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RESENHAS

O que delimitar numa reflexão sobre o método?1 1 Guerra, A.G. & Carvalho, G. (2002) Interpretação e método: repetição com diferença. São Paulo: Garamond.

Dulcinéa Araújo

Psicanalista e Professora da Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dulcinéa Araújo Rua General Abreu e Lima, n.155, apto. 902 Rosarinho, CEP 52.041-040. E-mail: heliodulce@terra.com.br

Na tentativa de apresentar aqui uma resenha do último livro de Alba Gomes Guerra e Glória Carvalho (2002) sobreInterpretação e método: repetição com diferença, destacarei, de início, o ponto nodal em que o texto está centrado, qual seja, o pressuposto de Badiou, por ele designado de "impasse da formalização" e, na linguagem das autoras, tratado como "impasse do método". Essa reflexão as conduziu a produções anteriores ao referido livro e as orienta, no momento, a um novo estudo que pretende verticalizar essa abordagem, destacando o efeito da palavra na constituição do sujeito concebido como ser de relação.

Conforme as idéias de Badiou, à luz da proposta lacaniana, a admissão de um lugar para o impasse residiria, justamente, no ponto em que o corte se imporia à síntese feita. Tal síntese teria que, obrigatoriamente, ser produzida, para poder atender a uma delimitação da angústia. Entretanto, essa produção – que visaria, de algum modo, a cercar a impotência – teria como único objetivo o de ser desfeita, levando, portanto, o sujeito a uma encruzilhada, a uma dúvida insolúvel, ou seja, a uma situação que não ofereceria saída. Por sua vez, esse ciclo seria recorrente, quer dizer, tratar-se-ia de um contínuo movimento de fazer/desfazer/refazer. Em tal movimento, em confronto com a ilusão de onipotência, ressurgiria a impotência, constituindo a mais fundante condição humana. Essa condição permitiria ao sujeito tirar conseqüências do confronto com as situações que não oferecem saídas, quer dizer, com situações de impasse. Em última análise, o impasse seria a maneira de conviver com uma ilusão necessária de onipotência, concebida como um permanente movimento do princípio de vida, princípio esse, porém, inexoravelmente, germinado num solo de impotência. Segundo as autoras, o mencionado ato de corte, ou melhor, o limite, ou ainda, o lugar do impasse – em seu caráter inevitável e constitutivo – destituiria o conhecimento, em virtude do exigido desfazer da síntese, inaugurando, assim, uma nova forma de saber - um saber que abarcaria um não-saber e, por isso mesmo, seria marcado pela repetição com diferença, peculiar à insistência dos fenômenos inconscientes. Vale destacar que, ao se referirem ao conhecimento, as autoras parecem falar de um suposto e provisório saber completo, que teria inaugurado a ciência moderna e ao qual a psicanálise se colocaria em oposição, propondo não apenas outra maneira de se buscar a verdade mas, também outra concepção de verdade. Em outras palavras, se a escuta do inconsciente teria inaugurado um novo método de investigação, a sistematização do material apreendido através dessa escuta produziria uma nova concepção de ciência, marcada por uma nova concepção de ética, ambas calcadas numa verdade que somente se vislumbraria através de um “saber que não se sabe”. Valeria, ainda, destacar que o elo entre as duas investigadoras, o qual as tem levado a sistemáticas reflexões sobre ciência, método, interpretação e técnica, não parece se fundar somente na condição de serem elas membros de uma mesma academia. O que parece, especialmente, aproximá-las seria a mesma concepção de sujeito que assumem e, ainda, a inarredável convicção de que a psicanálise – como método de investigação dos fenômenos inconscientes e como corpo teórico que se insere, necessariamente, no debate científico – não admitiria uma separação entre a produção científica de conhecimento e a técnica analítica. E isso porque - reafirmo - esses dois campos estariam, indissoluvelmente, ligados pela mesma concepção de sujeito, isto é, um sujeito que surgiria no equívoco e que se constituiria no impasse. Reafirmando, seria um sujeito estraçalhado no desfazer da ilusão de onipotência pela ação da inexorável condição de impotência. Nesse quadro se situaria, portanto, o que há de absolutamente essencial no livro Interpretação e método: repetição com diferença. A sua elaboração lançou mais fundo as autoras na trilha do que chamaram de sedução do desafio. Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que se trataria de uma incessante tentativa de tirar conseqüências do confronto entre um “saber que não se sabe” e um conhecimento que fundaria o classicamente chamado método científico. Nesse sentido, as autoras interrogam: “que conseqüências poderiam ser tiradas de um ‘saber que não se sabe’ sobre um conhecimento supostamente previsível, controlado, adequado e circunscrito pelo discurso, tradicionalmente, nomeado de científico? Em outras palavras: que mudanças ou transformações poderiam acontecer, no sentido clássico de método científico, produzidas pela atuação do saber inconsciente?”

Uma vez destacadas essas questões formuladas pelas autoras, e anunciando um fechamento provisório para as reflexões que estou desenvolvendo sobre o referido livro, apresentarei, de modo sucinto, alguns pontos relevantes retirados dos vários capítulos que compõem o trabalho em foco. Após uma rápida passagem pelas bases epistemológicas do conhecimento, destacando o movimento de repetição com diferença no percurso que vai do mito a Nietzsche – passando por Heráclito –, as autoras chegaram ao campo da ciência inaugurada na modernidade, pela via de três eixos: a filosofia racionalista de Descartes; a epistemologia neopotivista de Popper e o evolucionismo positivista de Darwin. Na discussão mais específica sobre o método, ativeram-se elas, fundamentalmente, à relação entre o sujeito-investigador e o sujeito-investigado. Tal discussão, gradativamente, foi conduzindo a um confronto com o lugar privilegiado da linguagem/simbólico nessa relação. Portanto, um lugar no qual procuraram tornar visível uma conseqüência trazida pelo saber do inconsciente para a questão do conhecimento científico. Recortando um aspecto de visibilidade, nessa conseqüência, foi realçada a questão do efeito do tempo na investigação. Desse tempo, destacaram a importância atribuída pela psicanálise à dimensão do “a posteriori”, a qual desfaria, continuamente, a seqüência cronológico-temporal, fundamentando a volta, o retorno com diferença, na produção do saber. Por sua vez, esse retorno significaria uma inexorável implicação do sujeito-investigador no sujeito-investigado. O investigador somente poderia olhar para o investigado – seu suposto objeto de investigação – a partir de um efeito que, para ele, retornaria à maneira de um efeito especular, o qual vincularia ao impasse o tempo e a singularidade, na constituição da subjetividade e – necessária e conseqüentemente - da investigação. Segundo as autoras, poderia parecer que o mencionado efeito somente ocorreria em relação às ciências humanas, solo mais propício a sua visibilidade. Entretanto, afirmam que, mesmo sem idêntica nitidez, o fenômeno também se passaria nas ciências ditas exatas, o que teria sido, de algum modo, indicado pelo físico Heisenberg, ao anunciar: “fui ao fenômeno e, ao invés de encontrá-lo, encontrei, apenas, a mim mesmo”.

Recebido em 29/09/2003

Aceito em 30/10/2003

  • Endereço para correspondência

    Dulcinéa Araújo
    Rua General Abreu e Lima, n.155, apto. 902
    Rosarinho, CEP 52.041-040.
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    Guerra, A.G. & Carvalho, G. (2002) Interpretação e método: repetição com diferença. São Paulo: Garamond.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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