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Mudança Institucional Gradual e Transformativa: a Atuação de Stakeholders e Coalizões de Defesa no Caso da Usina Hidroelétrica de Belo Monte

Resumo

Este trabalho analisou a atuação de stakeholders e coalizões de defesa em processos de mudança institucional gradual e transformativa a partir do estudo de caso da Usina Hidroelétrica de Belo Monte. Para tanto, procedeu-se à análise do conteúdo de notas taquigráficas de audiências realizadas no Congresso Nacional e de outros documentos de acesso público. Também foram realizadas entrevistas em profundidade com roteiro semiestruturado junto a indivíduos envolvidos na história da usina. Logo, foi possível caracterizar os stakeholders contrários e favoráveis ao empreendimento segundo o grau de influência e o papel que desempenharam. Além disso, segundo o Advocacy Coalition Framework , verificou-se como os stakeholders constituíram três coalizões de defesa e empregaram estratégias de mudança institucional dos tipos substituição, conversão e por camadas segundo o Modelo de Mudança Institucional Gradual e Transformativa. As evidências empíricas indicam que a composição das coalizões pode determinar o tipo de mudança institucional e que essas, por sua vez, também podem resultar da aprendizagem entre as coalizões, como a incorporação de considerações socioambientais que alteraram a configuração do projeto original da usina.

instituições; mudança institucional; stakeholders; advocacy coalition framework; usina hidroelétrica belo monte

Abstract

This work analyzes the performance of stakeholders and advocacy coalitions in processes of gradual institutional change based on the case study of the Belo Monte hydroelectric power plant. The methodology adopts content analysis, using shorthand notes of hearings held in the National Congress, and other publicly available documents. In-depth semi-structured interviews were also conducted, collecting data from individuals involved in the history of the power plant. The study allowed to characterize stakeholders pro or against the enterprise, observing their degree of influence and the role played. In addition, the work used the Advocacy Coalition Framework to verify how stakeholders formed three advocacy coalitions and exerted the strategies of institutional change ‘displacement,’ ‘conversion,’ and ‘layering’ following the gradual and transformative institutional change model. Empirical evidence indicates that the composition of coalition members may determine the type of institutional change and that institutional changes can also result from learning among coalitions, as the incorporation of socio-environmental considerations that have altered the original design of the hydroelectric power plant.

institutions; institutional change; stakeholders; advocacy coalition framework; belo monte hydroelectric plant

Introdução

Nos estudos sobre políticas públicas, uma abordagem prolífica mira a influência dos atores interessados na formação da agenda, no planejamento e na implementação das políticas. Neste contexto, pesquisas que se baseiam no novo institucionalismo são relevantes porque introduzem o conceito de instituições como elementos que pautam a formação das estratégias para abordar o problema em foco e, ao mesmo tempo, regulam o comportamento dos atores envolvidos. Assim, as instituições definidas por Mahoney e Thelen (2010)Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. como o conjunto de regras, normas, leis, regulamentos e procedimentos que definem a política são capazes de proporcionar estabilidade, ordenamento e cooperação entre os atores interessados. As políticas públicas seriam, então, formuladas a partir de arranjos institucionais com variados graus de interdependência e compromisso entre inúmeros tipos de atores ( Almeida & Gomes, 2019Almeida, L. A., Gomes, R. C. (2019). Perspectivas teóricas para análises de políticas públicas: Como lidam com a complexidade? Administração Pública e Gestão Social , v. 11, n. 1, p. 16-27. ).

Por outro lado, é possível vislumbrar a ocorrência de processos de mudança institucional provocados por atores insatisfeitos com a política. Sabatier e Jenkins-Smith (1993) argumentam que uma política pública é a tradução de crenças e valores da coalizão em condição hegemônica, portanto, seja buscando maior acesso aos recursos ou uma formatação que deixe a política mais próxima de suas crenças e valores, os agentes insatisfeitos engajam-se em processos de mudanças graduais e transformativas ( Thelen, 2009Thelen, K. (2009). Institutional change in advanced political economies. British Journal of Industrial Relations , v. 47, n. 3, p. 471-498. ; Mahoney & Thelen, 2010Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. ). Em outras palavras, segundo Gomes, Liddle e Gomes (2010), os agentes interessados na política, que se constituem como seus stakeholders e são guiados por seus valores, preferências e expectativas, estão articulados em coalizões de defesa agindo politicamente em um contexto institucional marcado por disputas e ambiguidades (Viera & Gomes, 2014). Como apontam Bispo e Gomes (2018, pBispo, F. C. S., Gomes, R. C. (2018). Os papéis dos stakeholders na formulação do PRONATEC. Revista de Administração Pública , v. 52, n. 6, p. 1258-1269. , p. 1264), para cada decisão estratégica, as organizações geralmente enfrentam um conjunto diversificado de stakeholders com interesses e objetivos variados e, muitas vezes, conflitantes.

Após revisão da literatura sobre a influência de stakeholders em políticas públicas e sobre os processos de mudança institucional, Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. propuseram um modelo integrativo pautado na aplicação conjunta de modelos de análise de stakeholders com o Advocacy Coalition Framework (ACF) para descrever e explicar como ocorrem os processos de mudança institucional gradual e transformativa, acrescentando novos elementos à abordagem central de Thelen (2009)Thelen, K. (2009). Institutional change in advanced political economies. British Journal of Industrial Relations , v. 47, n. 3, p. 471-498. e Mahoney e Thelen (2010)Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. . Os modelos de análise de stakeholders possibilitam a identificação e a caracterização dos atores influenciados e com capacidade de influenciar a política; o ACF, por sua vez, proporciona a análise de como tais stakeholders se agrupam em coalizões a partir de crenças compartilhadas, aprimorando o mapeamento de atores interessados previamente realizado, além de apresentar proposições sobre as dinâmicas de interação e aprendizagem das coalizões e mudanças políticas. Por fim, o Modelo de Mudança Institucional Gradual e Transformativa (MIGT) caracteriza as estratégias de mudança institucional e o comportamento dos agentes. Isto posto, buscamos responder à seguinte questão: como se deu o processo de mudança institucional gradual e transformativa a partir da ação de stakeholders e coalizões de defesa no planejamento e na implementação da Usina Hidroelétrica de Belo Monte?

Stake (2000)Stake, R. E. Case studies. Em N. K. Denzin, Y. S. Lincoln. (2000). Handbook of qualitative research . 2. ed. p. 435-454. Thousand Oaks: Sage Publications. argumenta que um estudo de caso do tipo instrumental pode promover insights, facilitando a compreensão de um fenômeno e refinando a teoria. Em mais de 43 anos de história, desde os Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, em 1975, diversos atores estiveram em disputa acerca da viabilidade da usina até que, em 2010, o leilão para construção e operação foi realizado e vencido pelo Consórcio Norte Energia S.A. Assim, o caso de Belo Monte parece suportar as premissas teóricas que embasam o modelo integrativo proposto por Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. . Nesse sentido, a principal justificativa para o presente trabalho é a aplicação empírica por meio de estudo de caso das proposições de Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. sobre processos de mudança institucional gradual e transformativa em políticas públicas. Como será tratado adiante, foi observada a pertinência do modelo teórico integrativo, assim como as contribuições específicas para os modelos teóricos de referência que o compõem.

O artigo está estruturado da seguinte forma: na primeira seção são apresentados os modelos de análise de stakeholders e os elementos do ACF empregados nesse estudo. Na segunda seção, descreve-se o MIGT. Na terceira seção, são articuladas considerações sobre os métodos da pesquisa. Nas seções seguintes, os resultados são discutidos conforme a abordagem proposta por Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. para que, enfim, na última seção, sejam expostas as considerações finais.

Modelos de análise de stakeholders e o Advocacy Coalition Framework (ACF)

No modelo integrativo proposto por Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. , a análise de stakeholders tem como objetivo a caracterização dos atores interessados em uma política pública. Desta forma, observa-se a disposição em cooperar ou competir, o grau de influência que podem exercer e os papéis que desempenham ( Gomes et al., 2010Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. ; Mitchell, Agle, & Wood, 1997; Savage, Nix, Whitehead, & Blair, 1991). Savage et al. (1991)Savage, G. T., Nix, T. W., Whitehead, C. J., Blair, J. D. (1991). Strategies for assessing and managing organizational stakeholders. Academy of Management Executive , v. 5, n. 2 p. 61-75. indicam uma matriz que combina o potencial de ameaça e o potencial de cooperação dos stakeholders . A partir dela, classificam-se em quatro tipos: supportive stakeholders, non-supportive stakeholders, mixed blessing stakeholders (com comportamento ambíguo) e, por fim, marginal stakeholders (sem capacidade de exercer influência).

Mitchell et al. (1997)Mitchell, R. K., Agle, B. R., Wood, D. J. (1997). Toward a theory of stakeholder identification and salience: Defining the principle of the who and what really counts. Academy of Management Review , v. 22, n. 4, p. 853-886. elaboraram um modelo de análise de poder e influência dos stakeholders baseado em três atributos: o tipo de poder exercido (coercitivo, normativo ou utilitário), a legitimidade do relacionamento com a organização (seus interesses precisam ser reconhecidos como legítimos) e a urgência de suas demandas (o grau com que a demanda do stakeholder merece atenção imediata). A respeito do primeiro atributo, Hardy (1996)Hardy, C. (1996). Understanding power: bringing about strategic change. British Journal of Management , 7(s1), S3-S16. propõe o poder também baseado na posse de recursos, no acesso à tomada de decisão e no controle dos status quo através da manipulação de significados junto ao público. Assim, Mitchell et al. (1997)Mitchell, R. K., Agle, B. R., Wood, D. J. (1997). Toward a theory of stakeholder identification and salience: Defining the principle of the who and what really counts. Academy of Management Review , v. 22, n. 4, p. 853-886. categorizam os stakeholders de acordo com a posse dos atributos em: (a) dormant ; (b) discretionary ; (c) demanding ; (d) dominant ; (e) dependent ; (f) dangerous ; (g) definitive . Esses últimos possuem os três atributos e são o principal alvo da atenção de qualquer organização.

Finalmente, busca-se analisar como os stakeholders podem influenciar os processos de decisão. Estudando governos locais, Gomes et al. (2010)Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. constataram cinco tipos de comportamentos: reguladores, colaboradores, definidores da agenda, controladores e legitimadores. Os reguladores exercem influência sobre o orçamento. Os colaboradores são agentes externos ou internos que contribuem para a implementação de políticas e serviços públicos, como no caso das parcerias público-privadas. Os definidores da agenda pertencem à administração pública federal e definem os objetivos centrais que irão pautar a atuação dos governos locais. Os controladores empregam mecanismos formais ou informais de controle sobre as práticas do governo local. Por fim, os legitimadores são os cidadãos que influenciam ativamente as decisões tomadas pelos governos locais.

Segundo Weible (2006)Weible, C. M. (2006). An advocacy coalition framework approach to stakeholder analysis: Understanding the political context of California Marine Protected Area Policy. Journal of Public Administration Research and Theory , v. 17, p. 95-117. , a análise de stakeholders também deve incluir os seguintes elementos: quais são os valores e crenças dos stakeholders ? Quem controla os recursos críticos? Com quem formam coalizões? Quais estratégias e arenas institucionais usam para alcançar seus objetivos? Respondendo a essas questões, é possível investigar as percepções desses agentes a respeito da severidade, das causas e dos propósitos de um dado problema, a distribuição dos recursos dentre as coalizões e as arenas institucionais disponíveis para influenciar a política. Por outro lado, o ACF pode contribuir para a análise de stakeholders porque considera como unidade de análise um subsistema político, estipulando limites substantivos e territoriais de uma questão política e sobre quem incluir na análise, a estrutura das crenças e motivações individuais, a identificação dos recursos dos stakeholders e as arenas institucionais disponíveis.

Segundo Weible, Sabatier e McQueen (2009), o ACF parte das seguintes premissas: (a) o papel central da informação técnica e científica nos processos políticos; (b) a perspectiva de dez anos ou mais para entender a mudança política; (c) os subsistemas políticos como unidades primárias de análise; (d) a influência de diversos atores de todos os níveis de governo, consultores, cientistas e mídia; (e) a ideia de que políticas e programas são melhor entendidos como traduções de crenças.

Desta forma, é possível estabelecer um sistema hierárquico de crenças dos atores: no topo, estão as deep core beliefs , ou seja, aquelas crenças mais abrangentes, estáveis e predominantemente normativas. No nível intermediário, estão as policy core beliefs , crenças moderadas em seu escopo e que ampliam a abrangência substantiva e geográfica do subsistema político. Suas especificidades as tornam ideais para a formação de coalizões e coordenação de atividades dentre os membros, são resistentes à mudança, mas se ajustam a partir de novas experiências e informações. Finalmente, na base do sistema hierárquico, estão as secondary beliefs , crenças com um escopo substantivamente e geograficamente mais restrito e empiricamente fundamentadas. Em comparação com as demais, estas crenças são mais propensas a mudar no decorrer do tempo (Jenkins-Smith, Nohrstedt, Weible, & Sabatier, 2014). Como será visto mais adiante, as disputas em torno da Usina Hidroelétrica de Belo Monte parecem ter sido motivadas pelas distintas crenças e valores dos atores interessados a respeito da pertinência e da concepção do empreendimento. Os stakeholders podem agregar-se em até quatro coalizões de defesa a partir de dois critérios básicos: o compartilhamento de crenças normativas e causais e o engajamento em um nível não trivial de atividades coordenadas ao longo do tempo. Cada coalizão detém um determinado conjunto de recursos e opta por estratégias específicas para atingir seus objetivos políticos ( Sabatier & Weible, 2007)Sabatier, P. A., Weible, C. M. (2007). The advocacy coalition framework: Innovations and clarifications. Em P. A. Sabatier (Org.), p. 189-220. Theories of the policy process . 2. ed. Boulder: Westview Press. .

Existem duas maneiras para haver mudança política em um subsistema político. A primeira corresponde a eventos externos ao subsistema, ou seja, mudanças socioeconômicas, opinião pública, coalizões de governo e outros subsistemas. Esses eventos podem alterar a distribuição de recursos, afetando o poder de coalizões e alterando crenças. A segunda forma ocorre por meio do aprendizado orientado para a política ( policy-oriented learning ), que é definido como “alterações relativamente duradouras de pensamento ou intenções comportamentais que resultam a partir de experiências ou/e de novas informações e que são orientadas com a definição ou revisão dos objetivos da política” ( Sabatier & Jenkins-Smith, 1999Sabatier, P., Jenkins-Smith, H. (1999). The advocacy coalition framework: An assessment. Em P. A. Sabatier (Org.), p.117-166. Theories of the policy process . Boulder: Westview Press. , p. 123). Além da mudança política por meio de eventos externos e pelo aprendizado, sugere-se que a mudança seja possível a partir de acordos entre duas ou mais coalizões ( Jenkins-Smith et al., 2014)Jenkins-Smith, H. C. et al. (2014). The advocacy coalition framework: foundations, evolution and ongoing research. Em P. A. Sabatier, & C. M. Weible (Orgs.), Theories of the policy process . 3. ed. Boulder: Westview Press. . Além disso, ao levar em consideração que as instituições definem as políticas públicas, nota-se que também ocorrerão por processos e movimentos competitivos de mudança institucional gradual e transformativa capitaneados por coalizões não hegemônicas. Sobre a produção nacional utilizando o ACF, Capelari, Araújo e Calmon (2015) identificaram apenas dezenove dissertações de mestrado e teses de doutorado publicadas entre 2002 e 2013. O modelo tem sido aplicado com maior frequência no estudo das políticas energética e ambiental, o que replica os resultados encontrados sobre a aplicação internacional. Os autores também sugerem a possibilidade de acoplar dois ou mais modelos na observação de uma política nacional, complementando o ACF, além de explorar uma específica lacuna também apontada por Sabatier e Weible (2007)Sabatier, P. A., Weible, C. M. (2007). The advocacy coalition framework: Innovations and clarifications. Em P. A. Sabatier (Org.), p. 189-220. Theories of the policy process . 2. ed. Boulder: Westview Press. que diz respeito à análise dos recursos das coalizões, o que converge com a abordagem adotada no presente estudo.

Modelo de Mudança Institucional Gradual e Transformativa (MIGT)

O MIGT ( Mahoney & Thelen, 2010Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. ; Streeck & Thelen, 2005Streeck, W., Thelen, K. (2005). Beyond continuity: Institutional change and advanced political economies , cap. 1. Oxford: Oxford University Press. ; Thelen, 2009)Thelen, K. (2009). Institutional change in advanced political economies. British Journal of Industrial Relations , v. 47, n. 3, p. 471-498. baseia-se nas seguintes premissas: (a) o sistema político é composto por múltiplos atores com interesses diversos e desigual distribuição de poder; (b) os atores interpretam as instituições de maneiras diferentes; (c) as preferências e interesses de cada ator podem ser ambíguos; (d) a agência provoca também consequências não premeditadas; e (e) os atores permeiam múltiplos ambientes institucionais complexos. Os autores argumentam que as instituições atuam como instrumentos distributivos de recursos com implicações de poder, de modo que os arranjos institucionais passam a refletir os interesses de coalizões. Nessa perspectiva, mesmo a continuidade depende de mobilização constante, suporte político e esforço ativo para resolver ambiguidades institucionais. A ambiguidade de interesses e interpretações, bem como o equilíbrio de poder e a obediência às instituições, criam espaços para a mudança institucional. Mahoney e Thelen (2010)Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. argumentam ainda que “espera-se a mudança incremental emergir nos gaps entre a regra e sua interpretação ou entre a regra e a sua aplicação” (p. 14). Neste hiato, manifestações das coalizões podem propiciar a mudança necessária para que haja um rearranjo institucional que melhor acomode a distribuição de recursos.

Thelen (2009)Thelen, K. (2009). Institutional change in advanced political economies. British Journal of Industrial Relations , v. 47, n. 3, p. 471-498. propõe que as mudanças são determinadas pelas características do contexto político (possibilidade de veto), pelas características da própria instituição (interpretação e sua aplicação) e pelo tipo de comportamento do agente dominante da mudança. Portanto, segundo o autor, quatro tipos de mudança seriam possíveis: por substituição, por camadas, por deslocamento e por conversão. Na mudança por substituição, observa-se a remoção de regras existentes e a introdução de normas novas. Na mudança por camadas, novas regras (ou emendas e revisões) são adicionadas às antigas, mudando o impacto das regras originais no comportamento dos indivíduos. Já na mudança por deslocamento, as regras continuam as mesmas, mas seu impacto muda devido a alterações no contexto. Pode haver negligência em aceitar as mudanças de contexto ou falha em adaptar a regra para que esta mantenha o impacto em um ambiente que mudou. Finalmente, na mudança do tipo conversão, as regras continuam formalmente as mesmas, mas são interpretadas e aplicadas de outras maneiras, de modo a explorar a ambiguidade.

Mahoney e Thelen (2010)Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. estabelecem também uma classificação para o comportamento dos agentes: insurgentes, simbióticos, subversivos e oportunistas. Os primeiros rejeitam o status quo , tentam alterar a instituição e nem sempre obedecem às regras. Os simbióticos se dividem em dois subtipos: os parasitas, que exploram a instituição para ganhos próprios, minando-a no longo prazo, e os mutualísticos, que agem da mesma forma, porém, sem comprometer a instituição. Já os subversivos não agem diretamente para provocar a mudança, parecem apoiá-la, mas esperam o momento certo para assumirem-se como opositores e propor novas regras sem extinguir as antigas. Finalmente, há os oportunistas, que possuem preferências ambíguas a respeito da continuidade da instituição e não procuram ativamente preservá-la. Dados os custos, também não se movimentam para alterá-la. Quando agem por mudança, adotam a estratégia do tipo conversão.

Isto posto, cabe reforçar que as relações de poder entre os atores interessados em uma determinada política pública são condicionadas pelos atributos que caracterizam cada stakeholder ( Mitchell et al., 1997Mitchell, R. K., Agle, B. R., Wood, D. J. (1997). Toward a theory of stakeholder identification and salience: Defining the principle of the who and what really counts. Academy of Management Review , v. 22, n. 4, p. 853-886. ), pelo papel que lhe cabe enquanto stakeholder na administração pública ( Gomes et al., 2010Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. ) e pela forma como se agrupam em coalizões de defesa. Dada a composição de uma determinada coalizão, essa poderá ter mais atributos e recursos que ampliarão o seu poder, estabelecendo-a como hegemônica ou em busca de hegemonia. Além disso, a forma como a política se estrutura enquanto instituição também distribuirá recursos e definirá o status dos stakeholders (e, por decorrência, das coalizões) nas disputas por hegemonia.

Método

Este trabalho procura caracterizar o comportamento dos stakeholders e das coalizões de advocacia nos processos de mudança institucional gradual transformativa relacionados à Usina Hidroelétrica de Belo Monte. Os estudos a respeito desse tipo de mudança institucional, de acordo com Thelen (2009)Thelen, K. (2009). Institutional change in advanced political economies. British Journal of Industrial Relations , v. 47, n. 3, p. 471-498. , têm como premissa uma análise histórica dos eventos com um horizonte de pelo menos dez anos. Tal premissa também é observada no ACF, segundo Jenkins-Smith et al. (2014)Jenkins-Smith, H. C. et al. (2014). The advocacy coalition framework: foundations, evolution and ongoing research. Em P. A. Sabatier, & C. M. Weible (Orgs.), Theories of the policy process . 3. ed. Boulder: Westview Press. . Assim, a análise da história da Usina centrou-se no período compreendido entre 1999 e 2013 por representar a retomada do projeto na agenda, a realização do leilão para a concessão e o início das obras. Também cabe ressaltar que, na revisão bibliográfica, percebeu-se que as abordagens empíricas dos modelos de mudança institucional gradual transformativa, o ACF e os modelos de análise de stakeholders se baseiam principalmente no desenvolvimento de estudos de casos ( Araújo, 2007Araújo, S. M. V. G. (2007). Coalizões de advocacia na formulação da política nacional de biodiversidade e florestas . Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade de Brasília, Brasília, DF. ; Falleti, 2010; Gomes et al., 2010Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. ; Mawhinney, 1993Mawhinney, H. (1993). An advocacy coalition approach to change in canadian education. Em P. Sabatier, & H. Jenkins-Smith (Orgs.), Policy change and learning: An advocacy coalition approach , p. 59-82. Boulder: Westview Press. ; Munro, 1993Munro, J. (1993). California water politics: Explaining policy change in a cognitive polarized subsystem. Em P. Sabatier, & H. Jenkins-Smith (Orgs.), p. 105-128. Policy change and learning: An advocacy coalition approach . Boulder: Westview. ; Sabatier & Jenkins-Smith, 1993; Viana, 2011Viana, L. B. F. (2011). Entre o abstrato e o concreto: Legados do embate sobre o Projeto de Integração do São Francisco ou da transposição . Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade de Brasília, Brasília, DF. ;).

A coleta dos dados se deu por meio de pesquisa documental e de entrevistas em profundidade com roteiro semiestruturado junto a indivíduos ligados à história da usina. Em um primeiro momento, foi realizada uma ampla busca por documentos oficiais, como leis específicas, atas de reunião, de assembleias e de consultas públicas, bem como relatórios técnicos e demais arquivos de acesso público. Após exame preliminar dos documentos, foi elaborado um roteiro para a realização de entrevista exploratória com um técnico da Eletronorte que teve envolvimento com Belo Monte entre 1999 e 2002. A partir dessa entrevista, foi elaborada uma versão definitiva do roteiro, além de uma lista preliminar de atores-chave a serem entrevistados. Os encontros foram agendados e, à medida que iam ocorrendo, empregou-se também a técnica bola de neve para a seleção de novos entrevistados. Na Tabela 1 estão representadas as questões do roteiro e a lista com a ocupação e vínculo dos entrevistados.

Tabela 1
: Roteiro de entrevista e participantes da pesquisa

Dessa forma, foram realizadas dezesseis entrevistas nos meses de outubro e novembro de 2013 nas cidades de Brasília (DF), Belém do Pará (PA) e Altamira (PA), com duração média de 58 minutos. O número de entrevistados foi determinado pelo princípio da saturação. Como aponta Gaskell (2008)Gaskell, G. (2008). Entrevistas individuais e grupais. Em Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático . Petrópolis: Vozes. , assume-se que existe um número limitado de pontos de vista sobre um determinado tópico dentro de um meio social específico. As entrevistas, uma vez transcritas, foram alvo de análise de conteúdo segundo as indicações de Bauer (2008)Bauer, M. W. (2008). Análise de conteúdo clássica, uma revisão. Em Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático , p. 189-217. Petrópolis: Vozes. . Em um primeiro momento, foi elaborada uma planilha com os trechos das entrevistas considerados mais relevantes, separados por entrevistado e pelas categorias estipuladas a priori , com base nos modelos de análise de stakeholders adotados no referencial teórico. O roteiro foi elaborado de modo que, nos relatos, as menções aos stakeholders fossem naturalmente emergindo (questões 1, 2 e 4). Acredita-se que essa estratégia seja mais relevante do que indagar diretamente o entrevistado quem são os stakeholders da usina. Com a análise desses dados foi possível identificar e classificar os stakeholders conforme as categorias propostas pelos modelos já mencionados. O exame do conteúdo das entrevistas (questões 2, 3 e 5) também contribuiu para a elaboração do Mapeamento dos Parâmetros Relativamente Estáveis do Sistema e da estrutura de crenças dos atores, de acordo com as premissas do ACF.

Após essa etapa de coleta, a atenção foi voltada novamente para a análise dos documentos que haviam sido coletados. Percebeu-se que estes seriam insuficientes para a investigação do estudo de caso segundo o ACF e o Modelo de Mudança Gradual e Transformativa. Logo, decidiu-se voltar a campo em busca das notas taquigráficas de audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A Coordenação de Relacionamento, Pesquisa e Informação da Câmara dos Deputados disponibilizou por e-mail os links por meio dos quais poderiam ser acessados os pronunciamentos em plenário e as audiências realizadas pelas comissões da casa que fossem relacionadas ao setor elétrico ou Belo Monte, conforme especificado na Tabela 2 . Com isso, completou-se a segunda busca de documentos que subsidiaram o desenvolvimento do estudo.

Tabela 2
: Audiências públicas analisadas

Com o auxílio de software especializado, os dados foram organizados e as categorias de análise foram estruturadas. No total, foram examinadas as notas taquigráficas de 35 audiências ocorridas entre 1999 e 2013, correspondendo a aproximadamente 91 horas de duração. Foram identificados os atores-chave, representantes dos inúmeros stakeholders previamente mapeados, e elaborado um banco de dados com os trechos significativos de seus discursos à luz do referencial teórico.

Portanto, as etapas da construção do estudo de caso foram: (a) levantamento do histórico de Belo Monte, (b) identificação e classificação dos stakeholders , (c) identificação das coalizões, (d) descrição do comportamento das coalizões ao longo do período determinado, (e) identificação das instituições e posicionamento institucional das coalizões, e (f) análise do processo de mudança institucional. Sabatier e Jenkins-Smith (1993) reuniram no livro Policy Change and Learning diversos estudos de casos com aplicações empíricas do ACF. As decisões de cunho metodológico tomadas nesta pesquisa refletem as práticas observadas nestes estudos, nas sugestões feitas pelos próprios autores no apêndice metodológico do livro, bem como no que foi percebido nas pesquisas mais recentes desenvolvidas no Brasil. Dentre eles, destacam-se o estudo pioneiro de Sabatier e Jenkins-Smith (1993) sobre o Lago Tahoe, o trabalho de Munro (1993)Munro, J. (1993). California water politics: Explaining policy change in a cognitive polarized subsystem. Em P. Sabatier, & H. Jenkins-Smith (Orgs.), p. 105-128. Policy change and learning: An advocacy coalition approach . Boulder: Westview. sobre a política de águas e transposições na Califórnia, o estudo de Araújo (2007)Araújo, S. M. V. G. (2007). Coalizões de advocacia na formulação da política nacional de biodiversidade e florestas . Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade de Brasília, Brasília, DF. sobre a política nacional sobre biodiversidade e florestas, o trabalho de Viana (2011)Viana, L. B. F. (2011). Entre o abstrato e o concreto: Legados do embate sobre o Projeto de Integração do São Francisco ou da transposição . Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade de Brasília, Brasília, DF. a respeito da transposição do Rio São Francisco e o estudo de Vicente, Calmon e Araújo (2017) sobre a política de ordenamento territorial urbano no Distrito Federal.

Com relação à definição das crenças das coalizões de defesa, tomou-se por base as entrevistas em profundidade e os documentos consultados. Além disso, através do levantamento histórico do empreendimento, foram definidos os Parâmetros Relativamente Estáveis do Sistema, ou seja, os aspectos do problema e do contexto que são compartilhados pelos atores limitando suas crenças, recursos e estratégias (Sabatier & Jenkins-Smith, 1993). Uma vez desenvolvido o Mapeamento dos Parâmetros Relativamente Estáveis do Sistema, elaborou-se o código de análise documental, no qual são estruturadas as crenças dos atores indicadas na Tabela 5 . As crenças do Núcleo Duro são as mesmas identificadas por Araújo (2007)Araújo, S. M. V. G. (2007). Coalizões de advocacia na formulação da política nacional de biodiversidade e florestas . Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade de Brasília, Brasília, DF. , enquanto as demais são elaborações próprias. Em seguida, em um processo de análise e interpretação, tais fragmentos dos discursos foram categorizados de acordo com a estrutura de crenças. Ressalta-se uma triangulação dos dados coletados a partir de diferentes fontes: documentos oficiais e não oficiais, entrevistas em profundidade e notas taquigráficas de audiências públicas.

Tabela 5
: Estrutura de crenças dos atores relacionados à usina hidroelétrica de Belo Monte

Análise dos stakeholders da usina hidroelétrica de Belo Monte

Inicialmente foram identificados 84 stakeholders ligados a Belo Monte, porém, após a análise e a interpretação dos dados à luz dos três modelos de análise de stakeholders , chegou-se a uma lista dos atores com maior grau de influência – os definitive stakeholders , discriminando-os segundo a sua atitude frente ao empreendimento e o tipo de papel que podem exercer, conforme apontado na Tabela 3 . No caso, percebeu-se uma clara polarização, mas também alguns stakeholders que parecem não se manifestar de modo definitivo sobre a usina. Além disso, algumas entidades tiveram controversa atuação de cooperação com o empreendimento, ao contrário do que se poderia esperar, tais como Funai, Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Ibama.

Tabela 3
: Classificação dos stakeholders da usina hidroelétrica de Belo Monte

Cabe destacar que o modelo de Mitchell et al. (1997)Mitchell, R. K., Agle, B. R., Wood, D. J. (1997). Toward a theory of stakeholder identification and salience: Defining the principle of the who and what really counts. Academy of Management Review , v. 22, n. 4, p. 853-886. proporciona à análise certa dinamicidade, pois considera que o status de um stakeholder é fruto da percepção da organização de referência e de que sua condição está sujeita ao resultado de interações com outros stakeholders ou à influência de fatores externos que irão resultar na posse de um ou mais atributos determinantes. Não obstante, o grau de saliência de um stakeholder também pode mudar a partir da sua aproximação ou aliança com outros. Este seria o caso do Greenpeace e do ISA, classificados como dominant stakeholders (com poder e legitimidade, mas sem urgência de demanda), que, ao cooperarem com associações locais, exercem maior pressão contra o empreendimento.

O passo seguinte foi aplicar o modelo Five-sided Model of Stakeholder Influence ( Gomes et al., 2010Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. ). Aqui foi preciso flexibilizar o entendimento acerca de algumas categorias, pois, diferentemente do contexto de administração de governos locais, trata-se de um caso marcado pela inserção de um empreendimento fruto da parceria público-privada e financiado principalmente por um órgão ligado ao governo federal (BNDES) em uma área de influência que irá envolver onze municípios diferentes. No caso dos colaboradores, foi considerado que existem atores com capacidade técnica ou financeira de implementação do empreendimento e que vislumbram um contexto que lhes seja favorável, justificando, assim, o seu engajamento como as grandes empreiteiras. Por outro lado, existem agentes que adotam essa postura fugindo do papel institucional que lhe tenha sido formalmente atribuído. Por razões diversas, uma entidade com perfil controlador pode atuar como colaborador. No caso em foco, órgãos de licenciamento ambiental estaduais e federal, como o Ibama, foram apontados por alguns entrevistados e por depoimentos registrados nas audiências públicas atuando a serviço dos interesses daqueles interessados na execução da usina. Em determinada audiência pública, afirmou-se que o Ministério do Meio Ambiente, pressionado pelo Ministério de Minas e Energia, forçava uma conduta mais flexível do Ibama no processo de licenciamento de Belo Monte.

No que diz respeito aos stakeholders classificados como controladores, além de controlar o uso do orçamento disponibilizado, asseguram que as instituições fossem respeitadas. Um exemplo emblemático trata do entendimento sobre como devem ser procedidas as audiências públicas junto às comunidades indígenas. Por falta de regulamentação do artigo 231 da Constituição Federal, há divergência entre o Ministério Público Federal do Pará e a Norte Energia S.A. Essa questão foi inclusive judicializada, de modo que o Supremo Tribunal Federal precisou arbitrar. Sobre os stakeholders do tipo legitimadores, propõe-se que este papel seja exercido de maneira mais ampla pelas inúmeras organizações que podem representar os anseios da população, como organizações religiosas, associações e entidades de classe. No caso estudado, esse papel se mostrou tão relevante a ponto de influenciar o cronograma de estudos de viabilidade e construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte. Quanto aos reguladores e definidores de agenda, o entendimento original do modelo se manteve.

De acordo com Gomes et al. (2010)Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. , todos os stakeholders parecem ter a capacidade de influenciar os objetivos da organização. Entretanto, segundo Mitchell et al. (1997)Mitchell, R. K., Agle, B. R., Wood, D. J. (1997). Toward a theory of stakeholder identification and salience: Defining the principle of the who and what really counts. Academy of Management Review , v. 22, n. 4, p. 853-886. , existem alguns que não têm essa capacidade, como os do tipo discritionary . Logo, verificou-se certa dificuldade em alocar alguns atores e, para transpor essa barreira, foi proposta a categoria das sentinelas. As sentinelas são aqueles que vigiam e esperam de forma velada por algum desdobramento, não possuem legitimidade para exercer influência e não participam (ao menos explicitamente) como colaboradores, mas possuem interesses sobre a política. Exemplos de sentinelas de Belo Monte são: compradores estrangeiros de minério, empresas distribuidoras de energia elétrica, fabricantes de turbinas e outros componentes para usinas hidrelétricas e mineradoras. Por outro lado, quais outras contribuições a abordagem conjunta de tais modelos de análise de stakeholders pode trazer para o ACF? É possível caracterizar os tipos de poder exercido por cada coalizão, sugerindo, inclusive, quais coalizões teriam maior influência em um subsistema político, dada a composição de seus membros? Além disso, é possível indicar as estratégias que podem ser adotadas pelas coalizões quando levadas em consideração as categorias do Five-sided Model of Stakeholder Influence ? Reconhecendo os papéis dos membros das coalizões, surgem indícios sobre as arenas e as estratégias empregadas pelas coalizões para provocar a mudança institucional.

Coalizões de advocacia da usina hidroelétrica de Belo Monte

Nesta seção, são apresentados os Parâmetros Relativamente Estáveis do Sistema ( Tabela 4 ) e a Estrutura de Crenças ( Tabela 5 ), que possibilitaram a identificação das coalizões ( Tabela 6 ).

Tabela 4
: Parâmetros relativamente estáveis do sistema

Tabela 6
: Identificação das coalizões e suas crenças compartilhadas

A Tabela 5 foi estruturada para representar as três coalizões potencialmente existentes que compõem o subsistema político em foco no presente estudo. Uma vez especificadas quais crenças são compartilhadas por cada uma, analisa-se a distribuição dos stakeholders previamente identificados e, dada a sua composição, argumenta-se sobre a saliência e os papéis exercidos por cada coalizão.

A Tabela 6 , por sua vez, ilustra as coalizões identificadas a partir da estrutura de crenças demonstrada. Nele, é possível perceber que a Coalizão Política Idealista é composta fundamentalmente pelos ambientalistas, movimentos sociais, ONGs, setores da Igreja Católica, acadêmicos e especialistas. Seus argumentos técnico-científicos fortalecem a coalizão. Obviamente, nela também se agrupam políticos locais, alguns deputados federais e senadores. A coalizão conta com stakeholders do tipo controladores e legitimadores: MPF do Pará, Associação dos Índios Moradores de Altamira (AIMA), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Federação de Agricultura e Pecuária do Pará, Fundação Viver, Produzir, Preservar, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), Movimento Xingu Vivo Para Sempre e representações das populações ribeirinhas. Importante registrar a presença e relevância do MPF, pois sua ação equilibra a disputa contra a coalizão dominante. Além disso, dada a sua natureza, a arena escolhida para o confronto e as estratégias usadas provocaram a judicialização do projeto. Foi possível observar que o MPF do Pará entrou com ao menos doze ações na justiça para paralisar a realização dos estudos de viabilidade ou as obras da usina.

A Coalizão Política Materialista é composta por atores favoráveis a Belo Monte e parece ter claro alinhamento em suas crenças do núcleo duro, porém, ao considerar as crenças do núcleo político, algumas posições assumidas se diferenciam como sobre a postura que o Pará deve adotar enquanto produtor de energia elétrica e a percepção sobre a exploração dos recursos naturais na Amazônia. Da mesma forma, considerando os aspectos instrumentais: as ações de contrapartida do empreendedor, o acesso às informações sobre a usina e as audiências públicas. Essa coalizão vislumbra ganhos financeiros para a região, para o Pará, ou para si própria, como o caso de empresários locais que acreditavam no surgimento de um ciclo econômico virtuoso, em que forneceriam equipamentos e serviços para a obra, assim como o caso de políticos que ainda lutam por mais compensações financeiras para o Pará, como, por exemplo, a aplicação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a energia produzida. Outros membros dessa coalizão atuam como colaboradores e legitimadores: Camargo Corrêa, CNEC WorleyParsons, Consórcio Construtor de Belo Monte, Engevix, Fundos Petro e Funcef, Leme Tractebel – GDF SUEZ, Light, NeoEnergia, Odebrecht, Queiroz Galvão, Vale do Rio Doce, ACIAPA, Federação das Indústrias do Pará e Forte Xingu (empresários locais).

Por fim, na Coalizão Política Tecnocrática estão os stakeholders que atuam como colaboradores, reguladores, definidores de agenda e controladores: Ibama, BNDES, Comitê Gestor do PAC, Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), Ministério do Planejamento, Casa Civil da Presidência da República, Ministério das Minas e Energia (MME), Empresa de Pesquisa Energética, Funai, INCRA, MMA e Operador Nacional do Sistema (ONS). Definitivamente, a Usina Hidroelétrica de Belo Monte é um projeto político que mobilizou uma grande parte da estrutura do Estado.

Analisando a composição de cada coalizão, percebe-se que ainda não foram considerados os stakeholders classificados como mixed blessing (Savage, Nix, Whitehead, & Blair, 1991). Destacam-se como potenciais membros da Coalizão Política Materialista o Consórcio Belo Monte, políticos e lideranças locais e o governo do Pará. A princípio, esses atores não são plenamente favoráveis ao empreendimento e usam de sua influência para barganhar atuando dubiamente sem convicção baseada em crenças. Os demais stakeholders dessa categoria são agências reguladoras e órgãos do Poder Judiciário. Ao contrário do MPF do Pará, que parece mesmo ser membro da Coalizão Política Idealista, estes parecem ser atores neutros no subsistema. Ressalta-se o papel do Congresso Nacional. Embora nas entrevistas tenham sido citados de forma genérica (e favoravelmente ao empreendimento), percebeu-se durante a análise das notas taquigráficas que existem políticos aliados às três coalizões. Por exemplo, os políticos de origem da região Norte atuam, em sua maioria, a favor de Belo Monte, pois querem mais recursos para o desenvolvimento da região.

A coalizão em condição hegemônica é a Coalizão Política Tecnocrática e, portanto, o projeto da Usina Hidroelétrica de Belo Monte é um reflexo de suas crenças. Entretanto, considerando a história do setor energético e, especificamente, o da usina, fica evidente o processo de aprendizagem pelo qual a coalizão dominante passou. Talvez o exemplo mais marcante esteja relacionado às crenças do Núcleo Político “Empreendimentos na Amazônia” e “Medidas de Inserção Regional”. Desde que o projeto foi rejeitado publicamente no I Encontro do Povos Indígenas da Amazônia no final da década de 1980, sua configuração original passou por diversas modificações. A principal delas foi a redução da área de floresta alagada de 1225 km2para 516 km2, com o objetivo de não afetar diretamente terras indígenas. Isso foi possível devido à utilização de um sistema de canais que configuram Belo Monte como uma “usina a fio d’água”, porém, significa que, quando a vazão das águas diminui, menos energia é gerada. Outra mudança significativa foi a incorporação do Plano de Desenvolvimento Sustentável da Região de Belo Monte (PDSBM) e o Plano de Inserção Regional (PIR). Não obstante, cabe mencionar que, desde o Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/2010 ( Brasil, 1987Brasil. Ministério de Minas e Energia. (1987). Plano nacional de energia elétrica: 1987/2010 . Retirado de <www.mme.gov.br>.
www.mme.gov.br>...
), divulgado pelo Ministério de Minas e Energia em 1987, já havia preocupação com as questões ligadas ao meio ambiente e à inserção regional dos empreendimentos.

Ainda sobre a aprendizagem das coalizões, observou-se que, caso a coalizão dominante consiga alterar a estrutura de crenças de outra coalizão (ou a de alguns de seus membros), a saliência de determinados stakeholders pode ser alterada, isto é, um agente pode ter sua legitimidade ampliada ou ter suas demandas consideradas mais urgentes pela coalizão dominante. Se a mudança for profunda o suficiente, um agente pode alterar o seu papel no subsistema. No caso, duas associações de empresários locais foram empoderadas com prestígio e capacidade de manipular significados a partir das interações dentro da Coalizão Política Materialista. A aproximação com a Coalizão Política Tecnocrática influenciou sua saliência e o papel exercido, atuando como definitive stakeholders do tipo legitimadores.

Com base no ACF, é definido o subsistema político como o escopo de atuação dos stakeholders , portanto, propõe-se que a volatilidade dos papéis e a saliência dos stakeholders seja função dos Parâmetros Relativamente Estáveis do Sistema. Assim, por exemplo, a dimensão simbólica da Amazônia e o fato de que o maior potencial hidrelétrico brasileiro está localizado justamente naquela região amplificam a saliência de determinados agentes, tais como populações ribeirinhas e povos indígenas que possuem interesses considerados legítimos, demandas tidas como urgentes e o poder de influenciar a definição de objetivos de políticas para aquela região. Do mesmo modo, o contexto institucional legitima os papéis exercidos pelos stakeholders . No caso, os órgãos de licenciamento ambiental passaram a ser protagonistas, exercendo maior saliência na condição de controladores ou mesmo colaboradores.

As coalizões e suas estratégias de mudança institucional gradual e transformativa

Nesta seção são especificados os principais movimentos das coalizões para influenciar a implementação de Belo Monte. Na sequência, completa-se a abordagem integrativa proposta por Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. , acrescentando o modelo de MIGT de Mahoney e Thelen (2010)Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. para caracterizar os comportamentos e as estratégias de cada coalizão.

De acordo com a Tabela 7 , é possível observar que a composição das coalizões influencia o tipo de ação empreendida. Como a Coalizão Política Tecnocrática sempre teve acesso à estrutura do Estado, verificou-se que diversas reformas foram conduzidas no setor elétrico para tornar a estrutura mais complexa e fortalecer uma visão política. Além da criação de órgãos na administração pública (Operador Nacional do Sistema Elétrico, ANEEL), leis também foram elaboradas para normatizar o mercado de energia elétrica, fazendo com que a iniciativa privada (e, portanto, membros da Coalizão Política Materialista) tivesse acesso não apenas à participação de licitações, mas também que direcionasse a política de expansão do setor. O modelo de licitação conta, ainda, com um sistema de financiamento baseado no BNDES, facilitando ainda mais o acesso das empresas membro da coalizão ao poder. Assim, é possível afirmar que o contexto institucional existente está a serviço da Coalizão Política Tecnocrática e da Coalizão Política Materialista. Por outro lado, a chamada Coalizão Política Idealista parece não ter vez, combate principalmente com o auxílio do Ministério Público e conta também com o suporte de alguns parlamentares que se fazem presentes nas comissões da Câmara e do Senado. As ações dessa coalizão consistem principalmente na mobilização social a partir de eventos, manifestos e na judicialização das questões. A Coalizão Política Materialista, por sua vez, parece atuar mais discretamente como fiel escudeira da coalizão dominante, intervindo em eventuais questões e em momentos pontuais. Embora composta por atores economicamente poderosos, sua atuação foi mais visível no âmbito do Congresso Nacional.

Tabela 7
: Estratégias das coalizões

Ao analisar o caso segundo o MIGDT, sugere-se que as ações da Coalizão Política Tecnocrática e da Coalizão Política Materialista sejam caracterizadas como promotoras da mudança institucional dos tipos substituição, conversão e camadas. Por sua vez, a Coalizão Política Idealista tem se engajado em mudanças dos tipos conversão e camadas, conforme sintetizado na Tabela 8 . Na atuação da Coalizão Política Tecnocrática, a introdução de leis, medidas provisórias e resoluções configuram mudanças por substituição. A interpretação dada pela coalizão ao artigo 231 da Constituição Federal, que trata da exploração de recursos em terras indígenas, se configura em mudança por conversão. Na atuação da Coalizão Política Materialista, o Projeto de Decreto de Legislativo nº 1.785/2005, aprovado na Câmara, e o PDS nº 343/2005, aprovado no Senado, que autorizaram a implantação de Belo Monte, também podem ser considerados mudanças por camadas. Finalmente, a Coalizão Política Idealista, atuando principalmente por meio do MPF, buscou dar ao artigo 231 da Constituição Federal uma interpretação que atendesse aos seus interesses. Para ela, o artigo é ambíguo por não regulamentar como devem ser conduzidas as oitivas junto às populações indígenas, afirmando que essas consultas são insuficientes e que foram feitas pelo Ibama, quando deveriam ter sido realizadas pelo Congresso Nacional. Assim, a coalizão buscou sempre explorar a ambiguidade da regra, almejando a mudança por conversão. Cabe ressaltar que, em seu discurso, ela argumenta sobre a necessidade de se criar uma lei complementar que regulamente o referido artigo da Constituição Federal e, assim, caberia a interpretação de que se estaria iniciando um movimento de mudança institucional por camadas.

Tabela 8
: As estratégias de mudança institucional de cada coalizão

No caso em estudo, existe uma coalizão em condição hegemônica e outra coalizão aliada que, se não precisam agir como opositores em busca de mudança institucional, precisam, sim, alterar o contexto institucional para sustentar o atual equilíbrio de poder. Portanto, nem sempre as mudanças institucionais graduais e transformativas serão empreendidas por grupos em condição desfavorável, como parecem sugerir Mahoney e Thelen (2010)Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. . Exercitando o enquadramento da Coalizão Política Tecnocrática e da Coalizão Política Materialista na tipologia proposta pelos autores, sugere que ambas possam ter atuado ora como mutualísticos, ora como oportunistas. Por outro lado, a Coalizão Política Idealista parece sempre ter atuado como insurgente.

Concluindo, no caso de Belo Monte, as mudanças na política se deram a partir da pressão da opinião pública (motivada pelas ações da Coalizão Idealista), aprendizado a partir da incorporação de novas informações técnicas e, sobretudo, de processos competitivos de mudança institucional gradual e transformativa ( Jenkins-Smith et al., 2014Jenkins-Smith, H. C. et al. (2014). The advocacy coalition framework: foundations, evolution and ongoing research. Em P. A. Sabatier, & C. M. Weible (Orgs.), Theories of the policy process . 3. ed. Boulder: Westview Press. ; Mahoney & Thelen, 2010Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. ). Isto posto, as mudanças em Belo Monte parecem ser concessões que a coalizão dominante precisou realizar para que o projeto se tornasse viável também do ponto de vista social e ambiental. Colocando as crenças da Coalizão Política Tecnocrática nessa perspectiva ( Tabelas 5 e 6 ), tais concessões aderem a uma visão marcada pelas seguintes crenças do núcleo duro: 1D, 2B, 2C, 3C, 4C e 5D. Também parecem pautar essas concessões as seguintes crenças do núcleo político: 1B, 3C, 6C e 9A.

Interessante notar que, ao analisar a estrutura de crenças da Coalizão Política Tecnocrática e da Idealista, apesar das diferenças marcantes, existem pontos de convergência. Conforme demonstrado na Tabela 5 , nas crenças do núcleo duro há concordância sobre as crenças: 1D, 2C, 4C e 5D. A respeito das Crenças do Núcleo Político, há convergência em torno das crenças 1B, 3C e 5B. Já a respeito dos aspectos instrumentais, não há qualquer convergência entre as duas coalizões adversárias. De fato, é possível especular que, ao longo da história de Belo Monte, ambas as coalizões parecem se afastar das crenças mais radicais. Sugere-se que isso possa ser exatamente uma constatação do processo de mudança política ao qual o ACF se refere. Dessa evidência surgem indagações: é possível analisar e posicionar os subsistemas políticos segundo um grau de maturidade em torno dos consensos produzidos? Em subsistemas políticos mais maduros as disputas entre coalizões têm menor ocorrência? Em situações como essas, como se dão os processos de mudança institucional gradual e transformativa? A maior incidência de processos de aprendizagem entre as coalizões gera menos processos competitivos de mudança institucional gradual e transformativa?

Finalmente, cabe verificar evidências da materialização das crenças identificadas na forma de instituições que regulam o subsistema político. No caso em foco, há o exemplo da Resolução nº 2, de 17 de setembro de 2001, do Conselho Nacional Política Energética ( definitive stakeholder classificado como regulador e pertencente à Coalizão Hegemônica) que institui que os estudos de impacto ambiental e usos múltiplos das águas do reservatório da usina deveriam ser produzidos pela Eletronorte e acompanhados por outras entidades, como MMA, ANA, ANEEL e MPOG, para avaliar o potencial do empreendimento no desenvolvimento econômico e social da região. Não obstante, pelo lado da Coalizão Idealista, verifica-se uma interpretação do artigo 231 da Constituição Federal, que está alinhado com a crença de que a ampla participação social é elemento-chave da política em um Estado democrático e participativo.

Considerações finais

Bispo e Gomes (2018)Bispo, F. C. S., Gomes, R. C. (2018). Os papéis dos stakeholders na formulação do PRONATEC. Revista de Administração Pública , v. 52, n. 6, p. 1258-1269. indicam que “a dinâmica do ambiente social onde se situa a política pública é constituída de relações contraditórias e estruturalmente articuladas” (p. 1268). Esse parece ser o caso da Usina Hidroelétrica de Belo Monte. Buscou-se descrever e analisar como as relações entre stakeholders agrupados em coalizões de defesa são pautadas por um conjunto de instituições, sendo essas, ao mesmo tempo, alvo de questionamento e de confronto, passíveis de alteração e, consequentemente, geradoras de mudanças na política.

A partir dos modelos de análise de stakeholders empregados, foi possível evidenciar como os papéis exercidos pelos stakeholders e o grau de saliência que possuem são condições voláteis e sujeitas a uma dinâmica que precisa ser compreendida a partir do contexto em que estão inseridos (subsistema político) e dos momentos de interação. Também se apontou uma possível limitação do modelo de influência de stakeholders proposto por Gomes et al. (2010)Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. em lidar com outros contextos que não governos locais, resultando na nova categoria chamada “sentinelas”. A respeito do ACF, procurou-se estudar a composição das coalizões caracterizando seus membros enquanto stakeholders dotados de diferentes graus de influência e com distintos papéis dentro do subsistema político. Assim, as análises de stakeholders realizadas previamente sinalizam em que arenas, quais os recursos e os tipos de estratégias serão adotados. Como observado, a Coalizão Política Tecnocrática exerce a hegemonia por conta das características de seus membros: stakeholders com amplo poder, legitimidade e urgência de demanda, exercendo papéis tais como colaboradores, reguladores, definidores de agenda e controladores. Já a Coalizão Política Idealista, em luta contra-hegemônica, possui membros com atuação mais restrita: apenas Controladores e Legitimadores. Por causa disso, suas principais estratégias foram judicializar a questão de Belo Monte e mobilizar a opinião pública.

O estudo corrobora a proposta de Vieira e Gomes (2014)Vieira, D. M., Gomes, R. C. (2014). Mudança institucional gradual e transformativa: A influência de coalizões de advocacia e grupos de interesses em políticas públicas. Organizações & Sociedade (Online), v. 21, p. 679-694. , no sentido de que a análise de mudança institucional gradual e transformativa ( Mahoney & Thelen, 2010Mahoney, J., Thelen, K. (2010). A theory of gradual institutional change. Em Explaining institutional change: Ambiguity, agency and power , cap. 1. Cambridge: Cambridge University Press. ) pode se beneficiar caso acompanhada da análise de stakeholders e do ACF. O estudo de caso indica que o comportamento em prol desse tipo de mudança não é exclusividade de atores em situação desfavorável. Mesmo os grupos hegemônicos precisam lutar para manter um equilíbrio instável de poder ( Thompson, 1995)Thompson, J. B. (1995). Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa . Petrópolis: Vozes. . Além disso, o estudo permitiu identificar como determinadas crenças a respeito de uma política pública se materializam em instituições, como foi o exemplo da Resolução nº 2 do CNPE, de 17 de setembro de 2001.

A respeito das limitações da pesquisa, é preciso reconhecer que a análise de stakeholders , facilitando a identificação e caracterização das coalizões, pode simplificar a realidade, pois estes foram considerados como uma unidade. Em outras palavras, uma análise mais refinada de cada stakeholder pode transparecer diferenças internas que façam com que, em uma mesma organização, existam representantes de coalizões diferentes. Tal possibilidade foi percebida na atuação do Congresso Nacional. A partir das notas taquigráficas, repara-se que existem comissões na Câmara e no Senado com atuação favorável à usina, ao contrário, por exemplo, da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, que adere aos interesses da Coalizão Política Idealista.

Outra limitação evidente é o fato de que dificilmente a abordagem adotada tenha sido capaz de captar todas as nuances das disputas e suas motivações. Um estudo de caso sobre Belo Monte conduzido a partir de outros frameworks pode lançar luz sobre questões não reveladas. Assim, caberia examinar o caráter relacional dos atores a partir da literatura sobre governança e redes de políticas públicas. Por exemplo, utilizar o trabalho de Stout e Love (2017)Stout, M., Love, J. (2017). Integrative governance: A method for fruitful public encounters. American Review of Public Administration , v. 47, n. 1, p. 130-147. sobre encontros públicos ( public encounters ) entre agentes públicos e atores sociais e sua influência sobre os resultados das políticas. Essas interações sociais são estruturadas por um conjunto de regras formais e informais e podem ser observados em um contexto mais amplo de governança, durante o planejamento e a implementação da política. As autoras propõem uma abordagem ( Integrative Governance Encounters ) capaz de gerar consenso e resultado satisfatórios para a política apoiada em valores como a busca por integração, inclusão, consenso e pertencimento em oposição a uma abordagem apoiada em relações hierarquizadas de dominação numa perspectiva elitista ( Institutional Governance Encounters ).

A partir das limitações e contribuições observadas, uma série de questões emergem e podem constituir futuros estudos. Sugere-se que novos estudos investiguem quais são os stakeholders típicos de usinas hidrelétricas e verifiquem a partir de múltiplos casos se internamente há diferenciação em suas estruturas de crenças e valores. Sobre a especificação das coalizões, recomenda-se testar a abordagem sugerida por Weible et al. (2009)Weible, C. M., Sabatier, P. A., McQueen, K. (2009). Themes and variations: Taking stock of the advocacy coalition framework. The Policy Studies Journal , v. 37, n. 1, p. 121-140. e Jenkins-Smith, et al. (2014) a respeito da existência de subcoalizões. Seria a Coalizão Política Materialista uma subcoalizão pertencente à Coalizão Política Tecnocrática? Futuras pesquisas podem também seguir o modelo proposto por Gomes et al. (2010)Gomes, R. C., Liddle, J., Gomes, L. O. M. (2010). A five-sided model of stakeholder influence. Public Management Review , v. 12, n. 5, p. 701-724. , testando-o em outros contextos e avaliando a pertinência nova categoria proposta: as sentinelas.

Ainda a respeito da análise de stakeholders , recomenda-se investigar meios para quantificar o grau de saliência segundo as variáveis poder, legitimidade e urgência da demanda ( Mitchell et al., 1997Mitchell, R. K., Agle, B. R., Wood, D. J. (1997). Toward a theory of stakeholder identification and salience: Defining the principle of the who and what really counts. Academy of Management Review , v. 22, n. 4, p. 853-886. ). Cabe também pesquisa sobre o ganho de saliência dada a cooperação entre stakeholders , isto é, como um ator pode se beneficiar ao estabelecer uma relação cooperativa com outro ator com maior influência. Sobre futuros estudos relacionados à Mudança Institucional Gradual e Transformativa, seria pertinente aprofundar a discussão sobre mudança empreendida pelos grupos em condição hegemônica. Nessa perspectiva, outros tipos de comportamentos e estratégias podem se fazer presentes. Recomenda-se inclusive, aprofundar os estudos sobre como as crenças e valores se manifestam no conjunto de instituições que regulam a política. Por fim, sugere-se analisar historicamente o modo de apropriação territorial da Amazônia e um exame mais detalhado do papel de setores econômicos interessados na implementação de Belo Monte, como o setor da mineração.

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  • Financiamento: O autor não recebeu apoio financeiro para a pesquisa, autoria ou publicação deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2017
  • Aceito
    18 Jun 2020
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