RESUMO.
Neste estudo procura-se explicitar como a exigência de produtividade se encontra presente no processo de treinamento e desenvolvimento que se articula nas organizações pela psicologia. Por meio de um pensar calcado na tecnocracia, a relação que o trabalhador detém com seu trabalho e, por tabela, sua qualificação, passou a ser medida pela sua produção, requisito fundamental para a manutenção do indivíduo na organização. Com base no pensamento fenomenológico-hermenêutico, tal como elaborado por Martin Heidegger, o objetivo deste artigo é apresentar outra proposta em psicologia e suas práticas no contexto corporativo. Nesta proposta, procura-se deslocar a ênfase depositada na produtividade excessiva para o processo singular, de forma a valorizar o modo como cada um se articula com sua tarefa laboral. Com isso, importa pensar como cada um se apropria de sua relação com o trabalho, considerando que a exigência de produção excessiva se edifica no contexto epocal no qual o trabalho e o trabalhador vêm se articulando e que Heidegger denomina de era da técnica.
Palavras-chave:
Produtividade; psicologia organizacional; psicologia fenomenológico-hermenêutica
RESUMEN.
En este estudio se busca explicar cómo el requisito de productividad está presente en el proceso de formación y desarrollo que se articula en las organizaciones por la Psicología. Por intermedio de un pensamiento basado en la tecnocracia, la capacidad del trabajador comenzó a medirse por su producción, un requisito fundamental para el mantenimiento del individuo en la organización. Basado en el pensamiento fenomenológico-hermenéutico, como elaborado por Martin Heidegger, el objetivo de este artículo es presentar otra propuesta en psicología y sus prácticas en la organización. En esta propuesta, el énfasis pasa de la productividad excesiva al proceso singular para valorar la forma en que cada uno se articula con su tarea de trabajo. Con esto se trata de respectar el hombre singular según su ritmo, ya que cada uno se apropia de su manera de la relación con el trabajo, teniendo en cuenta que la demanda de producción excesiva se construye en el contexto actual en el que el trabajo y el trabajador se han estado articulando y lo que Heidegger llama de era de la técnica.
Palabras clave:
Productividad; psicología organizacional; psicología fenomenológico-hermenéutico
ABSTRACT
This study sought to explain how the demand for productivity is present in the training and development process that is articulated in organizations by Psychology. Through thinking based on technocracy, the relationship that the worker has with his work and, according to his qualification, started to be measured by his production, a fundamental requirement for the maintenance of the individual in the organization. Based on phenomenological-hermeneutic thinking, as elaborated by Martin Heidegger, the objective of this study was to present another proposal in psychology and its practices in the organization. In this proposal, we sought to shift the emphasis placed on excessive productivity to the singular process, in order to value the way in which each one articulates with his work task. With this, it is important to think about how each one appropriates his relationship with work, considering that the demand for excessive production is built in the epochal context, in which work and the worker has been articulating and what Heidegger calls the era of technique.
Keywords:
productivity; organizational psychology; phenomenological-hermeneutic psychology
Introdução
A psicologia do trabalho em suas teorias e práticas corresponde, em grande parte, ao requisito de exigência de produtividade dos trabalhadores por parte das organizações. Por esse motivo, as organizações investem no processo de aprimoramento das pessoas no trabalho para atingir esse objetivo. Desse modo, a condição do homem para corresponder a tal exigência fica relegada a segundo plano. Segundo Han (2017bHan, B.C. (2017b). Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes.), é essa corrida do homem para se tornar produtivo como as máquinas com as quais ele lida que configura a sociedade do cansaço em que nos encontramos.
O processo de treinamento e desenvolvimento das pessoas se encontra aliado a ações estratégicas da organização, desdobrando-se em um conjunto de sequências planejadas e calculadas, visando atingir o objetivo de potencializar a condição da empresa frente ao cenário no qual se encontra. Tal concepção é defendida por Melo, Pereira, Oliveira & D’Elia (2015Melo, P. A. A., Pereira, A.V. S., Oliveira, A. H. R., & D’Elia, B. B. (2015). Aprendizagem e desenvolvimento de pessoas. Rio de Janeiro, RJ: FGV., p. 48) que dizem “[...] entender o desenvolvimento de pessoas como estratégico envolve alinhar a forma de ampliar as capacidades individuais aos objetivos e caminhos traçados pela organização”. Para esses autores, o processo encontra-se relacionado à necessidade de ajustamento e de envolvimento do trabalhador às condições do horizonte sócio-histórico do trabalho, bem como à sua capacitação, a fim de manter a sustentação por novas tecnologias e inovação das organizações, o que, em tese, potencializa a produtividade organizacional.
Para repensar o processo de treinamento e desenvolvimento de pessoal com fins à produtividade, importa questionar o modelo empregado pela psicologia no trabalho, imersa nas determinações de mundo que Heidegger (2007Heidegger, M. (2007). A questão da técnica. Scientiae Studia. USP, 5(3), 375-398. Recuperado de: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf. Obra publicada originalmente em 1953.
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) denominou como era da técnica. Esta, segundo o pensador, teria se iniciado com o período conhecido como mundo moderno, que, por sua vez, é entendido como um tempo determinado por uma nova interpretação de mundo em sua totalidade. Por meio de tais determinações, o homem abandonou a capacidade e a disposição de se demorar sobre aquilo que acontece ao seu redor e se apropriar dos modos de ser rápido, produtivo e eficiente tão valorizados na atualidade. O homem moderno, atravessado pela atmosfera da técnica e pelo modo de pensar calculante (Heidegger, 2001Heidegger, M. (2001). Serenidade. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Piaget. Obra publicada originalmente em 1955.), não mais se demora no pensar meditante (Heidegger, 2001Heidegger, M. (2001). Serenidade. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Piaget. Obra publicada originalmente em 1955.) sobre as coisas, passando a agir de modo autômato. E quanto mais o homem se torna autômato mais ele se esquece daquele que é seu ritmo, sua necessidade, enfim sua cadência.
Abreu e Melo (2019Abreu, C.C., & Melo, S. F. (2019). Entre a técnica e a téchne: possibilidades de atuação do psicólogo nas organizações. Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica, XXV(1) 83-90.), em consonância com as reflexões de Heidegger acerca do modo de pensar contemporâneo, defendem que a psicologia aplica no campo organizacional o pensamento pragmático, positivista, em que as relações, sejam de que natureza for, se estabelecem pelo nexo causal da eficiência, de modo que toda e qualquer ação esteja vinculada a resultados tangíveis e mensuráveis. Nessa era de pragmatismo, o homem passou a ser tomado como objeto e sua subjetividade se tornou passível de cálculo, de mensuração e de controle com fins a uma produção ilimitada.
Indo ao encontro do pensamento formulado por Heidegger (2007Heidegger, M. (2007). A questão da técnica. Scientiae Studia. USP, 5(3), 375-398. Recuperado de: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf. Obra publicada originalmente em 1953.
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) sobre o modo de se comportar do homem moderno e com as considerações de Abreu e Melo (2019Abreu, C.C., & Melo, S. F. (2019). Entre a técnica e a téchne: possibilidades de atuação do psicólogo nas organizações. Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica, XXV(1) 83-90.) no que concerne ao domínio do pragmatismo no campo organizacional, consideramos que o processo de qualificar pessoas nas organizações parece apresentar uma única direção, que é a de realizar-se sob um modo calculado e planejado. Tudo isso visando tomar o comportamento humano como ente a serviço de um objetivo: a produtividade incessante. Vale ressaltar que essa produtividade, como cadência da era da técnica, não é uma característica meramente do campo organizacional, mas a tônica de toda a era atual, a qual se encontra atravessada nos diversos modos de ser, fazer e pensar do homem. Desse modo, termos como competência, educação corporativa, atualização profissional se avolumam no ambiente organizacional, ainda que os objetivos que os impulsionam se mantenham invariáveis: a produtividade incessante.
A psicologia organizacional corresponde, em grande parte, às determinações modernas e orienta sua tarefa pela análise, mensuração e controle do comportamento humano, abarcada pelas demandas de produtividade e assentes em teorias acerca desse comportamento. Com esse objetivo, pode-se acompanhar Ferreira e Abbad (2014Ferreira, R. R., & Abbad, G. S. (2014). Avaliação de necessidades de treinamento no trabalho: ensaio de um método prospectivo.Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 14(1), 01-17. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-66572014000100002&lng=pt&nrm=iso
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), por exemplo, quando compartilham a importância do levantamento de necessidades de treinamento e seu alinhamento aos objetivos estratégicos da organização. Scorsolini-Comin, Inocente e Miura (2011Scorsolini-Comin, F., Inocente, D. F., & Miura, I. K. (2011). Avaliação de programas de treinamento, desenvolvimento e educação no contexto organizacional: modelos e perspectivas.Revista Psicologia: Organizações e Trabalho,11(1), 37-53. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-66572011000100004&lng=pt&nrm=iso.
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) ressaltam, por sua vez, a importância da avaliação do treinamento como forma de controle e instrumentalização da tomada de decisões, visando reprogramar o treinamento ou aproximá-lo de forma mais efetiva dos objetivos organizacionais.
Para poder pensar em outro modo de lida do profissional de psicologia com a demanda de excessiva produtividade no campo organizacional, é que esta proposta se pautará nas reflexões do filósofo Martin Heidegger, acerca das determinações do mundo moderno. Este estudo tem como objetivo refletir sobre o processo de treinamento e desenvolvimento do trabalhador, tecendo uma análise sobre esse modo de prática em psicologia, o qual se encontra imerso nas orientações do mundo da técnica com fins a produtividade, tal como Heidegger nos alertou. Buscar-se-á pensar sobre essa tarefa da psicologia, lançando sobre ela outros olhares que não sejam apenas pela via da racionalização e do alcance de resultados, conforme historicamente ele se constituiu, mas pelo trabalho tomado como tarefa que não pode se equiparar com o modo de fazer das máquinas.
A produtividade como resultado do treinamento e desenvolvimento nas organizações
Os termos ‘treinamento’ e ‘desenvolvimento’ são, comumente, utilizados ao se referirem ao investimento na produtividade dos trabalhadores. Ambos os termos são definidos de forma específica, embora inseridos em uma mesma dimensão conceptual. Noe (2015Noe, R. A. (2015). Treinamento e desenvolvimento de pessoas(6a ed.) Rio de Janeiro, RJ: McGraw-Hill., p. 6) se refere ao termo ‘treinamento’ como o empenho planejado de uma organização para facultar os conhecimentos e habilidades necessários ao empregado nas suas tarefas do dia a dia. O termo ‘desenvolvimento’, para esse mesmo autor, por sua vez, “[...] é semelhante ao treinamento, porém mais focado no futuro [...]”, alimentando as necessidades do trabalhador, tendo como perspectiva posições futuras na organização.
Alguns autores (Vargas & Abbad, 2006Vargas, M. R. M., & Abbad, G. S. (2006). Bases conceituais em treinamento, desenvolvimento e educação - TD&E. In J. E. Borges-Andrade , G. S. Abbad & L. Mourão (Orgs.), Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas (p. 137-158). Porto Alegre, RS: Artmed.; Masadeh, 2012Masadeh, M. (2012). Training, education, development and learning: what is the difference? European Scientific Journal,8(10), 62-68.) alertam para o fato de que tais termos evocam uma pluralidade de conceitos como ‘educação, qualificação, formação’, tornando tal processo revestido de uma relativa indeterminação, que, de certo modo, compromete o projeto de planejar, elaborar e criar ações organizadas em prol da formação e do incremento profissional das pessoas.
O treinamento e desenvolvimento de pessoas são comumente realizados mediante etapas previamente definidas e planejadas, iniciando pelo levantamento de necessidades, geralmente baseado, conforme mencionamos anteriormente, em objetivos estratégicos da organização, passando pelo esboço e pela execução até atingir a avaliação do programa, que verificará em que medida o treinando alcançou o objetivo proposto no levantamento inicial (Melo et al., 2015Melo, P. A. A., Pereira, A.V. S., Oliveira, A. H. R., & D’Elia, B. B. (2015). Aprendizagem e desenvolvimento de pessoas. Rio de Janeiro, RJ: FGV.; Noe, 2015Noe, R. A. (2015). Treinamento e desenvolvimento de pessoas(6a ed.) Rio de Janeiro, RJ: McGraw-Hill.). A promoção do treinamento e do desenvolvimento das pessoas nas organizações parte, assim, de concepções prévias pautadas pelos requisitos de eficiência e produtividade. Pelas etapas sistematizadas, empenha-se pelo controle dos resultados, pressupondo o comportamento humano como previsível, portanto, capaz de ser modelado em consonância com as necessidades de uma dada situação.
O processo de desenvolver pessoas na organização passa, desse modo, por uma relação causal entre o homem e seu trabalho, uma vez que ele se dá em um processo de diagnóstico e prognóstico, modelo utilizado pela psicologia organizacional moderna. Assim, efetua-se o levantamento das necessidades de treinamento (o diagnóstico), pela detecção dos aspectos que precisam ser desenvolvidos pelo trabalhador, os quais se baseiam geralmente em critérios pré-estabelecidos pela organização, em conceitos teóricos sobre o comportamento humano (o líder deve ser assim ou assim) ou em outras formas pré-estabelecidas. A partir daí, efetuando-se o prognóstico (possível efeito gerado pelo treinamento), se aplicará determinado modelo de programa a ser seguido na medida certa a atender as necessidades levantadas. Vemos, desse modo, que a relação do trabalhador com o trabalho é ignorada, para dar lugar a concepções prévias sobre como deve ser essa relação. Embora os termos ‘treinamento’ e ‘desenvolvimento’ venham sendo substituídos por ‘educação corporativa’ e ‘aprendizagem corporativa’ (Kops, 2013Kops, L.M. (2013). Tendências e práticas da gestão estratégica de T&DE. In L. M. Kops & R. S. Ribeiro. Desenvolvimento de pessoas (Série administração e negócios, p. 13-30). Curitiba, PR: Intersaberes.; Melo et al., 2015Melo, P. A. A., Pereira, A.V. S., Oliveira, A. H. R., & D’Elia, B. B. (2015). Aprendizagem e desenvolvimento de pessoas. Rio de Janeiro, RJ: FGV.), esse fazer da psicologia organizacional continua respaldado por técnicas e estratégias planejadas, com o objetivo último do controle sobre a produtividade do homem no trabalho.
Tal modelo de educação para o trabalho se realiza amparado por um novo tempo histórico capitalista, que teve início nas últimas décadas do século XX, proveniente de uma crise econômica que se impôs rapidamente “[...] como uma verdadeira crise do emprego” (Linhart, 2007Linhart, D. (2007). A desmedida do capital (Tradução Wanda Caldeira Brant, trad.). São Paulo, SP: Boitempo., p. 11). A flexibilização dos processos de trabalho, somada aos avanços tecnológicos, à automação, à denominada ‘Internet das Coisas’ e à ‘Inteligência Artificial’, vêm propiciando e gerando novas relações no interior do campo laboral. Esta última, que atualmente já se expandiu para o denominado deep learning, define-se como um conjunto de práticas, tecnologias e métodos que tem como objetivo simular, eletronicamente, tarefas que seriam, em tese, exclusivas dos humanos, como a descoberta de padrões, resolução de problemas e tomada de decisões. Presente em vários segmentos da vida cotidiana, a Inteligência Artificial influencia também nas organizações no que se refere ao desempenho do trabalhador, sendo este analisado por meio de uma base de dados, eletronicamente instalada nas dependências do setor de ‘Recursos Humanos’ das empresas. Desse modo, decisões acerca do que o indivíduo precisa aprimorar acontecem também a partir das informações extraídas online.
Melo et al. (2015Melo, P. A. A., Pereira, A.V. S., Oliveira, A. H. R., & D’Elia, B. B. (2015). Aprendizagem e desenvolvimento de pessoas. Rio de Janeiro, RJ: FGV., p. 15) fazem ver que a sociedade do século XXI, calcada no conhecimento, sofre o impacto contínuo e intenso da “[...] velocidade e variedade das informações e conhecimentos produzidos pela razão humana e potencializados pelo progresso tecnológico [...]”, o que impacta também no processo de aprendizagem dos trabalhadores, requerendo destes uma atualização constante em relação ao conhecimento e aos sistemas eletrônicos interligados, de forma a aplicá-los no processo produtivo, cada vez mais em mutação. Assim, segundo os autores,
A produtividade depende cada vez mais da capacidade de aplicar as informações no cotidiano empresarial, transformando dados e informações em conhecimento, cuja construção já não é mais produto unilateral de seres humanos isolados, mas de uma vasta rede colaborativa cognitiva dispersa da qual participam educandos humanos e sistemas cognitivos artificiais (Melo et al., p. 15).
A formação educacional, pela cadeia formal de ensino, também vem se sustentando cada vez mais pelas competências requeridas no processo produtivo (Mourão & Puente-Palacios, 2006Mourão, L.,& Puente-Palacios, K. (2006). Formação profissional. In: J. E. Borges-Andrade, G. S. Abbad& L. Mourão(Coords.), Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas(p. 41-64). Porto Alegre, RS: Artmed.; Cezar & Ferreira, 2016Cezar, T. T., & Ferreira, L. S. (2016). A relação entre educação e trabalho: um contexto de contradições e a aproximação com a educação profissional. RIAEE -Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 11(4), 2141-2158. Recuperado de: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/8248/6050
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; Pietrani, 2019Pietrani, E. E. M. (2019). Convenio sobre el desarrollo de los recursos humanos, 1975. Revista Internacional y Comparada de Relaciones Laborales y Derecho del empleo, 7(142). Número especial de conmemoración del Centenario de la OIT.). Nesse sentido, a qualificação das pessoas é tomada pelo seu caráter permanente, pois requer que o indivíduo esteja em vigília constante com as mudanças ininterruptas do mundo do trabalho. Trata-se de uma acumulação de saberes conduzida desde tenra idade, com vistas exclusivamente a atender aos imperativos de um sistema econômico, ainda que tal fato não represente garantia de permanência no emprego.
A qualificação voltada ao trabalho, inclui, segundo Mourão e Puente-Palacios (2006Mourão, L.,& Puente-Palacios, K. (2006). Formação profissional. In: J. E. Borges-Andrade, G. S. Abbad& L. Mourão(Coords.), Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas(p. 41-64). Porto Alegre, RS: Artmed.), pensar também o papel do Estado nesse processo. Este, praticamente em todo o mundo ocidental, tem cada vez mais saído de cena, deixando o processo educacional a cargo de organizações privadas. “O Estado tem deixado de ser visto como o único provedor do bem-estar social, e as empresas também passaram a assumir esse papel” (Mourão & Puente-Palacios, 2006Mourão, L.,& Puente-Palacios, K. (2006). Formação profissional. In: J. E. Borges-Andrade, G. S. Abbad& L. Mourão(Coords.), Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas(p. 41-64). Porto Alegre, RS: Artmed., p. 43). Ao depositar a qualificação nas mãos de instituições privadas, a educação perde seu caráter reflexivo, para centrar seu foco nas demandas do trabalho, destituindo o indivíduo de pensar sobre o mundo, sobre si mesmo e sobre o papel social do trabalho, servindo-se apenas à sua funcionalidade. Bourdieu (2015Bourdieu, P. (2015). Escritos de educação(16aed.). Petrópolis, RJ: Vozes., p. 147) também ressalta a direção que o sistema de ensino tomou ao se orientar fundamentalmente como utilitário do setor econômico. Diz ele: “[...] os interesses dos compradores de força de trabalho levam-nos a reduzir ao mínimo a autonomia do SE [Sistema de Ensino], colocando-o [...] sob a dependência direta da economia”.
Nesse sentido, a formação do indivíduo se alinha ao que atualmente se denomina como ‘empregabilidade’, definida como a capacidade de o trabalhador se inserir e ascender no mercado formal de trabalho. Ao se referir à dialética educação e empregabilidade, Aranha (2001Aranha, A. V. S. (2001). Formação profissional nas empresas: locus privilegiado da educação do trabalhador?.In SM. Pimenta & M. L. Correa(Orgs.), Gestão, trabalho e cidadania: novas articulações (p. 281-294). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 281) aponta para “[...] a responsabilização do trabalhador pela obtenção e manutenção do seu emprego, por meio de um processo contínuo de formação e aperfeiçoamento”. Trata-se de uma obrigação imputada ao indivíduo e envolvida por um discurso humanista e meritocrático: humanista porque se baseia em uma concepção de homem como um ser racional, livre e capaz; meritocrático porque se baseia na concepção de esforço e recompensa, em que bastaria ao indivíduo ser diligente consigo mesmo e com sua carreira para ser recompensado com o que se denomina sucesso profissional.
Mourão e Puente-Palacios (2006Mourão, L.,& Puente-Palacios, K. (2006). Formação profissional. In: J. E. Borges-Andrade, G. S. Abbad& L. Mourão(Coords.), Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas(p. 41-64). Porto Alegre, RS: Artmed., p. 42), entretanto, veem a questão da empregabilidade como uma retórica neoliberal, embasada no próprio desemprego que vem assolando o mundo do trabalho. Eles consideram que “[...] o conceito de empregabilidade, claramente apoiado no desemprego crescente, faz com que a responsabilidade por buscar atender às demandas de formação exigidas pelo setor produtivo recaia sobre os cidadãos”. Os autores dão ênfase, no entanto, em que “[...] a qualificação profissional […] não é um processo alheio às condições de vida das pessoas” (p. 44). Para eles, o discurso da meritocracia pressupõe que todo indivíduo possui as mesmas condições para galgar os degraus na escala profissional e não apenas ignora a movimentação crescente que vem se dando no interior das organizações em forma de privatizações, fusões, enxugamento de custos etc., além de fatores externos decorrentes das crises que acompanham o sistema capitalista, de ordem econômica, financeira e até ecológica. São aspectos que resultam frequentemente em massas de demissões, independentemente do nível de saber do indivíduo.
Antunes (2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.) também alerta para a explosão da cultura digital, que vem colaborando para uma nova morfologia do trabalho, como aquela mediada por aplicativos e plataformas digitais, onde o trabalhador é agora um proletariado de serviços da era digital. Denominada também como a ‘Economia do Compartilhamento’, Slee (2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (João Peres, trad.). São Paulo, SP: Editora Elefante., p. 23) defende que esse modelo de negócio em nada se aproxima de sua prometida causa social, de solidariedade e cooperação. Para ele, tal modelo, em verdade, “[...] tem uma face mais sombria, definida pelo controle centralizado [...]”, em que os prestadores de serviços, além de trabalharem extensas horas, desprotegidos de qualquer garantia trabalhista, tem seu desempenho sob a fiscalização constante do próprio usuário do serviço.
Antunes (2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.) e Slee (2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (João Peres, trad.). São Paulo, SP: Editora Elefante.) denunciam não apenas a precarização desse modelo de trabalho, através da ruína de direitos sociais e da intensificação da jornada laboral, mas chamam também a atenção para a destituição de projetos de vida não realizados, o que inclui também escolhas profissionais iniciadas na formação e que, não raras vezes, são abandonadas para dar lugar à disputa pela sobrevivência. Também Jean-Marie Vincent (1977Vincent, J.M. (1977). La domination Dudu travail abstrait. Critiques de L’économie Politique, (1), 19-49.) já tecia críticas ao trabalho teleológico, fazendo ver que na fragmentação desse modelo de trabalho também surge um sujeito fragmentado: em relação a si, aos outros e ao trabalho em seu caráter material e social.
Diante disso, vê-se que o homem emerge como o elemento que é apropriado pelo capital, para que, dominado e controlado, possa servir à sua potencialização e expansão. Trata-se agora de uma apropriação não apenas técnica, mas também dos aspectos subjetivos do indivíduo. É a “[...] ‘captura’ da subjetividade” (Alves, 2011Alves, G. (2011). Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo, SP: Boitempo., p. 111, grifo do autor) que se coloca em jogo pela lógica do trabalho vigente e que é também esquadrinhada para ser posta a serviço da produtividade, visando, em última instância, a melhor posição da empresa no ranking mercadológico.
Esse modo de o trabalhador se apropriar do conhecimento da sua tarefa laboral vem sendo naturalizado pela psicologia do trabalho que, imersa nesse horizonte histórico de produtividade da era moderna, faz coro a esse modelo de desenvolvimento e perpetua-o em seu fazer diário nas organizações. Ao orientar o seu fazer por esses princípios, a psicologia passou a tomar a subjetividade do homem no seu processo de desenvolvimento profissional como um objeto capaz de ser modelado e, desse modo, supostamente controlado em seu comportamento. Alinhando-se ao modelo positivista, a psicologia do trabalho passou a lidar com a existência de forma mecânica e, de certa forma, a ignorar o homem em sua condição mais própria, por isso reduziu o trabalhador a uma subjetividade encapsulada e, como tal, passível de mensuração e de controle, assim como os outros entes naturais.
Han (2017bHan, B.C. (2017b). Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes.) destaca que se trata de uma época neuronal em que aparecem transtornos como depressão, déficit de atenção, síndrome da hiperatividade e síndrome de Burnout. Segundo o autor, estes são estados patológicos que decorrem do excesso de positividade, ou seja, da excessiva racionalização sobre as relações que o indivíduo empreende com as coisas ao seu redor, nesse caso o trabalho, tendo que corresponder de forma planejada e calculada às demandas que lhe chegam, sem espaço para o afloramento de sua singularidade e as contradições que lhe são próprias.
Exercício e apropriação da tarefa laboral: uma proposta da psicologia fenomenológico-hermenêutica
Como, então, pensar a tarefa da psicologia nas organizações, prescindindo de elementos positivos, já que nos encontramos em uma sociedade da positividade? (Han, 2017aHan, B.C. (2017a). Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes.). Han propõe retornarmos a uma sociedade da negatividade. Também a psicologia fenomenológico-hermenêutica propõe pensar o homem em sua negatividade originária. Essa negatividade, abordada por Han e pela psicologia fenomenológico-hermenêutica, diz respeito à indeterminação pela qual o homem se constitui em seu caráter de abertura. Por essa condição é que o homem sustenta a sua liberdade e singularidade, mesmo que na cadência do mundo ele seja tentado a se constituir, mediante as determinações hegemônicas do mundo em que se encontra.
Ao resguardar o caráter de indeterminação e singularidade da existência, buscaremos outras formas de pensar o homem em sua relação com o trabalho e, mais especificamente, em seu projeto profissional, que se articulem muito mais como exercício da tarefa e menos com treinamento; e nas quais ainda se considere muito mais a possibilidade com que cada um mantenha a apropriação de sua tarefa do que propriamente o desenvolvimento da mesma.
Ao pensar junto ao filósofo da ‘Daseinsanálise’, Martin Heidegger, verifica-se que o campo de prática da psicologia voltado ao processo de treinamento e desenvolvimento das pessoas no trabalho se encontra profundamente calcado nas determinações de um tempo que ele denominou como ‘era da técnica’. Para Heidegger (2007), a era da técnica refere-se a uma cadência que positiva os comportamentos ao modo do cálculo e da utilidade. Para esse pensador, o homem, diante do deslumbre da ciência, perdeu a capacidade de reflexão e passou a conceber todas as coisas apenas sob sua relação de causa e efeito, sob a eficiência e produtividade sempre a se desenvolver. Sem esses atributos positivos, as coisas são destituídas de valor. Trata-se de um pensamento que apenas calcula e quantifica, com o total esquecimento de outro modo de estar junto às coisas, ou seja, meditando, contemplando e se articulando com as coisas ao seu redor.
Ocorre que o pensamento calculante, concebido como pensamento capital da era moderna, toma todas as coisas, como também o homem, por utilidade e serventia. Ou seja, criatividade, emoção e imaginação devem ser tratadas como atributos disponíveis a um objetivo que se converta em resultados tangíveis, de forma a ter sua utilidade validada. No contexto das organizações, tais atributos são tomados a serviço da produtividade contínua, dos quais deve ser extraído todo o rendimento possível. É preciso que a produtividade nunca cesse tal como ocorre com as máquinas. Assim impera a ideia de que a técnica opera de modo instrumental e antropológico, parecendo até que é o homem que está no controle, no entanto são as determinações do mundo da técnica que assumem o posto de controladora da existência.
Sabe-se que o pensamento científico é detentor de inúmeros benefícios vivenciados pelo homem na atualidade. Nesse sentido, não se trata aqui de criticar a ciência e sua intervenção no mundo moderno. O que é posto em discussão neste trabalho é um modo de pensar unicamente científico que coloca o próprio homem como objeto de manipulação pelas categorizações desse fazer, da mesma forma que são os objetos estudados e controlados pelas demais ciências como a física e a matemática, por exemplo.
A produtividade, tal como pensada por Heidegger (2007Heidegger, M. (2007). A questão da técnica. Scientiae Studia. USP, 5(3), 375-398. Recuperado de: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf. Obra publicada originalmente em 1953.
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), se estabeleceu no mundo moderno como verdade absoluta e, atravessando os diversos modos de o homem se relacionar com as variadas instâncias de sua existência, constitui-se como premissa de um mundo que somente se concebe pelo tecnicismo e pela eficácia das relações.
Nas organizações, o conceito de produtividade foi introduzido e desenvolvido com o objetivo de elevar o desempenho (King, Lima, & Costa, 2012King, N. C. O., Lima, E. P., & Costa, S. E. G. (2012). Produtividade sistêmica: conceitos e aplicações. Revista Produção. PUCPR, 20(10), 160-176.). Desse modo, vários métodos para se medir a produtividade foram elaborados ao longo do tempo, mas frequentemente associados ao modelo de entrada (recursos) e saída (resultados). O despertar para o processo de desenvolvimento de pessoal, portanto, passa pelo questionamento sobre o modo como tal processo é tomado pela psicologia, o qual indica se encontrar imerso nas orientações de mundo envolvidas pelo pensamento tecnocrata, ao se respaldar apenas pelo critério de produtividade da era moderna.
Na busca por transcender o pragmatismo técnico da era moderna, Heidegger (2007Heidegger, M. (2007). A questão da técnica. Scientiae Studia. USP, 5(3), 375-398. Recuperado de: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf. Obra publicada originalmente em 1953.
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) vai buscar entre os gregos a essência da técnica e seu produzir. Remonta, assim, às quatro causas de Aristóteles: a causa material, a causa formal, a causa final e a causa efficiens. Sob essas quatro causas, a filosofia grega concebia que o produzir incluía: a matéria a partir da qual o produto é feito; a forma, o aspecto que o produto terá; a finalidade, o fim para o qual o produto é realizado mediante a matéria e a forma empregada; e, por fim, a causa efficiens, que se refere ao artesão que ‘opera efeito’, que ‘efetua o efeito’ (Heidegger, 2007), ou seja, o produto final acabado. Pelo pensamento grego, esses quatro modos, juntos e comprometidos entre si, são corresponsáveis pelo desencobrimento do que está oculto, deixando que o produzir de algo venha à luz. Para Heidegger (2007), a técnica moderna reduziu seu representar unicamente à questão de operar efeito, ou seja, à operação de visar resultados. Fixando-se apenas na busca pelo alcance dos efeitos, deixou de se preocupar com a matéria-prima, com a finalidade e, principalmente, com o homem. É nesse sentido que a concepção da técnica moderna, como um meio para se chegar a um fim e um fazer do homem, corresponde a um horizonte histórico baseado predominantemente no pensamento da eficiência.
Entretanto, tal modelo, ao ignorar a existência, encobre os sentidos possíveis que esta pode manifestar acerca da relação homem-trabalho. Ao orientar-se por concepções previamente delimitadas acerca do homem e do trabalho, a psicologia coloca em segundo plano a unidade originária homem-mundo, a própria existência em seu fluir (Sá, 2017Sá, R. N. (2017). Para além da técnica: ensaios fenomenológicos sobre psicoterapia, atenção e cuidado. Rio de Janeiro, RJ: Via Verita.).
Ao percorrer o caminho da filosofia heideggeriana, encontramos as concepções de fenomenologia e hermenêutica como suporte para nossa reflexão. A fenomenologia é o método utilizado por Heidegger para sua compreensão do sentido do ser. Para descrever o método fenomenológico, Heidegger parte da análise filológica do termo ‘fenomenologia’, que se constitui de duas palavras gregas: phainomenon e lógos. Fenômeno, pelas próprias palavras de Heidegger (2012, p. 67, grifo do autor), em sua obra Ser e tempo, seria “[...] o que se revela, ‘o que se mostra em si mesmo’”. Em síntese, pode-se afirmar que apresentar uma postura fenomenológica consiste em “[...] deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo” (Heidegger, 2012, p. 74), tomado a partir da existência tal como ela se apresenta. Nesse sentido, a concepção do ‘eu’ no pensamento ontológico de Heidegger se dá a partir da análise fenomenológica do Dasein no cotidiano do existir.
A fenomenologia em Heidegger envolve também a concepção da hermenêutica, cujo sentido originário o filósofo vai buscar na tradição grega. Nesta, ‘hermenêutica’ vem de hermeneuein e refere-se ao deus grego Hermes, o “[...] mensageiro divino” (Heidegger, 1987Heidegger, M. (1987). Carta sobre o humanismo. Lisboa, PT: Guimarães Editores. Obra publicada originalmente em 1947., p. 110). Sua origem remonta também à interpretação dos escritos bíblicos e é vinculada à arte da compreensão: “Hermenêutica, no seu sentido mais próprio, significa captar uma interpretação dada por alguém ou uma situação, sem alterar-lhe o sentido” (Feijoo, 2010Feijoo, A. M. L. C. (2010). A escuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenológico-existencial. São Paulo, SP: Vetor., p. 42). Partindo da facticidade da existência, do viver cotidiano em que a existência sempre se coloca em jogo, a hermenêutica em Heidegger lança-se à sua compreensão, reconhecendo os aspectos mundanos que se encontram copartilhados no jogo do existir.
Nesse sentido, a questão da compreensão do homem passa sempre pela compreensão do e com o mundo, com o outro, um ‘ser-com’. A fenomenologia-hermenêutica em Martin Heidegger implica uma compreensão do ser ao modo como este se apresenta, dentro de um horizonte histórico e temporal em que a existência sempre se coloca em jogo. Não é uma compreensão balizada por referenciais do mundo, mas pelo desvelamento do ser em seu si-mesmo, compreendida em seu cotidiano imediato. Como enfatiza Sá (2004Sá, R. N. (2004). A questão do método na clínica daseinsanalítica. Revista Fenômeno Psi. IFEN, 2(1), 41-46., p. 43), “[...] para Heidegger, [...] o que caracteriza o modo de ser do homem, a existência, é justamente o fato de que seu sentido está sempre em jogo no tempo”. A compreensão do homem passa pela própria dinâmica existencial, situada em um horizonte histórico, uma vez que é nele que o homem se encontra desde sempre e de algum modo, e que é anterior à enunciação de qualquer concepção a seu respeito.
Ao refletir fenomenologicamente sobre a lida do trabalhador com seu aprimoramento profissional, a psicologia colocará em segundo plano os argumentos científicos sobre a previsibilidade do comportamento humano, para se deixar conduzir pelo fenômeno que se apresenta. Ao partir pela via da fenomenologia, a racionalização, aspecto essencial ao pensamento científico, requer ser substituída por um outro modo de pensar.
Heidegger (2012Heidegger, M. (2012). Ser e tempo(6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. Obra publicada originalmente em 1927.), em seus escritos, apresenta sua concepção de homem como ‘ser-no-mundo’, um ‘ser-aí’. O sentido dessa expressão, contudo, ultrapassa os limites de uma definição usual de espaço, ou seja, de um alguém que é simplesmente compreendido em um espaço geográfico e convivendo com outros. Para levar a cabo sua analítica, Heidegger parte do modo de existir do homem no cotidiano, de como o homem se articula no dia a dia da existência, mas tendo também como referencial o seu caráter de poder-ser. Essa noção de homem traz em seu bojo a concepção de que ser e mundo se encontram imbricados na existência e que esta se constitui na inseparabilidade dessa relação. Nesse sentido, desconsidera-se qualquer concepção que busque compreender o homem pelas teorias ou concepções prévias, sejam elas de que natureza for, uma vez que podem não abarcar a existência em sua totalidade. A existência, ao se estabelecer pela relação homem-mundo, em que ambos se constituem mutuamente, está sujeita às questões próprias que envolvem essa relação, as quais se desvelarão a partir de sua manifestação.
Para pensar o homem e seu trabalho, tendo como base as concepções heideggerianas, precisa-se levar em conta a relação que é estabelecida entre ambos - homem e trabalho. E essa correspondência mútua se dá no contexto sócio-histórico em que ambos se encontram imbricados. Ao partir desse caráter originário da existência, o projeto de desenvolvimento baseado pela filosofia fenomenológico-hermenêutica não se estabelecerá sob nenhum pressuposto acerca do comportamento humano, seja de natureza teórica seja de natureza sócio-histórica, ou seja, não se pautará por conceitos a priori, mas a partir do próprio desvelar da existência que se revela.
Ao atuar como intérprete do fenômeno, na concepção da interpretação hermenêutica em Heidegger referida anteriormente, o psicólogo buscará apreender o sentido da relação homem-trabalho que se apresenta e não por parâmetros que ditam a visada dessa relação. Por exemplo, em um programa de desenvolvimento de lideranças, o psicólogo de base fenomenológico-hermenêutica deixará que o fenômeno da liderança se mostre a partir daquele que se apresenta para o processo, no modo como a liderança se dá para ele, dentro do contexto das relações de trabalho em que ele se encontra imerso. Dessa forma, não se trabalhará com um modelo de liderança prévio, seja ele qual for, mas com a liderança que se mostra (ou não se mostra) a partir do fenômeno dessa relação. Conforme enfatiza Feijoo (2010Feijoo, A. M. L. C. (2010). A escuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenológico-existencial. São Paulo, SP: Vetor.) e Feijoo e Pietrani (2015)Feijoo, A. M. L. C., & Pietrani, E. E. M. (2015). A seleção de pessoal em psicologia em questão. Psicologia: ciência e profissão,35(2), 290-306. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932015000200290&script=sci_abstract&tlng=pt
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, numa perspectiva hermenêutica, o psicólogo atuará em uma anteposição libertadora, possibilitando ao outro o encontro consigo mesmo e com seu existir, facilitando para que as experiências se tornem presentes, sem condicioná-las a determinantes prévios. Dentro dessa perspectiva, o psicólogo atuará no sentido de tornar presente o fenômeno da liderança, seja em que modo ele se apresente, ao invés de representá-lo por categorizações. Portanto, trata-se de pensar o processo de desenvolvimento profissional em que ao homem, dada a tutela da sua existência, propicia a reflexão sobre os modos com que ele se encontra nessa relação.
Uma vez compreendido o homem, segundo a concepção heideggeriana de ‘ser-no-mundo’, percebe-se que ele se encontra inserido em um contexto mundano, povoado atualmente pelas determinações socioeconômicas, nas quais a produtividade tem sua tônica principal. Contudo, conforme já mencionado, Heidegger (2012Heidegger, M. (2012). Ser e tempo(6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. Obra publicada originalmente em 1927.) aponta também para o caráter de poder-ser do homem, cuja existência é respaldada por um processo de constituição mútua entre homem e mundo. Desse modo, trata-se de levar o homem a se apropriar da sua especificidade existencial e de seu caráter de poder-ser, bem como de seu modo de exercício profissional, dentro do horizonte histórico da atualidade, no qual ele se encontra. Por esse modo de pensamento, o homem pode se apresentar de vários modos possíveis e, assim, pode lidar com o trabalho sob variadas possibilidades no cotidiano desse campo. Permitindo ao homem viver o seu processo de abertura para com o trabalho, é possível deixar que a relação homem-trabalho se manifeste em seu sentido mais originário, uma vez que tal reflexão ocorrerá a partir do contexto no qual ambos se constituem. O trabalhador, assim considerado, pode se mostrar em seu si-mesmo, em seu livre aparecer, e não apenas como um ser produtivo.
O processo de treinamento e desenvolvimento, praticado pela calculabilidade e pela previsibilidade, busca garantir a funcionalidade do trabalhador para que a empresa atinja os resultados que almeja, conforme descrito anteriormente. Ao se considerar a funcionalidade a única e absoluta verdade acerca da capacidade do trabalhador, o homem fica reduzido a um ente substancializado e tomado por atributos meramente calculáveis, o que objetifica a existência. Promover a mensuração e a previsibilidade do comportamento humano, visando, em última instância, o seu domínio frente aos requisitos de produtividade da atual conjuntura organizacional, parece se constituir numa possibilidade restrita, em que o homem é tomado como um ente cujo comportamento ocorre de forma previsível, sendo, portanto, passível de ser alterado à sua revelia. O processo de treinamento e desenvolvimento na organização, pautado pela psicologia fenomenológico-hermenêutica, em contrapartida, propõe desvincular-se desse modo de pensar, para se lançar à imprevisibilidade da existência, à incerteza que é própria do existir, às possibilidades com que a relação homem-trabalho pode se dar.
Ao tomarmos o homem, em seu processo de desenvolvimento profissional, e envolvê-lo unicamente pelas questões da produtividade, ratifica-se uma herança mecanicista na qual a psicologia se concebeu e que tomou como única verdade. Fragmenta-se, assim, o homem, em partes, modelando-as em aspectos considerados adequados a um horizonte histórico dominante. Perde-se, assim, de vista o caráter existencial de que está em jogo o homem, sua relação espaço-temporal e a relação que ele estabelece com o mundo. Em síntese, ocorre a objetificação do homem.
Considerando a indeterminação da existência, que não dá garantias de previsibilidade, é possível compreender como o homem se deixa também investir pelas determinações de produtividade do mundo e orienta, de início, seu processo de desenvolvimento por essas determinações. Na verdade, ao se agarrar às determinações do mundo, ele visa se amparar da imprevisibilidade do mundo, como, por exemplo, o temor do desemprego e os impactos psicossociais por ele acarretados. Sem refletir sobre esse modo de lidar com seu projeto profissional, o homem torna-se, assim, um ser aprisionado pelas determinações de sua época, restrito em uma única possibilidade em sua relação com o trabalho. Nesse sentido, compreende-se que o homem se relaciona com seu projeto de desenvolvimento profissional no modo pelo qual esse projeto chega para ele, com suas determinações atuais, uma vez que estas contêm supostamente as certezas para que ele atinja o propalado sucesso profissional. O psicólogo de base fenomenológico-hermenêutica, mantendo-se no trilho da incerteza e da imprevisibilidade existencial, caminhará junto com o trabalhador, buscando a compreensão deste que chega com as verdades pré-estabelecidas do mundo da técnica moderna, porém ajudando-o a refletir sobre elas, sem destruí-las, mas, no próprio ato da reflexão, conduzindo-o a uma livre relação para com elas.
Ao se orientar pelo exercício da tarefa do trabalhador para além dos limites da produtividade, tem-se em vista compreender o seu projeto profissional a partir do modo como este se situa, singularmente, na relação do homem com seu trabalho, no horizonte histórico no qual essa relação se encontra. De tal sorte que, ao permitir o desvelamento de apropriação de sua tarefa, o trabalhador possa se abrir para seu modo de ser em sua relação com o trabalho, mantendo uma livre relação para com ele e, assim, apropriar-se a cada vez da tarefa que, por fim, faça sentido para ele. Afinal, não há com que se preocupar, o homem é atividade do início ao fim. Atividade da qual ele não poderá escapar.
Considerações finais
Neste trabalho, buscou-se, a partir do pensamento heideggeriano, uma reflexão de como a psicologia pode apresentar outros modos de lidar com a questão da produtividade relacionada ao processo de treinamento e desenvolvimento nas organizações. Notadamente a psicologia organizacional, em consonância com o horizonte epocal da técnica, reproduz o modo técnico-calculante hegemônico em nosso tempo. A racionalidade e a quantificação de processos e sua consequente massificação conduz o homem a se distanciar cada vez mais de sua singularidade.
Acredita-se que seja possível outro modo de pensar a produtividade organizacional, e sua conexão com o processo de desenvolvimento, que não seja apenas pautado pelo caráter da mensuração e da tecnocracia, que almeja exclusivamente resultados produtivos, mas que parta da relação mais própria de homem-trabalho, estabelecida no cotidiano do existir e, como tal, possa se apresentar sob outras possibilidades. Dessa forma, no lugar de treinar e desenvolver com fins meramente produtivos, esquecendo-se do ritmo que caracteriza a existência humana, que se possa lembrar que existência é tarefa. O fazer do homem tem um ritmo próprio, diferentemente do fazer das máquinas, cuja velocidade jamais pode ser alcançada pelo homem.
Para desvelar as possibilidades mais próprias ao homem, faz-se necessário aclarar os modos da impessoalidade que alimentam frequentemente a relação do homem com o seu projeto de trabalho, o que frequentemente encobre seu modo autêntico e próprio de estar nesse contexto. Ao desobstruir seu modo de existir impessoal no horizonte histórico do trabalho, o homem poderá, na liberdade de suas possibilidades, dizer sim e não às determinações de sua época, adquirindo, assim, a serenidade (Heidegger, 2001Heidegger, M. (2001). Serenidade. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Piaget. Obra publicada originalmente em 1955.) para se relacionar com o seu ofício.
Assim, sob as premissas de Heidegger, importa pensar em outras formas de o homem lidar com seu projeto próprio de trabalho. Ou seja, não se trata de substituir o modelo de desenvolvimento organizacional atualmente aplicado, mas, partindo dele e refletindo sobre ele, buscar outros caminhos possíveis que resgatem o homem e sua posição de liberdade e singularidade frente àquilo que vem ao seu encontro.
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Apoio e financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Jun 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
29 Maio 2018 -
Aceito
20 Fev 2020