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Caminhar com Ética no Presente entre Princípios e Contradições que nos Interrogam

Moving Ethically in the Present amidst Principles and Contradictions that Question us

El Camino Ético en el Presente entre Principios y Contradicciones que nos Cuestionan

Resumo:

Caminhar com a ética no presente, em termos de regulamentação da profissão de psicólogo, é um exercício que tem feito parte de um conjunto heterogêneo de reflexões e práticas, pois requer uma ontologia da atualidade: o que se torna problema ético nesse momento, e como se movimentar com ele? Para abordar essas questões, este artigo examina um pouco a história dos marcos regulatórios deontológicos, em diálogo com questões epistemológicas que os constituem e seus desdobramentos em termos de questionamentos sobre contradições, dilemas, bem como a necessidade de princípios éticos que orientam e interrogam no presente, a partir do fazer profissional da psicologia. Entende-se a ética como forma de relação com a alteridade, afirmando que as regras deontológicas da profissão serão sempre dinâmicas, insuficientes e controversas, resultando em dilemas datados. Ainda assim, são necessários princípios claros que impliquem a não pactuação com as omissões – que são também formas de violações e violências –, heranças de epistemologias e práticas coloniais que, historicamente, a psicologia, como ciência e profissão, produziu e com as quais se aliançou. Refletiu-se sobre situações e desafios contemporâneos para a psicologia, concluindo que a acusação de politização, que recai sobre debates éticos necessários a esse exercício profissional, revela um medo apreensivo de lidar com os segredos coloniais dessa ciência e profissão.

Palavras-chave:
Psicologia; Ética; Regulamentação Profissional; Violências; Colonialismo

Abstract:

Walking with ethics in the present (regarding the regulation of our profession) is an exercise that has been part of a heterogeneous set of reflections and practices as it requires an ontology of current times: what becomes an ethical problem in this current moment in which we live and how do we move with it? To address these questions, this study brings some of the history of deontological regulatory frameworks in dialogue with epistemological issues that constitute them and their developments regarding questions about contradictions and dilemmas and the need for ethical principles that guide and interrogate us in the present regarding our professional work. Ethics is understood as a form of relationship with otherness, stating that the deontological rules of the profession will always be dynamic, insufficient, and controversial and will pose dated dilemmas. Still, we need clear principles that imply rejecting omissions –which also constitute forms of violations and violence – and the legacies of colonial epistemologies and practices that psychology has historically produced and allied with as a science and profession. We reflect on contemporary situations and challenges for psychology, concluding that the accusation of politicization which falls on the ethical debates that are necessary for our professional practice shows an apprehensive fear of addressing the colonial secrets of this science and profession.

Keywords:
Psychology; Ethics; Professional Regulation; Violence; Colonialism

Resumen:

El camino ético en el presente, en términos de la regulación de la Psicología como profesión, es un ejercicio que ha sido parte de un conjunto variado de reflexiones y prácticas, pues requiere una ontología de los tiempos actuales: ¿Cómo se convierte en un problema ético en ese momento y cómo moverse con él? Para ello, este estudio aborda brevemente la historia de los marcos regulatorios deontológicos en diálogo con los aspectos epistemológicos que los constituyen y sus desarrollos a modo de preguntas sobre contradicciones y dilemas, así como la necesidad de principios éticos que orientan e interrogan en el presente a partir de esta práctica profesional. La ética se entiende como una forma de relación con la alteridad al afirmar que las normas deontológicas de la profesión siempre serán dinámicas, insuficientes, controvertidas y plantearán dilemas con fecha de caducidad. Aun así, se evidencia la necesidad de principios que no impliquen omisiones –que también son formas de violación y violencia–, legados de epistemologías y prácticas coloniales que la psicología en tanto ciencia y profesión ha producido históricamente y vinculado. Se reflexiona sobre situaciones y desafíos contemporáneos para este campo, y se concluye que la acusación de politización que recae sobre los debates éticos necesarios para este ejercicio profesional revela un temor aprensivo a lidiar con los secretos coloniales de esta ciencia y profesión.

Palabras clave:
Psicología; Ética; Regulación Profesional; Violencia; Colonialismo

Caminhar com ética no presente entre princípios e contradições que nos interrogam

“Eu não vou atender pessoas trans”.

“Para mim, quem faz aborto é assassino”.

“Ser racista é só uma questão de opinião”.

“Mãe usuária de drogas tem que perder a guarda dos filhos”.

Quem pergunta sobre o código de ética profissional da psicologia? Quem se interroga sobre a ética em seu dia a dia profissional?

Caminhar com a ética no presente, em termos de regulamentação da profissão de psicólogo, é um exercício que tem feito parte de um conjunto heterogêneo de reflexões e práticas, pois requer uma ontologia da atualidade: o que se torna problema ético nesse momento, e como se movimentar com ele? Colocamos dessa maneira pois entendemos, de partida, que a regulamentação da profissão é controversa, coloca dilemas de modo datado, embora necessite de princípios claros que impliquem a não pactuação com as omissões – que são outras formas de violações e violências – heranças de epistemologias e práticas coloniais que, historicamente, a psicologia, como ciência e profissão, produziu e com as quais se aliançou.

Nessa celebração do cinquentenário do Conselho Federal de Psicologia (CFP), autarquia que orienta, disciplina e fiscaliza o exercício da profissão, recebemos com alegria e zelo o convite do Plenário do Conselho para escrever um artigo refletindo sobre o tema “ética e psicologia”. Diante do convite e inquietadas por afirmações que corriqueira e contemporaneamente escutamos em nossas práticas profissionais, nos propusemos a uma reflexão sobre ética e psicologia, perpassada pela história da regulamentação da profissão. Isso nos levou a considerar itinerários possíveis do encontro de marcos regulatórios deontológicos com as questões epistemológicas que os constituem e seus desdobramentos, cujos questionamentos éticos orientam e interrogam nosso presente. Aqui, pensamos nos efeitos dessa nossa atualidade nisso que movimentamos como ética da profissão: “Será através desta amarração que firmaremos a curimba que haverá de descobrir quais são os santos que baixam aqui, em uma terra livre do pecado onde, ao mesmo tempo, ninguém é santo” (Simas & Rufino, 2018Simas, L. A., & Rufino, L. (2018). Fogo no mato: A ciência encantada das macumbas. Mórula. , p. 9).

Consideramos importante conhecer o passado para pensar no presente e futuro; portanto, trazemos para nossa escrita uma breve contextualização do percurso da regulamentação da ética profissional no Brasil. Para isso, vamos nos valer, inicialmente, do trabalho de Marcia Ferreira Amendola ( 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ), em artigo que historiciza a construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo, resultado de uma pesquisa sobre o agir ético de profissionais da psicologia. A autora contextualiza a emergência dos três códigos anteriores que referenciaram a prática da psicologia, bem como do atual, detalha os processos de suas criações e analisa criticamente o documento vigente. Publicado há 10 anos, o texto apresenta uma perspectiva situada e traz a complexidade de fatores que contribuíram para a criação e revisão de cada uma das regulamentações éticas da psicologia no Brasil, assim como outras resoluções a elas relacionadas 1 1 Incluem-se aqui resoluções que revogam artigos específicos das regulamentações éticas e o próprio Código de Processamento Disciplinar, que compõem esse conjunto de normativas. , como o contexto social e político de cada época e as questões institucionais relativas ao próprio Sistema Conselhos de Psicologia. Por essa razão, não vamos nos deter em produzir uma nova revisão histórica que pouco acrescentaria ao estudo mencionado, e optamos por trazer neste artigo, de forma pontual, alguns dos principais marcos desse processo, ao mesmo tempo em que recomendamos a leitura na íntegra daquele material, no sentido de compreender a complexidade dos jogos de forças que envolvem a criação de tais resoluções. Após essa contextualização, que tomamos como ponto de partida, colocaremos em debate questões contemporâneas sobre a regulamentação ética, entrelaçadas com aspectos históricos da constituição da psicologia como uma ciência colonial.

Caminhos percorridos

Amendola ( 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ) situa no biênio 1966-1967 o que chama de uma “espécie de primórdio do Código de Ética” (p. 665), portanto, antes da criação CFP, pela Lei n° 5.776, de 20 de dezembro de 1971 Lei nº 5.766/71, de 20 de dezembro de 1971. (1971, 20 de dezembro). Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências. Presidência da República. https://tinyurl.com/2pvus5uv
https://tinyurl.com/2pvus5uv...
. Afirma que se tratava então de um anteprojeto do Código da Ética Profissional a partir de discussões promovidas pela Associação Brasileira de Psicólogos (ABP) e faz uma abordagem detalhada das instituições e processos que envolveram a elaboração daquele documento.

O primeiro Código de Ética Profissional do Psicólogo (CEPP) foi instituído pela Resolução CFP n° 8, de 2 de fevereiro de 1975, que reconheceu e aprovou o Código anteriormente elaborado pela ABP, embora tenha introduzido algumas modificações. Na análise desta primeira resolução, Amendola ( 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ) destaca a “ausência de um consenso em relação aos princípios expostos no Código”, que deixaria “a critério de cada profissional a interpretação dos mesmos” (p. 667). A autora alinha-se com argumento apresentado no livro de Sylvia Leser de Mello ( 1983Mello, S. L. (1983). Psicologia e profissão em São Paulo. Ática. ), que apontava que havia, naquele Código, a pretensão de reivindicar para a psicologia o prestígio da profissão médica.

O segundo CEPP foi instituído pela Resolução CFP n° 29, de 30 de agosto de 1979, período em que ainda estava vigente no país a ditadura militar, mas no qual, simultaneamente, se fortaleciam os movimentos sociais e de resistência. Sua criação passou por processos de participação dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e professores de ética dos cursos de psicologia informados pelo Ministério da Educação e Cultura (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ). Na análise desse Código, Amendola parece compartilhar da avaliação de Drawin ( 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
https://doi.org/10.1590/S1414-9893198500...
) sobre o “ranço corporativista” daquela resolução. Um resumo desse processo de trabalho também é apresentado por Elisa Dias Velloso ( 1980Velloso, E. D. (1980). A reformulação do código de ética dos psicólogos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 32(3), 147-158. ).

O terceiro CEPP – Resolução CFP n° 2, de 15 de agosto de 1987 – foi aprovado após 25 anos de regulamentação da psicologia no Brasil, em uma década que marcava a população pelo “empobrecimento, crescimento desordenado e concentração nos centros urbanos, associado ao processo de abertura democrática e ao movimento para eleições diretas para presidente (1984) – Diretas Já ” (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. , p. 669). Novamente, o processo envolveu a participação de psicólogos(as) dos CRPs e, em alguns Conselhos Regionais, também contou com professores e estudantes, além da realização de encontros e questionários, detalhamento que também nos é apresentado por Amendola. Examinando a “ Exposição de Motivos do Código de Ética Profissional do Psicólogo ”, a autora destaca que a “proposta era desenvolver um instrumento menos corporativo e que efetivamente se preocupasse com as transformações sociais, considerando as necessidades e anseios da categoria, porém, sem perder de vista os interesses da população” (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. , p. 669). O texto que abre a Resolução CFP nº 2/87 assim o apresenta:

O Código é a expressão da identidade profissional daqueles que nele vão buscar inspirações, conselhos e normas de conduta. Ele é, ao mesmo tempo, uma pergunta e uma resposta. . . . encarna uma concepção da profissão dentro de um contexto social e político, que lhe confere o selo da identidade, naquele momento histórico

( Resolução CFP nº 2 , 1987 Resolução CFP nº 2, de 15 de agosto de 1987. (1987, 15 de agosto). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc4fshbr
https://tinyurl.com/yc4fshbr...
, p. 2).

O quarto CEPP, vigente atualmente, foi instituído pela Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005, após um longo movimento que sinalizava a necessidade de nova reformulação desse dispositivo diante de um outro contexto institucional do país, com a promulgação da Constituição de 1988 (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ). Além da Constituição, outras legislações posteriores ao Código de Ética de 1987 também mobilizaram debates durante esse período de reelaboração, como Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e outras resoluções do próprio Sistema Conselhos de Psicologia (Hüning, 2005Hüning. S. M. (2005). Um novo Código de Ética para os psicólogos. Entrelinhas, (31), 6-7. ). A partir de 2003, foi desenvolvido um processo de trabalho que envolveu CFP e CRPs, buscando a participação democrática da categoria e da sociedade, instituições acadêmicas e profissionais, resultando no Código em vigor (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ; Hüning, 2005Hüning. S. M. (2005). Um novo Código de Ética para os psicólogos. Entrelinhas, (31), 6-7. ).

Esse último processo, que pudemos acompanhar mais de perto 2 2 A primeira autora deste artigo, Simone Maria Hüning, foi coordenadora do Grupo de Trabalho sobre o Novo Código de Ética do CRP do Rio Grande do Sul (CRPRS), à época da elaboração do Código de Ética publicado em 2005. , disparou uma série de debates em relação a expectativas e limites de um Código de Ética, variando desde posições que sustentavam que tal resolução poderia e deveria trazer respostas mais objetivas aos dilemas que se colocavam nas situações práticas do fazer profissional, até aquelas que advogavam por um Código mais generalista, com foco em princípios. Alguns desses impasses e críticas são também abordados por Amendola ( 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ). Findo esse processo, o Código de Ética de 2005, registra em sua apresentação:

Por constituir a expressão de valores universais, tais como os constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos; sócio-culturais [sic], que refletem a realidade do país; e de valores que estruturam uma profissão, um código de ética não pode ser visto como um conjunto fixo de normas e imutável no tempo

( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
https://tinyurl.com/yc5hz2v5...
, p. 5).

De certo modo respondendo aos debates públicos e às críticas que foram suscitadas durante seu processo de elaboração, como a redução de artigos, a resolução esclarece: “Este Código de Ética pautou-se pelo princípio geral de aproximar-se mais de um instrumento de reflexão do que de um conjunto de normas a serem seguidas pelo psicólogo” ( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
https://tinyurl.com/yc5hz2v5...
, p. 6). Sua apresentação conclui:

Ao aprovar e divulgar o Código de Ética Profissional do Psicólogo, a expectativa é de que ele seja um instrumento capaz de delinear para a sociedade as responsabilidades e deveres do psicólogo, oferecer diretrizes para a sua formação e balizar os julgamentos das suas ações, contribuindo para o fortalecimento e ampliação do significado social da profissão

( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
https://tinyurl.com/yc5hz2v5...
, p. 6).

Nesse movimento de olhar para as resoluções anteriores criadas para regulamentar a ética profissional de psicólogos(as) no Brasil, destaca-se a afirmação da necessidade de que sejam apresentadas referências para respaldar as práticas. Outro ponto comum é a concordância de que esse tipo de resolução exige atualizações e revisões constantes que acompanhem: a dinamicidade da sociedade, com suas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais; o conhecimento psicológico e seu campo de práticas, envolvendo a expansão do número de profissionais, relações com os cenários de trabalhos (emprego/desemprego) etc.; e as demandas que são colocadas para a profissão em cada tempo específico (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ; Drawin, 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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; Resolução CFP nº 2 , 1987 Resolução CFP nº 2, de 15 de agosto de 1987. (1987, 15 de agosto). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc4fshbr
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; Velloso, 1980Velloso, E. D. (1980). A reformulação do código de ética dos psicólogos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 32(3), 147-158. ).

Em relação aos processos de elaboração dessas resoluções, o primeiro tratou-se de uma oficialização, pelo CFP, do CEPP que era adotado pela ABP (Amendola, 2014Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660-685. ; Resolução CFP nº 8 , 1975 Resolução CFP nº 8, de 2 de fevereiro de 1975. (1975, 2 de fevereiro). Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/mj42znuc
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; Velloso, 1980Velloso, E. D. (1980). A reformulação do código de ética dos psicólogos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 32(3), 147-158. ). Nos demais, foi enfatizada a participação dos CRPs e, de forma síncrona com os processos de democratização do país, gradativamente ampliada a participação de outros segmentos da sociedade. Não podemos deixar de considerar, sobre essa ampliação, para além dos processos de democratização, a viabilidade técnica que novas tecnologias ofereceram, produzindo, inclusive, visibilidade para além da própria categoria. A reformulação do Código atualmente em vigor, por exemplo, extrapolou as instituições da psicologia e engendrou grande repercussão em mídias da época, especialmente por ter colocado em questão artigos consagrados sobre sigilo profissional.

A Tabela 1 sintetiza alguns elementos desses quatro códigos e nos permite visualizar mudanças significativas na estruturação dessas resoluções, particularmente em relação aos princípios, capítulos e número de artigos, desde o primeiro CEPP, promulgado em 1975, até o CEPP vigente, de 2005:

Tabela 1
Comparativo das estruturas dos Códigos de Ética em Psicologia.

A Tabela 1 permite destacar mais um elemento desse percurso da regulamentação ética da profissão, que é a ampliação dos princípios desde o primeiro até o último CEPP, não apenas numérica (que nesse sentido é pequena), mas daquilo que vão abranger e instruir em torno do fazer profissional, simultaneamente à redução do número de capítulos e artigos, especialmente na versão vigente. Há, ao longo do tempo, um deslocamento da priorização de artigos que orientavam mais objetivamente sobre a conduta profissional em direção a princípios. Tais princípios, por sua vez, antes centrados na responsabilidade técnica e ética profissional (como já apontado, mais corporativistas), passam a indicar um posicionamento ético-político com a promoção da dignidade da vida, numa perspectiva que deve ser assumidamente crítica e historicamente situada.

Um caráter marcadamente social é então enfatizado para a profissão, algo que se produz concomitantemente ao discurso de um compromisso social da psicologia. E aqui teremos um gaguejo importante de quem pergunta sobre o código de ética: o compromisso social da psicologia, no qual todos os santos contam, ao mesmo tempo em que ninguém é santo. Diante de um cenário no qual se faz necessário reconhecermos e assumirmos nossas violações como profissão (American Psychological Association [APA], 2021 American Psychological Association. (2021). Apology to People of Color for APA’s Role in Promoting, Perpetuating, and Failing to Challenge Racism, Racial Discrimination, and Human Hierarchy in U.S. https://tinyurl.com/yakrnr68
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), e cada vez mais nos aproximarmos do campo das políticas sociais e formularmos resoluções que auxiliem a reflexão sobre princípios que demarquem a não pactuação com violações, há uma insistência em práticas/princípios neofascistas como exercícios profissionais da psicologia. Trata-se de práticas que vão desde ‘cura gay’ e psicologia cristã, até certos usos das redes sociais, que não são propriamente práticas psicológicas, porém são ambientes nos quais profissionais da psicologia sentem-se à vontade para expressar seus valores e suas opiniões pessoais ligados a suas práticas profissionais. Frequentemente, tais valores e opiniões constituem efetivamente crimes e discursos de ódio, absolutamente incompatíveis com nossos princípios éticos. Então, persiste a pergunta sobre qual a relação que temos com o nosso código de ética profissional?

Nosso caminho no presente

De que ética nos fala um código de ética profissional? O que é possível regulamentar por um código de ética? Quais os limites de tal regulamentação das práticas profissionais? Como elas se conectam com a produção de conhecimento? Nenhuma dessas questões é nova, mas segue sendo necessário colocá-las em debate, considerando o que Judith Butler ( 2018Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia. Civilização Brasileira. ) nos relembra sobre a importância de constatar o óbvio quando ele insiste em desaparecer. Em um tempo de obsolescência programada, de consumos, modismos, descartabilidade e demanda acelerada por novidades, inclusive do conhecimento, fazemos questão de começar a abordá-las retomando um texto de autoria de Carlos Roberto Drawin, publicado há 39 anos, neste mesmo periódico. A referência a esse texto cumpre aqui também um objetivo de situar historicamente essa discussão que, como se vê, não é nova, retomando argumentos que nos acompanham como profissão há bastante tempo e que seguem ecoando de modo pertinente e insistente em nosso presente. Em um período que coincide com o debate de reformulação do CEPP, que entra em vigor em 1987, e propondo uma reflexão sobre ética e psicologia, assim o autor contextualiza a época:

Vai-se tornando uma observação banal para grande parte de nossa jovem comunidade profissional, embora não desprovida de certo matiz dramático, a constatação da crise na qual a Psicologia se vê mergulhada. A magnitude dos desafios e a urgência das situações embaralham os diagnósticos de um impasse que não pode ser circunstancializado ou minimizado, porque atravessa todo um espectro de problemas que se interligam e se reforçam: do crônico desemprego à precariedade dos cursos de formação, do caos teórico à fatuidade prática

(Drawin, 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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, p. 14).

Hoje, a profissão já não é mais jovem, o que, no entanto, não resolveu o problema de suas inúmeras crises, desafios e urgências, algumas que se arrastam desde a constituição dessa ciência e que muito se assemelham às listadas por Drawin. Dos impasses internos do campo disciplinar da psicologia aos que são colocados pelas transformações sociais, que parecem se apresentar de forma mais acelerada na atualidade, segue a complexidade do debate em torno da ética profissional.

Dessa forma, nos parece pertinente mais uma vez pensarmos sobre o que significa a ética, primeiro em seu sentido mais amplo e, em seguida, naquilo que ordena um código deontológico. Para isso, estabelecemos diálogo com Ricardo Timm de Souza, que nos conduz à reflexão ética a partir da interrogação: “ O que pode significar pensar e agir, quando eu não estou sozinho sobre a terra com meu poder intelectual, ou seja, quando eu tenho de encontrar o outro enquanto outro ?” (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
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, p. 298). Como indica a interrogação inicial, para o autor, a ética tem a ver especificamente com o “ humano da humanidade ” (p. 298), com a “não-indiferença entre dois seres separados: uma não-indiferença ética” (p. 300). Ética é, portanto, a “ não-indiferença com relação ao outro ” (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
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, p. 300). A racionalidade ética é, em síntese, “uma racionalidade do encontro com o outro” (p. 301), sendo provocada “a cada momento em que um encontro verdadeiro tem lugar” (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002....
, p. 303), de modo que o filósofo torce o “dito popular” e o recoloca: minha liberdade começa onde a do outro começa, aproximando a ideia de um nós, comum à filosofia iorubá na qual o eu é porque nós somos (Oyěwùmí, 1997Oyěwùmí, O. (1997). The invention of women: Making an African sense of western gender discourses. University of Minnesota Press. ).

Como tal, a ética não pode ser situada no plano individual. Define-se pela coletividade e alteridade e antecede a lei como elemento jurídico. Por sua vez, a forma como vamos constituir os encontros vai perpassar os modos como concebemos os sujeitos que compõem as relações. Há, portanto, uma dimensão ontológica inerente à construção da racionalidade ética, que diz respeito ao valor como pessoa, ao valor de humanidade de cada ser (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002....
). A redução das pessoas a objetos e engrenagens de ciclos de produção, ou a convivência naturalizada com “dimensões inumanas ou desumanas (em seus mais diversos e variados aspectos, como, por exemplo, a miséria estrutural, a fome crônica ou a indigência educacional de amplas camadas da população)” (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002....
, p. 296) – elementos aos quais podemos acrescentar uma gama de outras violências coloniais e estruturais, como o racismo, o sexismo, o capacitismo, as diversas violências baseadas em gênero (LGBTQIA+fobia, violência contra mulheres, transfobia, entre outras modalidades) –, comprometem a busca de relações éticas e de uma sociedade humana viável e orientada por ações justas. Retomaremos esses aspectos em seguida e passamos agora a pensar sobre a dimensão da regulamentação ética das práticas profissionais.

Um código de ética profissional, como código deontológico, estabelece normas de conduta que devem orientar a prática profissional. O CEPP vigente estabelece “padrões esperados quanto às práticas referendadas pela respectiva categoria profissional e pela sociedade, procura fomentar a auto-reflexão [sic] exigida de cada indivíduo acerca da sua práxis, de modo a responsabilizá-lo, pessoal e coletivamente, por ações e suas conseqüências [sic] no exercício profissional” ( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
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, p. 5). Consta, na apresentação do Código, uma compreensão sobre sua missão não de “normatizar a natureza técnica do trabalho, e, sim, a de assegurar, dentro de valores relevantes para a sociedade e para as práticas desenvolvidas, um padrão de conduta que fortaleça o reconhecimento social daquela categoria” ( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
https://tinyurl.com/yc5hz2v5...
, p. 5). Há, ainda, a afirmação de que o código atual “pautou-se pelo princípio geral de aproximar-se mais de um instrumento de reflexão do que de um conjunto de normas a serem seguidas pelo psicólogo” ( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
https://tinyurl.com/yc5hz2v5...
, p. 6).

Alinhamos agora essas dimensões da ética como relação humana pautada na não-indiferença e na busca pela ação justa e da deontologia como padrão de conduta profissional; para isso, mais uma vez, nos remetemos ao texto de Drawin ( 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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) e suas considerações feitas há quase quatro décadas. Ao discutir ética e psicologia, o autor alerta para o risco da psicologia “se perder no mero artificialismo normativo” (p. 14). Para ele, “as instituições ligadas à Psicologia, enquanto categoria profissional, devem combater a tentação legalista, porque é inócua, porque é incapaz de ocultar a efervescência conflitiva de nossa atuação.” (Drawin, 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
https://doi.org/10.1590/S1414-9893198500...
, p. 14). Para sustentar seu argumento, Drawin dimensiona três níveis a partir dos quais situa a problemática da ética na psicologia: o técnico, o teórico e o prático. No nível técnico, sinaliza a histórica busca pela eficácia, que conduziria à aceitação acadêmica e que orientou a criação de técnicas e instrumentos de hierarquização que pudessem ser aplicados às demandas produtivas – pautadas, segundo o autor, mais na “exigência ideológica de legitimação científica” que em sua “consistência teórica” (Drawin, 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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, p. 14). No nível teórico, afirma que “ao generalizar os métodos das ciências da natureza triunfantes e introjetá-los na Psicologia, sob a forma de priorização do método sobre o objeto, o positivismo dificultou enormemente a autoconsciência da Psicologia como ciência teórica” (Drawin, 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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, p. 15). Por último, em relação ao nível prático, discute o agir social (a práxis) da psicologia em suas dimensões ética e política. É nesse nível que situa-se a questão da ética profissional, na qual os dois primeiros níveis e suas contradições vão se deslocar do mundo acadêmico para o mundo institucional e social mais complexo, como uma profissão.

Portanto, embora muitas vezes haja uma ênfase em se pensar a ética profissional como relativa meramente ao campo da prática – contrapondo-se teoria e prática, ciência e profissão –, há uma indissociabilidade dos três níveis na constituição da questão ética: técnica, teórica e prática. O que se pode situar no último (o prático) é a matéria jurídica sobre irregularidades ou ilegalidades do exercício profissional, mas o valor ético extrapola essa dimensão, sendo constitutivo de todos os níveis, porque não há, como argumenta Drawin ( 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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), neutralidade teórica ou técnica possíveis na psicologia: “a Ética já está embutida na própria teorização psicológica, não sendo algo que se acrescente a posteriori a ela” (p. 17).

Aqui chegamos à relevância do conceito de conhecimento que, conforme nos diz Grada Kilomba (Clinicand, 2021 Clinicand – Psicanálise e Esquizoanálise. (2021, 19 de março). Grada Kilomba: Descolonizando o conhecimento [Vídeo]. Youtube. https://tinyurl.com/yntdkkr2
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), está intrinsecamente relacionado à raça, ao gênero e ao poder. Nesse sentido, não se resume a um simples estatuto apolítico da verdade, pois reproduz relações de poder racial e de gênero que definem tanto o que conta como verdadeiro, quanto determina em quem acreditar. A epistemologia branca considerada legítima reflete interesses políticos de uma sociedade colonial, racista e patriarcal. A epistemologia, como ciência da aquisição do conhecimento, determina três aspectos, conforme a autora: primeiro, os temas, questões e tópicos que merecem nossa atenção; segundo, os paradigmas, que indicam quais narrativas e interpretações podem ser empregadas para explicar um fenômeno ou, ainda, a partir de qual perspectiva pode-se produzir conhecimento; e, por fim, os métodos, que se referem a quais maneiras e formatos podem produzir um conhecimento verdadeiro. Grada Kilomba enfatiza ainda que epistemologia é aquilo que define não somente como produzir conhecimento, mas quem pode fazê-lo. Dessa maneira, uma epistemologia estabelece também em que e quem acreditamos, a quem damos crédito e quem silenciamos. A ética, portanto, situa-se na interface das dimensões epistemológicas e ontológicas, que constroem relações possíveis entre humanos e não humanos que são anteriores e estão para além do que as prescrições podem regulamentar.

Assim, coloca-se o problema da contradição interna da psicologia como ciência e profissão: constituída por referenciais teóricos e epistemológicos brancos e colonialistas, a psicologia promove concepções ontológicas e éticas, produz técnicas e práticas, que nem sempre permitiram a construção de relações e encontros pautados pela não-indiferença com o outro e pela busca por ações justas (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
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). O que hoje se coloca como princípio de nosso código de conduta – “promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” ( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
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, p. 7) e “a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” ( Resolução CFP nº 10 , 2005 Resolução CFP nº 10, de 21 de julho de 2005. (2005, 21 de julho). Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/yc5hz2v5
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, p. 7) – está no caminho inverso do que muitas de nossas ações de hierarquização, diferenciação e classificação promoveram historicamente e do que muitas de nossas teorias e práticas profissionais contemporâneas insistem em fazer, ainda que em desacordo com o CEPP vigente. Tais princípios, consequentemente, questionam o próprio percurso de constituição racista, colonial e patriarcal da psicologia como ciência (não apenas como profissão), que com suas concepções e práticas violentou, objetificou e subalternizou vidas e formas de viver que não correspondiam a seus referenciais normativos (APA, 2021 American Psychological Association. (2021). Apology to People of Color for APA’s Role in Promoting, Perpetuating, and Failing to Challenge Racism, Racial Discrimination, and Human Hierarchy in U.S. https://tinyurl.com/yakrnr68
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). Ao mesmo tempo em que estes são princípios fundamentais a serem seguidos, quando os colocamos em primeiro plano em conexão com nossa história como ciência, torna-se ainda mais evidente que há um longo caminho a percorrer na direção de um trabalho que envolva todos os níveis da constituição ética, e não apenas a regulamentação das práticas.

Logo, não se pode esperar que a mera regulamentação do campo da prática seja suficiente para uma transformação ou ação ética. Concordamos com Drawin ( 1985 Drawin, C. R. (1985). Ética e psicologia: Por uma demarcação filosófica. Psicologia: Ciência e Profissão, 5(2), 14-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98931985000200005
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) que a ética está sempre embutida em nossas teorias e com Kilomba (Clinicand, 2021 Clinicand – Psicanálise e Esquizoanálise. (2021, 19 de março). Grada Kilomba: Descolonizando o conhecimento [Vídeo]. Youtube. https://tinyurl.com/yntdkkr2
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) sobre como relações de raça, gênero e poder constituem as epistemologias, que carregam em si uma concepção de ética. Desse modo, a reflexão ética precisa, necessariamente, ser produzida no âmbito da formação epistemológica de nossa ciência e não apenas no campo deontológico; um código de condutas enfático no que deve ser feito e no que não dever ser feito profissionalmente é necessário porque há uma falha na reflexão ética sobre alteridade, sobre nossa relação com outridades. É preciso caminharmos atentos(as) às incertezas e à dinamicidade desses processos e dispositivos, sejam eles ligados a uma ética da relação com o outro, ou do código profissional. “Se estivermos realmente à procura de algo que se esboçaria como uma racionalidade ética, é necessário que tenhamos plena consciência de que caminhamos na direção de uma radical insegurança – insegurança que provém da irredutível alteridade do outro” (Souza, 2002 Souza, R. T. (2002). Racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável. Reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 2(2), 293-308. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2002.2.103
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, p. 302). Mesmo diante dessa insegurança, se buscarmos por referências mínimas e necessárias ao nosso agir profissional ético, precisamos das normas, que nunca serão suficientes para dispensar a constante e contínua reflexão ética.

Algumas pedras no meio do caminho

Ontem eu estava num ônibus e presenciei a seguinte cena: um menino não cedeu o lugar a um idoso. Este o repreendeu: – Quando você for velho, também não vão te ceder o lugar. – Eu nunca vou ficar velho, respondeu o menino. – E por quê? – Todos nós vamos morrer logo

(Aleksiévitch, 2016Aleksiévitch, S. (2016). Vozes de Tchernóbil. Companhia das Letras. , p. 299).

Quando princípios aumentam e a estrutura prescritiva de um código diminui, como se dão nossos encontros com aquilo que consideramos obrigações éticas, ou quando recorremos às nossas obrigações éticas? Quando levantar ou ficar sentado nos interpela como um dilema ético do nosso cotidiano, que nos coloca diante da dimensão da vida do outro?

Como estrutura, é fácil levantar para ceder o lugar – uma criança sempre levanta para um idoso sentar. Mas como princípio, perante uma vida que não se tornará idosa, porque “a nossa volta só se fala em morte. As crianças pensam na morte” (Aleksiévitch, 2016Aleksiévitch, S. (2016). Vozes de Tchernóbil. Companhia das Letras. , p. 299), o que regula nossa conduta e quando começamos a pensar sobre isso? Aqui trazemos um diálogo de uma jornalista com sobreviventes de Chernobyl, mas estabelecemos conversas semelhantes em nossos acompanhamentos cotidianos em distintas redes de cuidados e proteções, nas quais nem sempre o ceder o lugar torna-se uma prerrogativa ou uma obviedade diante da complexidade de uma condição precária.

Como recorrer a princípios amplos que impliquem responder às necessidades de proteção de uma vida precária? Para responder a esses princípios diante de uma rede precária, a estrutura do CEPP dá suporte a reflexão/proteção com esses princípios? Quando uma criança é sujeita a violações, como apanhar sistematicamente dentro de casa, o que significaria denunciar à rede de proteção? Porém, e se aquele que comete a violência também é vítima de violência da própria rede? E se o sistema de abrigagem também viola a própria criança? Como ‘o lugar será cedido’ de forma tão óbvia, se de início há uma violação de direitos, mas a própria rede também viola alguns direitos?

Por princípio, o lugar deve ser cedido – a estrutura é a denúncia. Entretanto, além da violação, há uma relação de um cuidado que leva essa criança a uma unidade de saúde para ser cuidada, para saber o que essa criança tem que não se comporta em casa e quer ajuda para fazê-la se comportar; uma mãe que leva essa criança sistematicamente a todas as consultas e campanhas de vacinação na unidade de saúde, que não deixa a criança ir sozinha a escola porque tem medo da violência do bairro. Porém, a própria mãe sofre de uma dor crônica na coluna que a impede de trabalhar, que a rede não acolhe, tem uma cirurgia que não é marcada, uma seguridade social na qual nunca se encaixa nos requisitos, não há um lugar que é cedido para ela. Qual seria a obviedade da denúncia e como considerá-la perante um Código de Ética que nos conduz a isso? Trata-se de dar ou não um lugar?

Jota Mombaça ( 2021Mombaça, J. (2021). Não vão nos matar agora. Cobogó. ), ante ao “não vão nos matar agora”, coloca que “à revelia do mundo eu as convoco a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível. Aqui, onde todas as portas estão fechadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer o mapa das brechas” (p. 14). Talvez provocando o que e para quem seriam os dilemas éticos, pois para alguns corpos/vidas, não há dilemas, há apenas viver apesar de tudo , não vou ceder, porque não vou envelhecer , brechas que nos colocam de encontro, em tensão com essa articulação do princípio com a estrutura, dessa relação com o outro. Quando consultórios de rua são abordados por agentes de segurança para procurar/denunciar pessoas em situação de rua em razão de atos infracionais, considerando que esses atos são casos como de mulheres que sofreram sistematicamente abusos sexuais e em algum momento agridem os agressores e de vítima tornam-se violadoras, como nos interpelamos eticamente? Essas mulheres têm ido para as ruas, onde encontram “proteção” pela invisibilidade, sobrevivem nas brechas, acessando a saúde pelos consultórios de rua. Se ir para a rua é viver apesar de tudo , como aqui conectar os princípios com a estrutura? Cedemos ou não o lugar, a denúncia protegerá quem e como?

Essas são algumas dimensões com as quais nos encontramos no cotidiano da atuação em psicologia que acarretam o modo como nos aproximamos do Código de Ética – quando a ele recorremos – e como ele se apresenta em nosso campo de formação. Há dois pontos, atualmente, que tensionam esse cotidiano de atuação de formas importantes: um que é a “terra de todos” (porque, sim, consideramos que temos essa tutela), que são esses corpos que nos apropriamos, subalternizados. Nessa terra de todos da subalternização, ceder lugar é apelar mais rapidamente ao Código, formalizando denúncias, talvez mais para nos protegermos do que para proteger aqueles com os quais estamos trabalhando, e essa é uma questão fundamental, para aquilo que chamamos de dilema.

Caminhar com a ética e pensar com o CEPP diante de vidas subalternizadas nos aproxima de como temos nos encontrado com esse dispositivo. A maneira como ele se apresenta em nossa formação, o espaço pontual, ou seja, a disciplina de ética profissional, do tipo “é apenas uma disciplina”, nos motiva a buscá-lo quando temos um “problema”: aquele que nos faz responder profissionalmente/juridicamente, um desfecho que nos impacta afetivamente, quando avaliamos que o problema é do outro. Seriam aproximações em termos de problemas perguntados à estrutura. Entretanto, diante dos “nossos problemas”, há condições precárias com as quais nosso Código de Ética se defronta, se confronta, entendendo-o como parte de uma rede. O CEPP é parte de uma rede de proteção – para nós e para aqueles(as) com quem nos relacionamos como profissionais – e é a ela que interrogamos nossas ações cotidianamente como problema. Por isso, necessita de articulações entre princípios e estrutura, de modo a tomar como possibilidades de fio condutor as brechas que Jota Mombaça sugere quando alerta para nossas deontologias “eu sinto que a pressa autodestrutiva que me consome do meio dia até o fim da tarde é inversamente proporcional à calma cruel e assassina do serviço de estrangeiros e fronteiras” ( 2021Mombaça, J. (2021). Não vão nos matar agora. Cobogó. , p. 32).

O outro ponto é a “terra de ninguém”, aquela que vem se apresentando pelos usos e abusos das redes sociais, tornando-se um espaço de difícil acesso para a ética no sentido de um ethos no qual o outro necessariamente está na relação com o sujeito. As redes sociais tanto têm permitido diferentes acessos: em momentos de pandemia, em situações de desastres/crimes, ambientais pessoas podem ser acompanhadas à distância como parte de uma rede de cuidados do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (Suas); o outro acesso é em relação à fragilidade da profissão, com aquilo que circula e é colocado de valores/opiniões na rede sendo associado à psicologia. Atualmente, é muito fácil que declarações fascistas, racistas, eugenistas, entre tantas outras, venham coladas ao nome do(a) profissional e a indicação de se tratar de um(a) profissional da psicologia; é muito rápido, nas situações de tragédias/desastres, profissionais se prontificaram a atendimentos psicológicos online, sem considerar o que envolve uma rede complexa de assistência nessas situações e a permanência dessas assistências. Na terra de ninguém, a rede social permite uma experiência do profissional consigo mesmo, com seus valores, opiniões e necessidades, que, como tal, não se constituem como uma relação ética, pois esta supõe sempre a alteridade e a não-indiferença.

Algumas considerações para seguirmos caminhando

A psicologia, como ciência e profissão, pautou-se historicamente em uma racionalidade supremacista branca e cisheteropatriarcal. Assim, alguns dilemas presentes na formação e no exercício profissional apontam para os modos como epistemologias coloniais assombram nosso presente, pois é com base nelas que se torna possível a naturalização de uma psicologia aliançada com violências de gênero, raça, classe e sexualidade, como quando se afirma tranquilamente: “não quero atender transexuais” e “não concordo com certas pautas porque minha religião não permite”. Falas como essas e as que estão na abertura deste texto referem-se ao que escutamos em diferentes espaços formativos, particularmente em salas de aula, e ao que se lê em redes sociais. Elas indicam posicionamentos coloniais e neofascistas que violam o que está previsto no CEPP vigente (ao qual muitas vezes recorremos em tais espaços, a fim de dirimir achismos e estancar discursos de ódio que nos rondam fortemente nos últimos tempos) e produzem um continuum de extermínios e aniquilamentos de modos de existência tidos como incompatíveis com a régua colonial usada pela psicologia para delimitar noções de um humano – ao qual se pode endereçar práticas de cuidado, escuta e produção de saúde. Essas práticas sobre as quais os princípios nos auxiliam a refletir se contrapõem ao conjunto heterogêneo de ações e epistemologias, conforme viemos apontando, que insistem na violação de vidas e na objetificação de inumanos, dos quais se espera que não “sujem” uma ciência pautada pela branquitude cisheteropatriarcal que permanece como um centro ausente, sem marcas e sem nomes. É como centro ausente que se pode reiterar aos corpos tidos como outros: “Eu não sei do que você está falando” (Clinicand, 2021 Clinicand – Psicanálise e Esquizoanálise. (2021, 19 de março). Grada Kilomba: Descolonizando o conhecimento [Vídeo]. Youtube. https://tinyurl.com/yntdkkr2
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). Desse modo, considerar certas questões como problemas éticos passa por situá-las no plano ontológico, pois a não-escuta, omissões e negligências também sustentam formas de objetificação. Apostamos, assim, em seguir os rastros da discussão da ética como prática de uma alteridade, tal qual propõe bell hooks ( 2021hooks, b. (2021). Tudo sobre o amor: Novas perspectivas. Elefante. ) quando fala do amor como uma política, o que implica um exercício de um pensamento articulado epistemológica e ontologicamente com aquilo que o posiciona coletivamente.

Se o conhecimento que habita as instituições é um conhecimento violento, colonial e discriminatório, e assim estão caracterizadas também as práticas, a descolonização requer adotar teorias que sejam lugares de pertencimento e libertação, como argumenta Grada Kilomba (Clinicand, 2021 Clinicand – Psicanálise e Esquizoanálise. (2021, 19 de março). Grada Kilomba: Descolonizando o conhecimento [Vídeo]. Youtube. https://tinyurl.com/yntdkkr2
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). Podemos dizer, ainda a partir dessa autora, que seria preferível não lembrar o passado colonial da psicologia, mas é impossível esquecê-lo. Ele compõe memórias e esquecimentos naquilo que se produz como CEPP em cada momento histórico. Ao apontar um conjunto de princípios e artigos para regulamentações de um agir profissional ético contrário à violência, discriminação e opressão, negligencia-se um aspecto fundamental para combater violências dos sistemas de opressão: nomeá-las explicitamente, sair das entrelinhas de princípios gerais, porque nomear é reconhecer sua existência e dar materialidade a um problema, mesmo que, por si só, isso não garanta ou seja suficiente para sua resolução (Ahmed, 2022Ahmed, S. (2022). Viver uma vida feminista. Ubu Editora. ).

Assim, ainda que não se tenha a pretensão de que os documentos dos códigos sejam exaustivos e definitivos – pois, como abordamos aqui, desafios se apresentam repletos de impasses e dilemas cotidianamente –, ao deixar de nomear violências dos sistemas de opressão (racismo, sexismo, LGBTQIA+fobia, capacitismo, elitismo, xenofobia, classismo), o CEPP assenta-se em apagamentos que estão relacionados a como a psicologia patologizou sujeitos dissidentes da norma heterossexual e objetificou comunidades de ciganos, negros e indígenas, entre outros; enfim, todo um conjunto de existências postas à margem de um clube seleto que se autoelege como sinônimo de humanidade (APA, 2021 American Psychological Association. (2021). Apology to People of Color for APA’s Role in Promoting, Perpetuating, and Failing to Challenge Racism, Racial Discrimination, and Human Hierarchy in U.S. https://tinyurl.com/yakrnr68
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; Krenak, 2019Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras. ). A não-nomeação acaba oferecendo ainda mais brechas para a continuidade dessas violências no âmbito da nossa profissão, já que o CEPP não oferece um impeditivo explícito e objetivamente nomeado para questões que acabam sendo deslocadas para o campo da posição subjetiva, como dos valores e opiniões.

Cabe aqui uma consideração sobre a existência de algumas resoluções que funcionam de forma complementar ao CEPP, dentre as quais destacamos: a) a Resolução CFP nº 1, de 22 de março de 1999 Resolução CFP nº 1, de 22 de março de 1999. (1999, 22 de março). Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/2276a84k
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, que “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual” (p. 1); b) a Resolução CFP nº 18, de 19 de dezembro de 2002, que “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação a preconceito e discriminação racial” (p. 1); e c) a Resolução CFP nº 1, de 29 de janeiro de 2018, que “estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis” (p. 1). Apesar da relevância dessas resoluções e de seu estatuto jurídico (Aragusuku & Lara, 2019 Aragusuku, H. A., & Lara, M. F. A. (2019). Uma análise histórica da Resolução n° 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia: 20 anos de resistência à patologização da homossexualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(spe3), 6-20. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228652
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), não faltam relatos atuais de práticas psicológicas que seguem aviltando pessoas por sua orientação sexual, identidade de gênero, raça, cor e etnia. Isso indica, por um lado, que não há como um código ou resolução garantir a ética, por mais que ele busque ser completo. Por outro, mostra que, apesar de sua importância histórica e política, as próprias redações dessas resoluções, quando trazidas para o presente, apresentam lacunas e fragilidades importantes diante das transformações da sociedade e do conhecimento, que demandam a continuidade, ampliação e atualização desses debates. Além disso, o fato de tais questões serem abordadas em resoluções complementares ao CEPP, e não no próprio Código, parece ser significativo e remete ao que não se nomeia naquele que se propõe a ser o principal documento de referência da conduta ética profissional da categoria, bem como ao modo como essas resoluções ressoam na sociedade e entre psicólogos(as).

Com tudo isso em consideração e apesar dos limites deontológicos, se ainda recorremos ao Código de Ética ante problemáticas que nos interrogam, instaurando contradições e dilemas para a profissão, é porque ele continua sendo necessário. O que apontamos aqui é que tanto a vida e suas complexidades excedem dimensões prescritivas, como também há indicativos de uma necessária revisão do código atual, decorridos quase 20 anos de sua publicação, dada sua insuficiência para abordar questões contemporâneas referentes, por exemplo, aos atendimentos online, flexibilizados pela Resolução CFP nº 4, de 26 de março de 2020 Resolução CFP nº 4, de 26 de março de 2020. (2020, 26 de março). Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do COVID-19. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/2s3db4xm
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, no contexto da pandemia de covid-19, e à atuação de psicólogos(as) em situações de desastres/crimes ambientais e emergências climáticas, que constituem uma gama de questões ao exercício profissional, para citar apenas dois desafios emergentes em nosso tempo.

Ao não definir claramente quais formas de atendimento podem e/ou devem ser adotadas em comunidades afetadas por emergências climáticas, abrem-se brechas para negligências e violências em contextos nos quais sujeitos e comunidades encontram-se vulnerabilizados, o que pode agravar a condição de saúde das pessoas atingidas e dificultar possibilidades de denúncias diante de más práticas profissionais. Além disso, quando o CFP estabelece resoluções para orientar em relação a questões não suficientemente explicitadas no Código de Ética – como as mencionadas resoluções CFP nº 1/99, CFP nº 18/ 2002 Resolução CFP nº 18, de 19 de dezembro de 2002. (2002, 19 de dezembro). Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/ycy72twe
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e nº 29/ 2018 Resolução CFP nº 1, de 29 de janeiro de 2018. (2018, 29 de janeiro). Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Conselho Federal de Psicologia. https://tinyurl.com/49pte7hn
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–, novamente surgem alguns posicionamentos de que isso ocorre porque essa autarquia “agora faz militância” e politiza questões, abordando temas que não seriam de interesse para a categoria profissional 4 4 Como podemos acompanhar cotidianamente em manifestações de muitos/as psicólogos/as no perfil do CFP na rede social Instagram. Essas pessoas, frequentemente, demandam uma atuação mais corporativa e menos política do Conselho. , de maneira a torcer princípios e resoluções como meras opiniões e valores pessoais, como se pudessem se impor e balizar a prática profissional. Por isso, é necessário questionar se haveria, no exercício profissional, alguma questão fora da esfera política ou se isso que se chama de politização revela um medo apreensivo de lidar com os segredos coloniais da psicologia.

Entendemos que o conceito de ética está para além dos códigos, ao mesmo tempo em que eles são necessários porque, do contrário, teríamos uma panaceia de opiniões, alavancadas por fundamentalismos, disseminação de notícias falsas e pela onda negacionista, os quais possuem estreitos vínculos com discursos colonialistas. Esse cenário envolve controvérsias, contradições, dilemas e disputas relativas ao que se pode considerar como ética no presente e quando profissionais da psicologia sentem-se não “signatários” do Código de Ética da profissão, em meio às lutas políticas e epistemológicas que transformaram e ainda transformam o campo teórico-prático da psicologia. A advertência de que não alcançaremos um fazer ético em nossas práticas se não movimentarmos nossas epistemologias, como buscamos evidenciar ao longo desta reflexão, não é nova, e seguimos em dívida com todos(as) aqueles(as) com quem continuamos indiferentes, negligentes ou omissos(as), produzindo violações e violências em nossas relações profissionais.

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  • 1
    Incluem-se aqui resoluções que revogam artigos específicos das regulamentações éticas e o próprio Código de Processamento Disciplinar, que compõem esse conjunto de normativas.
  • 2
    A primeira autora deste artigo, Simone Maria Hüning, foi coordenadora do Grupo de Trabalho sobre o Novo Código de Ética do CRP do Rio Grande do Sul (CRPRS), à época da elaboração do Código de Ética publicado em 2005.
  • 4
    Como podemos acompanhar cotidianamente em manifestações de muitos/as psicólogos/as no perfil do CFP na rede social Instagram. Essas pessoas, frequentemente, demandam uma atuação mais corporativa e menos política do Conselho.
  • Como citar:

    Hüning, S. M., Bernardes, A. G., & Silva, A. K. (2024). Caminhar com Ética no Presente entre Princípios e Contradições que nos Interrogam. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 (n.spe), -54. https://doi.org/10.1590/1982-3703003286782
  • How to cite:

    Hüning, S. M., Bernardes, A. G., & Silva, A. K. (2024). Moving Ethically in the Present amidst Principles and Contradictions that Question us. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 (n.spe) , -54. https://doi.org/10.1590/1982-3703003286782
  • Cómo citar:

    Hüning, S. M., Bernardes, A. G., & Silva, A. K. (2024). El camino Ético en el Presente entre Principios y Contradicciones que nos Cuestionan. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 (n.spe) , -54. https://doi.org/10.1590/1982-3703003286782

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    a 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2024
  • Aceito
    22 Maio 2024
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