ronaldo Bôscoli, Claudete Soares, Nara Leão, Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim, Roberto Menescal e Johnny Alf.
  • 11
    Em menos de três décadas, a população de São Paulo quadruplicara, passando de 579 mil habitantes em 1920 para 2,198 milhões na década de 1950. A cidade, “explodindo em número de habitantes, quebrava a sua velha carapaça quatrocentona, internacionalizando-se”, nas palavras de Décio de Almeida Prado (1998Prado, Décio de Almeida. “TBC - Teatro Brasileiro de Comedia revê os seus 50 anos”. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 1998, p. 7., p. 7). A consequência disso era a crença partilhada no futuro, “a substituição simétrica de estilos de vida e não o lento desaparecimento de um mundo cuja agonia se pudesse acompanhar com lucidez” (Mello e Souza, 1980Mello e Souza, Gilda de. “Teatro ao sul”. In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980., p. 110). Para um desenvolvimento do assunto no plano da produção cultural e da criação de novas linguagens na cidade, ver Arruda (2001Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2015.) e Pontes (2010Pontes, Heloisa. Intérpretes da metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010.; 2016______. “Cidades, cultura e gênero”. Tempo Social, v. 28, n. 1, mar. 2016, pp. 7-27. Disponível em: <www.revistas.usp.br/ts/article/view/105994>.
    www.revistas.usp.br/ts/article/view/1059...
    )
  • 12
    Em Fala baixo, senão eu grito, o quarto de pensão de Mariazinha é o lugar de inscrição da família ausente e o espaço de seu aprisionamento no universo das restrições sociais e psíquicas da classe média rebaixada. O aceno de uma vida mais livre, propiciado pelo passeio imaginário por São Paulo na companhia de um homem sem nome definido que invadiu seu quarto, opõe a casa à rua, a domesticidade à metrópole fervilhante. Verônica, por sua vez, em À flor da pele, já é produto dessa metrópole, e seu drama, a um só tempo pessoal e de classe, encerra-se na domesticidade do apartamento destinado ao encontro com o professor e amante (Pontes, 2017Pontes, Heloisa; Cesar, Rafael do Nascimento. “Cities, Stages and Audiences: Rio de Janeiro and São Paulo in Two Acts”. Sociologia e Antropologia, v. 7, n. 2, maio-ago. 2017, pp. 491-519.).
  • 13
    A associação entre juventude, casa jovem e camadas médias é um fenômeno que aconteceu em várias partes do mundo. Para uma análise sofisticada de sua incidência na Argentina, ver Ballent (2017Ballent, Anahi. “A ‘casa jovem’: imagens da modernização do lar nos anos 1960 e 1970 na revista Claudia da Argentina”. In: Nascimento, Flavia; Mello, Joana; Lira, José; Rubino, Silvana (orgs.). Domesticidade, gênero e cultura material. São Paulo: Edusp/CPC, 2017, pp. 393-411.).
  • 14
    Para análises imprescindíveis a todos os que trabalham na intersecção da antropologia das formas simbólicas com a história social da cultura, ver Auerbach (2003Auerbach, Erich. Mimesis. The Representation of Reality in Western Literature. Princeton: Princeton University Press, 2003., 2007______. “La cour et la ville”. In: Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2007.), Baxandall (1988Baxandall, Michael. Painting and Experience in Fifteenth-Century Italy: A Primer in the Social History of Pictorial Style. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1988.), Bourdieu (1992______. “A casa ou o mundo às avessas”. In: Corrêa, Mariza (org.), Ensaios sobre a África do Norte. Campinas: IFCH-Unicamp, texto didático n. 16, 2002, pp. 89-112.), Braudel (1994Braudel, Fernand. Le Modèle Italien. Paris: Flammarion, 1994.), Charle (2012Charle, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), Schorske (1993Schorske, Carl. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ), Williams (1982Williams, Raymond. “The Bloomsbury fraction”. In: Problems in Materialism and Culture. Londres: Verso, 1982, pp. 148-69.), Casanova (2011Casanova, Pascale. Kafka en colère. Paris: Seuil, 2011.), Sarlo (1998Sarlo, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930. Buenos Aires: Nueva Visión, 1998.) e Miceli (2018Miceli, Sergio. Sonhos da periferia. São Paulo: Todavia, 2018.).
  • 15
    Citação da entrevista de José Miguel Wisnik ao Nexo Jornal, 28/02/2019. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=k3uSywuij5Q. Acesso em 9/4/2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2019
  • Aceito
    14 Ago 2019
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