Open-access Psicologia Brasileira e Políticas Públicas: Capturas e Resistências

Brazilian Psychology and Public Policies: Sequestration and Resistances

Psicología Brasileña y Políticas Públicas: Capturas y Resistencias

Resumo

Este texto discute a atuação da Psicologia nas Políticas Públicas em nosso país, apontando para a necessidade de desmonte da ainda dominante subjetividade universal e centrada no indivíduo, bem como a possibilidade de resistência entendida como invenção. Para tal, discorre acerca de algumas instituições que devem ser enfrentadas: a colonialidade do poder, a branquitude e a interseccionalidade em diálogo com as ideias de Deleuze e Guattari. O funcionamento macropolítico dessa tríade busca a reprodução de situações de hierarquia, desqualificação e exclusão, mantidas na micropolítica do cotidiano por meio de microfascismos que miniaturizam a necessidade de igualar e julgar. Além dos microfascismos, temos a perspectiva de uma micropolítica ativa que se faz por transversalidade e pelo agenciamento com a diferença. Ao sustentar a imanência dessa macropolítica em micropolíticas, insistimos na indissociabilidade da interioridade/exterioridade e indivíduo/social, para um futuro da Psicologia que sustente a complexidade e a invenção da nossa profissão. Concluímos que é preciso operar para a resistência e invenção convocando o coletivo para fazer uma psicologia brasileira à altura do nosso tempo.

Palavras-chave: Políticas Públicas; Colonialidade; Micropolítica; Resistência

Abstract

This paper discusses the role played by Psychology in Brazilian public policies, pointing to the need to dismantle the still dominant universal and individual-centered subjectivity, as well as the possibility of resistance understood as invention. For this purpose, it scrutinizes some institutions that must be confronted: the coloniality of power, whiteness and intersectionality, dialoguing with authors such as Gilles Deleuze and Félix Guattari. The macro-political functioning of this triad seeks to reproduce situations of hierarchy, disqualification, and exclusion, upheld in everyday life micropolitics by micro-fascisms that miniaturize the need to equalize and judge. Beyond these micro-fascisms, we observe an active micropolitics established by transversality and by agencying difference. By upholding the immanence of this macro-politics in micropolitics, we insist on the inseparability of interiority/exteriority and individual/social, for a future Psychology that asserts the complexity and invention of our profession. In conclusion, we must strive for resistance and invention by calling on the collective to make a Brazilian psychology that matches our time.

Keywords: Public Policies; Coloniality; Micropolitics; Resistance

Resumen

Este trabajo discute el papel de la Psicología en las Políticas Públicas en Brasil, señalando la necesidad de desmontar la subjetividad universal e individualista aún dominante, así como la posibilidad de resistencia entendida como invención. Para ello, se plantean algunas instituciones a las que hay que enfrentarse: la colonialidad del poder, la blancura y la interseccionalidad en diálogo con Gilles Deleuze y Félix Guattari. El funcionamiento macropolítico de esta tríada busca reproducir situaciones de jerarquía, descalificación y exclusión, mantenidas en la micropolítica de la vida cotidiana a través de microfascismos, que miniaturizan la necesidad de igualar y juzgar. Más allá de los microfascismos tenemos la posibilidad de una micropolítica activa que se hace a través de la transversalidad y de la agencia con la diferencia. Al sostener la inmanencia de esta macropolítica con la micropolítica, insistimos en la inseparabilidad de la interioridad/exterioridad y de lo individual/social hacia un futuro de la Psicología que sostenga la complejidad y la invención de nuestra profesión. Concluimos que es necesario operar para la resistencia y la invención convocando al colectivo para hacer una psicología brasileña a la altura de nuestro tiempo.

Palabras Clave: Políticas Públicas; Colonialidad; Micropolítica; Resistencia

Políticas públicas, individualismos e desafios

Vivemos em um país com enormes desigualdades estruturais que interferem diretamente nos processos de subjetivação dos que aqui vivem. No final da década de 1970, na tentativa de diminuir a cisão entre os privilegiados e os excluídos, presenciamos uma série de movimentos sociais que desembocaram na constituição de 1988, em busca de um sistema de seguridade social que reconhecesse o direito às estruturas democráticas e à proteção social para toda a população. Os direitos sociais garantidos em lei pela chamada constituição cidadã se concretizam por meio das políticas públicas criadas para assegurar essas conquistas e atender às demandas que emergem em nosso contexto social bastante desigual, e em que a participação dos psicólogos se torna essencial.

No ano de 2010, Yamamoto e Oliveira (2010) destacavam o percurso de 25 anos de inserção profissional da Psicologia no campo das políticas públicas. No texto, os autores acompanham a trajetória histórica nesse campo por meio da nossa entrada nas políticas públicas de saúde e de assistência social, ressaltando a necessidade de abordar as particularidades histórico-culturais e nacionais desse processo. Em ambas as políticas, esse processo exigiu e ainda exige dos psicólogos novas intervenções, em consonância com o atendimento da população em situação de pobreza, pois embora as políticas públicas sejam voltadas para toda a população, independentemente da classe social, quem de fato as utiliza são os vulneráveis. Nesse cenário, destaca-se a necessidade de um posicionamento político mais crítico, bem como de novos referenciais.

Hoje, com quase 40 anos dessa inserção, a Psicologia expande mais ainda seus domínios nessa seara, se fazendo presente também nas políticas de segurança pública e de mobilidade humana, e, mais recentemente, na política de educação, e esses desafios permanecem. Ainda temos uma série de impasses ao habitar esses territórios que nos levam a questões epistemológicas e às relações de poder que perpassam nossas atuações.

Ao estudar a inserção dos psicólogos na proteção básica na política de assistência social em Porto Alegre, Motta, Brandolt e Pizzinato (2021) atestam uma série de dificuldades no cotidiano de trabalho desses profissionais, apontando que a materialização da atenção às necessidades sociais da população ainda carece de construções epistemológicas próprias para sua efetivação. Nesse cenário, torna-se difícil a garantia dos direitos sociais por não ter como base uma execução com sólida sustentação. Isso porque, sem dúvida, o “fora” de nós, de nossa formação e de nossas teorias interfere em nossa atuação, causando muitas vezes mal-estar e estranhamento, nos lançando em indagações que nada têm a ver com as formas dominantes e superiores em que nos reconhecemos, já que são seu limite: remete ao que escapa de nossas reproduções e, inclusive, pode levar à transformação destas.

Ao examinar esses riscos, Silva e Carvalhaes (2016) refletem sobre a existência de dois paradigmas psicológicos: um paradigma tradicional e um emergente. O modo tradicional de fazer psicologia centrado no sujeito, como descrito anteriormente, conduz a formas acríticas de atuação profissional, desconsiderando as relações de poder, o contexto social e econômico, podendo levar ao controle e à vigilância dos usuários, na busca de adaptá-los às normas e aos nossos modelos universais, desconsiderando as particularidades de nossos territórios. Por outro lado, a inserção da psicologia nas políticas públicas, segundo os autores, traz a necessidade de um paradigma emergente que leve em consideração as relações e os efeitos de nossas intervenções, que não desqualifiquem as classes populares e nem menosprezem as singularidades de seu cotidiano e de seus códigos de sobrevivência, que transparecem em “estratégias de sobrevivência relacionadas com formas de cooperação e solidariedade em face da condição de dificuldades encontradas no cotidiano vivenciado” (Silva & Carvalhaes, 2016, p. 250).

Romagnoli, Neves e Paulon (2018) também denunciam as tensões presentes no trabalho do psicólogo nas políticas públicas, em que coexistem práticas de cuidado e práticas de controle que sustentam hierarquias e relações de poder que administram a desigualdade social e naturalizam a miséria e a vulnerabilidade. Em discussão com Michel Foucault, as autoras chamam a atenção para a constituição da subjetividade a partir do saber das disciplinas, indissociável do poder que incide diretamente sobre o sujeito para a gerência da vida. Essas relações se dão por meio de estratégias e discursos, produzindo modos de existência passivos e formas de cuidar calcadas na naturalização, o que “estimula as pessoas a moldar e a fabricar suas vidas, sendo ‘controladas’ por modelos científicos, monitoradas por poderes cotidianos que se exercem anonimamente nas relações” (Romagnoli, Neves, & Paulon, 2018, p. 243).

A invariabilidade dos modelos conhecidos e a leitura acrítica e apolítica são engendradas pela cisão indivíduo versus social, ainda presente no exercício da Psicologia, enfatizando a subjetividade individualizada presente na base da nossa constituição enquanto ciência e que ainda fala por meio de nós, em nossas práticas. Certamente, atuar nas políticas públicas desestabilizou e desestabiliza o modo dominante do nosso fazer, colocando em xeque a leitura dos processos de subjetivação decorrentes somente da interioridade e da compreensão das relações familiares, já que a família é central em todos esses domínios. Esse modo traz armadilhas ao centrar no indivíduo seu sofrimento, suas vitórias e seus fracassos, desconsiderando as questões históricas, culturais e sociais que o atravessam e o subjetivam, e que de forma alguma são secundárias.

As práticas dos psicólogos nas políticas públicas se opõem frontalmente a um conhecimento que se impõe como verdade, generalizante e simplificado, herdeiro do paradigma moderno, a uma lógica transcendente e a uma forma de pensar somente por interioridade. A complexidade dessa inserção nos conduz a deslocamentos e à necessidade premente de transversalizar a subjetividade com o social, as relações macropolíticas e micropolíticas em suas interfaces econômicas-sociais-subjetivas, apontando para os jogos de poder e a não linearidade, para a importância de nos apoiarmos nos domínios da interioridade que fazem parte da subjetividade e do nosso saber, mas também, de forma justaposta e não determinista, estarmos alertas quanto à exterioridade e a suas interferências em nossas atuações. Mediante essa perspectiva e insistindo na indissociabilidade da interioridade/exterioridade e indivíduo/social, efetuamos o mapeamento de algumas instituições na tentativa de problematizar nossa atuação nesse contexto. Como a psicologia é um território em construção, com somente 60 anos de regulamentação em nosso país, percurso em que houve várias produções e mudanças do nosso saber/fazer, propomos pensar essa transversalização para contribuir com a reflexão do futuro de nossa profissão, destacando a importância da resistência, da invenção de novas formas de atuar e de pensar. Certamente, nossas identidades, nossos romances familiares, nossas crenças e representações nos subjetivam e subjetivam os usuários com que trabalhamos e são importantes, mas não são suficientes para inventarmos modos futuros do fazer psicológico. Esse breve traçado é apresentado a seguir.

Mas, o que temos mesmo que enfrentar?

A complexidade das ações dos psicólogos nas políticas públicas faz dessa inserção um campo de análise, e não somente um campo de intervenção, remetendo ao plano em que são feitas essas políticas, aos processos de produção de subjetividade e às forças com que são gestadas as ações coletivas. Colocar em análise as práticas psicológicas é examinar essas ações e as relações macropolíticas e micropolíticas que as atravessam. Ao apresentar o funcionamento da realidade por produções e conexões, Deleuze e Guattari (1996) afirmam que “Tudo é política, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (p. 90). Para defender tal ideia, transversalizam questões subjetivas, coletivas, sociais, econômicas e históricas, a partir da imanência. Desse modo, a sociedade e o indivíduo são produzidos por segmentos que tendem a barrar essa transversalização e movimentos que tendem a expandi-la, denotando processos políticos que ora tentam homogeneizar a diferença inerente à vida, ora buscam agenciar com essas mesmas diferenças.

A macropolítica e a micropolítica coexistem, são inseparáveis e correspondem a relações que acontecem por meio de dimensões qualitativamente diferentes. A macropolítica, molar, opera por homogênese, igualando, estratificando e classificando a realidade. Já a micropolítica busca a heterogênese, o que escapa dessas reproduções e se conecta com a vida, o caos, o intensivo, embora cada vez mais temos assistido à molecularização dos estratos. O molar que caracteriza a macropolítica fixa a realidade em segmentos. Ou seja, nessa dimensão a realidade funciona de forma simplificada e a transversalidade se reduz a uma combinação de elementos que se encontram em determinado território, em determinada forma de viver e de atuar. E o que qualifica o molecular é a maior ou menor maleabilidade dos agenciamentos para se curvar ou não aos diversos poderes de opressão, para se desprender desses segmentos. Ou seja, nessa dimensão, conexões são feitas, a transversalidade se exerce para propiciar outras composições e produzir novas realidades, novos conhecimentos e novas práticas. A partir dessa leitura, esses dois funcionamentos, a lógica sedentária e os deslocamentos nômades, fazem parte do cotidiano dos psicólogos nas políticas públicas, sustentado pelo foco na subjetividade composta por relações, pela interioridade e pela exterioridade e gerida por dimensões macro e micropolíticas.

A garantia dos direitos sociais ocorre, assim, na trama da macropolítica, com suas representações instituídas e modelos estabelecidos, e na micropolítica, com as forças e tensões sustentadas por essas conexões. Para gerir a vida, a macropolítica, como vimos, efetua uma territorialização, uma homogênese contínua, por meio da afirmação de discursividades concretizadas em segmentos molares, em formas instituídas de organizar nosso lugar de especialista, que tendem a se perpetuar amparadas por dicotomias: o melhor/pior, o verdadeiro/falso, o certo/errado (Laberge, 2018). Assim, como profissionais somos segmentados por todos os lados, e a organização da realidade das atuações da Psicologia se faz por leis, normativas, cartilhas, e documentos que direcionam nosso trabalho nas políticas públicas. Esse funcionamento é necessário e imprescindível para nos organizar, contudo, a diversidade dos casos, as formas peculiares de arranjos familiares e de gestão do cotidiano emergem como ameaça, cuja defesa, muitas vezes, é a separação entre o que se deve ou não fazer, a classificação homogênea de atuações singulares, a padronização de formas de intervir. Para tal, as conexões, os agenciamentos que fazemos na vida, com o fora de nós, se tornam simplificados, geridos pelos binarismos, reduzidos à reprodução do que é esperado pela macropolítica, pelo instituído que busca sempre se conservar, manter o que já existe.

Esse funcionamento, que não esgota nosso fazer, é permeado ainda por relações de poder, hierarquias e assujeitamentos, naturalizações entendidas como algo dado e verdadeiro, como indicado por Romagnoli, Neves e Paulon (2018). Naturalização na ênfase da interioridade no indivíduo, das vulnerabilidades, da pobreza e da exclusão social como totalmente acessórias na vida dos usuários, como apontado na introdução. Nessa dimensão, que atravessa nossas intervenções, renunciamos à nossa capacidade de enunciação, ficamos circunscritos a determinados arranjos, atrelados a uma repetição vazia e evitamos nos abrir para a diferença, munidos de certezas e reducionismos. Esse funcionamento também pode se aplicar ao molecular, fortalecendo mais ainda esse posicionamento, como veremos adiante.

Na macropolítica, somos um país marcado pela desigualdade e pela exclusão social, que só fazem aumentar, sobretudo com os reflexos da pandemia. Com essa tragédia, como afirma Safatle (2020), vivemos de maneira radical a face cruel do neoliberalismo, amparado em uma nova gestão social que tem como uma de suas funções administrar a morte. Essa forma de violência estatal insiste em um modo fascista de governar, desnudando a mescla de capitalismo e escravidão, especificidade de nossa história, de nossos silêncios, da invisibilidade de vidas que podem morrer e do ódio à pobreza. Ao estudar essa forma de governo na pandemia, Furlan e Alves (2021) indicam um recrudescimento das formas biopolíticas de governo com a presença de um fascismo de Estado, responsável pela criação de um campo em que os cidadãos são expostos de tal forma à morte que se equipara aos campos de concentração nazista. Este fascismo, sob a forma de governo biopolítico, fez com que o estado de exceção se tornasse regra.

Com a pandemia, desvelaram-se também todas as nossas desigualdades estruturais, nos convocando ao enfrentamento de certas instituições que se reproduzem por meio de nós e buscam naturalizar opressões. Funcionamento macropolítico que segmenta nossa prática social em territórios rígidos e reprodutivos. Além do que está instituído de forma visível e molar, temos ainda algumas instituições que fazem parte do “não-dito” da nossa prática, perpetuando e sendo perpetuadas pela subjetividade individualizada. Afinal, “as instituições formam a trama social que une e atravessa os indivíduos . . . os quais, por meio de sua práxis, mantém ditas instituições e criam outras novas (instituintes)” (Lourau, 2004, p. 68).

Desvelar “não-ditos” favorece a invenção instituinte, abala algumas certezas e tem repercussões que podem engendrar agenciamentos e associações, dando passagem à complexidade de outros modos de existência, a uma micropolítica ativa que certamente pode criar outras formas de sustentar a Psicologia em nosso país. Essa desnaturalização abala nossas verdades, transversaliza vetores sociais e históricos e cria indagações que podem operar para construirmos outras práticas de cuidado nas políticas públicas. Entendemos que algumas dessas instituições são: a colonialidade do poder, a branquitude e a interseccionalidade, que aparecem justapostas e circunscritas em segmentos duros e muitas vezes invisíveis, mas não menos eficazes em sua reprodução.

No que se refere à colonialidade do poder, percebemos que, mesmo nosso país tendo deixado de ser colônia há mais de 300 anos, ainda mantemos relações de dominação, o que muitas vezes separa a Psicologia brasileira do que ela, de fato, pode ser. Certamente, a lógica eurocêntrica ainda ecoa em nós, em sua superioridade frente à lógica dos territórios coloniais, isso porque “A colonialidade não depende da existência de colônias: ela se reatualiza permanentemente, produzindo novos arranjos institucionais e formas de expropriar, dividir, subalternizar e invisibilizar grupos, incorporando e intensificando graus de opressão” (Gonçalves, Oliveira, Gadelha, & Medeiros, 2019, p. 162). Ou seja, a colonização requer mais do que a subordinação material, ela se faz também por processos de subjetivação submissos, por psicólogos que se sentem hierarquicamente inferiorizados frente aos centros de poder e, assim, desvalorizam suas atuações e produções de conhecimento como se fossem menores.

Quijano (2020) pontua que esses processos de desqualificação ganharam forma com a modernidade, movimento que implantou um universo de relações intersubjetivas conduzidas pela naturalização das experiências do padrão de poder da colonialidade. Para o autor, a colonialidade se refere a um padrão mundial do poder do capital cuja base é a classificação racial/étnica da população do mundo. Classificação esta que opera no cotidiano e na sociedade. Nesse processo, foram-se configurando identidades societais da colonialidade - brancos, índios, negros, azeitonados, amarelos, mestiços - assim como identidades geoculturais do colonialismo, como América, África, Extremo Oriente, Próximo Oriente, Ocidente ou Europa. Essas identidades se nutriam de relações mantidas pela dominação sob hegemonia da Europa. Esse universo é o que será depois denominado como a modernidade.

Nessa época, consolidou-se um pensamento racional e individualista, imposto pelo modo de conhecimento eurocêntrico como a única racionalidade possível. Essa racionalidade se fundamentava em simplificações binárias da humanidade, que se tornou dividida em: superiores e inferiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos. O eurocentrismo conduziu ainda a uma ideia de totalidade com absoluta primazia no governo das populações. Lógica macropolítica imposta como verdadeira, recusando as particularidades culturais dos povos colonizados, ou aceitando-as de forma distorcida. E que, infelizmente, nós, de maneira geral, reproduzimos em nossos posicionamentos frente ao que estudamos, nos assujeitando de modo acrítico, muitas vezes repetindo autores europeus e estadunidenses como se a realidade deles fosse igual à nossa.

Nesse sentido, temos como desafio a promoção do decolonial em nós, mas sem renunciar aos autores clássicos que podem auxiliar-nos, que ainda estão cheios de potência crítica necessária aos nossos dias atuais. Destruí-los equivaleria ao aniquilamento tão presente em nosso tempo. Não precisamos disso. Podemos usá-los em articulação com nossos saberes e nossos autores, elucidando os efeitos de nosso passado escravagista, da ditadura militar, da miséria, da naturalização das desigualdades. Isso para sustentar de forma produtiva, e não reprodutiva ou antiprodutiva, nossas invenções e intervenções nas políticas públicas.

Como um dos pontos centrais da organização da nossa sociedade, temos a questão da raça, pois foi a distinção entre selvagens e civilizados que permitiu aos europeus infringirem violências e crueldades aos povos originários e aos escravos, em um momento calcado no progresso e no culto à razão. A colonização instaurou a raça como argumento e medida de classificação, forjada a partir do modelo branco, masculino e heterossexual. A raça como princípio biológico de hierarquização social se tornou indicativo ou não de humanidade, operando para a distribuição de lugares e de papéis sociais nas estruturas de poder com relação às colônias. Essa diferenciação, ao expandir as particularidades dos europeus para a totalidade da experiência humana, confrontando civilizados e selvagens, teve, de fato, a função de “produzir e avalizar os procedimentos de extrema violência aplicados aos territórios colonizados, que contemplam a exploração acintosa dos seus recursos naturais, a escravização forçada e o genocídio de sua população” (Carvalhaes, Silva, & Lima, 2020, p. 4). Genocídio reiterado na necropolítica que vivemos hoje, mantida por meio de práticas e discursos de desumanização e de coisificação de alguns segmentos da população, como se houvesse vidas inferiores.

Desde a escravidão, instaurou-se um padrão de desigualdades que se atualizam em nosso cotidiano: desigualdade de renda, de acesso à educação, de precariedade social, embora discursos de igualdade sejam difundidos incansavelmente na sociedade brasileira. Apesar do mito da democracia racial que circula em nosso imaginário, somos um país racista, marcado pelo nosso passado escravocrata, visto que Não houve instituição mais duradoura, mais persistente e mais conservadora do que a escravidão no Brasil, o último país do mundo a extingui-la” (Lobo, 2008, p. 121). E essa particularidade deixou legados para os negros e para os brancos. Submetidos à exploração e crueldade diária, concretizadas por mecanismos de apropriação, castigos e torturas, infelizmente as pessoas negras escravizadas não obtiveram melhoras nas condições de vida nem quando foram libertadas. Os abolicionistas lutaram ferrenhamente pelo fim da escravidão em nosso país, mas lamentavelmente não se lembraram de lutar por reformas que favorecessem a inclusão dessa parcela da população brasileira. Sendo assim, em 1888, quando da abolição da escravatura, não havia políticas de distribuição de terras, de educação popular ou de inserção laboral que assegurassem condições de vida dignas para os alforriados. Enfim, não havia projetos para a qualificação e integração da população negra em nossa sociedade. Essa inexistência marca nossa história e interfere na produção da miséria em um país tão desigual, uma vez que desde essa época os vulneráveis são negligenciados. Por outro lado, os brancos ocupam um lugar de privilégios e de superioridade, tendo a raça como fundamento tanto de discriminação como de vantagens. Distinção internalizada tanto por parte dos favorecidos, quanto por parte dos prejudicados, que a reproduzem nas relações. Afinal, ao falar da negritude, como Fanon (2008) destaca: “não é que neguemos ao negro qualquer valor, mas é melhor ser branco” (p. 58).

Em nosso percurso histórico, a hierarquia social criou lugares distintos para os brancos, que tinham e têm muito mais acesso a recursos materiais e simbólicos. Os brancos se subjetivam como seres superiores desde então, com base na raça e no pertencimento de classe, como destaca Schucman (2014). Ao estudar a constituição da subjetividade do homem negro como resultado do encontro com a violência colonial, Fanon (2008) critica incisivamente a negação do racismo contra o negro em grande parte do mundo moderno. O autor desvela como a ideologia que ignora a cor apoia o racismo. A exigência de ser indiferente à cor, de torná-la invisível, de fato, dá suporte a uma cor específica: o branco, que produz ativamente seus benefícios. Esse processo se dá por meio de mecanismos de discriminação e da criação de discursos que propagam a democracia racial e a ideologia do branqueamento, calcados na “invisibilidade” da raça, como se fosse um elemento quase inexistente, na ausência de preconceitos e oportunidades diferentes, além da defesa de uma harmonia entre diferentes raças. No contexto brasileiro, o branco pode inclusive vir a assumir a presença de uma desigualdade racial e se manifestar contra o racismo, mas geralmente não se reconhece como parte da manutenção dessa realidade. O que Schucman (2014) nos mostra é que ao negar o problema racial, os brancos naturalizam a interdição aos negros de espaços de poder, sendo os seus maiores favorecidos. Assim, ao esquivar-se dos conflitos raciais entre os diferentes grupos, compõem ativamente a ideologia de branqueamento.

Um dos eixos de ação da branquitude é a necropolítica, termo cunhado por Mbembe (2018) para designar as formas contemporâneas de exercício do poder que subjugam a vida ao poder da morte, denunciando uma macropolítica do racismo e a violência de Estado para justificar as políticas de morte operadas pelo poder, designando quem deve viver e quem deve morrer. Ao analisar os contextos coloniais, especialmente aqueles em que vigorou a escravidão como sustentáculo da política colonial, ele nos mostra como o sistema de plantation foi o primeiro modo de exercício biopolítico. Nesse modelo de organização econômica, efetuado em latifúndios, por meio da monocultura e com mão de obra escrava, vidas negras foram gerenciadas pela perda: perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político, correspondendo a uma dominação absoluta e a sua expulsão para fora da humanidade.

Hoje em dia vemos a submissão dessas vidas em políticas de extermínio da população negra. Ao examinar essa violência, Galeano, Souza e Guareschi (2021) apontam três eixos de manutenção da necropolítica na pandemia do Covid-19: a preocupação com a preservação da economia em detrimento da proteção às vidas, a intensificação da desigualdade social no processo de precarização das condições de existência e a letalidade policial. Ações que afetam diretamente o cotidiano das políticas públicas que, ao suspenderem direitos sociais, devem ser consideradas pelos psicólogos. Cabe pontuar que a necropolítica muitas vezes não produz somente a morte literal e física, mas pode também conduzir a processos de anestesiamento, invisibilidade e perda de posicionamento dos negros, como uma espécie de inércia ou morte em vida. Dessa maneira, existe também uma necropolítica subjetiva, favorecida e mantida pelo não investimento nas políticas públicas, em que a população negra é a mais afetada pela violência estatal e pela branquitude.

Somos produto dessa história e dessa colonização, calcadas na racialização dos corpos e estabelecendo uma hierarquia de privilégios, de vida e de morte, ainda pouco refletida e levada em consideração pela Psicologia. Não podemos nos esquecer disso, pois corremos o risco de termos como referência em nosso ofício uma subjetividade ahistórica, colonizada e branca. Durante muito tempo, mesmo defendendo a articulação da subjetividade com o social, não levamos em consideração que a raça também subjetiva as pessoas com quem intervimos, e que isso deve fazer parte da nossa escuta.

Dialogando com a racialização, chegamos no patriarcado e na interseccionalidade. O patriarcado se fundamenta em uma lógica de dominação dos homens sobre as mulheres, frisando a posição periférica das mulheres enquanto sujeito político e de direitos. Essa instituição expressa relações de poder assimétricas e a desvalorização simbólica da mulher, mantendo relações de dominação masculina ocidental. Ao analisar o patriarcado, Saffioti (2004) o associa com as relações de classe, raça e gênero, conceitos imbricados que nos fazem refletir que a sociedade é composta por discriminações de gênero, mas também de raça, etnia, classe social e orientação sexual. Essas discriminações estão no cerne do capitalismo, uma vez que constituem processos de dominação e de produção da desigualdade social.

No Brasil, Gonzalez (2018) aponta para a associação de várias discriminações: gênero, classe e raça, anunciando antecipadamente a interseccionalidade, já nos anos 1970. Essa tríade tem como aporte nosso passado escravocrata em associação com a particularidade do capitalismo em nosso país e o sexismo, marginalizando mulheres africanas e ameríndias, tornando-as mais dominadas e exploradas nesse cenário patriarcal. Como somos dependentes em relação aos centros do mercado mundial, essa associação repercute de forma diferente conforme a classe social, a raça e o sexo. Nesse percurso, desvela-se o racismo estrutural que atua diretamente na produção de uma massa de trabalhadores em atividades precárias e com baixa remuneração. Contexto que culmina na mulher negra e pobre como parcela majoritária de vulnerabilidade em nosso país. Não vamos nos esquecer que no Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza e apenas 10,4% das mulheres negras concluem o ensino superior (Thinkolga, 2020).

Em defesa da não separação das categorias de gênero, raça, classe, sexualidade, e outras, e desvelando os problemas sociais, nos anos 1980 a americana Kimberlé Crenshaw cunha o termo interseccionalidade, ainda inexistente quando Lélia Gonzalez fazia suas ponderações, embora essa leitura já circulasse entre nós. Tendo como foco os direitos humanos das mulheres, a jurista realizou a defesa da associação das discriminações de raça e de gênero, desenvolvendo a interseção entre raça, gênero e estruturas raciais de poder para rastrear as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação, mostrando como essa junção opera para o desempoderamento de mulher negras. Assim, a interseccionalidade “trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (Crenshaw, 2002, p. 177). Desse modo, fatores relacionados aos processos de subjetivação são “diferenças que fazem diferença” na forma como cada grupo de mulheres vivencia a discriminação de modo distinto. Pensar de forma interseccional é dar visibilidade a uma gama de violações de direitos humanos que atravessam o cotidiano de mulheres marginalizadas e, eventualmente, também de homens excluídos socialmente.

Sob a égide dessa herança, mulheres negras em situação de pobreza recebem tratamentos injustos e humilhantes em serviços de saúde, em equipamentos de assistência social, na relação com a escola de seus filhos e em espaços comunitários e domésticos. Pessoas em situação de pobreza têm seu reconhecimento baseado em aspectos depreciativos e considerações culpabilizatórias da sua condição. Dessa maneira, o que ocorre, de fato, é que a junção pobreza e racismo efetua um agravamento da estigmatização, como anunciam Moura, Barbosa, Sarriera, Almeida e Lima, 2020. Marcas que atravessam a prática do psicólogo nas políticas públicas e que geralmente são desprezadas.

Sem dúvida, vivemos hoje uma macropolítica cruel, com muitos endurecimentos e um fechamento das subjetividades sobre si mesmas, em que os territórios que habitamos se tornam cada vez mais rígidos. O fechamento tende à homogênese e é preciso sustentar a heterogênese da vida. Para manter esses “não ditos” que escondem relações de poder e hierarquias, o funcionamento macropolítico com sua necessidade de igualar se moleculariza e circula no cotidiano da psicologia por meio de microfascismos. Assim, percebemos dois tipos de micropolítica, pois para a macropolítica se manter, há uma molecularização dos segmentos e das linhas duras, que se exercem por meio de microfascismos que buscam reproduzir atitudes coletivas, comportamentos de aceitação de hierarquias e subjetividades padronizadas e acríticas.

Respaldada por essas ideias, Rolnik (2016) destaca a micropolítica ativa e a micropolítica reativa, em que o desejo se insere em agenciamentos inventivos, mas também em microformações que buscam formatar, igualar, comparar, driblar a diferença e manter o que já existe. E assim somos intercessores não só de vida, mas também de reprodução de pequenas violências entre nós e com nós mesmos no dia a dia e em nossas práticas e intervenções, pois como afirmam Deleuze e Guattari (1996): “É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas” (p. 93). E precisamos nos indagar como esse momento que estamos vivendo favorece as tendências microfascistas de cada um de nós. Isso porque no nível micropolítico, o sucesso da reprodução da lógica neoliberal se dá por meio da molecularização dos segmentos da vida, das normas e dos instituídos, pelos microfascismos que prolongam a vida do capital e aumentam sua força. Esses mesmos microfascismos mantêm a colonialidade, o racismo e o patriarcado atravessado por lógicas de neutralidade e de interioridade, sendo que nós psicólogos temos dificuldade em colocar em análise essas instituições, o que reflete nas nossas relações com os usuários. Como atesta Laberge (2018), esse aprisionamento da vida no cotidiano, nos espaços em que circulamos se dá pela mobilização do aspecto patológico da homogênese com bloqueio da heterogênese, da sustentação da diferença: micropolítica reativa sustentada pelos microfascismos, pela molecularização das linhas duras.

Estamos em um momento de ascensão do ressentimento, do desencantamento e do pessimismo, que endossa nossos modos de existir, agir e pensar. Essa visão vê a alteridade como inimiga e os microfascismos se tornam essenciais para a manutenção e reprodução da gestão macropolítica do racismo, do sexismo, da homofobia, da xenofobia, da colonialidade, de processos discriminatórios e excludentes. Os microfascismos surgem com as inseguranças, na tentativa de nos livrar do mal-estar das desestabilizações, das mudanças que vivemos. E ocorrem quando as capturas do molar também aparecem no molecular, sustentando modelos, simplificações, certezas e perseguições. Essa molecularização das linhas duras atravessa e ampara a macropolítica, a necropolítica, a interseccionalidade, as violências como a branquitude e a ênfase na dimensão econômica. Posicionamentos disparados pelos medos: da rejeição, da censura ou de algum julgamento, do desafio, do fracasso, da ruína. Dores que convocam cristalizações se espalham para além dos silêncios, preservam nosso lugar de superioridade, em que os privilégios devem ser garantidos a qualquer custo, via naturalização de hierarquias econômicas, raciais, de gênero, físicas, entre outras. Processo que nos anestesia, nos impede de juntar pensamento e vida, nos faz perpetuar o polo da reprodução das teorias e das nossas intervenções.

Hoje experimentamos ainda grandes desestabilizações, tais como o desinvestimento nas políticas públicas, a pandemia, o desmonte das ciências humanas pelos órgãos de fomento à pesquisa, dentre outros, que favorecem as tendências microfascistas de cada um de nós, esse fechamento ao que nos rodeia que tende ao igual. Todavia, precisamos resistir e fazer uma Psicologia à altura do nosso tempo, visto que na micropolítica não temos somente reação; temos também ação, resistência.

Embora tenhamos desvelado criticamente essas instituições que atravessam nossa prática como psicólogos, não se trata de aniquilar tudo o que já produzimos, de nos livrar de autores clássicos, europeus e brancos (Kiffer, 2020). Na verdade, trata-se sim de descolonizar seus pensamentos, para dar outros sentidos ao nosso passado colonial e escravagista, às nossas hierarquias sociais e à leitura da subjetividade somente centrada no indivíduo e na meritocracia, que atualizam a lógica neoliberal e excludente, para resistirmos a essas dominações e padronizações em nosso devir-psicólogo.

A importância dos coletivos ou sobre como resistir

Como somos movimento em nosso fazer profissional, em meio a processos diferentes, não só de captura, mas também de expansão, as linhas duras podem ser temporárias, e, dependendo da situação e das forças externas que a acompanham, a vida pode se libertar. As brechas no segmento possibilitam abandoná-lo para que conexões com o heterogêneo se façam e linhas de fugas se formem. Essa micropolítica ativa e não mais reativa, atualiza virtuais, nós de forças que circulam em determinadas circunstâncias a partir de agenciamentos que produzem conexões e passagens entre segmentos e linhas de fuga, entre macropolítica/micropolítica reativa e micropolítica ativa.

Mas alguns elementos travam essas novas expressões, como vimos acima. Como psicólogos devemos defender a diferença, a invenção de modos de existência singulares e potentes, devemos sair desses segmentos que nos levam a uma repetição vazia em nossa profissão e habitar territórios outros. Somos também resistência, em atenção constante para desarmar as configurações de poder em nós e nos territórios em que circulamos. Resistência que não tem no indivíduo seu motor, mas cuja origem está nos efeitos das forças do mundo que habitam cada um dos nossos corpos, como afirma Rolnik (2018). Prática que se alimenta de ressonâncias e da força coletiva. Como a realidade é complexa e funciona por imanência, as relações também são possibilidades de criar, de não calar os afetos que são convocados, de não deixar paralisar a resistência na dimensão micropolítica e sim sustentá-la em práticas inventivas e coletivas, em redes que afirmam a vida e apontam para a construção de atos de criação. Essa criação se dá por transversalidade, como defendemos no início deste texto.

Insistindo na necessidade de análise da dimensão complexa do social, do político, do econômico e do poder, Guattari (1987) propôs a transversalidade como uma ferramenta conceitual para se conhecer as tramas grupais. Movimento deve ser sustentado nos grupos, em contraposição a movimentos de verticalidade que provocam introjeção das normas e das demandas instituídas presentes nos grupos assujeitados, e a movimentos de horizontalidade que associam diferentes setores, disciplinas e conhecimentos sem que se estabeleça uma relação entre eles. A verticalidade do grupo mantém estratificações piramidais e hierárquicas - o técnico e o usuário, a coordenação e a equipe, cada teoria com sua especificidade, querendo ser superior à outra. As dinâmicas horizontalizadas sustentam a coesão grupal, mantendo a identidade de cada setor - a psicologia, a medicina, a terapia ocupacional, a enfermagem, o serviço social, entre outras, com seus profissionais conservando suas diferenças e se juntando para resolver um caso, por exemplo. Para além da verticalidade hierarquizante e da horizontalidade niveladora de perspectivas, a transversalidade remete a uma dimensão conectiva, colocando em análise não somente a relação da subjetividade com outras dimensões, mas os modelos que atravessam os sujeitos e os grupos.

A transversalidade é um funcionamento do que Guattari (1987) chama de grupo sujeito: “Um grupo sujeito, por outro lado, é capaz de produzir um agenciamento coletivo da enunciação. . . Ele pode anunciar um desejo1” (Agostinho, 2018, p. 213, tradução nossa). Esse desejo, sustentado pela transversalidade, para de desejar sua própria repressão, como na macropolítica e na micropolítica reativa, e aposta no deslocamento necessário para que o grupo seja um dispositivo produtor de novas realidades, um vetor de resistência. A transversalidade é uma terceira alternativa, uma vez que pretende desfazer o impasse da verticalidade e da horizontalidade, associando diferenças. Assim, “. . . se oporia tanto à verticalidade grupal (com suas estratificações piramidais e hierárquicas) quanto às dinâmicas horizontalizadas, em que um setor tende a se organizar nas contingências de seu campo situado, no cultivo, por exemplo, de uma ‘coesão grupal’ a propor uma política identitária” (Simonini & Romagnoli, 2018, p. 919).

Entendemos que apostar na transversalidade é resistir à reprodução de hierarquizações para que encontros potentes se efetuem, para que a vida circule na Psicologia. A transversalidade se liga ao coletivo e esta dimensão funciona como um plano de coconstrução da realidade, em que não existe a oposição indivíduo e sociedade.

Desse modo, apontamos para a importância do coletivo para resistir nesse momento de desmonte das políticas públicas e em que a Psicologia faz 60 anos de regulamentação em terras brasileiras. É preciso operar para afirmação da vida em seus muitos possíveis, sem o imperativo de modelos ideais, sem assepsia de mal-estares, sem a negação dos acontecimentos. Vamos realizar nos vários equipamentos de que fazemos parte nas políticas públicas a afirmação da vida em sua heterogeneidade, produzindo processos singularizantes, que escapam à lógica dominante do consumo e da dimensão econômica. Trata-se de descolonizarmos nossa teoria e prática, com o intuito de enfrentarmos nossas enormes desigualdades sociais e sustentarmos um potente trabalho nas políticas públicas. Precisamos disso para combater nossa ânsia de continuidade e de perpetuação de submissão: ao modelo eurocêntrico, às leituras colonizadoras de família, à sobrecarga das mulheres, à inferiorização dos negros, entre outras. Para resistir precisamos ampliar nossa leitura da subjetividade para as relações e engrenagens múltiplas, agenciá-la com outras dimensões. Além de agenciarmos entre nós mesmos, nos perguntando o porquê de determinadas situações, reproduzimos desigualdades gestadas historicamente.

Considerações finais

Apontamos em nossa discussão atravessamentos macropolíticos e micropolíticos que insistem em nossas práticas, por meio de uma breve análise da colonialidade do poder, da branquitude e da interseccionalidade, separadas de forma didática ao longo do texto. Contudo, cabe salientar que se atravessam o tempo todo, tecendo na contemporaneidade brasileira a produção da dominação do homem pelo homem, de hierarquias e classificações que fogem ao que nos propomos em nossa profissão. Entendemos que essas problematizações são necessárias para irmos além dos modelos que nos apaziguam e nos fazem concordar com o conhecido, com o que existiu até hoje de forma dominante. Como vimos, cada vez mais somos convocados a superar esses reducionismos e operar aberturas para as interferências e efeitos sociais, históricos, econômicos e institucionais, vencendo obstáculos oriundos de nossa própria formação, para que possamos, de fato, contribuir para a garantia dos direitos sociais e para a construção de uma sociedade menos desigual.

Sem dúvida, tivemos muitos ganhos macropolíticos no campo das políticas públicas e, embora estejamos vivendo uma série de retrocessos, é imprescindível continuar a produzir conquistas, mesmo que cotidianas, uma vez que são nos pequenos espaços que temos uma oportunidade de reinventar relações. Precisamos sim manter o que já conseguimos, mas também habitar esses espaços de forma a não maltratar a vida em nós e nas pessoas que atendemos. Para isso, precisamos agenciar com os mais variados elementos dos encontros que efetuamos. Para tal, não podemos desconsiderar as várias inserções sociais, contradições e vulnerabilidades que atravessam nosso exercício profissional no campo das políticas públicas. Atravessamentos que invadem as subjetividades e atravessam nossos corpos e nossas práticas. Desconsiderar tudo isso é ser cúmplice de um mundo em que não nos reconhecemos.

Atentos a essas questões, temos que nos unir para construir uma psicologia brasileira, de fato. Precisamos ainda nos transversalizar e transversalizar com outras áreas, para tentar abarcar a complexidade de nosso objetivo de estudo: a subjetividade. Precisamos nos abrir a possibilidades de conexões com a exterioridade, a zonas de intercessão flexíveis em que podemos partilhar e criar com alegria, e garantir direitos que são construídos na experiência concreta dos coletivos de forças, sempre em movimento.

Referências

  • 1
    No original : “Un groupe sujet, d’autre part, est capable de produire un agencement collectif d’énonciation . . . Il peut énoncer un désir”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2022
  • Aceito
    26 Abr 2022
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