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A Gestão Ordinária na Comunidade Quilombola Paiol de Telha no Paraná: Memórias das Lideranças sobre as Práticas Cotidianas Antes da Expulsão do Território

Resumo

Esta pesquisa se propôs em apreender a gestão ordinária das práticas cotidianas, a partir das memórias contadas e vividas pelas lideranças da Comunidade Quilombola “Invernada Paiol de Telha - Fundão”, desta comunidade antes do processo expulsão (ocorrido em 1974) deste território. Os processos de gestão no cotidiano do homem comum não são formatados a partir de conhecimentos acadêmicos, mas sim, são desenvolvidos de uma forma particular, a partir de suas vivências e do contexto em que vivem. Adotamos a metodologia qualitativa por meio da inserção nesta comunidade e trabalhamos com fontes orais e escritas centradas na história oral. Os resultados apontaram que “o Fundão” estabeleceu um vínculo de convivências por meio da produção de memórias transformando o espaço em lugar simbólico, nos permitindo entender este cotidiano como um espaço de possibilidades que adotam no verbo “gerir” à vinculação de um “saber-fazer”. Pode-se apreender que as práticas (antes da expulsão) vieram repletas de atividades que indicavam o repertório pessoal e coletivo destes moradores no seu cotidiano e na essência de sua gestão. Práticas de moradia, alimentação e subsistência num primeiro momento, e práticas de solidariedade, fé e lazer num segundo momento. Ao rememorarem estas práticas cotidianas, as lideranças-anciãs “deram voz” a uma territorialidade ancestral. Esta territorialidade, acentuou a perspectiva do território como sendo um espaço das experiências vividas, no qual as relações entre os moradores do Fundão e destes com a natureza (física e social), centravam-se em relações permeadas pelos sentimentos e pelos simbolismos atribuídos aos lugares.

gestão ordinária; práticas cotidianas; territorialização; comunidades quilombolas

Abstract

The aim of the present study is to learn more about the ordinary management of daily practices based on memories told and experienced by leaders at Quilombola Community “Invernada Paiol de Telha - Fundão” before they were expelled from their territory in 1974. Management practices in ordinary men’s daily life are not set from academic knowledge, but rather developed in a very peculiar way based on both their experiences and the context they live in. The qualitative methodology was herein adopted and it meant researchers’ insertion in this community and working with oral and written sources, mainly with oral history. Results have shown that “Fundão” set conviviality bonds by producing memories in order to turn space into symbolic places. It allowed better understanding their daily lives as space enabling the adoption of verb “to manage” linked to “Knowhow”. It is possible observing that practices adopted before their expelling from the territory were full of activities stressed by residents’ personal and collective repertoires about their routines and by the very essence of their management. Housing, eating and subsistence practices were observed at first, and solidarity, faith and leisure were the target in a second moment. Ancient community leaders “gave voice” to ancestral territoriality by recalling these daily practices. Such a territoriality highlighted the perspective of territory as space for lived experiences, whose relationship between Fundão residents and nature (physical and social) aimed at associations full of feelings and symbolisms represented by places.

ordinary management; daily practices; territorialization; Quilombola communities

Introdução

Esta pesquisa se propôs em apreender a gestão ordinária das práticas cotidianas, a partir das memórias contadas e vividas pelas lideranças da Comunidade Quilombola “Invernada Paiol de Telha - Fundão1 1 . Fundão é outra denominação utilizada pelos membros da Comunidade Invernada Paiol de Telha para se referir ao território, pois ele estava localizado nos fundos da Fazenda Capão Grande. Em nossa inserção em campo, os moradores frisaram que gostam de ser designados por Fundão para que não haja confusão com o núcleo Assentamento localizado na Colônia Socorro (Notas de campo, 2019). ”, antes do processo expulsão (ocorrido em 1974) deste território. Aos olhos do saber tradicional na Administração, a gestão ordinária é desvalorizada, isso porque considera as “artes de fazer” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ) das pessoas comuns no seu dia a dia e não de empresas. Neste tipo de gestão, o conhecimento, conforme os autores Barros e Carrieri (2015)Barros, A. & Carrieri, A. de P. (2015). O cotidiano e a história: construindo novos olhares na Administração. RAE-Revista de Administração de Empresas, n. 55, v.2, p. 151-161. , também denominado como popular, da pessoa comum, bem como as práticas organizativas de suas atividades, são sempre estigmatizadas, sendo consideradas amadoras, sem profissionalismo, de improviso, sem credibilidade.

Carvalho (2006)Carvalho, C. A. P. (2006). Outras formas organizacionais: o estudo de alternativas ao modelo empresarial na realidade brasileira. Porto Alegre. Projeto Procad/CNPq. e Holanda (2011)Holanda, L. (2011). Resistência e apropriação de práticas de management no organizar de coletivos da cultura popular. Tese (Doutorado em Administração). Universidade Federal de Pernambuco, Recife: Brasil. 246 p. , afirmam que as práticas administrativas e de gestão são diversas, que poderiam ser mais bem compreendidas a partir das minúcias que orientam a ação das diversas pessoas que exercem a administração no cotidiano. Como exemplo, vale citar pessoas que exercem a gestão de suas organizações pautadas na preservação de modos de fazer e agir mantendo uma tradição, como é o caso da comunidade remanescente quilombola locus desta pesquisa.

Em consonância com a perspectiva apresentada, consideramos essencial responder algumas questões que ficam subjacentes a esta escolha: o que uma pesquisa sobre a gestão do/no cotidiano ou “artes de fazer” de uma comunidade remanescente quilombola poderia trazer de contribuição para a área de Administração/Estudos Organizacionais? O que seria, afinal de contas, uma organização? E a gestão o que é? Qual definição de gestão que nos guia ontológica e epistemologicamente nesta pesquisa? Nós, pesquisadores e profissionais da área, podemos considerar uma comunidade remanescente quilombola como sendo uma organização?

Se partirmos do pressuposto teórico defendido por Donaldson (2003)Donaldson, L. (2003). Organization theory as positive science. In: Tsoukas, H. & Knudsen, C. (eds.). The Oxford Handbook of Organization Theory. New York: Oxford University Press. , poderíamos afirmar que as organizações “seriam instituições com fronteiras claras e definidas, constituídas por uma série de subdivisões que atuam de maneira conjunta e orientada para um objetivo comum” (p. 32). Em contraponto a este posicionamento, para Hatch e Yanow (2003)Hatch, M. J. & Yanow, D. (2003). Organization theory as an interpretative science. In: Tsoukas, H. & Knudsen, C. (Org.). The Oxford handbook of organizations theory meta-theoretical perspectives. New York: Oxford, p. 63-87. , a organização seria um locus no qual as pessoas que ali se relacionam constroem sentidos próprios de vivência e de trabalho. Ou seja, esta perspectiva é defendida pelo paradigma anti-funcionalista. Compactuamos com este paradigma, pois concordamos ser a organização um processo no qual as pessoas constroem sentidos e os consolidam na vida em sociedade ( Ibarra-Colado, 2006Ibarra-Colado, E. (2006). Organization studies and epistemic coloniality in Latin America: thinking otherness from margins. Organization, n.13, v.4, p.463-488. ; Carrieri, 2014Carrieri, A. de P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade. Minas Gerais, v. 1, n.1. ).

E uma comunidade remanescente quilombola, pode ser considerada como sendo uma organização? Sim, estas comunidades são organizações sociais ou grupos de pessoas organizadas, ou ainda que estejam se organizando para garantirem seus direitos, principalmente os relativos à terra e à tradição cultural que vêm subjacentes a este processo. Em outras palavras, por meio de seus processos organizativos, essas comunidades passam a ser reconhecidas como símbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e militância negra, e que pode servir ao final como expressão formal da ideia de contemporaneidade dos quilombos, pois estes guardam memórias específicas, que ajudam a contar outra história do Brasil. Uma história das ditas “minorias”, que passam a ocupar o lugar de sujeitos e não de meros colaboradores (Araújo, 2011; Carraro, 2016Carraro, A. (2016). A Invernada Paiol de Telha e a Nova Legislação Quilombola (1975-2015). Dissertação. (Programa de Pós-Graduação em História). Universidade Estadual de Ponta Grossa. Paraná. ).

Relevante se faz destacar que na área de Estudos Organizacionais, houve a realização de pesquisas com comunidades remanescentes quilombolas que são consideradas como organizações sociais. Por exemplo, Silva (2019Silva, E. J. F. (2019). Entre vivências e lembranças de uma Comunidade Quilombolas: história, memória e discurso. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, 229p. , 2020Silva, E. de J. F. da. (2020). Histórias de autoidentificação do quilombo Luizes: tensões, disputas e contradições. Gestão & Conexões, 9 (3), p. 147-167. ) realizou uma pesquisa que versava sobre história, memória e organização social na comunidade Luizes (MG) a partir da memória dos anciãos. Os resultados obtidos permitiram contar diversas histórias da Comunidade Luizes, que remetiam à dinâmica do grupo e dele como outros grupos sociais, o que indicou que as histórias e memórias podem ser associadas a um discurso de identidade. Além disso, evidenciou discursos ligados ao racismo estrutural que levou à invisibilização de histórias e ao apagamento de humanidades.

Por sua vez, Molina, Ichikawa e Angnes (2022) realizaram uma pesquisa sobre as memórias de mulheres quilombolas, a fim de captar como as práticas cotidianas compuseram o processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR) da Comunidade Remanescente Quilombola Adelaide Maria Trindade Batista (PR). Os resultados apontaram que estas lideranças quilombolas têm sido “mulheres guardiãs das tradições e da educação dos filhos” (p.34).

Lima (2022)Lima, T. M. F. de (2022). Memórias, cotidiano, gestão ordinária e territorialização: um estudo na comunidade remanescente Quilombola Manoel Ciríaco dos Santos – Guaíra PR. (Dissertação de Mestrado). Maringá, Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-Graduação em Administração, 148 p. realizou uma pesquisa com a Comunidade Quilombola Manoel Ciríaco dos Santos (PR), problematizando a vinculação direta entre a legitimidade da reivindicação territorial das comunidades quilombolas e a ideia de territorialidade fixa. Os resultados apontaram que a reconstituição de histórias e vínculos com a região de origem, por parte dos quilombolas de Guaíra/PR, não se restringe ao âmbito instrumental e administrativo, mas tem também uma importante dimensão afetiva.

Dessa forma, por meio dessas pesquisas, observa-se que estas organizações sociais trazem em suas realidades outras formas de organizar/gerir existência que não sejam aquelas impostas por meio de “pílulas mágicas” dos grandes gurus da Administração. Neste sentido, Misoczky (2010)Misoczky, M. C. (2010). Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação. In: Misoczky, M. C. ; Flores, R. ; K. Moraes, J. Organização e Práxis Libertadora. Porto Alegre, Da casa Editora. reforça que a prática organizativa não é sinônima de prática gerencial. A cooperação percebida nos grupos sociais pressupõe práticas organizativas e, dessa forma, podem ser consideradas organizações, conforme definição da autora

Acrescido a isso, Little (2002)Little, P. E. (2002) Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: UNB. afirma que para entender o processo organizativo que o grupo mantém com a sociedade, torna-se necessário analisar a sua cosmografia, que o autor define como sendo os saberes tradicionais, ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que este grupo utiliza para estabelecer e manter sua vida organizada. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele.

Portanto, não poderíamos discutir o território de uma comunidade remanescente quilombola que fosse desarticulado de sua realidade cotidiana e da sua identificação enquanto quilombolas. Nesta perspectiva, Silva (2020)Silva, E. de J. F. da. (2020). Histórias de autoidentificação do quilombo Luizes: tensões, disputas e contradições. Gestão & Conexões, 9 (3), p. 147-167. afirma, em sua pesquisa sobre uma comunidade remanescente quilombola em Belo Horizonte (MG), ser a autoidentificação primordial para que possamos compreender suas práticas e diferenciá-la dos demais. Além disso, se há algo que liga as diversas histórias das comunidades quilombolas por esse país afora é a violência sofrida no presente e no passado por elas, e para fazer emergir questões tão delicadas, os trabalhos com a memória (individual e coletiva) são uma importante fonte de investigação.

Assim, território, nestas comunidades, se faz na construção de histórias, de memórias, de identificação, nos conflitos entre natureza e ser humano e em suas maneiras próprias de viver e criar, seja trabalhando a terra, seja em suas festas e ou em suas formas religiosas específicas no cotidiano. Desta forma, adotamos o posicionamento que as comunidades remanescentes quilombolas sejam organizações de resistência, portanto, sendo consideradas como “espaços de construção de possibilidades alternativas de organização” ( Barcellos & Diniz, 2016Barcellos, R. & Diniz, E. (2016). Money is time: How a Brazilian organization has appropriated the time banking concept to nationally support a chain of local artists and cultural producers. VI Organizations, Artifacts and Practices (OAP). Workshop, Lisboa, Portugal. , p. 685; Barcellos; Dellagnelo & Salles, 2014, 2017, p. 17), no sentido de trazer à tona a existência de uma multiplicidade de experiências sociais desperdiçadas pelo discurso organizacional dominante. Portanto, há experiências de organizar que desafiam o modelo dominante ( Carrieri, 2004Carrieri, A. de P. (2004). O humor como estratégia discursiva de resistência: As charges do SINTELL/MG. Organizações & Sociedade, v. 11, n. 30, p. 29-45. ; Misoczky, Flores & Böhm, 2008; Morais & Paula, 2010)Morais, L. & Paula, A. P. de. (2010). Identificação ou resistência? Uma análise da constituição subjetiva do policial. RAC-Revista de Administração Contemporânea, n. 14, v. 4, p. 633- 650. .

Neste sentido, fica evidente que o objetivo geral da pesquisa não se vincula ao campo tradicional da Administração, assim como fez Silva (2019)Silva, E. J. F. (2019). Entre vivências e lembranças de uma Comunidade Quilombolas: história, memória e discurso. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, 229p. . No caso do presente artigo, se propõe em desvelar a Administração do cotidiano sob a égide do paradigma interpretativo. Sendo assim, partimos do pressuposto ontológico e epistemológico que a gestão é relacional e socialmente construída no cotidiano. Dito de outra forma, consideramos haver uma diversidade nas organizações em termos de forma, estrutura, pessoas, contexto e história (Carrieri, Perdigão & Aguiar, 2014). Reafirmamos ser essencial reavaliar o lugar social do sujeito e da prática social a partir da ação e por meio do resgate da história.

Sendo assim, ao trazer o estudo do cotidiano por Certeau (2012Certeau, M. de. (2012). A cultura no plural. 7. ed. Papirus: Campinas. , 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ), trazemos também sua noção a respeito das estratégias e táticas cotidianas, que são práticas sociais que se tornam formas de sobrevivência, artes de fazer cotidianas. A partir desta perspectiva, o cotidiano é utilizado como um território socialmente construído, em que indivíduo e grupo se relacionam na produção de memórias e histórias, de modo a transformar o espaço em “lugar simbólico” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ). Conforme Carrieri (2014Carrieri, A. de P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade. Minas Gerais, v. 1, n.1. , p. 27) “há algo de extraordinário no ordinário do cotidiano”. Para o autor, a visão do cotidiano como arena da rotina, dos hábitos, da não mudança e da não reflexão, precisa ceder lugar ao olhar para o cotidiano como espaço de possibilidades.

Levando em conta a colocação de Carrieri (2014)Carrieri, A. de P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade. Minas Gerais, v. 1, n.1. , defendemos a compreensão da dimensão simbólica, histórica, identitária e afetiva do território denominado comunidade quilombola. Ou seja, o extraordinário no ordinário deste cotidiano. Dessa maneira, ao apreender a gestão ordinária das práticas cotidianas, a partir das memórias contadas e vividas pelas lideranças-anciãs da Comunidade Quilombola “Invernada Paiol de Telha - Fundão”, e por conseguinte, compreender o processo de territorialização dos moradores desta comunidade antes do processo expulsão (desterritorialização – ocorrido em 1974 neste território), permitirá compreender o caminho histórico e difícil da tênue e incessante “gestão de fazer” do/no cotidiano destes sujeitos a partir do longo processo de violências econômicas, sociais, morais e culturais sofridas no processo de expropriação de suas terras.

Portanto, a partir dessa expropriação e expulsão sofrida pelos “herdeiros” da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha de seus espaços, a pesquisa realizada permite trazer as apreensões simbólicas destes sujeitos em seu cotidiano. Neste ponto reside a questão norteadora que direcionou a pesquisa realizada: Como era a gestão ordinária desta comunidade remanescente quilombola antes da expulsão das terras?

Por que não é a unidade territorial que concede a esta comunidade quilombola seu pertencimento? Como exposto até aqui, percebemos que o processo de desestruturação socioterritorial foi marcante. Ou seja, geograficamente os núcleos da “Invernada Paiol de Telha - Fundão” foram separados em três municípios, mas culturalmente e simbolicamente ligados pela “luta da reconquista de suas terras. Unidos neste pertencimento, a partir da década de 1990, com o apoio da Pastoral da Terra e da Assessoria Jurídica e de Pesquisa Antropológica do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Inter Étnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), iniciou-se o processo organizativo do grupo com a criação da Associação Heleodoro Pró-reintegração da Invernada Paiol de Telha - Fundão, que passou a coordenar as ações perante a Justiça e os procedimentos de adequação do grupo ao Artigo 68 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

Segundo Buti (2009)Buti, R. P. (2009). A-cerca do pertencimento: percursos da Comunidade Invernada Paiol de Telha em um contexto de reivindicação de terra. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. , com a criação da Associação Heleodoro o grupo passou a congregar os membros que estavam residindo fora das cidades de Guarapuava e Pinhão, que concentravam a maioria das famílias da Invernada, para se unirem e se organizarem enquanto grupo, e juntos poderem reaver as terras herdadas de Dona Balbina, história que contaremos ao longo do artigo. No final de 1998 foi criado o núcleo Assentamento Invernada Paiol de Telha pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e dos demais Núcleos (Guarapuava, Pinhão e Barranco), com suas respectivas Associações. Por isso, a partir de 2004 este núcleo Assentamento, permitiu uma estrutura administrativa que possibilitou buscar como último recurso para reaver o território herdado de seus antepassados, o seu reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, conforme disposto no Artigo 68 ADCT e regulamentado pelo Decreto nº 4.887/2003.

Para tanto, utilizamos neste estudo o conceito ressemantizado de “quilombo”. Explicando melhor: Almeida (1996)Almeida, A. W. B. de. (1996). Quilombos: sematologia face a novas identidades. In: Frechal, A. Terra de preto, quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís: SMDDH/CCN-PVN. e Gusmão (1995)Gusmão, N. M. M. de. (1995). Terra de pretos, terra de mulheres: terra, mulher e raça num bairro rural negro. Brasília: Fundação Cultural Palmares. afirmam que os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de terras livres e, geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento de terras como pagamentos de prestação de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata, quanto após sua extinção.

Sendo assim, ao adotar-se uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo seria as de “terras de preto” ou “território negro” de forma a enfatizar a sua condição de coletividades camponesas, definida pelo compartilhamento de um território e de uma identidade (Schmitt, Turati & Carvalho, 2012).

Todavia, foi apenas a partir da Constituição de 1988 e do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCTs) que as discussões sobre os conceitos clássicos do que significam as comunidades remanescentes quilombolas vieram à tona. Esse artigo causou grande mobilização por parte dos quilombos existentes no país, o que surpreendeu os pesquisadores devido ao grande número de comunidades que passaram a reivindicar seus direitos. O Brasil desconhecia a existência de tantos territórios quilombolas e a injusta situação em que a maioria vivia sem os títulos definitivos das terras que ocuparam por décadas ou séculos.

A partir desses dispositivos legais foi que os pesquisadores propuseram na agenda de discussões a relativização e a adequação dos critérios para conceituar “quilombo”, de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente, reivindicam a titulação de suas terras, pudesse ser contemplada por esta categoria que uma vez demonstrada por meio de estudos, comprove uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem como a antiguidade da ocupação de suas terras, e ainda, suas “práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos de um determinado lugar” ( Andrade, 2001Andrade, M. C. de. (2001). Geografia do quilombo. In: Moura, C. Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió: EDUFAL. p. 75-86. , p. 76).

Dessa maneira, por muito tempo a invisibilidade e o silêncio foram as táticas dos quilombolas para resistirem sem serem percebidos ou incomodados pela sociedade hegemônica, e a partir da Constituição de 1988 eles começaram a se tornar cada vez mais perceptíveis. É interessante notar que muitas comunidades que se negavam a falar sobre sua origem, agora passaram a buscar as memórias perdidas de seu passado quilombola para poder atestar sua identidade e se afirmar como legítimos merecedores das políticas estabelecidas pelo governo federal ( Carneiro, 2010Carneiro, L. de O. (2010). Viajando por territórios Quilombolas da atualidade: reflexões sobre processos etnoterritoriais. Juiz de Fora: UFJF, p. 4. ). A partir desta perspectiva, o termo “requilombamento” ou “aquilombamento” surge com força entre as comunidades remanescentes. Ou seja, por meio da visibilidade gerada por meio dos dispositivos legais, muitas comunidades que haviam se esquecido, ou estavam se esquecendo de seu passado, passaram a empenhar vários esforços para resgatar a identidade quilombola.

Por isso, não temos como desconsiderar que o cotidiano está imbricado de questões políticas. Estas questões, da gestão do/no cotidiano englobam relações de poder e de resistência e a partir disso, utilizamos a abordagem histórica aliada à categoria investigativa na/da gestão do cotidiano da comunidade Paiol de Telha – Fundão. Vale ressaltar, que o cotidiano de resistência faz parte da realidade e da cosmologia das comunidades remanescentes quilombolas no Brasil, como mostram as pesquisas de Silva (2019Silva, E. J. F. (2019). Entre vivências e lembranças de uma Comunidade Quilombolas: história, memória e discurso. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, 229p. , 2020Silva, E. de J. F. da. (2020). Histórias de autoidentificação do quilombo Luizes: tensões, disputas e contradições. Gestão & Conexões, 9 (3), p. 147-167. ), Lima (2022)Lima, T. M. F. de (2022). Memórias, cotidiano, gestão ordinária e territorialização: um estudo na comunidade remanescente Quilombola Manoel Ciríaco dos Santos – Guaíra PR. (Dissertação de Mestrado). Maringá, Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-Graduação em Administração, 148 p. e Molina (2022)Molina, G. L. (2022). Práticas cotidianas e processo de territorialização-desterritorialização-reterritorialização (T-D-R): um estudo a partir das memórias das mulheres da comunidade remanescente Quilombola Adelaide Maria Trindade Batista – Palmas PR. (Dissertação de Mestrado). Maringá, Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-Graduação em Administração, 106 p. .

Isso porque o cotidiano destas comunidades é permeado por um constante batalhar, uma luta permanente para serem reconhecidas em suas práticas cotidianas e de organização diferentes do restante da população nacional. Por vezes, esta resistência se dá por meio de conflitos explícitos no processo por demarcação de terras (território no sentido material e econômico). Todavia, esta não foi a perspectiva adotada nesta pesquisa. Aqui, discutimos a perspectiva simbólica de território para a esta comunidade remanescente.

A gestão ordinária do/no cotidiano e o processo de terrritorilização

Como discutir o território de povos e comunidades tradicionais desarticulados do cotidiano? Barros e Carrieri (2015)Barros, A. & Carrieri, A. de P. (2015). O cotidiano e a história: construindo novos olhares na Administração. RAE-Revista de Administração de Empresas, n. 55, v.2, p. 151-161. afirmam que ao se realizar estudos neste campo permite-se abrir os horizontes para “potencialidades do cotidiano das pessoas comuns, dos praticantes, como forma de compreender os conhecimentos que são vivificados pelas práticas das pessoas: diversos sujeitos que exercem práticas e não têm suas ações reconhecidas” (p.28). Então, nessa pesquisa optamos pelo posicionamento epistemológico de Certeau (2012Certeau, M. de. (2012). A cultura no plural. 7. ed. Papirus: Campinas. , 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ) e Certeau, Giard e Mayol (2012), isso porque as possibilidades de microrresistência dos sujeitos se encontram mais presentes nestes autores e se constituem em um de seus focos de estudo quando abordam, por exemplo, as artes de fazer cotidianas.

Para Certeau, a ação cotidiana é uma reação à história única, representa uma reivindicação de espaço e de valor para a ação produzida pelos sujeitos no cotidiano, com a incorporação das práticas, estratégias e táticas de sobrevivência ( Vilas Boas & Ichikawa, 2020Vilas Boas, L. F. & Ichikawa, E. Y. (2020). Migrantes cortadores de cana-de-açúcar no Paraná: práticas cotidianas e processos de territorialização em meio ao trabalho precário. Cad. EBAPE.BR, v. 18, nº 1, Rio de Janeiro, Jan/Mar. ). Desta forma, quando se posiciona para escutar o cotidiano, Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. se propõe a encontrar o sujeito comum com seus atos, gestos e falas comuns. Este sujeito ele define como ordinário, como sendo uma espécie de poder constituído pelo acidente, pelo acaso, pela situação, pelo “tempo acidentado”, um poder sem um centro organizador, sem projeto, sem “conspiradores” instituídos, é um sujeito, para Certeau (2014, pCerteau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. , p. 57), “ordinário, herói anônimo, personagem disseminada e caminhante inumerável”.

Dessa forma, as “artes do fazer” no cotidiano, Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014, p.176) afirmam ser “o conhecimento heurístico, subjetivado, difícil de articular, baseado na experiência, em uma arte de fazer”. A partir dele surgem “maneiras de praticar”, uma “liberdade gazeteira das práticas”. Tais maneiras de praticar têm funcionamentos relativos a situações sociais ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ).

Convém ressaltar que os estudos de Certeau (2012)Certeau, M. de. (2012). A cultura no plural. 7. ed. Papirus: Campinas. sobre práticas cotidianas não são uma novidade no campo dos Estudos Organizacionais. Várias são as pesquisas que realizaram uma discussão sobre os conceitos de estratégias e táticas. Dentre elas: Saraiva e Carrieri (2014)Carrieri, A. de P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade. Minas Gerais, v. 1, n.1. , Honorato e Saraiva (2016)Honorato, B. E. F., Saraiva, L. A. S. (2016). Cidade, população em situação de rua e estudos organizacionais. Desenvolvimento em questão, 14(36), 158-186. , Cabaña e Ichikawa (2017), Ribeiro et al. (2019)Ribeiro, R. C. L., Ipiranga, A. S. R., Oliveira, F. F. T. D., Dias, A. D. (2019). Uma “estética de lances” de uma “heroína ordinária”: o reorganizar de práticas de resistências de uma artesã. Cadernos EBAPE. BR, 17, 590-606. , Correia, Costanzi e Carrieri (2020), Saraiva e Ipiranga (2020)Saraiva, L. A. S., Ipiranga, A. S. R. (2020). História, práticas sociais e gestão das/nas cidades. Ituiutaba: Barlavento. , Magalhães e Saraiva (2021)Magalhães, A. F., Saraiva, L. A. S. (2021). Superando a Dicotomia Sujeito x Coletividade nas Organizações. Ciências da Administração, 23(60), 105-117. , Caleffi e Ichikawa (2021), Costa Júnior, Chagas e Oliveira (2022), entre outras.

Estes estudos apontaram que para Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. , a estratégia se configura na medida em que se observa o outro de um lugar do qual se apresenta como algo visível e delimitado e se tem poder sobre ele. Nesta relação, a estratégia se refere ao cálculo, ocupando um espaço, algo próprio. Nesse sentido, a estratégia trata-se de uma prática que conta com um lugar próprio de imposição ( Cabana & Ichikawa, 2017Cabana, R. D. P. L. & Ichikawa, E. Y. (2017). As Identidades Fragmentadas no Cotidiano da Feira do Produtor de Maringá. Organizações & Sociedade, 24, 285-304. ; Correia, Costanzi & Carrieri, 2020).

Por sua vez, as táticas, são apresentadas pelo autor como ações desviacionistas, que geram efeitos imprevisíveis. “É a ausência do próprio, já que seu lugar é o lugar do outro” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. , p. 26). Assim, em oposição à estratégia – que visa produzir, mapear e impor – as táticas originam diferentes maneiras de fazer. Resultam das astúcias do homem ordinário e de sua capacidade inventiva, possibilitando aos sujeitos escaparem às empresas de controle e tomarem parte no jogo em questão. As táticas são práticas destinadas a subverter a ordem dominante. Ela depende de uma vigília para captar no voo suas possibilidades de ganho. E o que ganha não guarda ( Cabana & Ichikawa, 2017Cabana, R. D. P. L. & Ichikawa, E. Y. (2017). As Identidades Fragmentadas no Cotidiano da Feira do Produtor de Maringá. Organizações & Sociedade, 24, 285-304. ; Magalhães & Saraiva, 2021)Magalhães, A. F., Saraiva, L. A. S. (2021). Superando a Dicotomia Sujeito x Coletividade nas Organizações. Ciências da Administração, 23(60), 105-117. .

Entretanto, nesta relação na qual as estratégias e táticas ocorrem, não há possibilidade de se desvincular o lugar e o espaço. Neste sentido, o conceito de lugar para Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. pressupõe e delineia pontos fixos bem delimitados e estabelecidos, nos quais os elementos encontram-se dispostos uns ao lado dos outros. Nele (lugar) impera a lei do “próprio” no qual as estratégias se constituem e solidificam. Portanto, compreendemos ser o lugar uma configuração de posições, uma indicação de estabilidade, uma cristalização que produz o efeito de tempo retido, de um passado dado. Por sua vez, o espaço para Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. apresenta um conceito diferente de lugar. Nele (espaço) há “vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo” (p.202), ou seja, no espaço não há estabilidade de um próprio, sendo as táticas determinadas pela ausência dele. Assim, o espaço passa a ser compreendido como um lugar praticado, a ação dos sujeitos.

Desta forma, adotamos que a definição de espaço, proposta por Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. , preceitua este como sendo o lugar praticado por sujeitos históricos, uma vez que, em meio ao cotidiano, os sujeitos podem estabelecer intervenções de sustentação ou rupturas das tecnologias do poder, criando outros lugares que não os próprios em um espaço. Ou seja, o autor permite entender o espaço constituído por ações, delimitado temporalmente, podendo haver uma transgressão de fronteiras, fato este que transforma lugares em espaços.

Assim, realizar uma diferenciação entre espaço e lugar na proposta de Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. não compactua com a definição de território sendo apenas um espaço geográfico, mas sim, entendendo o território sendo concebido por meio da produção de espaços com interferência das ações humanas produzidas a partir de manifestações simbólicas mais do que lugares definidos e geometricamente articulados. No espaço, portanto, há possibilidades de articulação de diferentes espacialidades dentro dos limites de um lugar controlado.

Por sua vez, o lugar controlado é organizado por uma série de estratégias que controlam e garantem a estabilidade a um corpo dinâmico. Portanto, as práticas cotidianas permitem a ressignificação e apropriação de determinado espaço ( Vilas Boas & Ichikawa, 2020Vilas Boas, L. F. & Ichikawa, E. Y. (2020). Migrantes cortadores de cana-de-açúcar no Paraná: práticas cotidianas e processos de territorialização em meio ao trabalho precário. Cad. EBAPE.BR, v. 18, nº 1, Rio de Janeiro, Jan/Mar. ). É neste sentido nos propomos a trabalhar no cotidiano das pessoas comuns. A partir das relações sociais que estabelecem na gestão de seu cotidiano, como organizam suas práticas de sobrevivência e nelas estabelecem os usos e sentidos dos espaços e a rede de relações tecidas neste território.

Então, compreendendo que as práticas cotidianas se reinventam nos mais distintos contextos socioespaciais, surge o questionamento: como se dá esse processo de gestão do/no/com o cotidiano? As pesquisas que tomam por base as premissas da gestão ordinária se propõem em trabalhar com uma realidade centrada nas manifestações cotidianas. Para Mattos (2010Mattos, L. C. Administração é ciência ou arte? O que podemos aprender com este mal-entendido? (2010). RAE-Revista de Administração de Empresas, vol.49, n.3, p.349-360. , p.36) “as manifestações cotidianas podem ser entendidas como aquelas em que a comunidade civil se cria e recria em torno da produção e do desfrute dos bens de consumo”. Portanto, entendemos que a gestão do cotidiano leva em conta os processos interativos, representativos e simbólicos relacionados à experiência vivida. Tais aspectos, segundo autores como Mattos (2010)Mattos, L. C. Administração é ciência ou arte? O que podemos aprender com este mal-entendido? (2010). RAE-Revista de Administração de Empresas, vol.49, n.3, p.349-360. e Carrieri (2012)Carrieri, A. de P. (2012). A gestão ordinária. Tese (tese elaborada para concurso para professor titular) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. , são construídos nas ações cotidianas (de organizar, de gerir), fato este que os diferenciam e os tornam uma categoria social relevante para a Administração.

Nesta perspectiva, ao tomar por base as formas como “herdeiros” da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha – Fundão organizavam o seu cotidiano não seria considerada como gestão se este estudo adotasse a visão da gestão em sua conceituação tradicional (funcionalista). Todavia, ao adotar o posicionamento da gestão ordinária (do cotidiano) vivenciados pelos moradores da comunidade em seu contexto diário, permite dar visibilidade ao ato de “conjugar o verbo organizar em seu sentido existência” ( Holanda, 2011Holanda, L. (2011). Resistência e apropriação de práticas de management no organizar de coletivos da cultura popular. Tese (Doutorado em Administração). Universidade Federal de Pernambuco, Recife: Brasil. 246 p. , p. 26).

Sendo assim, assumir a gestão ordinária e a considerar como um processo relacional, intersubjetivo e construído no cotidiano é um desafio. Ou seja, considerar a intersubjetividade envolvida nos processos de gestão e como esta realidade é construída socialmente. Perpassa pela interação social, histórica e cotidiana dos sujeitos. Segundo Carrieri (2014)Carrieri, A. de P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade. Minas Gerais, v. 1, n.1. , a gestão ordinária configura-se como sendo uma prática social e cultural formada no cotidiano por uma pluralidade de códigos, referências, interesses pessoais e relacionais.

Complementar a isso, o estudo da gestão ordinária do/no cotidiano – da/na Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha Fundão – se fortalece na perspectiva que esta seja um “território” socialmente construído, em que sujeito e grupo se relacionam na construção das identidades, de modo a transformar o “espaço” em “lugar simbólico”, como diria Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. . Assim, como espaço vivido, o território se constrói, ao mesmo tempo, como um sistema e um símbolo. Um sistema porque se organiza e se hierarquiza para responder às necessidades e funções assumidas pelo grupo que o constitui. Um símbolo porque se forma em torno de polos geográficos representantes dos valores políticos e religiosos que trazem sua visão de mundo.

Portanto, nesta pesquisa, concebemos ser o território um conjunto das representações, dos comportamentos, dos investimentos, nos tempos e nos espaços sociais. É território de uso, isso porque se constitui a partir das práticas e das condições socioeconômicas de seus habitantes, um ambiente no qual se produz a identidade coletiva de uma comunidade. A noção de território, aqui estabelecida, se aproxima aos entendimentos de Correia de Andrade (2002)Correia de Andrade, M. (2002) Territorialidades, desterritorialidades, novas territorialidades: os limites do poder nacional e do poder local. In: Santos, M. & Souza, M. A. de et al. Território, Globalização e Fragmentação. São Paulo: ANPUR. e Soares (2007)Soares, A. M. de C. (2007). Territorialização e pobreza em Salvador–BA. Estudos Geográficos: Revista Eletrônica de Geografia, 4(2), p. 17-30. que o conceituam a partir da forma de apropriação de um determinado espaço, por um grupo social – que o transforma pelo uso que lhe destina, e imprime identidades dessa mesma comunidade.

Por que usamos aqui a explicitação de territorialização como processo e não apenas como um conceito? Porque para os povos e comunidades tradicionais, o conceito, principalmente de territorialização pode causar celeuma. Conforme estudos realizados por Oliveira (1998)Oliveira, J. P. (1998). Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, v. 4, n. 1, p. 47-77. em grupos indígenas, o conceito de territorialização se vinculava diretamente à presença colonialista que impôs uma nova relação com o território, resultando em transformações de diversos níveis na esfera sociocultural.

Na abordagem de Oliveira, territorialização não é um movimento por meio do qual um grupo humano se apropria de um determinado espaço transformando-o em um território, mas sim “a imposição de uma base territorial fixa, normalmente feita pelo Estado-nação com o objetivo de incorporar populações etnicamente diferenciadas” (Oliveira, 1998, p. 55-56). Já o processo de territorialização pode ser associado ao movimento étnico na América Latina. Para ele,

O que estou chamando aqui de processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo – nas colônias francesas seria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” – vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso). ( Oliveira, 1998Oliveira, J. P. (1998). Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, v. 4, n. 1, p. 47-77. , p. 56)

Como se vê, a principal preocupação de Oliveira (1998)Oliveira, J. P. (1998). Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, v. 4, n. 1, p. 47-77. foi evidenciar que a territorialização e o processo de territorialização têm implicações fundamentais nos fenômenos constitutivos das identidades étnicas e são frutos de um fato histórico, qual seja: a presença colonialista. Na perspectiva da chamada antropologia histórica, o autor adotou a noção de processo de territorialização como forma de se afastar da ideia de qualidade imanente presente na noção de territorialização ( Oliveira, 1998Oliveira, J. P. (1998). Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, v. 4, n. 1, p. 47-77. ).

Carrieri (2012)Carrieri, A. de P. (2012). A gestão ordinária. Tese (tese elaborada para concurso para professor titular) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. salienta que o território incorpora as projeções simbólicas à medida que o ser humano o preenche com suas vivências, com suas afetividades, e o organiza segundo suas caracterizações culturais. Então, entendemos haver, concomitantemente, um processo de territorialização do lugar que se transforma em espaço do território, nos quais memórias, vivências e projeções existenciais terminam por transformá-lo em lugar praticado.

Vale acrescentar ainda que a violência contra as comunidades quilombolas do Brasil tem em sua estrutura o racismo. Em outras palavras, o racismo é um elemento estruturante das relações de poder e na formação histórica do país (Moura, 1987). Neste processo, essas comunidades se configuram como símbolos da resistência e da insurgência negra, na sua origem, fundados como estratégia de enfrentamento ao sistema escravocrata, que perdura em sua essência até os dias atuais ( Buti, 2009Buti, R. P. (2009). A-cerca do pertencimento: percursos da Comunidade Invernada Paiol de Telha em um contexto de reivindicação de terra. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. ). Assim, a sociedade escravista jamais aceitou o “fenômeno do quilombo”.

Sendo assim, compactuamos que a violência contra os povos quilombolas está estruturada não somente no racismo institucional, mas também por meio do racismo epistêmico e econômico que considera a vida negra descartável e, portanto, não humana. Tanto que o Brasil ainda não conseguiu reparar a dívida histórica com os povos quilombolas e pessoas escravizadas dos pontos de vista político e de direitos. Praticamente todas as comunidades quilombolas estabelecidas no processo de abolição da escravidão e após 1888 viveram e ainda vivem com ações que visam retirá-los de suas terras. Esse processo de expulsão das terras está relacionado com uma pressão econômica ligada à expansão do que se convencionou chamar de agronegócio, assim como está impregnada de racismo ( Hartung, 2004Hartung, M. F. (2004). O sangue e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol de Telha-PR. Florianópolis: NUER/UFSC. ).

Os caminhos percorridos na pesquisa

A investigação realizada possui natureza essencialmente qualitativa, isso porque a prioridade foi ouvir as narrativas das lideranças da comunidade por meio de uma abordagem que permitisse uma proximidade entre pesquisadores e pesquisados. Concordamos que essa proximidade nos permitiu um maior contato com as memórias dos sujeitos de pesquisa. Essa abordagem “propõe uma proximidade de forma que o pesquisador possa compreender as subjetividades do contexto e, a partir disso, estabelecer uma relação de reciprocidade mútua com os pesquisados” ( Academy of Management Journal, 2011Academy of Management Journal (From the Editors). (2011). The coming of age for qualitative research: embracing the diversity of qualitative methods. Academy of Management Journal, v. 54, n.2, p.233-237. , p. 235).

Sendo assim, para alcançar o objetivo proposto utilizamos fontes bibliográficas, documentais e de campo, sendo realizadas de forma simultânea. Com esta escolha, nossas possibilidades em compreender as especificidades da constituição, desenvolvimento e trajetória histórica, social e cultural da referida comunidade foram mais próximas (quanto possível) a esta realidade. Neste sentido, utilizamos da abordagem histórica não como sinônimo de passado, mas sim, partindo do pressuposto que passado e presente são significados e significam um ao outro, aspectos estes que nos permitiram apreender a gestão do/no cotidiano desta comunidade. Ou seja, a perspectiva adotada foi aquela na qual presente e passado se entrelaçam e se significam.

Dessa forma, a partir do objetivo delimitado na pesquisa e dentro das possibilidades que os moradores nos autorizaram, elegemos trabalhar em conjunto com fontes orais e escritas. Foi neste sentido que optamos pela História Oral como direcionamento na pesquisa pois esta retoma a “percepção do passado, pois este tem continuidade hoje (...) e é isso que dá sentido social a vida dos depoentes mantendo um compromisso com o contexto social” ( Ichikawa & Santos, 2010Ichikawa, E. Y. & Santos, L. W. dos. (2010). Contribuições da História Oral à Pesquisa Organizacional. In: Godoy, C. K et al. Pesquisa qualitativa em Estudos Organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. São Paulo: Saraiva. , p. 182).

Para tanto, devido ao fato das lideranças se tratar de pessoas idosas (anciãos) e analfabetas, e por entendermos que as práticas cotidianas nas comunidades remanescentes quilombolas são transmitidas de geração em geração por meio da oralidade, utilizamos a história oral temática durante o processo de coleta de dados para (re)construção de suas memórias. Portanto, as memórias foram a fonte de dados principal. Não as memórias compreendidas como um baú, as quais estão guardadas – e de onde se pode sacar a qualquer tempo e contexto – informações sobre pessoas e acontecimentos passados. Muito pelo contrário, as memórias como resultantes em possibilidade de uma relação: aquela entre quem fala e as condições em que fala, o que inclui para quem e para que fala.

A partir disso, foi por meio das inserções em campo, que as memórias e narrativas orais das lideranças (anciãs) fizeram parte de uma construção para se compreender as experiências que foram vividas, narradas, memorizadas e rememoradas. Afinal, como afirma Thompson (1998Thompson, P. (1998). A voz do passado: história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. , p. 44), a história oral “traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade” o que dá a noção de pertencimento ao sujeito.

Durante a pesquisa de campo utilizamos fontes documentais para coleta de informações e dados, além das entrevistas temáticas, conversas informais, observações, fotografias e as narrativas construídas não somente a partir das memórias desses sujeitos, mas também sobre a história da comunidade para compor os resultados. Ressaltamos que para realizar as entrevistas, além do estabelecimento de aspectos a serem falados, procuramos adotar postura como pesquisadores defendida por Certeau (2012)Certeau, M. de. (2012). A cultura no plural. 7. ed. Papirus: Campinas. . Ou seja, estarmos abertos ao encontro com o outro, não nos limitando a oferecer aos sujeitos entrevistados uma lista de questões previamente definidas.

Dessa forma, selecionamos os entrevistados dando prioridade às lideranças que moraram na comunidade antes da expulsão ocorrida em 1974, tendo em vista que estes estiveram presentes antes e durante ao processo de expropriação das terras. Durante nossas inserções em campo, observamos que “os atuais moradores” não têm sequer ideia das práticas sociais de seus antepassados. Os idosos (anciãos) estão morrendo e com eles as vivências da “história do Fundão, não registrada e viva apenas na sua memória contada” (Notas de Campo, 2019). Esta “memória contada” se perderá por ocasião de seu falecimento.

Sendo assim, levando em conta estes critérios: a) lideranças que moraram na comunidade antes da expulsão e retornaram atualmente; b) preocupação sobre “manter vivas” as práticas de seus antepassados, diagnosticamos para a realização das entrevistas um levantamento prévio de quais lideranças (anciãos) que dispúnhamos para a pesquisa de campo. Nesta composição do quadro de narradores mapeamos dez lideranças que fizeram parte desse intenso processo de violências sofridas. Destes, um não concordou em participar e um não pôde participar por problemas de saúde. Sendo assim, os dados foram coletados com 8 (oito) participantes até março de 2020 (antes da pandemia Sars-Cov), sendo estas efetuadas conforme agendamento e disponibilidade dos entrevistados.

Os entrevistados estavam na faixa etária de 65 (sessenta e cinco) a 104 (cento e quatro) anos, sendo 6 (seis) do sexo feminino e 2 (dois) do sexo masculino. Destes, 4 (quatro) – Lúcia, Joana, Izabel e Maria - moravam no Fundão antes da expulsão e 4 (quatro) – Carlos, Francisca, Maria e José - já moravam em cidades e fazendas vizinhas como forma de subsistência. Também, por questão de preservação ética dos sujeitos da pesquisa, os nomes usados nas entrevistas são fictícios. Consoante a isso, cada nome usado foi escolhido pelo(a) próprio(a) entrevistado(a). Ou seja, antes de realizar a entrevista explicávamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e informávamos sobre o sigilo da pesquisa. Após transcrição dos dados coletados em campo, realizamos o processo analítico, principalmente das entrevistas, a partir do que direciona Bom Meihy (2006), Whitaker (2000)Whitaker, D. C. A. (2000). Análise de entrevistas em pesquisa com história de vida. Caderno CERU, v.2, n. 11, p. 147-158. , Barros e Lopes (2014)Barros, V. A. de & Lopes, F. T. (2014). Considerações sobre a pesquisa em história de vida. In: Souza, E. M. De. Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Dados Eletrônicos. Vitória: EDUFES. . Whitaker (2000)Whitaker, D. C. A. (2000). Análise de entrevistas em pesquisa com história de vida. Caderno CERU, v.2, n. 11, p. 147-158. considera que o momento de transcrição da entrevista e o momento da escolha da teoria que ilumina a análise do material são os pontos cruciais da análise da história oral.

Neste formato, após a transcrição, ao sistematizar as narrativas a respeito da história oral da gestão do/no cotidiano, obtivemos a configuração de enredos que nos forneceram, conforme Boje (2000)Boje, D. M. (2000). Narrative methods for organizational and communication research. New Mexico State University: Sage. , ao menos uma parte do mosaico que corresponde, no caso em estudo, do cotidiano e do processo de territorialização desta comunidade. Todo esse processo de ajuste para a utilização das narrativas seguiu as recomendações de Barros e Lopes (2014)Barros, V. A. de & Lopes, F. T. (2014). Considerações sobre a pesquisa em história de vida. In: Souza, E. M. De. Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Dados Eletrônicos. Vitória: EDUFES. , que argumentam que o processo de se contar histórias e narrativas deve envolver uma dinâmica de adequação às necessidades e especificidades de cada pesquisa.

Assim, efetuou-se a categorização a partir das palavras eixo das entrevistas, reordenando as informações com base no referencial teórico da pesquisa, a princípio por meio da “codificação axial”. A partir dessa etapa, identificamos as situações, ações e interações, estabelecendo uma lógica de análise por meio de fragmentos narrativos. Ou seja, esse percurso buscou incorporar de forma dinâmica os elementos trazidos pelas memórias dos anciãos. Após esse percurso, desenvolvemos a interpretação das trajetórias, com vistas a reconstruir as histórias simbólicas da comunidade em estudo, de forma a articular todos os elementos identificados no tempo e no espaço, discorrendo acerca dos diferentes ritmos, estratégias, conjunturas, valores e significados, ordenando a totalidade do material coletado não somente em cada trilha, mas na sua relação com os outros.

Desta forma, na construção dos fragmentos narrativos utilizamos de forma conjunta as fontes de dados coletadas de forma dialógica e negociada. Nossa intenção não foi apresentar uma história linear e cronológica, como já ressaltamos. Todavia, organizamos nossa análise de uma forma sequencial. Ressaltamos, porém, que se trata de uma análise fragmentada da realidade, até porque o processo de territorialização é complexo e interconectado com a realidade cotidiana.

Invernada Paiol de Telha – Fundão: a primeira Comunidade Remanescente Quilombola do Paraná

De acordo com Hartung, Santos e Butti (2008) a área do Fundão reivindicada (e hoje recuperada em parte) pela comunidade situa-se no município de Reserva do Iguaçu, localizada no Centro-Sul paranaense e compõe a Microrregião de Guarapuava, tendo como municípios limítrofes Pinhão, Candói, Foz do Jordão, Mangueirinha, Coronel Domingos Soares e Bituruna. Tais municípios eram antigos pousos de tropeiros vindos do Rio Grande do Sul com destino a São Paulo.

Por sua vez, dados de 2017, retirados do website da Fundação Cultural dos Palmares, no Paraná existem aproximadamente 38 comunidades quilombolas sendo 36 já certificadas. Na região Centro-sul do estado, próximo ao município de Guarapuava, apenas a comunidade quilombola “Invernada Paiol de Telha - Fundão” é reconhecida. Todavia, mesmo sendo uma comunidade tradicional reconhecida, quer seja por outras comunidades remanescentes quilombolas, quer seja por suas intensas mobilizações, sua representatividade não impediu que um processo de desapropriação acontecesse e levasse à divisão de seus membros em grupos geograficamente separados.

Para Berg (2014)Berg, J. (2014). Julgamento moral em meninas Quilombola: um estudo educacional da comunidade Invernada Paiol de Telha. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná. Paraná. , a história dessa comunidade quilombola não foi configurada a partir da “imagem de negros fujões” (p. 42), mas sim, a partir de terras que foram doadas legalmente pela “senhora” Balbina Francisca de Siqueira, aos seus treze “escravos libertos”, em 1860, "a invernada denominada Paiol de Telha - Fundão" (p. 28). A partilha, embora tenha sido feita após a abertura do inventário de Balbina, no ano de 1866, foi uma ação que remetia ao testamento elaborado por seu marido Manoel Ferreira dos Santos, falecido no ano de 1852.

Porém, os herdeiros legatários nunca tomaram posse efetivamente dos três mil alqueires de terras doados a eles por Dona Balbina. Podemos dizer que “desde o sempre” - tomando como marco inicial os anos que sucederam a partilha das terras – os herdeiros da Invernada sofreram processos de espoliação. A ausência e imprecisão de documentos que atestem os limites da área herdada foram preenchidas por narrativas que relatam histórias nas quais, Pedro Lustosa de Siqueira, sobrinho de Balbina, em 1866, teria manipulado os limites das terras a serem entregues ( Hartung, 2004Hartung, M. F. (2004). O sangue e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol de Telha-PR. Florianópolis: NUER/UFSC. ). Isso quer dizer que desde a morte de Dona Balbina, até a posse das terras legalmente doadas, os legatários aguardaram seis anos para que dela pudessem sobreviver, todavia, sem ter acesso à sua totalidade.

A partir daí, as terras do Paiol de Telha – Fundão foram alvo de inúmeras contestações e apropriações indevidas por familiares de dona Balbina, grileiros e pela desapropriação de terras efetuada pelo governo do estado do Paraná na década de 1950, quando deu início ao processo de imigração alemã na região de Guarapuava. Desde então, ao longo de todo o século XX, mais especificamente entre 1970-1974 as terras estiveram sob disputa judicial intensa. Nesta disputa, os herdeiros dos legatários contestavam na justiça a posse das terras. Em 1974, estas foram vendidas e lavradas em uma escritura pública em nome da Cooperativa Agrária Agroindustrial no processo de colonização do Paraná. Foi neste período que os herdeiros legatários da “Invernada Paiol de Telha - Fundão” foram obrigados a sair das terras, fato este que os separou em grupos.

Após a expulsão das terras, os moradores da área quilombola foram obrigados a se dispersarem por municípios vizinhos (Guarapuava, Pinhão e Reserva do Iguaçu), distribuídos nas áreas urbanas (dos três municípios). Dessa forma, por quarenta anos, essa comunidade esteve dividida em quatro núcleos distintos: um grupo de famílias que esteve acampado no “barranco” da estrada que liga o município de Reserva do Iguaçu ao Pinhão (Núcleo Barranco), próximo às terras reivindicadas; outro grupo está no município de Guarapuava (Núcleo Guarapuava); outro no município de Pinhão (Núcleo Pinhão); e o último grupo está assentando em Paiol de Telha na Colônia Socorro, Distrito de Entre Rios, Guarapuava (Núcleo de Assentamento). Fato este nos que permite inferir que, o que concede a essa população, o pertencimento negro não é sua unidade territorial, e sim a sua memória e o reconhecimento de sua ancestralidade comum (Butti 2009; Felipe 2015Felipe, D. A. (2015). Patrimônio cultural negro do Paraná: a comunidade Quilombola Paiol de Telha. Anais do VII Congresso Internacional de História, Maringá, 2015. ).

Como exposto até aqui, observamos que o processo de desestruturação sócio territorial foi marcante. Ou seja, geograficamente os núcleos da comunidade quilombola “Invernada Paiol de Telha - Fundão” foram separados em três municípios, mas culturalmente e simbolicamente ligados pela “luta” (reterritorialização) da reconquista de suas terras. Unidos neste pertencimento, a partir da década de 1990, com o apoio da Pastoral da Terra e da Assessoria Jurídica e de Pesquisa Antropológica do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Inter Étnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), iniciou-se o processo organizativo do grupo com a criação da Associação Heleodoro Pró-reintegração da Invernada Paiol de Telha - Fundão, que passou a coordenar as ações perante a Justiça e os procedimentos de adequação do grupo ao Artigo 68 Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

Segundo Buti (2009)Buti, R. P. (2009). A-cerca do pertencimento: percursos da Comunidade Invernada Paiol de Telha em um contexto de reivindicação de terra. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. , com a criação da Associação Heleodoro, o grupo passou a congregar os membros que estavam residindo fora das cidades de Guarapuava e Pinhão, que concentravam a maioria das famílias da Invernada, para se unirem e se organizarem enquanto grupo, e juntos poderem reaver as terras herdadas de Balbina.

No final de 1998 foi criado o núcleo Assentamento Invernada Paiol de Telha pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e dos demais Núcleos (Guarapuava, Pinhão e Barranco), com suas respectivas Associações. Por isso, a partir de 2004 este núcleo Assentamento, permitiu uma estrutura administrativa que possibilitou buscar como último recurso para reaver o território herdado de seus antepassados, o seu reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, conforme disposto no Artigo 68 ADCT e regulamentado pelo Decreto nº 4.887/2003.

Com isso, em 2005 houve o reconhecimento e a certificação do Paiol de Telha – Fundão como Comunidade Remanescente de Quilombolas junto à Fundação Cultural Palmares e isso permitiu a abertura do processo administrativo junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para a titulação do antigo território da Invernada, como território quilombola, ainda em trâmite. Além disso, a construção de uma identidade quilombola permitiu ao grupo enfatizar sua condição de coletividade camponesa na região, bem como, a antiguidade da ocupação de suas terras e de seus modos de vida característicos, definidos não só pelo compartilhamento de um território, mas de uma identidade construída e reinterpretada ( Carraro, 2016Carraro, A. (2016). A Invernada Paiol de Telha e a Nova Legislação Quilombola (1975-2015). Dissertação. (Programa de Pós-Graduação em História). Universidade Estadual de Ponta Grossa. Paraná. ).

Finalmente, em 2015, por ocasião da assinatura Decreto nº 15 de 22/7/2015 referente à desapropriação das terras do Fundão, área esta que corresponde a 1.460,4374 hectares (mil, quatrocentos e sessenta hectares, e quarenta e três ares e, setenta e quatro centiares), o que equivale ao território que a Comunidade Invernada Paiol de Telha ocupou antes de sua saída em 1974 e que estava sob domínio até então da Cooperativa Agrária.

A partir desse decreto, 40 famílias que se encontravam residindo num acampamento às margens da Rodovia PR 469, denominado “barranco”, puderam ocupar uma área de aproximadamente 90 alqueires que passa a ser denominado Território Quilombola Invernada Paiol de Telha – Fundão que, todavia, ainda não havia sido devidamente titulado. Essa parcela dessa titulação ocorreu apenas no mês de abril de 2019. Ou seja, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) emitiu o título de parte do território do Quilombo Invernada Paiol de Telha, sendo então esta, a primeira comunidade quilombola a ser titulada no Paraná dando um prazo de até cinco anos para que as 300 famílias que ainda se encontram residindo em Guarapuava, Pinhão e na Colônia Socorro pudessem retornar para suas terras de direito.

Terras de direito: a gestão ordinária do cotidiano e a territorialização no Fundão

De acordo com Bonnemaison e Cambrèzy (1996)Bonnemaison, J. & Cambrèzy, L. (1996). Le lien territorial: entre frontières et identités. Géographies et Cultures. Le Territoire, n. 20. Paris: L`Harmattan. o território é encarnado pela cultura para que se fortaleça e se expresse a relação simbólica existente entre cultura e o espaço. Neste sentido, os autores desenvolvem essa visão para pensar o território como um espaço investido de valores não somente materiais, mas, ao mesmo tempo, simbólicos, afetivos, étnicos, espirituais, comportamentais, corporais, dentre outros.

Para Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. , apesar de as ciências sociais possuírem a capacidade de estudar as tradições, a linguagem, os símbolos, a arte e os artigos de troca que compõem uma cultura, lhes faltam formalismos para examinar as maneiras com que as pessoas se reapropriam destas práticas em situações cotidianas. Por outro lado, o autor considera que toda atividade humana pode ser cultura, mas ela não o é necessariamente ou não é forçosamente reconhecida como tal, pois, “para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado par aquele que as realiza” (p.142).

O Fundão é um território de significação comum partilhada pelo grupo no espaço cotidiano passa a ser locus no qual se elaboram os saberes que caracterizam essa comunidade etnicamente diferenciada. Os saberes são formas “experienciais da vida” ( Escobar, 2005Escobar, A. (2005). O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós- desenvolvimento? In: Lander, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e as ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Colección Sur, CLACSO, p.133-168. , p.15), momentos das práticas, da significação e compreensão do mundo que se fazem no espaço e no território afetivo e simbólico da temporalidade cotidiana. Neste sentido, discutimos neste artigo o “viver no Fundão antes da desterritorialização”.

Morar no Fundão: práticas cotidianas de trabalho e alimentação

Morar em algum lugar é mais do que habitar uma casa localizada num determinando ponto geográfico. É, sobretudo, sentir-se parte daquele ambiente físico, o qual se constitui num universo de significados seja de pertença, de habitabilidade ou de territorialidade (Fischer, s/d). Tais significados se referem a um processo no qual as pessoas transformam os lugares em algo pessoal, exercendo sobre este um domínio físico e social por meio de atividades que indicam seu repertório pessoal e coletivo. Este modo de agir sobre o lugar se dá a partir das experiências de vida e das aquisições culturais, cujo repertório define para o indivíduo um senso de pertencimento ao lugar e compromisso social (Calegare e Higuchi, 2013). Neste sentido, nas narrativas das lideranças, quando perguntadas sobre como era viver no Fundão tem-se essa territorialidade:

001: Nossa casa sempre estava cheia de gente. Tinha muita comida boa . Cada um trazia um pouco e virava uma festa. A água era limpa. A comida sem veneno. Tinha mato, nós plantávamos, mas não poluía como hoje. Meu pai ensinou a mim e meus irmãos a respeitar a natureza, sem natureza morre tudo, morre nós, morre os bichos, morre a plantação. ‘Vamos plantar de acordo com a lua e com o que a terra dá, dizia ele’ (Lúcia, entrevistada 1, 2020, grifos nossos)

002: Era boa a vida, mesmo às vezes não tendo muita comida. Nunca passei fome no Fundão, porque nós plantávamos lavoura, batata doce, milho, às vezes não tinha carne, mas nós fazíamos quirera e não passava fome (Francisca, entrevistada 6, 2020, grifos nossos)

Nos relatos percebemos, num primeiro momento, que a vivência no Fundão conforme Lúcia (001) e Francisca (002) era carregada de afetividade e sociabilidade. Elas destacam com muita nitidez que a apropriação do espaço por meio da vivência comunitária, dava sentidos e significados às atividades diárias de convivência fazendo parte da rotina cotidiana. Neste contexto, “comida” era um fator agregador naquele cotidiano e aproximava as pessoas da comunidade Fundão. Portanto, por meio das narrativas, entendemos ser “o comer” para os moradores do Fundão uma prática que englobava a cultura alimentar da comunidade na época. Parte-se do pressuposto e concorda-se que,

O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças nos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois se constitui de atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. Dessa forma, uma comunidade pode manifestar na comida emoções, sistemas de pertinências, significados, relações sociais e sua identidade coletiva. ( Santos, 2011Santos, C. R. A. dos. (2011). A comida como lugar de história: as dimensões do gosto. HISTÓRIA: Questões & Debates. Curitiba, n. 54, jan/jun, Ed. UFPR, pp. 103-124. , p. 108)

Consoante à cultura alimentar, Lúcia (001) destaca a água sem poluição, haver mata, o respeito à natureza, plantio integrado. Tais narrativas demonstram que o Fundão, naquela época, centrava a produção cotidiana de sua existência material, afetiva e simbólica numa relação intrínseca com a natureza. Assim, neste diálogo com a natureza, aquele “fazer” cotidiano do Fundão, alimentava os “saberes”. Tratava-se de cosmologia própria orientando o melhor momento para os plantios e para o extrativismo, buscando a otimização do que o meio poderia oferecer sendo considerado então “saberes construídos” naquele processo específico de territorialização, que garantia a reprodução do grupo sendo transmitidos de geração em geração trazendo em sua essência uma territorialidade específica.

Por sua vez, quando perguntados sobre os principais meios de sobrevivência que eram exercidos no Fundão, as narrativas trouxeram como perspectiva central a agricultura de subsistência (policultura) e a criação de gado em “terras soltas”. Vejamos,

003: Nosso compromisso era plantar, colher e viver. Tinha também alguns animais como porcos, além do gado nas terras que eram soltas do Fundão. Essa terra era solta , era terra boa, podia plantar o que quisesse plantar. Dava de tudo, botava uma roça, plantava feijão, batata, plantio de tudo e dava muito. (Carlos, entrevistado 2, 2020, grifos nossos)

004: A gente tinha a despensa cheia de queijos preparados, e plantava de tudo nas roças de toco de mato , tinha serviço, mas também tinha tudo. Nossa, era muito boa a batata, a mandioca, o leite, a carne de porco no tacho. (Maria, entrevistada 4, 2020, grifos nossos)

De acordo com os fragmentos de Carlos (003) e Maria (004), os moradores do Fundão se estabeleciam neste território como trabalhadores rurais, cuja produção se destinava primordialmente ao sustento de suas famílias. Neste território, a “roça” foi apontada como um elemento marcante nas memórias contadas e refletem o modo de vida da comunidade na época. Ou seja, as práticas laborais, principalmente aquelas ligadas à agricultura, que envolvem a sobrevivência material de um grupo, são um indicativo da tradição “roceira” que atravessa a existência do quilombo.

Assim, percebemos ser a agricultura de subsistência, herança ancestral, uma marca da economia da comunidade. Aliado a esta herança que se centrava no uso coletivo do território, por parte dos remanescentes tinha-se a criação extensiva de gado e outros animais. Ou seja, o gado era criado solto, assim como outras criações, recebendo somente a marcação de cada proprietário, alimentando-se com capim nativo dos campos do Fundão (Notas de Campo, 2020). Segundo Berno, essa forma organizativa emergiu na agricultura como “busca de alternativa de diferentes segmentos camponeses para assegurarem suas condições materiais de existência, sobretudo a partir da desagregação do sistema colonial” (Berno, 1989, p. 38).

Dessa maneira, pactuamos que esta forma de gerir (terras soltas) na época tratava-se de uma “tática” que posteriormente se transformou em “estratégia” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ) da comunidade, tendo em vista que, várias outras comunidades camponesas da época a usavam em relação à “invasão de divisas” que os fazendeiros locais executavam como forma de “agregar mais terra”. Esta estratégia vai ao encontro do que Berno em sua pesquisa com índios, camponeses e quilombolas também percebeu,

Tais formas se impuseram não somente enquanto necessidade produtiva, já que para abrir roçados e dominar áreas de mata e antigas capoeiras uma só unidade familiar era insuficiente, mas, sobretudo, por razões políticas de autopreservação. Os sistemas de uso comum tornaram-se essenciais para estreitar vínculos e forjar uma coesão capaz , de certo modo, de garantir o livre acesso à terra frente aos mais poderosos. ( Berno, 1989Berno, A. W. A. (1989). Terras de Preto, Terras de Santo, Terras de Índio. Uso comum e conflito. Hebette, J & Castro, E. M. (Orgs). Na Trilha dos Grandes Projetos. NAEA/UFPA, Belém. , p.172-73)

Por sua vez, Maria (004) cita “roças de toco de mato. Ela relatou que as “roças de toco mato” serviam para o plantio de feijão, milho, abóbora, amendoim e mandioca e eram formadas por família, em um sistema de rodízio que garantia a regeneração da mata nativa nas pequenas clareiras abertas na vegetação. Já as “roças de quintal” eram aquelas que se configuravam perto das casas, ou à sombra das árvores do quintal. Essas roças se beneficiavam dos resíduos das casas, dos dejetos dos animais que fertilizavam as terras (Notas de Campo, 2020). As “roças de quintal” segundo Carlos,

005: Eram um serviço das mulheres, ou seja, elas plantavam, colhiam, adubavam, tudo aquilo que fosse para ser usado na casa, como por exemplo, temperos, ervas medicinais, pequenas hortaliças, um pouco de mandioca, um pouco de batata. (Carlos, entrevistado 2, 2020)

Por meio desses fragmentos narrativos percebemos que as atividades agropecuárias no território eram diversificadas e desenvolvidas em conjunto com a agricultura. Sendo assim, no Fundão, a forma de gerir a economia, transformando a natureza para dela retirar o seu sustento, gerando saberes múltiplos e inventando um modo de vida era prática comum. Neste sentido, é perceptível a ligação com a natureza e aquilo que ela oferece, sendo essa uma forma de manter o seu sustento e da família. Para tanto, perguntamos sobre de que maneira e com quais artefatos os moradores organizavam seu trabalho cotidiano.

Eles relataram:

006: Plantava coisa mais linda, família tudo unida, era um respeito, um ajudava o outro, se nós tínhamos uma roça para plantar e pra colher e gente ia com foice, facão, enxada, matraca. As mulheres não ficavam em casa, mesmo com criança pequena iam todas juntas carpir, arrancar mato, mulher não ficava em casa. (Izabel, entrevistada 5, 2020, grifos nossos)

007: Tinha um calendário para plantar a roça . Fases da Lua, como exemplo, os alimentos que produzem embaixo da terra, como raízes e tubérculos, devem ser plantados no claro , da lua nova à lua cheia; os alimentos que produzem em cima da terra devem ser plantados no escuro , quando a lua está a caminho da minguante até a nova: No dia a dia a gente usava muito o pilão, o cambão e a enxada. Na cozinha o fogão a lenha (Joana, entrevistada 3, 2020, grifos nossos)

A partir das narrativas de Izabel (006) e de Joana (007) visualizamos a divisão do trabalho, no plantio de roças, se dava coletivamente, com o auxílio de todos – homens e mulheres. Já, Carlos acrescenta como se dava essa divisão do trabalho entre homens e mulheres:

008: As tarefas referentes aos alimentos eram distribuídas. Os homens geralmente tiravam as vísceras dos animais quando eram abatidos para comer, as mulheres os limpavam e cozinhavam. As mulheres trabalhavam muito fazendo pão no forno de barro com as casas vizinhas e socando pilão Todos trabalhavam na roça, e na roça o trabalho era comum, cortando mato, preparando a terra, semeando, limpando a roça, ‘carpindo rama’. (Carlos, entrevistado 2, 2020, grifos nossos)

Desta forma, as narrativas 006, 007 e 008 salientam que os moradores utilizavam como instrumentos fundamentais no trabalho e cultivo da terra, a foice, o machado, enxadão, enxada, facão, cambão ou vara (instrumento de madeira utilizado para bater o feijão), matraca (instrumento utilizado para a semeadura das sementes), pilão (para socar café), fogão a lenha, dentre outros.

Vale acrescentar, que os anciãos nos contaram que a madeira com telhas de barro ou de palha eram utilizadas como principal matéria-prima da construção das moradias. Somado a isso, a madeira nativa da floresta era fonte para fabricação dos utensílios domésticos como a prensa, o parafuso, o cocho e o pilão, o que demonstra que havia no Fundão uma grande familiaridade local com o “fazer” de trabalhos em madeira (Notas de Campo, 2020). Trazemos a ilustração a seguir como exemplificação das casas na época:

Figura 1
:

Além disso, Carlos nos relatou que inicialmente as terras para cultivo eram escolhidas na mata e consideradas um bem comum a todos os moradores e que estes tratavam essa terra da mata e sua fertilidade como um bem que devia ser garantido para a reprodução das gerações. Fato este que não se sustentou com a expulsão (desterritorialização) sofrida em 1974 (Notas de Campo, 2020).

Carlos também nos explicou a diferença entre a “terra cozida” e a “terra crua”, resgatando em sua memória a tradicional prática da coivara . Ou seja, no Fundão vários moradores “passavam fogo” na terra e a queima da matéria orgânica a transformava em cinzas e tornava mais fácil e rápida a absorção dos nutrientes de origem mineral, favorecendo a produção agrícola num primeiro momento. Quando havia disponibilidade de terras, esta prática era realizada em intervalos intercalados pelo descanso ou execução, o que garantia o retorno mineral e da vida biológica ao solo (Notas de Campo, 2020).

De acordo com Américo e França Dias (2019)Américo, M. C. & França Dias, L. M. de. (2019). Conhecimentos tradicionais Quilombolas: reflexões críticas em defesa da vida coletiva. Cadernos Cenpec| Nova série, v. 9, n. 1. , o manejo do fogo, plantio e posterior abandono da área após a colheita, promovia a regeneração da floresta. Nesse sistema, as cinzas ajudam na correção do solo e os restos de vegetação, como galhos mais grossos, entram em decomposição, contribuindo para a adubação e fertilização das sementes.

A partir do exposto, compreendemos que o processo de territorialização, de acordo com a memória dos anciãos, pressupunha uma organização coletiva que vinculava as relações de trabalho e alimentação sendo partilhadas pela terra por meio da policultura (agricultura de subsistência) convivendo com a pecuária em pequena escala e a aliada ao extrativismo. A terra neste sentido assumia um padrão de uso coletivo (simbólico e econômico), tendo as áreas de campo utilizadas para o pastoreio natural em consonância com o extrativismo da madeira com o plantio de “roças” para a subsistência.

Todavia, estas não foram as únicas práticas cotidianas resgatadas nas memórias dos anciãos. A seguir apresentamos as práticas de cooperação e religiosidade que também faziam parte desse processo de territorialização.

Solidariedade, fé e lazer no Fundão: cooperação, religiosidade e festividade

De acordo com Pidner (2011)Pidner, F. S. (2011). Comunidades tradicionais: os saberes locais para além das cercas da ciência moderna. In: V Simpósio Internacional de Geografia Agrária. Belém-PA: Anais do V SINGA. , um dos traços característicos das comunidades tradicionais são a solidariedade como princípio organizativo. Neste caso, o “mutirão”, conhecido popularmente na região onde se localiza o Fundão como “puxirão”, é um exemplo destas práticas de cooperação, que podem ser solicitadas por quem está precisando ou mesmo oferecida pelos vizinhos. Assim, quando há um “puxirão” de pessoas para realizar determinado trabalho não há remuneração, todavia, a relação de solidariedade é selada pelo compromisso moral do beneficiário em corresponder aos pedidos de auxílio por parte daqueles que o ajudaram e finalizada com um aspecto festivo. Vejamos,

009: A gente fazia muito puxirão . Nós (as mulheres) ficávamos fazendo comida para o povo que ia pra roça, eles [os homens] iam trabalhar de dia e aí de noite depois daquele dia, eles faziam a festa pra aquele povo, era muito bonito, todo mundo dançava, todo mundo comia, mas ninguém cobrava um do outro, todo mundo se ajudava. Eram todos grupos. (Maria, entrevistada 4, 2020, grifos nossos)

010: O povo se juntava para trabalhar, o que antes nós chamávamos de puxirão hoje não é mais assim que se fala, se fala mutirão , eles já diziam puxirão. (Joana, entrevistada 3, 2020, grifos nossos)

011: Nós organizávamos assim: os homens iam para roça e as mulheres ficavam na casa fazendo comida: almoço e preparativos para a festa a noite. No almoço, as mulheres levavam todas as panelas para a roça. (José, entrevistado 8, 2020, grifos nossos)

De acordo com Maria (009), Joana (010) e José (011), a estrutura comunitária de cooperação estava presente entre os moradores. Consoante a isso, essas narrativas trazem que o “puxirão” além de ser uma tática de cooperação (pois se deslocava contra o movimento de plantio individual da época) nas atividades de trabalho, destacava-se por seu aspecto festivo, que consideramos ser fundamental e essencial na formação de uma rede ampla de relações, que ligava os moradores na formação de apoio ao grupo de vizinhança.

Já Francisca (entrevistada 6, 2020) nos relatou que na festividade ao término do puxirão havia um acordo entre as famílias e estas trocavam experiências no saber-fazer e de várias atividades como o crivo , receitas medicinais, receitas culinárias entre as mulheres e atividades com sementes entre os homens. Todo esse aprendizado ocorria em conjunto com o festejo (Notas de Campo, 2020).

O crivo, de acordo com Calegare e Higuchi (2013) é uma ferramenta formada por um anel que possui uma malha. Este utensílio é usado para peneirar: limpar grãos ou sementes. Assim, com o uso do crivo, é possível remover substâncias sólidas indesejadas que se encontram misturadas com os grãos. Quando os grãos passam pelo crivo, é possível separar os elementos menores dos maiores, graças à malha. A partir disso, consegue- se eliminar as impurezas inúteis. Ao crivar o trigo, por exemplo, é possível retirar a palha. Os orifícios da malha do crivo têm tamanhos diferentes de acordo com o uso, ou seja, trata-se de uma peneira especial com várias malhas passíveis de serem trocadas. Essa característica depende do que se pretende remover.

Entendemos, a partir disso, que o crivo era muito usado como utensílio de cozinha para peneirar farinha. Entretanto, além de peneirar a farinha, as mulheres adaptaram o uso do crivo para outra atividade. O bordado. Francisca descreve essa adaptação que consideramos ser uma bricolagem das mulheres do Fundão, como diria Certeau (2014)Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. . Porém, a festividade no final do “puxirão” não foi a única trazida pela memória coletiva das lideranças. Havia outras práticas festivas diretamente interligadas pela religiosidade.

Por meio das memórias também veio à tona a questão da religião. Entretanto, no período antes da expulsão (desterritorialização) as práticas religiosas se vinculavam à igreja católica. O Fundão mantinha seu vínculo com a igreja católica, até porque os herdeiros legatários foram todos batizados e assim sucessivamente. Entretanto, a presença do padre na comunidade acontecia uma vez por ano, tendo em vista a distância a ser percorrida a cavalo. Carlos relata,

012: O padre vinha de cavalo, tinha região que era muito longe, então ele saía do Fundão daqui para o Pinhão. Então ele visitava uma região fazendo a desobriga aqui trabalhando naquele Faxinal e se dirigia para Faxinal dos Coutos. (Carlos, entrevistado 2, 2020)

Pesquisadores: O que é a desobriga?

013: Meu falecido pai dizia que eram as visitas que os padres faziam nas comunidades para manter relações boas. Era para isso que eles trabalhavam pela igreja. Mesmo assim, a religião é importante (Carlos, entrevistado 2, 2020)

De acordo com Montenegro,

As chamadas desobrigas pelo interior do Brasil constituíam-se em verdadeiras cruzadas e tinham um papel civilizador. Os padres criavam com as populações vínculos espirituais, estabelecendo relações de compromisso entre a Igreja e as comunidades, as quais muitas vezes não tinham em relação ao Estado. ( Montenegro, 2001Montenegro, A. T. (2001). Padres e artesãos: narradores itinerantes. História oral, v. 4, p. 39-54. , p. 66)

Assim, apreendemos que Carlos, ao falar que “eram visitas que padres faziam nas comunidades para manter relações boas” trazia um fundo do “democraticamente correto”. Contou-nos,

014: (...) nestas visitas do padre à localidade ele realizava os rituais e sacramentos, como os batismos e casamentos. Era uma ocasião de festas, em que os vizinhos estavam presentes para assistir as celebrações. Nos dias que o padre estava na comunidade para as festas a gente colocava a melhor roupa. (Carlos, entrevistado 2, 2020, grifos nossos)

Dessa forma, por meio da narrativa entendemos que as tradições religiosas para o Fundão tinham significado com a salvação e com o respeito a Deus, pois eles “não poderiam ir para o inferno, jamais as crianças poderiam ficar sem batismo, e os moradores queriam casar-se com benção de Deus” (Notas de Campo, 2020). Os momentos que o “padre estava na comunidade” permitiam aos moradores obter os “sacramentos” ao mesmo tempo em que fortaleciam os espaços de sociabilidade por meio de “celebrações”. Joana relata:

015: Tinha vezes que o padre vinha uma vez a cada dois anos. Mas, sabe, mesmo vindo pouco, os velhos do Fundão (meus pais e meu avós) sempre procuravam manter os ensinamentos e tradições religiosas, guardando os dias santos e participando das cerimônias e devoções públicas, tais como as procissões e rituais da semana santa, semana das dores, entre outras. Eles ensinavam a gente a rezar principalmente ao deitar-se e dormir, rogando a Deus e aos santos por proteção. (Joana, entrevistada 3, 2020, grifos nossos)

Assim, Joana (015) deixa claro que o papel de ensinar as crianças e jovens a rezar era exercido, muitas vezes, pelas lideranças-anciãs. Essas pessoas ensinavam os mais novos, os filhos, e os vizinhos, passando as tradições religiosas que receberam dos seus ancestrais (Notas de Campo, 2020). Destaca ainda,

016: Nas casas do Fundão a gente tinha os santos nas paredes. Alguns santos eram de madeira feita pelos mais velhos. Outros a gente fez de crivo. O rosário era feito muitas vezes de contas lá dos matos do capão . Todas as casas dos vizinhos tinham fotos de santos. (Joana, entrevistada 3, 2020, grifos nossos)

Conforme Joana (016) os moradores procuravam então, manter no espaço privado das suas casas as imagens dos seus santos de devoção fossem eles em forma de esculturas feitas de barro ou em retratos na parede. Neste sentido, no espaço da casa um símbolo religioso se fazia presente, seja por imagens que ficavam muitas vezes em altares ou em cima de mesinhas. Nesta fala, visualizamos que as rezas católicas também eram realizadas em cultos, missas (quando da presença do padre) e novenas realizadas nas casas das pessoas.

Todavia, os moradores, subvertiam a lógica dominante da igreja. Ou seja, mesmo com a estrutura física disponível da “pequena igrejinha que já não existe mais”, os moradores só participavam das missas neste local quando o padre estava presente. Na maioria das vezes, mesmo podendo utilizar a estrutura física da igreja os moradores optavam por fazer os “cultos e as rezas nas casas das pessoas”. Tem-se neste ponto uma “tática” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ) utilizada pelo “povo do Fundão”. Dito de outra forma, “íamos à igreja para o padre ver que estávamos indo, mas quando ele não estava presente vendo, fazíamos as rezas nas casas” (Notas de Campo, 2020).

A narrativa de Joana (016) comprova a devoção e culto aos santos nas casas dos moradores configurando-se como elementos expressivos do catolicismo popular, ou seja, aquele advindo do povo e suas tradições, desprovido do controle sistemático e dogmático da instituição oficial eclesiástica (não uso da igreja na ausência do Padre). Mesmo assim, a fé era alimentada pelas rezas e promessas aos santos e confiança em suas intercessões e este ritual era organizado pela própria comunidade que reelaborava sua religiosidade a partir do “uso” no cotidiano.

Para tanto, partimos do pressuposto que a “devoção aos santos” indica ser um dos elementos que mais caracterizava a religiosidade popular na comunidade. Em outras palavras, percebemos que longe da interferência de representantes da igreja (cultos e rezas nas casas), os devotos criavam e recriavam uma “certa liberdade gazeteira longe dos olhos do dominador” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. , p. 23) para realizar as suas próprias maneiras de se comunicar com os seus protetores.

Neste sentido, no Fundão, a dimensão religiosa também era vinculada diretamente por elementos do catolicismo popular, expresso por meio da devoção e festividades aos santos. De acordo com os relatos a seguir, a comunidade não tinha um santo específico, mas comemorava o “Dia de Todos os Santos”.

017: Não lembro de a gente ter um santo que era de comum acordo na comunidade. Cada um tinha o seu santo de devoção . Mas todos respeitavam o Dia de Todos os Santos com muitas orações. (Carlos, entrevistado 2, 2020, grifos nossos)

018: Rezar e comemorar no Dia de Todos os Santos era bom. Fazia bem para a gente. A gente organizava um dia de orações . Vinham todos. Em cada casa se fazia se rezava um mistério do terço. Tudo junto para encontrar os parentes e amigos . (Izabel, entrevistada 5, 2020, grifos nossos)

Nos fragmentos de Carlos (017) e Izabel (018) aparecem elementos que destacam ser “O Dia de Todos os Santos”, um ritual de fé acompanhado por orações nas quais a comunidade passava de casa em casa. Este ritual de orações culminava ao final do dia com uma festividade religiosa. Em nossa compreensão este tipo de festividade que mesclava fé e comemoração, travava-se de um espaço para o estreitamento dos vínculos sociais, encontro entre gerações e reavivamento das tradições, bem como, um momento de encontro de lazer comunitário, configurando-se um importante momento de celebração da vida. Entretanto, havia um santo “São Gonçalo” que tinha uma festa própria. Beatriz relata,

019: A meia noite tem café com bolo e a dança de São Gonçalo. Fila de homem para cá e da mulher para lá. Dois meninos com bandeira, uma era vermelha (dos homens) e outra bandeira era verde (das mulheres). E a gente dançava cruzando as bandeirinhas. Em cruzada. Quando a gente chegava no altar dava três passinhos para a frente e para trás e beijava o altar. E falavam em voz alta: Viva São Gonçalo de Amaranto. (Beatriz, entrevistada 7, 2020)

Essa dança, possui um caráter agregador de sociabilidade. Em outras palavras, o agradecimento ao milagre atendido era realizado de forma coletiva, sendo que o pagador da promessa promovia a dança em sua casa e convidava os parentes, vizinhos, amigos das comunidades próximas para participar da mesma. Na comemoração, os devotos realizavam danças e cantos em louvor ao santo. Paralelo a “Festa de São Gonçalo”, Lúcia traz também a “Festa do Divino Espírito Santo”,

020: A Festa do Divino tinha a figura do imperador que conduzia o ritual. O imperador era a autoridade máxima . A gente escolhia para ser imperador entre os mais velhos, cada ano um, como forma de homenagem. Essa bandeira é carregada por violeiros e mulheres. Nós todos podíamos participar. Era muito unido. Na véspera do domingo de Pentecostes, todos nós juntos realizava uma procissão e hasteava a bandeira do Divino no mastro. Era assim. (Lúcia, entrevistada 1, 2020, grifos nossos)

Conforme Lúcia (020), a “Festa do Divino Espírito Santo” era apreciada, pois as pessoas se identificavam com a alegria e a “união”. Tinha-se durante a festa uma relação horizontal (todos podiam participar) exercida na comunidade durante os preparativos e a realização. Ou seja, nesta festa, o grupo subvertia a ordem, uma vez que, para saudar a bandeira e festejar o Divino, não tinha intervenção do padre, autoridade da Igreja Católica.

Neste sentido, Lúcia destaca que em todo processo de organização e gestão das atividades o “imperador era a autoridade máxima” do evento. Entendemos assim, o imperador representando a nobreza, sendo o responsável pela realização da festa, ele em conjunto com seus auxiliares liderava os cantos, danças e orações, além das demais atividades para invocar e celebrar o Divino Espírito Santo.

Consoante as festas já mencionadas, as lideranças-anciãs trouxeram a cerimônia de Recomenda das Almas, também parte das práticas cotidianas religiosas. Tem-se,

021: Era feita na quaresma. A gente ia recomendar nas casas de madrugada, tinha o grupo que fazia as recomendas no terno [terno é a mesma coisa que procissão]. Tinha vários ternos e se um já tivesse na casa o outro não podia chegar. Os de dentro saia quietinho porque não podiam se encontrar. A gente cantava na porta da casa tabeando a matraca. A cantiga era assim:

Abre a porta dono da casa

Que este terno quer entrar

Outro terno já saiu?

Nós queremos lauvorá.

Depois que o dono da casa abria, aí a gente entrava cantava o Pai Nosso. Se os ternos se encontrassem peito a peito, todos tinham q se ajoelhar falar: Deus salve este encontro que no outro queremos louvar. (Beatriz, entrevistada 5, 2020)

Por meio da descrição de Beatriz (021) esta tática reunia um grupo de devotos que saía altas horas da noite pelas ruas no período da quaresma, entoando cânticos e rezando em louvor às almas. Crianças habitualmente não participavam (Notas de Campo, 2020). O grupo caminhava pelas ruas (que eram e ainda são carreiros) e só entravam nas casas se o dono da residência permitisse.

Em várias conversas, os moradores nos explicaram que seus avós contavam que a “recomenda das almas” era consagrada para que os santos fossem mediadores sagrados dos entes queridos que haviam falecido e assim como um dançador ou promesseiro fazia a “Dança de São Gonçalo” como forma de agradecimento aos milagres recebidos, os devotos poderiam receber “graças” por intermédio das almas, sendo esta externada sob a forma de uma “encomendação de almas” (Notas de Campo, 2020).

A quaresma é período de quarenta dias de preparação para a Páscoa e começa na Quarta-Feira de Cinzas. Este período, conforme os anciãos, foi sempre o período bem carregado do ano. Nesse clima de reflexão é que a “recomenda das almas” saía às ruas (carreiros). Dessa maneira, as memórias, trazem o simbolismo por ocasião da “recomenda das almas”. Este simbolismo traz consigo todas as concepções sociais acerca da morte e da relação entre mortos e vivos, apaziguando suas tensões, evangelizando no sentido de que ensina em seus versos, a reta conduta como caminho de salvação.

Em síntese, consideramos que essa maneira festiva de celebrar o sagrado possuía raízes no Fundão. Tais raízes, advinham do processo escravagista do Paraná que trazia consigo um processo de territorialização do Brasil colonial e imperial quando eram comuns “grandes procissões as festejar os santos protetores e os mortos” (Mesquita, 2015, p. 25). Neste âmbito, as celebrações religiosas, traziam consigo as manifestações populares de várias regiões do país que contavam com o trabalho escravizado.

Todavia, sendo territorializadas neste espaço, passaram a se apresentar como práticas cotidianas que agregavam, na sua maneira de expressão, aspectos do cotidiano dos devotos que faziam adaptações à sua realidade, estabelecendo assim sua territorialidade. Territorialidade esta pautada em redes de relacionamento, sociabilidades, afetividades e identificação com o território, sendo tecidas nos hábitos e costumes, impossíveis de serem apreciados somente pela perspectiva econômica.

Conclusões

A partir da perspectiva trazida por Sodré (1999)Sodré, M. (1999). Claros e escuros: Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. , permitimo-nos afirmar que esta pesquisa é um “enunciado presente”, muito embora sua coleta de dados tenha sido realizada de 2018 até 2020. Um enunciado presente que se propôs em apreender a gestão ordinária das práticas cotidianas, a partir das memórias contadas e vividas pelas lideranças da Comunidade Quilombola “Invernada Paiol de Telha - Fundão”, e por conseguinte, compreender o processo de territorialização dos moradores desta comunidade antes do processo expulsão (desterritorialização - ocorrido em 1974) deste território.

A partir disso, permitimo-nos afirmar, que a gestão ordinária das práticas e os símbolos que delas subjazem, operam, mesmo entre percalços e reelaborações, como um vetor identitário de apropriação deste território, convertendo a territorialidade nutrida por uma experiência ancestral, que não deixa de ser também, um gesto de afirmação política – ontem e hoje. Gesto este, que encontra, nos “herdeiros”, um espaço de solidariedade, mesmo com todo tipo de violências sofridas.

Para tanto, quando adotamos a perspectiva do cotidiano e do território socialmente construído, em que o “povo do Fundão” estabeleceu um vínculo de convivências por meio da produção de memórias transformando o espaço em “lugar simbólico” ( Certeau, 2014Certeau, M. de. (2014). A invenção do cotidiano: artes de fazer. 20. ed. Petrópolis: Vozes. ), nos permitimos entender aquele cotidiano como um espaço de possibilidades. Possibilidades estas que adotam no verbo “gerir” à vinculação de um “saber-fazer”.

Este saber fazer, por sua vez, vai ao encontro do conceito de gestão ordinária proposto por Carrieri (2012)Carrieri, A. de P. (2012). A gestão ordinária. Tese (tese elaborada para concurso para professor titular) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. , que afirma ser este tipo de “gestão” um processo não internalizado na racionalidade instrumental que financia o management . No caso do Fundão, a gestão ordinária manifestada por suas lideranças-anciãs estava e, de certa forma, ainda está, nas escolhas diárias dos sujeitos, que se manifestam no saber empírico e em suas formas de organizar, sem que estas formas sejam estritamente as técnicas convencionalmente ensinadas pelo mainstream capitalista.

Lideranças estas consideradas, muitas vezes, “velhas” pelos mais jovens, mas que durante a pesquisa de campo, se sentiram valorizadas por terem a oportunidade em contar sobre a gestão empreendida no Fundão por meio de táticas de sobrevivência em detrimento ao preconceito de serem “herdeiros de pessoas escravizadas”. Por meio da pesquisa, apreendemos alguns fragmentos da realidade, nas quais as vivências (antes da expulsão) eram repletas de atividades que indicavam o repertório pessoal e coletivo destes moradores no seu cotidiano e na essência de sua gestão. Práticas de moradia, alimentação e subsistência num primeiro momento, e práticas de solidariedade, fé e lazer num segundo momento.

Consoante a isso, percebemos e nos emocionamos, que ao rememorarem estas vivências, as lideranças-anciãs “soltaram a voz” a uma territorialidade ancestral. Esta territorialidade, por sua vez, acentuou a perspectiva do território como sendo um espaço das experiências vividas, no qual as relações entre os moradores do Fundão e destes com a natureza (física e social), centravam-se em relações permeadas pelos sentimentos e pelos simbolismos atribuídos aos lugares. Esses lugares eram espaços apropriados por meio de práticas que lhes garantiam uma permanência identitária social e cultural.

Todavia, as narrativas das lideranças-anciãs, também trouxeram o “apagamento” de várias práticas cotidianas a partir do processo de expropriação sofrido pelo Fundão. Ou seja, os modos de produção, as tradições culturais, dentre outros, não conseguiram se manter e resistir fora do espaço/território em que viviam da maneira como eram realizadas “nos tempos antigos”. Foram invisibilizados junto com seus moradores. Foi um processo violento em vários sentidos (material, cultural e simbólico).

Em outras palavras, pelo fato de terem sido expulsos de suas terras e separados em núcleos sofrendo a expropriação por mais de quarenta anos, os moradores do Fundão com suas famílias foram obrigados a aprender a buscar sua subsistência econômica nas áreas urbanas, por consequência, isso os levou a “inviabilizarem” as práticas sociais e de vivência antes da expulsão, como por exemplo, o Puxirão, a Festa de São Gonçalo, a Recomenda das Almas entre outras, que foram rompidas, esquecidas, apagadas. Algumas sobreviveram apenas na lembrança dos anciãos. Outras, por sua vez, foram ressignificadas.

O intenso (e vergonhoso) processo de expropriação, expulsão e espoliação do seu território ancestral, levou “os herdeiros do Fundão”, de forma que pudessem sobreviver, a modificar hábitos de vida. Tudo foi novidade, conforme narrativas das lideranças-anciãs: andar de ônibus nas cidades, comprar comida processada, buscar por casas de alvenaria próximas ao trabalho e as formas de viver acabaram por inserir na vida destes negros a “cultura branca”, enfim, se adaptar à “vida no asfalto”, e posterirormente (para alguns) adaptar-se à “miséria da vida no Barranco”. Foram quarenta anos vivendo dessa forma. Quarenta anos de humilhações (jurídicas, sociais, simbólicas, preconceituosas), entre “idas e vindas” na busca pelo retorno às terras ancestrais.

Finalmente, o retorno às terras ocorreu. Primeiro como forma de ocupação por parte dos moradores do Barranco com o apoio de movimentos sociais e organizações não-governamentais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a Pastoral da Terra, por conseguinte, mediante Decreto Presidencial em 2015. Assim, com o retorno às terras pudemos perceber que a gestão ordinária desse espaço foi constituída por uma nova territorialidade. A territorialidade quilombola fomentada principalmente após Constituição Federativa do Brasil de 1988Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro. . É o momento do aquilombamento no qual a comunidade se revê com o processo, ou seja, o preconceito e o racismo históricos, dão lugar ao orgulho de ser remanescente de um quilombo e de pertencer ao Fundão sem se desvincular da narrativa de “ser herdeiro do Fundão”.

Em complemento, a Associação Heleodoro, citada nas narrativas é o reflexo direto desse processo. A identificação comunitária étnica se territorializa por meio da participação democrática na Associação. Vamos além. Atrevemo-nos a dizer que a Associação Heleodoro é o marco da retomada do Fundão. Partimos do pressuposto que quando um grupo – como o caso dos “herdeiros do Fundão” - se organiza em prol da reconquista de seu território, ele nega o lugar que lhe fora destinado numa dada circunstância espaço-temporal, ou seja, nega o lugar marginal que lhe foi designado pela sociedade (agronegócio).

Sendo assim, compactuamos que as comunidades quilombolas, ao se organizarem pelo direito aos territórios ancestrais, não estão apenas lutando por demarcação de terras, às quais elas têm absoluto direito, mas, sobretudo, estão fazendo valer seu direito a um modo de vida. Portanto, durante esta pesquisa defendemos a tese de que, apesar dos diversos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização que os remanescentes da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha Fundão sofreram ao longo de sua história, a partir de suas memórias, eles ainda mantêm práticas cotidianas que, mesmo transfiguradas e ressignificadas, traduzem a gestão ordinária do seu modo de vida.

A memória dos anciãos encontra-se na “oralidade de sua memória coletiva”, e agora, registrada numa parte dessa pesquisa como “memória escrita”. Estas, servirão de base para que os moradores do Fundão possam, em determinado momento que eles percebam ser relevante, resgatar. Isso não quer dizer, que o “povo do Fundão” fará uso desse resgate (se assim for da vontade da comunidade) para voltar a viver no tempo passado. Trata-se de algo impossível. As práticas cotidianas e a gestão ordinária atuais vêm modificadas, incluindo nisso a lógica do agronegócio.

Deixamos aqui registrada nossa indignação ao agronegócio. Não apenas por ser o agronegócio, mas por não respeitar o conhecimento tradicional mais próximo da natureza e da justiça social. Ao longo das últimas décadas, o agronegócio vem sufocando os povos e comunidades tradicionais, camponeses e agricultores familiares, generalizando todas as formas de se fazer a agricultura e acabando com a biodiversidade.

O Fundão hoje é um resultado desse processo: sem biodiversidade, com água e terras contaminadas pelo excesso de agrotóxico. Tem-se como exemplo, a desvalorização da técnica da coivara que era adotada no Fundão. Muitos representantes do agronegócio afirmam ser esta técnica de manejo altamente predatória, proibindo comunidades tradicionais em utilizá-la. No Fundão, esta prática foi muito utilizada pelas lideranças-anciãs que participaram desta pesquisa. Ou seja, o agronegócio vê os saberes e formas de manejo tradicionais da terra como atrasados e procura, como uma avalanche, dominar tudo e todos com suas tecnologias predatórias do meio ambiente e da vida.

A partir desses argumentos, os moradores do Fundão foram reprimidos e criminalizados e expulsos de suas terras ancestrais. Sob a camuflagem de uma “reforma agrária pacífica” sofreram um processo de expropriação perverso que hoje, com a retomada das terras, se torna bem latente. Sob a égide do “discurso do politicamente correto” da Revolução Verde tiveram suas terras invadidas sofrendo uma expurgação de seu patrimônio cultural e social.

Consoante a isso, consideramos essencial apontar que a pesquisa realizada questiona a “gestão” proposta pelo mainstream , ou seja, trouxe a possibilidade de discutir o status de único conhecimento válido e legítimo. Permite trazer na pauta e contribuir de forma acadêmica dando visibilidade a outra forma de “organizar” que não seja aquela do modelo capitalista, inclusive o modelo empresarial tão apregoado pelo agronegócio. Mesmo o “gerir” do Fundão hoje, após a retomada, se pautando na forma de plantio das lavouras mecanizadas, é uma forma de gestão diferenciada. Todas as decisões são tomadas coletivamente, a terras plantadas coletivamente e os recursos oriundos dessa plantação divididos coletivamente.

Uma pesquisa no cotidiano de uma comunidade quilombola, neste caso uma organização social, traz muitas contribuições para área de Estudos Organizacionais. Amplia as possibilidades de discussões para que os pesquisadores possam olhar outras formas de gestão que não aquelas direcionadas para o “santo altar” da racionalidade instrumental, das “receitas enlatadas” e repassadas para os países latinoamericanos como “resolução” pronta da realidade. Em outras palavras, pactuamos que realizar uma pesquisa na gestão ordinária de uma comunidade quilombola demonstra, a partir da prática, que é possível ampliar e fortalecer, para o campo organizacional, o cotidiano como tema. Embora a cultura do agronegócio esteja presente na atual realidade cotidiana da comunidade, uma vez que seu entorno é formado por produtores de monoculturas, a pesquisa realizada traz o contexto de comunidade tradicional, que após a retomada, mantém o vínculo com ancestralidade, com as memórias e as práticas de outros tempos.

Dito de outra forma, nossa pesquisa se propôs a entender o processo histórico que resulta nas formas de gestão do tempo presente. Muitos fazendeiros da região carregam consigo um discurso que o Fundão não saberia se organizar e nem planejar o cultivo de soja no tempo presente. Estes discursos vêm impregnados de posições pejorativas e racistas sobre “ser negro” ou “ser atrasado” na sociedade moderna. Tem-se aí os desafios impostos ao Fundão sobre os princípios da eficiência, ou do que é ser eficiente, e a nós continuarmos com a realização de pesquisas que abarquem a gestão ordinária do cotidiano que desconstrói esses preconceitos.

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Notas

  • 1
    . Fundão é outra denominação utilizada pelos membros da Comunidade Invernada Paiol de Telha para se referir ao território, pois ele estava localizado nos fundos da Fazenda Capão Grande. Em nossa inserção em campo, os moradores frisaram que gostam de ser designados por Fundão para que não haja confusão com o núcleo Assentamento localizado na Colônia Socorro (Notas de campo, 2019).
  • Linguagem inclusiva
    Os autores usam linguagem inclusiva que reconhece a diversidade, demonstra respeito por todas as pessoas, é sensível a diferenças e promove oportunidades iguais.
  • Verificação de plágio
    A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Disponibilidade de dados
    A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento: Os autores agradecem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento da pesquisa vinculada ao Projeto denominado “Memórias de resistências: a gestão ordinária, o cotidiano e a territorialização das mulheres-lideranças de comunidades quilombolas do estado do Paraná” (Processo 423229/2018-4 - Chamada MCTIC/CNPq Nº 28/2018 – Universal).
Editor/a Associado/a: Letícia Dias Fantinel

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2022
  • Aceito
    08 Dez 2023
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