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Escolarização e representação do trabalho: mitos sem nexo? um estudo de caso

Resumos

O objetivo deste trabalho é apresentar dados relativos à representação de trabalho por estudantes trabalhadores que estudam em curso noturno. Dezesseis estudantes da última série do primeiro grau responderam a um questionário e duas questões relativas ao trabalho foram analisadas. Uma análise qualitativa dos resultados mostrou que há uma tendência nítida em representar o trabalho como condição de sobrevivência. Ademais há um componente de prazer ligado ao trabalho. Fez-se uma discussão dos resultados, considerando o papel da escola, além de ideologia e cultura.


This paper aims to present data about work image, by working students attending night courses. Sixteen students from elementary school final grades answered a questionnaire and two questions work-related were analysed. Qualitative analysis of results shows a strong trend to represent work as a condition of survival. There is also a work-related component of pleasure. Discussion of results considers the role of school, ideology and culture.


Escolarização e representação do trabalho: mitos sem nexo? um estudo de caso(* (* ) Uma versão parcial desta trabalho foi apresentada na XX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto. )

Ederaldo José LopesI; Maria Alves de Toledo BrunsII

IPsicólogo, mestrando em Psicobiologia na FFCLRP - USP

IIProfessora de Psicologia Educacional na FFCLRP-USP

RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar dados relativos à representação de trabalho por estudantes trabalhadores que estudam em curso noturno. Dezesseis estudantes da última série do primeiro grau responderam a um questionário e duas questões relativas ao trabalho foram analisadas. Uma análise qualitativa dos resultados mostrou que há uma tendência nítida em representar o trabalho como condição de sobrevivência. Ademais há um componente de prazer ligado ao trabalho. Fez-se uma discussão dos resultados, considerando o papel da escola, além de ideologia e cultura.

ABSTRACT

This paper aims to present data about work image, by working students attending night courses. Sixteen students from elementary school final grades answered a questionnaire and two questions work-related were analysed. Qualitative analysis of results shows a strong trend to represent work as a condition of survival. There is also a work-related component of pleasure. Discussion of results considers the role of school, ideology and culture.

INTRODUÇÃO

O trabalho, enquanto fonte de humanização, desde há muito deixou de existir. Nas sociedades capitalistas modernas, tem se constituído na única oportunidade, talvez, de o homem subsistir, fato este que, nos países de terceiro mundo, pode ser considerado, até mesmo, um artigo de luxo.

A fortiori, o trabalho enquanto atividade produtiva, sob os desígnios do capital, constitui algo desumano e negativo, enfim, numa linguagem mais apropriada, constitui uma atividade alienadora para o homem. Para Frigotto (1989):

"Nas relações capitalistas trabalhamos para viver, para produzir um meio de vida, mas nosso trabalho não é vida em si, portanto trata-se de uma atividade imposta por uma necessidade externa - a necessidade do capital." (pág. 42)

Desse modo, o trabalho organizado tem se prestado a atrelar o homem a um sistema em que predominam forças impostas pelos detentores dos meios de produção, que, por extensão, são os detentores das idéias produzidas e difundidas no meio social como um todo. Por conseguinte, segundo Franco (1988), o trabalho foi reduzido a "ganhar a vida", e, se é assim, "é porque não pode ser fonte de realização pessoal, de liberdade e criatividade." (pág. 59)

Embora o trabalho esteja se restringindo a uma espécie de propiciador da sobrevivência humana, é nele que dedicamos grande parte da nossa vida, das nossas energias e é nele também que estendemos nosso mundo, através das relações interpessoais e de produção e apreensão de novas formas de pensar e agir sobre o mundo. Marx e Engels (1986) explicitam melhor a idéia anterior, afirmando que:

"A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material dos homens, como a linguagem da vida real e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio dos homens aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material." (pág. 36)

Assim, se considerarmos o trabalho como tomando uma parte consideravelmente grande dentro das várias atividades materiais de que é composto nosso mundo, poderemos inferir que grande parte dos nossos intercâmbios com outros homens se dá no mundo do trabalho. Isso deve implicar, talvez, que muitas idéias e representações são emanadas das relações que mantemos com outrem durante o tempo que gastamos em nosso trabalho.

Do mesmo modo que o trabalho, a educação formal também ocupa ou deveria ocupar um lugar de destaque nas atividades humanas.

A escola, cujo papel principal é transmitir conhecimentos acumulados historicamente pelo homem (Franco, 1988), é, ademais, um meio onde, de forma concreta, o homem poder-se-ia realizar do ponto de vista da ampliação de seus conhecimentos e idéias, através da formação de um amplo espaço de relações interpessoais, como deve ser na situação de trabalho. Todavia, esse papel essencial atribuído à escola não tem sido cumprido de forma eficiente, considerando, ainda, que a escola não tem sido democratizada amplamente como deveria ser (Cunha, 1975).

Apesar disso, fazendo parte da totalidade social,

"... a escola não pode ser pensada independentemente do modo de vida e de produção das condições de existência em seu conjunto, ou seja, de uma estrutura social determinada, contraditória e em movimento, que se desenvolve e se cria através da práxis humana." (Franco, 1985)

Sob essa prisma, tanto o trabalho como a escola têm sua razão de ser e existir dentro da totalidade social, aquele relacionado, como vimos, principalmente à sobrevivência humana, e esta relacionada à transmissão de conhecimentos, mas conhecimentos conexos a uma realidade concreta, não mistificada (Franco, 1985; Libâneo, 1983).

Para as classes mais pobres, entretanto, a escola é tida como o único meio legal da ascensão social (ver, por ex., Gomes, 1982), e nessa perspectiva, a relação trabalho-escola se torna mais estreita. Do ponto de vista legal, é importante lembrar a tentativa, frustrada, de transformar a escola em produtora de mão-de-obra técnica especializada, através da Lei 5692/71, principalmente (Cunha, 1975).

Com o objetivo de entender melhor essas relações mantidas entre escola e trabalho, nós realizados uma pesquisa cuja questão norteadora foi: qual é a contribuição da escola na formação das representações sobre o trabalho de jovens estudantes de curso noturno?

METODOLOGIA

SUJEITOS: esta pesquisa foi realizada com 16 estudantes, de ambos os sexos, com idade média de 16 anos, da oitava série, período noturno, de uma escola de 1º grau localizada na periferia de Ribeirão Preto, SP, no ano de 1989. Dos 16 estudantes, apenas 2 não desempenhavam nenhuma atividade fora de casa. O curso noturno possuía 136 alunos, o que representava 25% dos alunos matriculados na escola no ano letivo de 1989.

MATERIAL E PROCEDIMENTO: os sujeitos responderam a um questionário completo de perguntas abertas que visaram apreender as concepções de cada um em relação à política, escola, trabalho e projetos de vida. Nesta pesquisa, nosso interesse se centrou, especialmente, na representação de trabalho que esses jovens tinham. Nesse sentido, analizamos os conteúdos das questões concernentes ao trabalho, quais sejam: 1. Por que você trabalha? Você gosta do seu emprego? Por quê? 2. O que você acha sobre o trabalho? (seu e de outras pessoas).

RESULTADOS

A Metodologia empregada na análise e discussão dos dados seguiu uma abordagem qualitativa (ver, por ex., Ludke e André, 1986).

A análise do conteúdo das respostas dadas à primeira parte da questão 1 mostrou que a razão principal apresentada pelos estudantes ao fato de trabalharem é uma necessidade, ou seja, o trabalho é fonte de sobrevivência. Dos 14 alunos que trabalhavam fora, 13 fizeram alusão a esse tipo de resposta. As respostas textuais seguintes exemplificam a representação dos jovens:

1. "Eu trabalho para ajudar meus pais e porque preciso muito.."

2. "Porque eu preciso e dependo muito do que faço..."

3. "Trabalho para ajudar em casa e para ser independente..."

Ainda com relação à primeira questão, na segunda parte, a maioria dos alunos (11) responderam afirmativamente, isto é "gostam" do que fazem. O "gostar" é justificado pelas mais diversas razões, entre as quais se destacam aquelas relacionadas com crescimento e desenvolvimento pessoais:

Exemplos:

1. "Gosto muito do meu serviço porque foi lá que eu aprendi muitas coisas."

2. "Porque uma pessoa que não se ocupa em alguma, pelo menos em alguma coisa, pelo menos em estudar que é um trabalho, não vive."

3. "Gosto porque quanto mais trabalha mais aprende."

De certo modo, as respostas dadas à questão 2 seguem a mesma direção das respostas dadas à segunda parte da questão 1. Seis respostas identificam o trabalho como uma atividade propiciadora de desenvolvimento pessoal, tanto no sentido psicobiológico ("ajuda a desenvolver a cabeça e o corpo da gente"), como no sentido econômico ("é uma oportunidade de subir na vida"). Alguns outros conteúdos não permitem fazer uma categorização. Apesar disso, um deles salienta uma condição mais próxima daquela que vive a grande massa da população: "Acho que deviam dar mais valor em nosso trabalho porque trabalhamos muito e ganhamos pouco".

DISCUSSÃO

Os dados obtidos a partir desse estudo devem ser analisados com cautela, uma vez que se trata de um estudo de caso. Assim, qualquer generalização será feita para o grupo estudado, tentando se fazer uma comparação com outras pesquisas realizadas.

Os conteúdos relativos à questão 1 denotam, de forma clara, a tendência apontada por alguns autores (Franco, 1988; Frigotto, 1989) que afirmam ser o trabalho um meio de "ganhar a vida".

Na mesma direção, um trabalho realizado por Lopes, Japur e Tfouni (1988) com bóias-frias alfabetizados e não-alfabetizados mostrou resultados semelhantes aos que ora apresentamos nessa pesquisa. Naquele trabalho, 50 sujeitos representavam cada grupo, os quais responderam a duas questões concernentes ao trabalho:

a) Seu trabalho é importante?

b) Por quê?

Os resultados denotaram, também, uma atribuição de valor de sobrevivência ao trabalho muito nítida.

Ademais, observou-se uma categoria de respostas que denotava "gosto" pelo trabalho, como nesta pesquisa com jovens estudantes de curso noturno. Há, de certo modo, uma opinião convergente e paradoxal, à primeira vista, acerca do trabalho, representada pelas categorias sobrevivência e gosto, tanto no grupo de bóias-frias quanto no grupo de estudantes. Cabe perguntar: até que ponto é gosto mesmo, ou uma necessidade imposta, biológica, de sobrevivência? neste ponto, então, a categoria sobrevivência poderia ser confundida com a categoria gosto.

Considerando as peculiaridades dos grupos estudados por Lopes e outros (1988) e do grupo de estudantes de curso noturno, o que se pode depreender é que o fato de ser alfabetizado (naquele caso o critério era saber ler uma lista de 10 palavras simples e escrever o nome), quando comparado com o fato de cursar a última série do primeiro grau, não é condição suficiente para afirmar a existência de diferenças na forma de representar o trabalho nos grupos em questão.

Um outro trabalho ao qual remetemos nesse momento foi realizado em contexto industrial. Hofstede (1986) e seus colaboradores aplicaram aos funcionários de grandes organizações, em 40 países, uma escala denominada VSM (Value Survey Module). Os resultados obtidos a partir das aplicações da VSM podem ser expressos através de quatro dimensões (fatores) principais: individualismo, percepção, do poder, valores ligados à masculinidade-feminilidade e à segurança no trabalho.

No Brasil, recentemente, Stephaneck, Lopes e Figueiredo (1990) apresentaram dados relativos à aplicação da mesma escala em funcionários de uma grande empresa multinacional situada em Ribeirão Preto. A VSM foi aplicada em 43 sujeitos que possuíam escolaridade média de 15 anos e 70% deles possuíam nível superior. Os resultados seguiam a mesma estrutura fatorial encontrada por Hofstede (1986).

Embora o trabalho de Stephaneck e outros (1990) não esteja diretamente relacionado com o trabalho que motivou a produção deste artigo, ele é de fundamental importância, pelo fato de que o nível de escolaridade dos funcionários que responderam à escala parece não ser condição de extrema relevância a ponto de indicar mudanças substanciais na forma de conceber os valores ligados ao trabalho e à vida como um todo, já que a VSM permite levantar dados não só da atividade do trabalhador, mas também de valores socioculturais.

Genericamente falando e considerando as diferenças das três pesquisas comparadas, duas conclusões podem ser expressas:

1. o nível de escolaridade não parece ser condição sine quibus non para a formação das representações acerca do trabalho, embora deva ter um certo peso.

2. os resultados obtidos nas pesquisas com bóias-frias e com alunos trabalhadores de curso noturno podem ser melhor apreciados se os submetermos à luz da interpretação proposta por Hofstede (1986). Isto é, as representações sobre o trabalho poderiam fazer parte do que ele chama de programas mentais, que são expressos pelos valores e pela cultura. Tais programas são desenvolvidos na infância e reforçados nas escolas e organizações.

Essa última conclusão remete à finalização deste trabalho. Faz-nos rever os dados obtidos e interpretá-los à luz da categoria ideologia, uma vez que essa forma de conceber o mundo parece estar tão estruturada nas sociedades capitalistas a ponto de, talvez, fazer parte da própria cultura em que vivemos e mediar nossas relações com o mundo que nos rodeia. Desse modo, poder-se-ia dizer que formas ideologizadas de representar o trabalho fariam parte de programas mentais mentais consubstanciados nessas sociedades.

Contudo, faz-se mister considerar que nem todo pensamento ou nem toda representação mental (seja a ideologia ou outras formas de pensar) é ideológico. Nessa direção, é preciso denunciar a tendência a designar ideológico todo pensamento e, se é assim, a palavra ideologia vai "perdendo seu sentido originário de lógica da ocultação do real para tornar-se sinônimo de conjunto de idéias, confundindo-se, portanto, com toda atividade de pensamento" (Chauí, 1978, cit. em Patto, 1984).

No que tange aos resultados da nossa pesquisa, aqui apresentados, trata-se de interpretá-los sob o prisma dos aspectos ideológicos e por que não dizer culturais, subjacentes ao discurso dos estudantes-trabalhadores, como forma concreta de instrumentar e sedimentar um discurso a serviço da dominação.

  • BRUNS, M. A. T. & Lopes, E. J. (1990). Escola X trabalho: Hiato e utopia. Trabalho apresentado na XX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, SP.
  • CUNHA, L. A. (1975). Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
  • FRANCO, L. A. C. (1988). Educação e trabalho. Revista da ANDE (13).
  • FRANCO, L. A. C. (1985). Escola e mercado de trabalho. Revista de ANDE (9).
  • FRIGOTTO, G. (1989). Trabalho, educação e tecnologia: treinamento polivalente ou formação politécnica. Revista da ANDE (14).
  • GOMES, C. B. (1982). Representação da escola por trabalhadores da cidade de Salvador. Revista de ANDE (5).
  • HOFSTEDE, G. (1986). Culture's consequences: International differences in work-related values. Beverly Hills: Sage Publications.
  • LIBÂNEO, J. C. (1983). Tendências pedagógicas na prática escolar. Revista ANDE (6).
  • LOPES, E. J.; Japur, M. & Tfouni, L. V. (1988). Opção ou conformismo? representação e valorização do trabalho por bóias-frias alfabetizados e não-alfabetizados. Trabalho apresentado na 40Ş Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. São Paulo, SP.
  • LUDKE, M. & André, M. E. D. A. (1986). Pesquisa em educação: Abordagens qualitativas. São Paulo: E. P. U.
  • MARX, K. & Engels, F. (1986). A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec.
  • PATTO, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: Uma introdução à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz.
  • STEPHANECK, P.; Lopes, E. J. & Figueiredo, M. A. C. (1990). Verificação da invariância fatorial da escala VSM de Hofstede. Trabalho apresentado na XX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, SP.
  • (*
    ) Uma versão parcial desta trabalho foi apresentada na XX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 1991
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