Resumo
A pesquisa partiu das inquietações e questionamentos gerados a partir da escuta realizada aos estudantes negros e negras da Universidade Federal de Pelotas no setting terapêutico de estágios curriculares obrigatórios do curso de psicologia. Seu objetivo é compreender os movimentos de (re)existência de estudantes negros e negras em meio a invisibilidade e o silenciamento impostos pelo racismo na perspectiva de contribuir para uma escuta psicológica qualificada. O referencial teórico-metodológico parte do pensamento crítico descolonial. Trata-se de um estudo qualitativo, cuja produção do material empírico ocorreu em abril de 2019. A construção do corpus de análise se deu a partir da realização de entrevistas abertas, gravadas em áudio e transcritas. Participaram das entrevistas quatro estudantes negros e negras que receberam atendimento psicológico pelo projeto de extensão “Diz Aí”. A análise foi organizada em cinco etapas para a identificação de narrativas significativas e que permitiram a sistematização de três eixos temáticos: a) violência racista e produção de subjetividade; b) (re)existência, permanência e enfrentamento ao racismo na universidade; c) o “Diz Aí” como estratégia de (re)existência. A permanência de estudantes negros e negras no espaço universitário está relacionada com as possibilidades de (re)existência e de enfrentamento à violência racista. O encontro entre iguais, a constituição de coletivos negros e a escuta clínica figuram como importantes estratégias para permanecer e existir na universidade, estilhaçando a máscara do silenciamento.
Palavras-chave:
Racismo; Invisibilidade; Silenciamento; Escuta clínica; Pensamento descolonial
Abstract
The choice of the research theme arose from the concerns and questions originated from listening to black students of Federal University of Pelotas in the therapeutic setting of the Psychology Course compulsory curricular internships. This paper analyzes the movements of black student (re)existence amidst the invisibility and silencing imposed by racism so as to contribute to a qualified psychological listening. The theoretical and methodological framework is based on decolonizing critical thinking. This qualitative study used empirical material produced in April 2019. The corpus of analysis selected was recorded and transcribed open interviews applied to four black students who received psychological care by the project ‘Diz Aí’ (Say It). The analysis was organized in five steps to identify meaningful narratives that further allowed systematization into three thematic axes: (i) Racist violence and production of subjectivity; (ii) (Re)existence, permanence and racism fighting in the university; (iii) The project Say It as a strategy of (re)existence. The permanence of black students in the university space is related to the possibilities of (re)existence and fighting against racist violence. Conversion into equals, the building of black collectives and clinical listening are important strategies that must exist and remain in the university as a way to shatter the silencing mask.
Keywords:
Racism; Invisibility; Silencing; Clinical listening; Decolonizing thinking
Resumen
La elección del tema de la investigación ha partido de las inquietudes y cuestionamientos generados a partir de la escucha realizada a los estudiantes negros y negras de la Universidade Federal de Pelotas en el setting terapéutico de las prácticas curriculares obligatorias del grado de Psicología. Tiene como objetivo comprender los movimientos de (re)existencia de estudiantes negros y negras en medio a la invisibilidad y el silenciamiento impuestos por el racismo, en la expectativa de contribuir a una escucha psicológica calificada. El referente teórico-metodológico parte del pensamiento crítico decolonial. Se trata de un estudio cualitativo, y la recopilación del material se llevó a cabo en abril de 2019. La construcción del corpus de análisis se ha dado a partir de la realización de entrevistas abiertas, grabadas en audio y transcritas. Participaron en las entrevistas cuatro estudiantes negros y negras, que han recibido atendimiento psicológico por el proyecto de extensión “Diz Aí”. El análisis ha sido organizado en cinco etapas para identificar narrativas significativas las cuales han permitido la sistematización en tres ejes temáticos: a) Violencia racista y producción de subjetividad; b) (Re)existencia, permanencia y afrontamiento al racismo en la universidad; y c) El “Diz Aí” como estrategia de (re)existencia. La permanencia de estudiantes negros y negras en el espacio universitario está relacionada con las posibilidades de (re)existencia y de afrontamiento a la violencia racista. El encuentro entre iguales, la constitución de colectivos negros y la escucha clínica figuran como importantes estrategias para permanecer y existir en la universidad, destrozando la máscara del silenciamiento.
Palabras clave:
Racismo; Invisibilidad; Silenciamiento; Escucha clínica; Pensamiento decolonial
Introdução
A escolha do tema desta pesquisa partiu das inquietações e questionamentos gerados pela escuta aos estudantes negros e negras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) no setting terapêutico de estágios curriculares obrigatórios do curso de psicologia. As vivências narradas por esses/essas estudantes negros e negras atravessam e habitam nosso corpo político negro a partir dos vínculos construídos, sobretudo por sermos também estudante e professora negras em uma “universidade ocidentalizada”, como refere Grosfoguel (2016Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado , 31(1), 25-49. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003
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).
Com o intuito de nominar tais inquietações e questionamentos, lançamos mão da narrativa de Djamila Ribeiro (2018Ribeiro, D. (2018). Quem Tem Medo do Feminismo Negro? Companhia das Letras., p. 7): “Apesar do orgulho visível em meus olhos, sentia uma força agindo sobre mim que muitas vezes me impedia de falar ou existir plenamente”. Eis um sentimento de inadequação e não-pertencimento vivenciado por muitos dos/as estudantes negros e negras que acompanhamos durante os estágios clínicos.
Assim, com o intuito de acolher esses estudantes, construímos o projeto de extensão “‘Diz Aí’: conversando sobre raça, gênero e sexualidade”, que oferece atendimento psicológico em grupo e individual para pessoas cujo sofrimento psíquico está atravessado transversalmente pela violência racista, de gênero e/ou sexualidade. A partir dos atendimentos, sentimos a necessidade de nominar o que sentíamos, percebíamos e questionávamos sobre algo que não calava somente a voz daqueles estudantes negros e negras, mas sua própria existência. Eis que chegamos à ideia da “máscara do silenciamento” discutida por Grada Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. (J. Oliveira, Trad.). Cobogó. (Obra original publicada em 2008)., p. 33).
Grada Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. (J. Oliveira, Trad.). Cobogó. (Obra original publicada em 2008).) faz uso do conceito de silenciamento como efeito do colonialismo, pois o colonizador, ou seja, o branco tinha medo de ouvir o que poderia ser revelado pelo sujeito negro. Para serem impedidas de falar, refere a autora, as pessoas escravizadas eram obrigadas a utilizar uma máscara que lhes cobria a boca para silenciá-las. Assim, o colonizador não teria que ouvi-las e entrar em desconforto com as verdades negadas e reprimidas do Outro (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. (J. Oliveira, Trad.). Cobogó. (Obra original publicada em 2008)., p. 41).
A máscara representa o controle da possibilidade de pertencimento dos/as colonizados/as por meio da fala, visto que somente aqueles/aquelas que são ouvidos/as podem pertencer. Projeto de silenciamento cuja máscara que silencia as pessoas negras não age somente na impossibilidade do ato de fala, mas, sobretudo, na invisibilidade de seus modos de existência, salienta Djamila Ribeiro (2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento; Justificando., p. 64).
Ocupar seu “lugar de fala” (Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento; Justificando., p. 64) e “tornar-se negro” (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social . Graal., p. 77) não figuram como condições dadas a priori, mas sim como um vir a ser, haja vista que nossa condição existencial está permeada pela ideia de não-humanidade, de não-ser, como salienta Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. da Silveira, Trad.). EDUFBA.).
Nessa perspectiva, lançamos alguns questionamentos: de que modo ser e (re)existir na universidade, em meio à invisibilidade e o silenciamento impostos pelo racismo colonial? De que modo a escuta clínica de vozes silenciadas pode estilhaçar a máscara do silenciamento e da invisibilidade?
A partir destas perguntas, levantamos a necessidade de criar subsídios à clínica psicológica para o reconhecimento do sofrimento produzido pela violência racista; subsídios que tenham a potência de contribuir com a qualificação da escuta clínica de estudantes negros e negras e que criem campos de possibilidades para o enfrentamento do racismo na prática profissional de psicólogos/as.
Assim, o estudo objetiva compreender os movimentos de (re)existência de estudantes negros e negras em meio à invisibilidade e ao silenciamento impostos pelo racismo, na perspectiva de contribuir para uma escuta psicológica qualificada.
O artigo está organizado em seis seções. Na primeira, discutiremos sobre as contribuições da psicologia para o enfrentamento ao racismo. Na segunda, trataremos do percurso metodológico utilizado para a construção da pesquisa. As três seções seguintes apresentam os resultados do estudo no que tange às estratégias de (re)existência construídas pelos estudantes negros e negras. Na última, apresentamos algumas considerações e novos questionamentos sobre o tema do estudo.
Psicologia e racismo
Que o racismo produz adoecimento psíquico nós, negros e negras, sabemos, vivenciamos e experienciamos. Homens e mulheres negras cujas vivências e experiências interpessoais e sociais irão se diferenciar por meio da violência racista.
A manifestação de preconceitos, estereótipos e discriminações gera “situações de violência física e simbólica, que produzem marcas psíquicas, ocasionam dificuldades e distorcem sentimentos e percepções de si mesmo” (Silva, 2005Silva, M. L. (2005). Racismo e os efeitos na saúde mental. In: L. E. Batista, & S. Kalckmann (Orgs.). Seminário saúde da população negra de São Paulo 2004 (pp. 129-132 ). Instituto de Saúde., p. 130). Quando a percepção de si é internalizada de forma negativa, ocorre a pressão emocional, que pode ser percebida ou lida como perturbação do pensamento e do comportamento, pois “instala-se o sentimento de inferioridade, causando constrangimento na relação com seus pares, e favorecendo o aparecimento de comportamentos de isolamento, entendidos, frequentemente, como timidez ou agressividade” (Silva, 2005Silva, M. L. (2005). Racismo e os efeitos na saúde mental. In: L. E. Batista, & S. Kalckmann (Orgs.). Seminário saúde da população negra de São Paulo 2004 (pp. 129-132 ). Instituto de Saúde., p. 131).
O corpo negro, segundo Maria Lúcia Silva (2005Silva, M. L. (2005). Racismo e os efeitos na saúde mental. In: L. E. Batista, & S. Kalckmann (Orgs.). Seminário saúde da população negra de São Paulo 2004 (pp. 129-132 ). Instituto de Saúde.), é atacado constantemente, o que faz com que o racismo incida “diretamente na construção de um autoconceito negativo e desvalorizado sobre si mesmo”, pois o corpo é o que dá a consciência de identidade. Para a autora, “essas situações podem provocar processos de desorganização psíquica e emocional” além de uma imagem distorcida provocada pelo rebaixamento de autoestima gerado pela “exposição constante a situações de humilhação e constrangimento” (Silva, 2005Silva, M. L. (2005). Racismo e os efeitos na saúde mental. In: L. E. Batista, & S. Kalckmann (Orgs.). Seminário saúde da população negra de São Paulo 2004 (pp. 129-132 ). Instituto de Saúde., p. 132).
No entanto, historicamente a psicologia clínica deu pouca atenção para as vítimas de discriminação e preconceito racial. Homens e mulheres negras, ao narrarem suas experiências com a violência racista, ainda são desacreditadas, invisibilizadas e silenciadas, tendo recusada a escuta de suas vivências por profissionais de psicologia. Psicologia clínica, portanto, que, como refere Munanga (2017Munanga, K. (2017). As ambiguidades do racismo à brasileira. In: N. M. Kon, M. L. Silva, & C. C. Abud (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (pp. 33-44). Perspectiva., p.38), vivencia a inércia do mito da democracia racial brasileira, corroborando a afirmativa: “Não somos racistas, os racistas são os outros!”. No entanto, para trabalhar no campo das relações raciais é preciso reconhecer que vivemos em uma sociedade racista - que pessoas têm práticas racistas - e, assim, enfrentar e reparar processos de exclusão e desigualdade, pois não falar sobre o racismo pode aumentar a sensação de que ele é um problema do outro.
A psicologia contribui com a manutenção do racismo quando o/a profissional silencia e invisibiliza mais da metade da população brasileira ao não reconhecer a existência do racismo e de seus efeitos na construção da subjetividade da população negra e não dispor de um arsenal “apropriado para questões de identidade, autoestima, relacionamento interpessoal e dinâmicas psicossociais, grupais e institucionais” na escuta e análise dos efeitos psicossociais do racismo (Conselho Federal de Psicologia, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os. CFP; Conselhos Regionais de Psicologia; CREPOP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/relacoes_raciais_baixa.pdf
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, p. 76).
Com o propósito de sensibilizar e qualificar a escuta clínica sobre a violência racista, o Conselho Federal de Psicologia vem produzindo documentos que orientam a atuação do/a profissional de psicologia, apresentando procedimentos para compreender qual seu papel no enfrentamento ao racismo. O primeiro deles é a Resolução n.º 018/2002, que determina as atribuições legais referentes à prática do psicólogo em relação ao preconceito e à discriminação racial a partir das referências estabelecidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Declaração de Durban, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, pelo art. 5º XLII da Constituição Federal de 1988 e pelos artigos VI e VII dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional dos Psicólogos (Conselho Federal de Psicologia, 2002Conselho Federal de Psicologia. (2002). Resolução CFP nº 018/2002. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2002/12/resolucao2002_18.PDF
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, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo (XIII Plenário). https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo_etica.pdf
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).
A Resolução n.º 018/2002 determina ao/à profissional de psicologia uma postura ética em relação a situações de opressão e marginalização do ser humano. Salienta o papel do psicólogo no enfrentamento ao racismo, assim como a incumbência de potencializar a reflexão e a discussão referente ao impacto do racismo no sofrimento psíquico das pessoas. Em seu artigo 3º, assevera que “os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo” (Conselho Federal de Psicologia, 2002Conselho Federal de Psicologia. (2002). Resolução CFP nº 018/2002. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2002/12/resolucao2002_18.PDF
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, p. 2). Além disso, prevê aos/às psicólogos/as um posicionamento diante de situações de racismo institucional, de forma que sua atuação não colabore para a efetivação dessa cultura discriminatória.
Quinze anos após essa resolução, o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) criou o documento intitulado Relações Raciais: Referências Técnicas para atuação de psicólogos/as (Conselho Federal de Psicologia, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os. CFP; Conselhos Regionais de Psicologia; CREPOP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/relacoes_raciais_baixa.pdf
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), que apresenta cinco eixos que servem como aporte teórico, didático, informativo e norteador para discentes, docentes e profissionais da área: as dimensões históricas, conceituais e ideológico-políticas do racismo; os diversos contextos em que tal fenômeno social aparece; o histórico de enfrentamento político ao racismo no Brasil; a relação da psicologia com a temática; e a postura do/a profissional da psicologia no enfrentamento ao racismo.
O próprio documento do CREPOP apresenta como um marco literário acerca do assunto o livro Tornar-se negro, da psicanalista Neusa Santos Souza e publicado em 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social . Graal.. Sua obra, que traz depoimentos e considerações sobre a população negra em ascensão social no Brasil, compreende uma literatura rica e de extrema importância política. Logo em seu prefácio, temos os apontamentos de Jurandir Freire Costa sobre como a autora observa a violência a qual está acometida a população negra:
Em que consiste esta violência? A autora, sem ambiguidades, aponta-nos seu primeiro traço, visto sob o ângulo da dinâmica intrapsíquica. A violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as prioridades biológicas do seu corpo. Entre Ego e seu Ideal cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor, às custas de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico (Costa, 1983Costa, J. F. (1983). Da cor ao corpo: a violência do racismo (Prefácio). In: N. S. Souza. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Graal. . p. 2-3).
Como resultado desta violência, o documento de referência sobre relações raciais trata dos efeitos psicossociais do racismo às vítimas do mesmo, dentre os quais: crescimento e questionamento, que em suma, consiste na compreensão e enfrentamento do racismo por parte do sujeito; utilização de mecanismos psíquicos defensivos contra o racismo que, em resumo, considera o uso de mecanismo de defesa, como negar ou se identificar com o agressor, como forma de não enfrentar o racismo; e o dilaceramento psíquico, que seria a forma catastrófica de conviver com o racismo, delineando assim o sofrimento psíquico. A compreensão destes efeitos faz-se fundamental para a qualificação da escuta profissional do/a psicólogo/a (Conselho Federal de Psicologia, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os. CFP; Conselhos Regionais de Psicologia; CREPOP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/relacoes_raciais_baixa.pdf
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)
Visto que “o preconceito racial humilha e a humilhação social faz sofrer” (Conselho Federal de Psicologia, 2002Conselho Federal de Psicologia. (2002). Resolução CFP nº 018/2002. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2002/12/resolucao2002_18.PDF
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), é imprescindível uma escuta clínica qualificada diante da violência racista a fim de que narrativas de homens e mulheres negras não sejam ignoradas, incompreendidas, negligenciadas, ou seja, invisibilizadas e silenciadas.
Percurso metodológico
O referencial teórico-metodológico do presente artigo parte do pensamento crítico descolonial. Trata-se de um estudo qualitativo cujo escopo investigou os movimentos de (re)existência de estudantes negros e negras em meio à invisibilidade e ao silenciamento impostos pelo racismo, a partir de narrativas que expressam os sentimentos de inadequação e não-pertencimento nos espaços acadêmicos e sociais.
A produção do material empírico ocorreu em abril de 2019. A construção do corpus de análise se deu na realização de entrevistas abertas, com a pergunta disparadora: “como você se sente sendo um/uma estudante negro/a universitário/a?”. Segundo Minayo (2001Minayo, M. C. S. (Org.). (2001). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade (18a ed). Vozes.), a entrevista contendo perguntas abertas possibilita ao entrevistado expressar-se sem se sentir preso aos questionamentos. Aos participantes, foi permitido falar livremente durante o processo de entrevista sobre os assuntos que emergiram como desdobramentos do tema principal, assim como sugerem Gerhardt e Silveira (2009Gerhardt, T. E., & Silveira, D. T. (2009). Métodos de pesquisa. UFRGS. http://www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005.pdf
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). As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas. Após a transcrição, elas foram enviadas aos participantes para leitura, alteração e complementação de informações. Somente após retorno das entrevistas pelos participantes, constituiu-se o corpus de análise.
Participaram das entrevistas quatro estudantes negros e negras regularmente matriculados/as em cursos de graduação ou pós-graduação da UFPel, que receberam atendimento psicológico pelo projeto de extensão “Diz Aí” entre agosto de 2017 e dezembro de 2018. Para garantir a confidencialidade das informações, foram utilizados pseudônimos de origem africana, bem como foram suprimidas das narrativas transcritas quaisquer informações que possibilitassem a identificação dos participantes: Akin, 27 anos de idade, estudante de Direito; Latifa, 24 anos de idade, estudante de Ciências Sociais; Fayola, 28 anos de idade, estudante de Direito; e Jamila, 44 anos de idade, estudante de pós-graduação.
A participação na pesquisa seguiu as normas do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012Brasil. (2012). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. (2012). Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Conselho Nacional de Saúde. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
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, 2016Brasil. (2016). Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Conselho Nacional de Saúde. http://www.conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
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) que dispõem sobre a realização de pesquisa envolvendo seres humanos. Foi apresentado aos/às participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que, após leitura, foi assinado em duas vias por eles e pelas pesquisadoras, garantindo a tomada de decisão em participar ou não do estudo de forma justa e sem constrangimentos.
O processo de análise foi organizado em cinco etapas: a) leitura preliminar do corpus de análise e identificação de temas emergentes a partir da relação entre pesquisadoras e narrativas; b) leitura minuciosa do corpus de análise para confirmação e emergência de novos temas; c) identificação de relações de interdependência entre os temas e agrupamento desses em eixos temáticos; d) identificação de narrativas significativas e construção de um quadro que interligou as narrativas, os temas e os eixos temáticos; e e) discussão e problematização dos eixos temáticos.
Ao longo da primeira e segunda etapas, emergiram da relação entre pesquisadoras e corpus de análise catorze temas, de modo que a busca pelas relações de interdependência entre eles resultou em três eixos temáticos: a) violência racista e produção de subjetividade; b) (re)existência, permanência e enfrentamento ao racismo na universidade; e c) o “Diz Aí” como estratégia de (re)existência.
Violência Racista e Produção de Subjetividade
O “Negro” é aquele “que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 11), aquele que é invisibilizado e silenciado mediante a hierarquização do humano em superiores e inferiores, racionais e irracionais, modernos e tradicionais, civilizados e primitivos, cuja ideia de raça consolida o racismo colonial (Quijano, 2010Quijano, A. (2010). Colonialidade do poder e classificação social. In: B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez. ).
A violência racista, portanto, é aqui compreendida como a ação ou o efeito de empregar a ideia de raça e de hierarquização do humano nas relações sociais e interpessoais, produzindo a invisibilização, o silenciamento e a subalternização de sujeitos negros/as racializados/as. A violência racista, em meio à colonialidade do poder, produz efeitos na construção subjetiva de homens e mulheres negras.
Conforme Quijano (2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: E. Lander, (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas (Colección Sur, pp. 107-130). CLACSO.), a colonialidade do poder refere-se a um “padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado” (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: E. Lander, (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas (Colección Sur, pp. 107-130). CLACSO., p. 126), cujas relações de poder subalternizam sujeitos e conhecimentos. Ela expressa um modelo hegemônico global, que articula raça, trabalho, subjetividades, sexualidade, contextos geopolíticos de acordo com a necessidade do capital e para o benefício de determinadas populações em detrimento de outras (Quijano, 2007Quijano, A. (2007). Colonialidad del poder y clasificación social. In: S. Castro-Gómez, & R. Grosfoguel (Orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 93-126). Siglo del Hombre; Universidad Central; Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos; Pontificia Universidad Javeriana; Instituto Pensar.).
Assim, a violência racista e a colonialidade do poder produzem efeitos sobre a construção subjetiva da masculinidade do homem negro, por exemplo. Estereótipos sexuais reforçam que o homem “negro tem uma potência sexual alucinante” (Fanon, 2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. da Silveira, Trad.). EDUFBA., p. 131), é o reprodutor, o próprio falo em sua existência primeira, como relata Akin: “Na questão sexual tem muita piada quanto a nossa virilidade, como se todos nós fossemos meio selvagem . . . , esse estereótipo da hiperssexualização, como se a gente fosse quase um bicho reprodutor”.
As mulheres negras, segundo bell hooks (2006hooks, b. (2006). Vivendo de amor. In J. Werneck (Org.). O Livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe (2a ed.). Pallas; Criola.), carregam em seus corpos os efeitos da violência racista que se manifesta nas dificuldades de vivenciar e expressar o amor nos âmbitos de seus relacionamentos afetivos ou familiares, comprometendo a sua autoestima.
Um dos principais exemplos . . . foi a questão de relacionamentos, o qual sempre deixaram muito bem esclarecidos que eu nunca seria uma pessoa não só desejável, mas uma pessoa digna de ser amada. Então realmente eu sempre entro em embate em questão de: será que essa pessoa realmente, mesmo em questão de amizade, essa pessoa realmente tem uma aliança comigo? Tem um envolvimento comigo? Porque me ensinaram isso, me ensinaram que eu não posso sentir o mínimo de humanização . . . . Quando eu comecei a debater comigo mesma foi um dos ápices dos meus surtos, eu não podia me dar o direito de me dar um pouco de humanização, ser um pouco humana, eu não podia me dar o direito de fraquejar, descansar, eu não podia me dar o direito de pensar que alguém poderia me tratar bem, um simples tratar bem, uma simples gentileza, eu não posso aceitar porque para mim não existe isso, num envolvimento e numa educação tão hostil que nem eu vivi, tão violenta eu não poderia receber isso (Latifa, 24 anos).
Essa dificuldade de vivenciar e expressar o amor manifestado por Latifa é uma forma de proteção ante aos ataques de uma sociedade racista e sexista, que impossibilita à mulher negra reconhecer sua vida intima e afetiva como importantes. Para amar, as mulheres negras precisam exercitar a resistência.
Conforme Munanga (2017Munanga, K. (2017). As ambiguidades do racismo à brasileira. In: N. M. Kon, M. L. Silva, & C. C. Abud (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (pp. 33-44). Perspectiva.), o racismo está presente em diversas sociedades contemporâneas, atravessando a cultura, as instituições e o cotidiano das relações interpessoais. Deste modo, podemos dizer que a violência racista nos atinge no mais cotidiano de nossas relações sociais e interpessoais. Porém, existem pessoas que não enxergam ou preferem não enxergar seu racismo diário (Munanga, 2017Munanga, K. (2017). As ambiguidades do racismo à brasileira. In: N. M. Kon, M. L. Silva, & C. C. Abud (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (pp. 33-44). Perspectiva.) e a violência racista que produzem.
Ao pôr em discussão a segregação silenciosa vivida pela população negra, Isildinha Nogueira (2017Nogueira, I. B. (2017). Cor e Inconsciente. In: N. M. Kon , M. L. Silva , & Abud C. C. (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (pp. 121-126). Perspectiva., p. 122) traz o conceito de “apartheid psíquico”. A autora faz referência aos sentimentos persecutórios vivenciados por homens e mulheres negras devido à negação do racismo e à afirmativa branca da vivência de uma perseguição sem razão. Ela salienta, ainda, que homens e mulheres negras continuam sendo afetadas pelas marcas inscritas em sua subjetividade, mesmo que hoje se saiba do significado de ser negro, assim como sua implicação social e histórica.
“Ser duas vezes melhor!”. Frase naturalizada que muitas pessoas negras crescem ouvindo, e que gera, segundo Isildinha Nogueira (1998Nogueira, I. B. (1998). Significações do Corpo Negro [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo., p.79), o sentimento “de nunca sermos suficientemente bons nas relações ou funções por nós assumidas”.
Qualquer coisa que a gente vá conquistar na vida parece que nós homens negros temos que se esforçar um pouco mais que os outros se a gente quer emprego. Então além de ser competente tu tens que se esforçar para ter uma aparência um pouco melhor ou para compensar, por exemplo, se tu não tens a aparência que a sociedade espera que tu tenhas. Tu tens que, então, ser um cara bem desenvolto, tu tens que ter um linguajar muito refinado muitas vezes, ou tu tens que ser um cara muito engraçado e se tu não consegue isso, então tu não consegues ser duas vezes melhor, e aí vem as dificuldades (Akin, 27 anos).
As aspirações em sermos os melhores e exemplares, segundo Isildinha Nogueira (1998Nogueira, I. B. (1998). Significações do Corpo Negro [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo., p.79), representa “a impossível superação do incômodo de sermos portadores de um corpo negro”. Corpo que pela impossibilidade de existir em uma sociedade marcada pela violência racista, vivenciará a invisibilidade e o silenciamento -eis as dificuldades apontadas por Akin.
A sociedade brasileira atualiza constantemente o silenciamento e a invisibilidade de homens e mulheres negras na medida em que as pessoas brancas não se reconhecem racista e, ao mesmo tempo, reproduzem a ideia de inferioridade e/ou não humanidade de pessoas negras em suas práticas cotidianas. Silenciamento e invisibilidade produzem efeitos sobre a subjetividade e a intersubjetividade de pessoas negras, provocando, segundo Maria Lucia Silva (2005Silva, M. L. (2005). Racismo e os efeitos na saúde mental. In: L. E. Batista, & S. Kalckmann (Orgs.). Seminário saúde da população negra de São Paulo 2004 (pp. 129-132 ). Instituto de Saúde.), um sentimento de inferioridade.
A construção subjetiva da pessoa negra é forjada pela violência racista implícita e explícita que irá lhe produzir o desejo de negar elementos que remontam a sua matriz civilizatória africana, para colocar no lugar o ideal de ser branco, como já discutido por Frantz Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. da Silveira, Trad.). EDUFBA.) e Neusa Santos Souza (1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social . Graal.). Nessa perspectiva, Isildinha Nogueira (1998Nogueira, I. B. (1998). Significações do Corpo Negro [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo., p. 116) refere que “a condição de existência do negro se define a partir da noção de não ser branco”, de modo que “ser branco é a condição que conteria a possibilidade da não rejeição do olhar do outro e, portanto a possibilidade de se ver, no outro, reconhecido como igual”.
Eis a alteridade, enquanto dispositivo que constitui nossa existência na relação com o sujeito branco, afinal, quando a pessoa negra tenta negar e anular a si mesmo a partir da negação do seu corpo, torna-se sujeito do “outro” (Nogueira, 1998Nogueira, I. B. (1998). Significações do Corpo Negro [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo., p. 90). Para essa autora, “ser sujeito é, portanto, ser outro”, de modo que “ser outro é não ser o próprio sujeito, no caso do negro” (Nogueira, 1998Nogueira, I. B. (1998). Significações do Corpo Negro [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo., p. 90).
Na perspectiva de pensar a alteridade na relação entre sujeitos negros e brancos, Mbembe (2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 26) faz referência ao “altericídio”, que consiste em “constituir o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou destruir”. Altericídio este que produz sentimento de inadequação e de não pertencimentos em homens e mulheres negras.
A violência racista constitui o espaço universitário de tal modo que, às vezes, nós, pessoas negras, não queremos ir para a universidade porque não nos enxergamos nela, nas aulas, nos corredores, além de sermos violentados direta ou indiretamente pelos professores em sala de aula, como salienta Latifa:
Uma das épocas mais tristes que eu passei foi quando eu desisti de querer estudar, de querer estar dentro do curso. Foi quando uma professora minha branca, foi racista comigo na frente da minha turma inteira . . . . Eu fiquei longe, nunca mais fui à aula, não tem como. Eu fui largando aos poucos, mas depois eu larguei tudo de vez. Eu demorei muito a me interessar por estudar, acho que fiquei um ano e meio onde estudar me doía. Só agora depois de dois anos eu estou voltando a estudar (Latifa, 24 anos).
Mas afinal, de que modo as ideias sobre alteridade, trazidas por Isildinha Nogueira (1998Nogueira, I. B. (1998). Significações do Corpo Negro [Tese de doutorado não publicada]. Universidade de São Paulo.), e de altericídio, apresentadas por Mbembe (2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013).), ao mesmo tempo em que constituem o sujeito negro na negação do branco - enquanto objetivo ameaçador desse branco -, podem provocar movimentos de (re)existência, no sentido de existir novamente quantas vezes for necessário na busca pela afirmação de sua humanidade? De que modo é possível produzir movimentos de (re)existências diante da “razão negra” constituinte da violência racista que, por sua vez, produz efeitos sobre nossos corpos políticos negros e nossa constituição subjetiva?
A “razão negra” consiste “num conjunto de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates” que objetificam o “Negro” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 57), conjunto de discursos e de práticas sobre o “Negro” que compõem por meio de um trabalho cotidiano de “inventar, contar, repetir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais, com o objetivo de fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 58).
“Razão negra”, portanto, que produz uma “consciência ocidental do Negro” em meio aos questionamentos do colonizador: “quem é ele?”, “como o reconhecemos?”, “o que o diferencia de nós?”, “poderá ele tornar-se nosso semelhante?”, “como governá-lo e para que fins?” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 58).
O discurso da “consciência ocidental do Negro” foi aos poucos ganhando tons desafinados, vozes dissonantes que o contradiziam e o contestavam a partir da “consciência negra do Negro” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 62). Como resposta às interrogações anteriores, são produzidos novos questionamentos, agora na primeira pessoa do singular: “quem sou eu?”, “serei eu, em boa verdade, quem dizem que eu sou?”, “será verdade que não sou nada a não ser isto - a minha aparência, aquilo que se diz e se quer de mim?” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 58).
Nesta perspectiva, a estudante Latifa afirma: “tem aquela coisa do senso comum de que eu sou morena, mas, eu tenho consciência de que sou negra”. Ou seja, a “consciência negra do Negro” se apresenta a partir do gesto de autodeterminação que vem acompanhado de um “modo de presença em si, olhar interior e utopia crítica” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 58). Mbembe (2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 59) refere, ainda, que “se a consciência ocidental é um julgamento de identidade”, a “consciência negra do Negro” é o oposto, ou seja, “uma declaração de identidade”. Por meio dessa consciência, “o Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar onde não é pensado” (Mbembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. (M. Lança, Trad.). Lisboa: Antígona. (Obra original publicada em 2013)., p. 59).
A construção subjetiva do “Negro”, ao considerar a relação entre a “consciência ocidental do Negro” e a “consciência negra do Negro”, trará consigo vestígios de uma ou de outra, quando não de ambas. Afinal, estas consciências são elementos constitutivos das relações de poder a partir das quais o “Negro” é construído, de maneira ambivalente, como alteridade racial.
Conforme Neusa Santos Souza (1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social . Graal., p. 77), ser negro é tomar consciência do processo ideológico que nos aprisiona; é “criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração”. Ser negro para a autora é, portanto, “tornar-se negro”, ou seja, constitui uma postura política, pois ao assumir essa posição, rompe-se com o modelo de organização social no qual se está inserido. Eis o corpo político negro. Latifa narra a sua experiência de tornar-se negra:
Foi um processo doloroso, eu fiquei muito tempo e eu digo anos, eu estou a cinco anos dentro disso me descobrindo. Foi, eu acho que a situação que eu mais entrei em crise . . . . Foi a situação mais difícil, porque eu consegui ver o quanto embranquecida eu estava e eu entrei em embate com isso, porque eu tive que expulsar meu embranquecimento e tive que me enegrecer. Nisso eu consegui ver realmente as sequelas e os machucados que o racismo fez (Latifa, 24 anos).
Assim, se a violência racista está estruturada socialmente na negação da humanidade de sujeitos negros, o seu enfrentamento necessita passar pela afirmação e visibilização dessa humanidade. Este é um importante movimento de (re)existência que homens e mulheres negras já produzem por meio da militância, da resistência política e de ações na vida cotidiana. (Re)existência a partir da busca pelo estilhaçamento de silenciamentos e invisibilidades. (Re)existência construída na busca pelo pertencimento.
No entanto, ainda necessitamos do movimento de homens e mulheres brancas se perceberem como sujeitos racializados e, deste modo, se comprometerem com o enfrentamento à violência racista por eles/elas produzida. Eis um desafio para a escuta clínica de psicólogos/as brancos/as.
(Re)existência, Permanência e Enfrentamento ao Racismo na Universidade
Homens e mulheres negras vivenciam desde muito cedo a violência racista em espaços de construção de conhecimento. A escola é um lugar de socialização e subjetivação que “contribui significativamente para o desenvolvimento intelectual, cultural, social e pessoal” (Benedito, 2018Benedito, M. S. (2018). A relação entre psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital Teses e Dissertações USP. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-04092018-102726/pt-br.php.
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, p. 23). No entanto, ainda segundo a autora, as crianças negras têm sua permanência violada por “desqualificações e exclusões vivenciadas nesse espaço”, constituindo-se como apenas um dos primeiros a produzir sofrimento em virtude do racismo.
Eu acho que pode ter começado de verdade antes do pré, eu tinha quatro anos, foi o meu primeiro contato de verdade com o racismo, só que eu realmente não entendia. Eu era a única pessoa negra dentro da salinha junto com as outras criancinhas e por algum motivo, elas decidiram me excluir, me deixar sentada sozinha. Cada vez que eu me aproximava delas elas saiam correndo e iam sentar em outra mesa, onde eu não estava . . . . Eles [a instituição escolar] não viram nada de errado eu estar sempre sozinha, eles não viram nada de errado em eu sentar excluída. Então já começou por aí, de eu começar a entender que eu não tinha amigos, que era uma exclusão completa (Latifa, 24 anos).
Desde muito cedo, Latifa recebeu a mensagem da instituição escolar que não pertencia àquele espaço. Para Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. (J. Oliveira, Trad.). Cobogó. (Obra original publicada em 2008).), ser pertencente está diretamente relacionado com ser ouvido. Latifa não foi ouvida. Mas, como ser ouvida e ter a fala legitimada quando se escuta que seu corpo é impróprio para pertencer a algum lugar? Quando se é convidado para “voltar” a seu lugar, ou seja, fora da universidade? São estas indagações que fazem com que os sentimentos de inadequação e de não-pertencimento acompanhem estudantes negros e negras no espaço universitário. Conforme Renata Gonçalves e Gabrielle Ambar (2015Gonçalves, R., & Ambar, G. (2015). A questão racial, a universidade e a (in)consciência negra. Lutas Sociais, 19(34), 202-213. , p. 207), eles “são percebidos e se veem como corpos estranhos a este ambiente”.
Mesmo diante de tamanho estranhamento, muito estudantes negros e negras permanecem na universidade, resistem e (re)existem. Portanto, a questão: o que os faz (re)existir e permanecer?
A permanência “é o ato de durar no tempo que deve possibilitar não só a constância do indivíduo, como também a possibilidade de transformação e existência”; (trans)formação de “todos e de cada um” que se dá na possibilidade de ser reconhecido, de se identificar com os demais estudantes e de vivenciar a universidade (Santos, 2009Santos, D. B. R. (2009). Para além das cotas: a permanência de estudantes negros no ensino superior como política de ação afirmativa [Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia]. Repositório Institucional UFBA. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/11778
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, p. 68). Transformação produzida no ato de permanecer e de romper com o silenciamento de nossos corpos e de nossas vozes que, por sua vez, transformam a própria universidade na medida em que passam a questionar a universalidade de saberes e práticas hegemônicos.
Não obstante, para o estilhaçamento da máscara do silenciamento no contexto da clínica psicológica, Maria Lúcia Silva (2017Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: questões para psicanalistas brasileiros. In: N. M., Silva, M. L. Kon, & C. C. Abud (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (pp. 71-89). Perspectiva.) salienta a necessidade do reconhecimento das condições sociais, históricas e raciais da população negra, bem como o conhecimento sobre o impacto que estas condições têm na construção subjetiva de homens e mulheres negras. Conceição Evaristo (2017)Evaristo, C. (2017, maio 13). Conceição Evaristo: Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/conceicao-evaristo-201cnossa-fala-estilhaca-a-mascara-do-silencio201d
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, em entrevista para Djamila Ribeiro ao site Carta Capital, salienta que o estilhaçamento ocorre de forma simbólica quando falamos com potência pelos orifícios da máscara. Eis uma pista sobre (re)existência e permanência.
A permanência está relacionada com “as possibilidades de (re)existência no curso e na universidade, mediante o enfrentamento à lógica racista colonial” (Alves & Amaral, 2018Alves, M. C., & Amaral, T. C. (2018). Ações afirmativas, subjetividades e (re)existências: estudantes negros e negras cotistas no curso de Psicologia da UFPEL. In: M. E. Calazans, M. G. Castro, & E. Piñeiro (Orgs.). América Latina: corpos, trânsitos e resistências. (Vol. 2, pp. 97-124). Editora Fi., p. 113), mediante o encontro entre iguais e a constituição de coletivos negros.
Estar nesta universidade para mim é um orgulho muito grande, ver diariamente o curso onde estou cheio de pessoas negras me motiva bastante . . . a gente se vê em níveis de igualdade, sabe que o que eu sinto pode ser algo semelhante ao que outra pessoa sentiu, então tu sente um porto seguro em ver mais pessoas negras ali (Fayola, 28 anos).
Para Fayola, a presença e o encontro de corpos políticos negros na universidade constituem-se num porto seguro para estar, resistir e (re)existir neste espaço até então desconhecido. E, na medida em que os/as estudantes se apropriam do espaço universitário, passam a reivindicar, como refere Djamila Ribeiro (2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento; Justificando., p. 64), não só o seu lugar, mas o lugar de fala de toda a “intelectualidade negra”, na perspectiva de que “o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir”. Nesse sentido, Latifa salienta: “É muito difícil e muito desgastante, principalmente, tu ser a única pessoa consciente que vá peitar e afrontar a academia, a estrutura da academia na questão de falar sobre racismo. Falar sobre estudos negros, falar sobre estudos negros intelectuais”.
Conforme Djamila Ribeiro (2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento; Justificando., p. 64), “quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social”. Ou seja, do lugar social de enunciação e do quanto o não-lugar e o silenciamento imposto pela colonialidade do poder dificultam transcender a lógica da hierarquização dos saberes.
Para dar suporte à situação narrada por Latifa, os coletivos são constituídos. Uma vez inseridos/as entre os pares, os/as estudantes negros/negras se sentem acolhidos e com liberdade para se expressarem. A coletividade, nesse sentido, é o que possibilita a (re)existência, pois “a voz solitária ganha força e sentido quando ecoa em muitas bocas, produzindo fissuras no silenciamento” (Alves & Amaral, 2018Alves, M. C., & Amaral, T. C. (2018). Ações afirmativas, subjetividades e (re)existências: estudantes negros e negras cotistas no curso de Psicologia da UFPEL. In: M. E. Calazans, M. G. Castro, & E. Piñeiro (Orgs.). América Latina: corpos, trânsitos e resistências. (Vol. 2, pp. 97-124). Editora Fi., p. 114).
Nas palavras do estudante Akin, existe a necessidade de formar grupos “com o objetivo de combater a solidão intelectual” que a universidade nos impõe. Formar espaços e “movimentos de (re)existir e viver a universidade mediante a construção de um lugar de fala legitimada pelo coletivo” (Alves & Amaral, 2018Alves, M. C., & Amaral, T. C. (2018). Ações afirmativas, subjetividades e (re)existências: estudantes negros e negras cotistas no curso de Psicologia da UFPEL. In: M. E. Calazans, M. G. Castro, & E. Piñeiro (Orgs.). América Latina: corpos, trânsitos e resistências. (Vol. 2, pp. 97-124). Editora Fi., p.115), de modo a provocar abertura para epistemologias antirracistas. Ainda segundo as autoras, estudantes negros e negras constroem estratégias de enfrentamento ao racismo no espaço universitário por meio do apoio mútuo provocado pelo encontro entre iguais, no processo de afirmação pessoal e grupal e de formação política. Neste sentido, os coletivos têm a potência de visibilizar as demandas dos/as estudantes negros e negras, fomentar os debates sobre relações raciais e ampliar a representatividade negra na universidade. Akin é assertivo ao afirmar que “os alunos [negros/as] estão começando a dar andamento nisso. . . , não aceitar mais e se juntar com outras pessoas. Estão denunciando os comportamentos racistas”.
Coletivos negros estes que provocam o ato de “autodefinição” do ser estudante negro/negra universitária, conforme conceito trabalhado por Patricia Hill Collins (2016Collins, P. H. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, 31(1), 99-127. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
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, p. 102). Ou seja, a autodefinição valida o poder enquanto estudantes negros e negras, enquanto intelectuais e enquanto sujeitos humanos. Nesse sentido, Latifa refere-se:
Eu não dizia que era negra, eu sempre me rebaixava para menos, dizia que era morena, que era uma mistura, era qualquer coisa menos negra. Mas com mais estudos, quando tive contato de verdade com estudos negros, foi quando eu realmente me assumi e tive um olhar mais crítico sobre a situação (Latifa, 24 anos).
E Fayola complementa: “Depois que ingressei na universidade eu me empoderei ainda mais . . . . Aos poucos as coisas estão mudando, a gente está conseguindo ocupar nosso espaço, a gente está mostrando do que somos capazes”. Segundo Berth (2019Berth, J. (2019). Empoderamento (Feminismos Plurais). Pólen., p. 21) empoderar seria conduzir os sujeitos por diferentes estágios de “autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento de si mesmo”, conforme evidenciada pela narrativa de Jamila:
Muitas pessoas diziam que era um curso para intelectual, que era para filhinho de papai que vinha passar uma temporada de quatro anos em Pelotas e que era um curso que não dava base de emprego para lugar nenhum. E se dava, se sabia muito bem quem eram os escolhidos . . . . O meu conhecimento, o que aprendi, a minha experiência ninguém vai me tirar, ninguém pode me tirar. Isso é uma coisa que aprendi e quando é da gente ninguém tira (Jamila, 44 anos).
O prefixo “auto” é o maior indicativo que o processo de empoderamento produz transformação efetiva a partir de movimentos internos do sujeito; pessoas empoderadas são importantes, mas não são um fim em si, pois somente por meio de uma coletividade empoderada é possível promover alterações nas estruturas sociais (Berth, 2019Berth, J. (2019). Empoderamento (Feminismos Plurais). Pólen.). Portanto, pensar em empoderamento é pensar em agrupamento de ações antirracistas.
O “Diz Aí” como Estratégia de (Re)existência
O projeto de extensão “‘Diz Aí’: conversando sobre raça, gênero e sexualidade” tem na interseccionalidade um conceito chave para pensar e organizar o cuidado e a escuta clínica no campo da psicologia. Segundo Crenshaw (2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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, p. 177), a interseccionalidade “é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Nesse sentido, o “Diz Aí” tem possibilitado a construção de uma escuta clínica politizada e engajada no enfrentamento ao racismo, sexismo e homo/transfobia, pois visibiliza, acolhe, reconhece e legitima as pessoas, suas narrativas e seus sofrimentos.
O grupo terapêutico tem se constituído como um espaço potente de fala e escuta das vivências e experiências ali compartilhadas, mas, sobretudo, um espaço onde é possível nomear as violências vivenciadas; fundamentalmente, a racista.
No grupo tu dá oportunidade da pessoa falar como ela se sente e o que é realmente o racismo, de que formas ele pode ser expressado, como ele pode acontecer. Eu acho que é extremamente importante falar sobre esta temática . . . , normalmente eu abordo isso [racismo] ouvindo o relato de outro colega que está na terapia que fala sobre isso, aí eu explano (Fayola, 28 anos).
Assim como no coletivo negro, o grupo terapêutico se torna um espaço de (re)existência a partir da identificação com o outro e das relações de amizades e de convivência construídas para além da sala de aula, como se referem Akin e Latifa:
Tem sido interessante, principalmente pelo fato de conversar com outras pessoas que também são semelhantes, de também terem sofrido racismo, de terem se sentido triste de não se sentir 100% inclusas na sociedade. É um autoconhecimento, isso tem me ajudado a me autoconhecer, a descobrir formas de como confrontar isso sem ficar numa tristeza tão profunda. Acho que o grupo é positivo nesse sentido. Questões também de amizade, muito bom conhecer mais pessoas que se parecem conosco dentro da universidade, que tenham também uma visão parecida (Akin, 27 anos).
Me traumatizaram, tanto que eu entrei para o grupo também por causa das consequências disso. Um dos N motivos foi que eu não sabia conviver, eu não sabia conviver em ciclo de amizade, eu não sabia conviver com outra pessoa, eu não sabia me abrir, eu não sabia ter um vínculo porque isso nunca me foi permitido. E cada vez que eu tentava ter, as pessoas eram muito inescrupulosas . . . , elas eram muito cruéis e falsas (Latifa, 24 anos).
Não obstante, os estudantes entrevistados além de enfatizarem a importância do convívio e da troca de experiências entre iguais a partir do grupo terapêutico, salientam a importância da presença do psicólogo/a negro/a no setting terapêutico. Jamila menciona: “Cheguei e identifiquei tu como uma mulher negra, eu me senti segura”; e Fayola complementa: “A gente se sente mais seguro, se sente melhor para se abrir, falar as coisas, porque é um dos teus ali contigo”. Akin corrobora com a ideia, ao afirmar que:
O terapeuta sendo da nossa mesma cor, ele vai ter observado, vai ter olhado para as questões que a gente passa com um olhar bem semelhante. Então, talvez ele tenha um cuidado que os demais terapeutas nessa questão. Eles vão ter uma empatia melhor, vão ter uma sensibilidade mais apurada em relação a isso e talvez eles consigam identificar na vida deles experiências que nos ajudem bastante. Então eu acho super relevante, um diferencial, mas não que outras pessoas não consigam também ver isso né, mas eu acho que o esforço é maior (Akin, 27 anos).
As narrativas de Jamila, Fayola e Akin salientam a importância do exercício do/a psicólogo/a, branco/a ou negro/a, implicar-se com a experiência de vivenciar o racismo cotidianamente, abrindo caminhos para maior compreensão do sofrimento psíquico produzido por essa violência. Além de manter sua escuta clínica na singularidade do sujeito, o/a psicólogo/a deve fazê-lo em diálogo com a cena social e política que irão atualizar o racismo no conjunto das relações sociais e interpessoais. Eis uma postura ética-política na clínica psicológica antirracista.
Portanto, como afirma Akin, psicólogos/as brancos/as podem ter amparo teórico e técnico para qualificarem sua escuta clínica no atendimento às pessoas negras. No entanto, para que iniciem um processo de construção de uma clínica política antirracista, necessitam olhar para os privilégios da branquitude e seus efeitos no setting terapêutico.
Jamila, Fayola e Akin, ao narrarem suas vivências no projeto de extensão “Diz Aí”, são enfáticos ao dizerem que para falar sobre racismo e os sofrimentos por ele produzidos, sentem-se confortáveis e melhor acolhidos diante de psicólogos/as negro/as; diante da identificação com um corpo negro aberto a uma escuta clínica engajada e politizada.
Eu acho que profissionais da psicologia negros atendendo estudantes negros a gente está em família . . . eu me sinto acolhida. Então eu acho assim, tem que ter mais profissionais em todas as áreas para acolher, porque a gente, eu não vou dizer que não me dou bem com pessoas brancas, não é isso, eu me dou bem, mas eu me sinto em casa com gente da minha gente. E eu acho que é por isso que eu consegui falar, me abrir tanto contigo nas conversas, coisas que eu levaria muito mais tempo com outra pessoa branca. Contigo foi diferente, eu acho que essa questão é de afinidade, mas é questão de cor também, isso que eu senti (Jamila, 44 anos).
Esse sentimento de acolhimento é fruto de uma escuta clínica política legitimada pela capacidade de compreensão da violência racista que o/a psicólogo/a negro/a possui a partir de suas próprias vivências. O desafio está na capacidade do/a psicólogo/a branco/a criar possibilidade de abertura ao sujeito negro no setting terapêutico a partir da compreensão da sua branquitude e do quanto ela produz a violência racista.
Considerações Finais
Enquanto mulheres negras do campo “psi”, estamos sempre atentas a essa violência que insiste em invadir nosso corpo político negro. Percebemo-nos em vigilância perante as experiências que sucumbem a toda e qualquer violência racista vivida por todo e qualquer corpo político negro, pois foram vários os momentos em que escutamos e/ou percebemos a desvalorização de narrativas que traziam em seu cerne o racismo.
No contexto universitário Akin, Latifa, Fayola e Jamila (re)existem em meio à invisibilidade e ao silenciamento impostos pelo racismo colonial, na medida em que lançam mão de espaços coletivos formados por pessoas negras e buscam o fortalecimento das relações interpessoais e da qualificação acadêmica e política entre iguais. Portanto, a coletividade negra constitui-se como o alicerce que viabiliza e potencializa a permanência desses estudantes negros e negras na universidade.
Quanto a possibilidade da escuta clínica de vozes silenciadas estilhaçar a máscara do silenciamento e da invisibilidade de pessoas negras, o indicativo dos estudantes entrevistados está na presença do/a psicólogo/a negro/a e na aposta de que os/as psicólogas brancos/as exercitem a compreensão da sua branquitude e do quanto ela produz a violência racista.
Assim, legitimar o sofrimento produzido pela violência racista constitui-se num desafio para psicólogos/as brancos/as. Afinal, psicólogos/as brancos/as necessitam lidar com sua própria racialidade, com seu privilégio branco. Ou seja, os/as psicólogos/as brancos/as precisam reconhecer o lugar social de privilégio que a ideia de raça lhes impõe, além de, como refere Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. da Silveira, Trad.). EDUFBA., p. 44) “ajudar o negro a se libertar do arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial”. Eis questões que necessitam ser aprofundadas na perspectiva de qualificar a escuta clínica de psicólogos/as brancos/as.
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Agradecemos nossas interlocutoras e interlocutores pela disponibilidade e afetos vivenciados na construção desse estudo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Mar 2021 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
14 Out 2019 -
Aceito
20 Nov 2019