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SABERES PSICOLÓGICOS NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS DE INTERNAÇÃO DA INFÂNCIA (1900-1929)

SABERES PSICOLÓGICOS EN LA CONSTRUCCIÓN DE POLÍTICAS DE INTERNACIÓN DE LA INFANCIA (1900-1929)

RESUMO.

O objetivo da pesquisa ora apresentada foi mapear discursos de intelectuais referentes à internação da infância entre 1900 e 1929, identificar e problematizar os usos de saberes científicos conectados com a psicologia produzida no período. O período de análise compreende um momento histórico de consolidação e expansão da política de tutela da infância, materializada na construção de espaços específicos de internação para esta população e promulgação de leis para o trato dessa questão. Recorremos à leitura e análise das fontes primárias: Franco Vaz, Infância abandonada; Lemos Britto, Um problema gravíssimo: colônias correcionais e tribunais de menores; As leis de menores no Brasil (páginas de crítica e doutrina); relatórios do Ministério da Justiça e Negócios Interiores entre os anos de 1900 e 1928; e fontes secundárias. Saberes psicológicos estiveram presentes na organização e sustentação científica destes discursos, servindo para defender e consolidar a internação como medida principal. Argumentos psicológicos também foram utilizados para defender a limitação do uso da internação e legitimação de medidas alternativas. O período em pauta foi importante para a produção da psicologia enquanto ciência, e o saber psicológico teve papel na configuração das medidas propostas e utilizadas pelo estado no trato da infância.

Palavras-chave:
História da psicologia; infância; institucionalização

RESUMEN.

El objetivo de la investigación aquí presentada fue mapear los discursos de los intelectuales referentes a la internación de la infancia entre 1900 y 1929, para identificar y problematizar los usos de los saberes científicos relacionados con la Psicología producida en el período. El período de análisis comprende un momento histórico de consolidación y expansión de la política de tutela de la infancia, materializado en la construcción de lugares de detención específicos para esta población y la promulgación de leyes para atender este tema. Utilizamos la lectura y el análisis de las fuentes primarias: Franco Vaz, Infancia abandonada; Lemos Britto, Un problema gravíssimo: colônias correcionais e tribunais de menores; As leis de menores no Brasil (páginas de crítica y doctrina); informes del Ministerio de Justicia e Interior entre los años 1900 y 1928; y fuentes secundarias. Saberes psicológicos estuvieram presentes en la organización y soporte científico de estos discursos, sirviendo para defender y consolidar la internación como principal medida. También se utilizaron argumentos psicológicos para abogar por limitar el uso de la internación y legitimar medidas alternativas. El período em cuestión fue importante para la producción de la Psicología como ciência y el saber psicológico jugó un papel en la configuración de las medidas propuestas y utilizadas por el Estado en el tratamiento de la infancia.

Palabras clave:
Historia de la psicología; infancia; institucionalización

ABSTRACT.

This article aimed to map intellectual discourses regarding childhood detainment between 1900 and 1929, identifying and problematizing the uses of scientific knowledge connected with Psychology produced in the period. The analysis period comprises a historical consolidation and expansion of the childhood guardianship policy, which materialized in the construction of confinement spaces for this population and the promulgation of laws to deal with this issue. We resorted to reading and analyzing primary sources: Franco Vaz, Infância abandonada (Childhood abandoned); Lemos Britto, Um problema gravíssimo: colônias correcionais e tribunais de menores (A very serious problem: correctional colonies and juvenile court); As leis de menores no Brasil (páginas de crítica e doutrina) (Minority laws in Brazil (criticism and doctrine pages); reports from the Ministério da Justiça e Negócios Interiores - MJNI (Ministry of Justice and Home Affairs) between 1900 and 1928; and secondary sources. Psychological knowledge was present in the organization, and scientific support of these discourses served to defend and consolidate internment as the main measure. Psychological arguments were also used to defend limiting detention and legitimizing alternative measures. The period in question was important for the production of Psychology as a Science, and psychological knowledge shaped the measures proposed and used by the State in dealing with childhood.

Keywords:
History of psychology; childhood; institutionalization

Introdução

A história da infância, no Brasil no século XX, apresenta duas características que se sobressaem: a divisão da infância, entre aquela considerada um problema social, normalmente localizada na base da pirâmide social, e a infância representada pelas noções de inocência e necessidade de proteção; e o tratamento constante relegado à parcela empobrecida da infância, a tutela do estado (Cunha, 2010Cunha, C. C. (2010). A infância sob a tutela do Estado: alguns apontamentos. Psicologia Teoria e Prática, 12(1), 208-224.; Rizzini, 2008Rizzini, I. (2008). O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.).

No Brasil do final do século XIX e início do século XX, a infância ganha consistência no discurso intelectual e político e passa a carregar o peso da responsabilidade do futuro do país. A eleição da infância como temática de preocupação, estudo e defesa de políticas de proteção transcorreu em um contexto de alta mortalidade infantil, proclamação da República e abolição da escravatura, crescimento de centros urbanos e industrialização. Difundiu-se o discurso de que era preciso formar cidadãos com algum grau de instrução, trabalhadores dóceis e aptos à construção de uma grande nação (Ribeiro, 2003Ribeiro, P. R. M. (2003). A criança brasileira nas primeiras décadas do século XX: a ação da higiene mental na psiquiatria, na psicologia e na educação. In M. L. Boarini(Org.), Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil(p. 71-96). Maringá, PR: Eduem.).

A emergência do problema da menoridade se configurou um campo de interesse e atuação de instituições e saberes. Consolida-se um problema social cristalizado na infância das classes empobrecidas, passíveis de enquadramento em classificações que demonstrassem sua situação anormal frente a um modelo de infância e família (Rizzini, 2008Rizzini, I. (2008). O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.; Vianna, 1999Vianna, A. R. B. (1999). O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro, RJ: Arquivo Nacional.). Abre-se caminho para a promulgação de uma legislação voltada a esta infância, o Código de Menores de 1927, direcionada ao trato da infância abandonada, material e moralmente, e criminosa. Estabelece-se na letra da lei mecanismos legais de retirada do poder familiar sobre os filhos e a internação destas crianças se torna prática corrente. Esta legislação é substituída pelo Código de Menores de 1979. Ambas as legislações estabeleceram um trato de caráter repressivo e tutelar frente à infância considerada problema, seja por crime, abandono, ou por serem considerados potencialmente perigosos (Cunha, 2010Cunha, C. C. (2010). A infância sob a tutela do Estado: alguns apontamentos. Psicologia Teoria e Prática, 12(1), 208-224.; Gonçalves & Garcia, 2007Gonçalves, H. S., & Garcia, J. (2007). Juventude e sistema de direitos no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(3), 538-535. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932007000300013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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).

Com a promulgação da constituição cidadã, em 1988 e, posteriormente, com o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, em 1990, a doutrina menorista que caracterizava a assistência oficial no Brasil, desde o fim da década de 1920, foi substituída pela garantia de direitos e proteção de toda a infância e adolescência brasileira. O paradigma legal é alterado e há um esforço para evitar a retirada da criança de sua família e de sua comunidade.

A mudança paradigmática ocorrida na promulgação do ECA aconteceu de forma concomitante e coerente com um movimento de questionamento da institucionalização que extrapolou a reclusão da infância e esteve presente na reconfiguração da atenção à saúde mental no Brasil. A luta por uma nova direção pelo trato do estado à juventude foi parte de um movimento amplo pela efetivação dos direitos humanos no âmbito legal, que tomou o cenário brasileiro no processo de redemocratização após um período de ditadura civil-militar (1964-1985), sendo também deflagrada pelo processo de construção de uma nova constituição (Gonçalves & Garcia, 2007Gonçalves, H. S., & Garcia, J. (2007). Juventude e sistema de direitos no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(3), 538-535. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932007000300013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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; Machado, 2003Machado, M. T. (2003). A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole.).

A partir do ECA, adolescentes em conflito com a lei são considerados inimputáveis, não passíveis de pena, entretanto, passíveis de responsabilização por meio de medidas socioeducativas. Estas medidas são a advertência, a obrigação de reparação ao dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade e internação, sendo a última a medida de maior gravidade, a qual o juiz deve recorrer apenas em casos excepcionais, mantendo o caráter de brevidade. A internação não possui tempo determinado, o seu fim exige uma decisão judicial calcada em relatório multiprofissional, incluindo o psicólogo, realizado a cada seis meses, preservando o limite máximo de três anos. Há um processo de expansão de postos de trabalho para psicólogos nas instituições de internação, no acompanhamento de medidas socioeducativas em meio aberto e em avaliações de processos judiciais.

Apesar da mudança de paradigma na assistência estatal à infância, a internação se mantém recorrente, mesmo em casos de infrações leves (Feitosa, 2010Feitosa, J. B. (2010). A internação do adolescente em conflito com a lei como a “única alternativa”: reedição do ideário higienista (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Maringá., Passetti, 2000Passetti, E. (2000). Crianças carentes e políticas públicas. In M. Priore(Org.), História das crianças no Brasil(p. 146-175). São Paulo, SP: Contexto.). Relatório realizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em 2013, aponta a frequente superlotação das unidades de internação no país, e o aumento vertiginoso do número de internados entre 1996 a 2011, período em que o número quintuplicou. Internações, muitas vezes, em locais com estrutura física inadequada e sem Plano Individual de Atividades. A partir de dados coletados junto a Tribunais de Justiça do Brasil, em relação à medida socioeducativa de internação entre janeiro de 2008 a julho de 2009, constatou-se que esta medida é comumente determinada a partir de frágil fundamentação legal, com argumentos extrajurídicos e ideológicos e, com frequência, sem cumprir requisitos legais exigidos pelo ECA. A medida de internação comumente é vista como benéfica e de proteção ao adolescente, frente a direitos negligenciados ao longo de sua história individual, e não como sanção penal. A sanção é vista como “[...] medicina da alma - mais um bem que um mal” (Minahim & Spostato, 2011Minahim, M. A., & Sposato, K. B. (2011). A internação de adolescentes pela lente dos tribunais.Revista Direito GV, 7(1), 277-298. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S1808-24322011000100014
https://doi.org/10.1590/S1808-2432201100...
, p. 294). Esta visão da medida de internação produz na sociedade um sentimento de impunidade e coloca em pauta reivindicações de redução da maioridade penal. É preciso reiterar o caráter de sanção penal da medida e de responsabilização do adolescente pelo seu delito. As unidades de internação se diferenciam das prisões apenas pela nomenclatura. Desta forma, o judiciário reproduz desigualdades sociais, exclusão e preconceitos.

Diante deste cenário, consideramos relevante uma análise do período de consolidação da internação como medida privilegiada para o combate à criminalidade na adolescência e apreensão do papel da psicologia neste contexto. O objetivo da pesquisa foi mapear discursos de intelectuais referentes à internação da infância entre 1900 e 1929, identificar e problematizar os usos de saberes científicos conectados com a psicologia produzida no período.

O período eleito tem como ponto de partida o início do funcionamento da Escola Correcional Quinze de Novembro, no Rio de Janeiro, para receber menores viciosos, sendo a primeira instituição republicana de internação para esta parcela da população. O marco final se estende até 1929, de forma que engloba o discurso intelectual produzido após a promulgação do Código de Menores de 1927, primeira legislação brasileira que abarcou todos os aspectos em relação à infância e tornou a categoria menor passível de tutela do estado, dada por meio da internação, inaugurando uma lógica ainda não superada na prática. O período testemunhou a naturalização da categoria menor, especialmente no campo jurídico, marcado pela criação do Juízo de Menores em 1923 e o Código de Menores em 1927 (Rizzini, 2008Rizzini, I. (2008). O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.; Vianna, 1999Vianna, A. R. B. (1999). O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro, RJ: Arquivo Nacional.).

A partir deste cenário, depreende-se a relevância em compreender a constituição histórica da internação enquanto medida privilegiada para o trato da infância, concepção ainda nos dias de hoje incrustada no senso comum, no judiciário, e presente também no trabalho de psicólogos neste contexto. Este estudo, por seu enfoque, pretende contribuir para o campo da história da psicologia e para a reflexão sobre a profissão do psicólogo e sua atuação. Além disso, apesar de uma sólida historiografia sobre a assistência à infância no Brasil (Rizzini, 2008Rizzini, I. (2008). O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.; Passetti, 2000Passetti, E. (2000). Crianças carentes e políticas públicas. In M. Priore(Org.), História das crianças no Brasil(p. 146-175). São Paulo, SP: Contexto.), não foram encontradas pesquisas que abordem a presença de saberes psicológicos no processo de constituição da internação da infância no Brasil como medida privilegiada, ou que tratassem especificamente das obras e/ou autores abordados.

Caminho percorrido

Compreendendo a internação como uma construção histórica, da qual os saberes circulantes no período apresentam uma contribuição em seu processo de legitimação, buscamos mapear os discursos que circundaram o tema da internação da infância no período eleito e identificar saberes psicológicos evocados no trato do tema. Veremos que saberes psicológicos foram utilizados por vezes enquanto sustentáculo para o recolhimento dos menores e, em outros momentos, para apontar sua limitação, sem questionar a internação propriamente dita. O discurso psicológico, desta forma, participou da construção da lógica da internação. A produção teórica sobre a internação não é vista, neste artigo, enquanto causa da manutenção da internação na infância ao longo do século, mas em uma relação dialética com as condições históricas e sociais presentes no período.

Para a realização deste estudo, utilizamos fontes primárias e secundárias. As fontes primárias escolhidas foram o estudo de Franco Vaz (1879-1925), Infância abandonada, publicado em 1905 (Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .); Um problema gravíssimo: colônias correcionais e tribunais de menores, publicado em 1916 (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916.), e As leis de menores no Brasil (páginas de crítica e doutrina), de 1929 (Britto, 1959bConselho Nacional do Ministério Público. (2013). Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes: Relatório da Resolução nº 67/2011. Brasília, DF.), ambos de autoria de Lemos Britto; e, por fim, os relatórios do Ministério da Justiça e Negócios Interiores entre os anos de 1900 e 1928, não houve acesso ao relatório do último ano do período.

A análise do material foi realizada por meio de leitura e posterior eleição de categorias que estiveram presentes em todas as obras e arquivos da pesquisa, eleitas pela frequência com que foram tema nos escritos e por terem desempenhado papel de organizadores dos discursos registrados. Buscou-se atentar para as transformações vividas pelo país no período estudado, entendendo que as mudanças na concepção e assistência à infância no momento não podem ser compreendidas de forma isolada dos aspectos sociais e políticos do período.

Ao aludir à ciência psicológica, referimo-nos a uma atividade social, desempenhada por pessoas que vivem em sociedade e que carregam em sua atividade a síntese das condições sociais nas quais estão imersas. Tal concepção está em oposição a uma compreensão da ciência enquanto evolução de conceitos com estatuto de verdade garantido pelo método científico, independente das condições de produção da vida (Fleck, 2010Fleck, L. (2010). Gênese e desenvolvimento de um fato científico: introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Belo Horizonte, MG: Fabrefactum.; Gavroglu, 2007Gavroglu, K. (2007). Passado das Ciências como História. Porto, PT: Porto Editora.). Aderindo à primeira das perspectivas acima indicada, as características do seu local de produção têm papel fundamental na formação do discurso científico e na função social que a ciência adquire na sociedade (Gavroglu, 2007Gavroglu, K. (2007). Passado das Ciências como História. Porto, PT: Porto Editora.).

Os relatórios do MJNI são, em geral, produções anuais, contendo as atividades ocorridas no ano anterior, as reivindicações e sugestões de mudanças, e a verba orçamentária direcionadas ao presidente da República em exercício. Baseiam-se no relatório produzido pelos diversos serviços e instituições pertencentes ao MJNI. Este material aponta os acontecimentos que rondaram o equacionamento da criminalidade adulta e infantil, do abandono, da presença de crianças pelas ruas, as medidas tomadas, e os anseios e posições político-teóricas. Há uma constante denúncia em relação aos descuidos quanto à população carcerária, ausência de instituições adequadas para a prisão e detenção de crianças e adultos, em qualidade e quantidade, e a necessidade de atentar-se para a causa da infância criminosa.

Os autores escolhidos exerceram em diferentes períodos a função de diretor da Escola Correcional Quinze de Novembro, primeira instituição republicana responsável pela internação da infância, e cujo início de funcionamento representa o marco inicial do período utilizado neste estudo. A relação dos autores com esta instituição indica sua conexão com a prática da assistência do período. Ambos foram destinatários de pedidos estatais de estudo sobre a infância, Vaz, nos primeiros anos do século XX, Britto, na década de 1910. Impulsionaram a campanha a favor de uma assistência do estado à infância e possuíam competência reconhecida pelo Poder Executivo para análise da questão. A escolha das obras se deve ao seu pertencimento a fases distintas da assistência à infância. O estudo de Vaz foi um dos primeiros escritos de fôlego sobre a infância considerada problema social no Brasil e, neste, o autor inaugura muitas concepções que vão permear os discursos dos relatórios do MJNI e da imprensa. Um problema gravíssimo, obra de Britto de 1916, foi escrita em um período em que instituições exclusivas para internação da infância eram uma realidade, apesar da prisão com adultos sem separação, ainda constituir um fato cotidiano. As leis de menores, publicada em 1929, têm a sua relevância oriunda, primordialmente, de sua escrita e publicação terem ocorrido após a promulgação do Código de Menores, em 1927, legislação que legitima a institucionalização da infância no Brasil, apresentando uma análise acerca deste corpo de leis.

A Infância abandonada, de Vaz, publicada em 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional ., abrange as preocupações relacionadas à infância das classes pauperizadas no período e as medidas científicas recomendadas. Infância abandonada se tratava de uma categoria aplicada às crianças abandonadas material e moralmente, além de incluir as que cometeram delito, o que seria necessariamente fruto do abandono moral. Produzido em um contexto onde se está constituindo uma concepção nascente de infância enquanto problema social a ser enfrentado pela nova República, com o crescimento de uma demanda pela sua institucionalização. A precária situação de parcela da infância era descrita com uma retórica eloquente, que atestava a convivência da infância com a miséria, a fome e o frio. Preocupava-se com as altas taxas de mortalidade infantil, atribuída aos pais, por sua falta de educação e desconhecimento de princípios de higiene. Aponta a necessidade de proteção e segurança à mãe e à criança, com a criação de instituições para este fim. Após a garantia da sobrevivência, seria necessário tornar estas vidas úteis à nação, e evitar o envolvimento com a criminalidade, o que seria obtido por meio da educação, capaz de reduzir os males infligidos à infância. A educação formal não seria suficiente, seria preciso ensinar aos pais como exercer a parentalidade. Para solucionar os problemas relacionados à infância no país, seria preciso lidar com a negativa herança biológica e sociológica do povo brasileiro e o seu primitivismo. Problemas atribuídos à vida urbana, como aumento do alcoolismo, também seriam obstáculos (Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .).

Em 1916, a assistência à infância restringia-se a algumas instituições de internação específicas para menores, estabelecimentos que não impediam a prisão junto a adultos e a superlotação dos espaços destinados unicamente à infância (Relatório..., 1917Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em maio de 1917. (1917). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Em Um problema gravíssimo, houve esforço para propagar a necessidade de proporcionar à causa da infância a sua devida importância, conclamando seus pares a juntar-se à campanha a favor da assistência à infância criminosa, cujo número teria aumentado vertiginosamente no final do século XIX, pelo progresso rápido vivido pela sociedade da época. Atentar-se para esta causa representaria a prevenção da criminalidade como um todo, já que o crime cometido por adulto teria o seu gérmen na infância. Para tanto, defendeu-se a organização de estatísticas criminais no Brasil, a criação de colônias correcionais exclusivamente direcionadas à infância, de um Tribunal de Menores e de um conjunto de leis para esta população, inspirado nas novas ideias criminológicas e penitenciárias (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916.).

Em 1923 foi criado, no Rio de Janeiro, o Juizado de Menores, iniciativa posteriormente adotada por outros estados brasileiros. Em 1927, vai ser promulgado um conjunto de leis de assistência e proteção à infância, o Código de Menores. Debates e tendências presentes desde a virada do século foram consolidados com o Código de Menores. Dentre estes, o estabelecimento legal da categoria menor como forma de tratamento para a infância problema e a instituição da internação e tutela do estado como medida privilegiada para a assistência e repressão da infância. A obra de Britto explicitou as disposições do Código de Menores, as justificou e defendeu, apesar de sua discordância parcial. Há um esforço em colocar em prática a nova legislação, de forma geral, considerada um avanço (Britto, 1959b).

Educação e trabalho na regeneração do menor

A partir da leitura das fontes primárias, separamos duas categorias de análise, a primeira é a educação e o trabalho e a segunda trata-se dos saberes psicológicos. Estas categorias estiveram presentes em todas as obras e arquivos analisados e estão profundamente conectadas entre si. Educação e o trabalho eram vistos como formas de possibilitar a transformação da essência do criminoso, o seu psiquismo, e o seu comportamento, seja em adultos ou menores. A razão da separação de categorias, portanto, é metodológica, e permite-nos analisar de forma mais acurada o papel destas nos textos em questão.

Trabalho e educação são vistos de forma bastante análoga neste período e servem de justificativa ao aprisionamento ou internação, de adultos ou menores, em virtude de sua suposta capacidade de transformação do indivíduo.

A construção de instituições exclusivamente para menores, ou de instituições para adultos e menores, com alas separadas, teve lugar no Brasil em um momento em que novas teorias penitenciárias e criminológicas estavam sendo recebidas por intelectuais e políticos brasileiros. Estas teorias reservavam ao trabalho e à educação o papel fundamental no processo de regeneração do interno, os quais seriam capazes de modificar o estado psicológico do criminoso e seus hábitos (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional., Relatório..., 1920Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Alfredo Pinto Vieira de Mello Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em junho de 1920. (1920). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional., Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .).

O mote principal do sistema punitivo se torna a prevenção, que deveria ter espaço na prisão, para os adultos, e nos estabelecimentos correcionais, para a infância. A instituição prisional e correcional assume papel central na dinâmica do sistema punitivo, seja na prática cotidiana da justiça penal, seja na teoria. Para efetivar o papel de prevenção, o sistema penal deveria alterar-se de modo a cumprir uma função preventiva e educativa, em lugar de uma função punitiva. A pena de prisão não concorreria, por si só, para a diminuição do delito, para tanto, deveria seguir princípios científicos de organização (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916., Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .).

Visando executar o papel de prevenção do crime e regeneração do criminoso, os princípios científicos do período apontavam para a necessidade do uso da educação e do trabalho. O estabelecimento de reclusão que não utilizasse estas ferramentas produziria efeito contrário, levando o indivíduo a progredir no crime, em gravidade e quantidade. O encarceramento, por si, concorreria para produção de indivíduos constantemente inseridos nas prisões. A pena, nestes moldes, seria desmoralizante e criaria um perigo social, aumentando a reincidência e pervertendo os condenados. Não recupera o preso, apenas retira a sua liberdade e seu convívio com a sociedade por determinado tempo. A retirada do indivíduo da sociedade seria medida provisória e paliativa, apenas benéfica no caso de criminosos incorrigíveis. A prisão, sem os elementos regeneradores da educação e trabalho, seria uma injustiça, ao fornecer abrigo e alimentação a criminosos, enquanto a população honesta sofreria de fome e falta de trabalho (Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .). A partir desta argumentação, o autor naturalizava a condição de fome e falta de trabalho para parte da população, sendo injusto o detento ter abrigo, sem questionar a falta de condições dignas de vida e trabalho da população em geral.

O trabalho na prisão seria capaz de ensinar disciplina sem o uso de violência e repressão, incutir hábitos de ordem e obediência e transformar o indivíduo preguiçoso em trabalhador, uma tarefa necessária em virtude do índice elevado de indivíduos desprovidos de hábitos de ordem e obediência entre a classe empobrecida da sociedade. Esta ausência de vocação para o trabalho constituiria uma das principais causas da criminalidade nesta parcela da sociedade (Relatório..., 1918Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Augusto Tavares de Lyra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1908. (1908). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). A compreensão da relação da população com o trabalho se encontrava atrelada à noção de indivíduo, de forma que os problemas que atravessavam a esfera do trabalho foram traduzidos como preguiça, falta de hábitos, faltas individuais, a serem resolvidos pela educação, abrindo espaço na atenção à infância, para a psicologia e a educação.

Fundamental na instituição da obrigação do trabalho no estabelecimento prisional deveria ser a educação profissional, a qualificação dos indivíduos que, muitas vezes, chegavam à prisão sem habilidades para o trabalho urbano (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). A educação profissional também representaria uma prevenção do crime entre a infância abandonada (Relatório..., 1920Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Alfredo Pinto Vieira de Mello Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em junho de 1920. (1920). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). A falta de acesso à educação era vista como uma das causas da criminalidade, e promover a educação seria um instrumento para modificar o temperamento do detido (Relatório..., 1905; Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional ., Relatório..., 1908Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Augusto Tavares de Lyra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1908. (1908). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). A inexistência de educação formal entre os criminosos foi retratada como uma dívida da sociedade, especialmente em relação aos menores. A sociedade havia falhado em proporcionar a proteção e educação (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.).

Assim, houve um esforço em incorporar às instituições prisionais e correcionais oficinas de trabalho e educação. A Colônia Correcional Dois Rios, em 1903, logo em sua criação, possuía oficinas de funileiro, carpinteiro, marceneiro, sapateiro, alfaiate e cesteiro (Relatório..., 1904Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1904 (Vol. I). (1904). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Pretendia também adicionar atividades de trabalho na lavoura e na pesca (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Da mesma forma, a Escola Correcional Quinze de Novembro possuía, entre a educação e o trabalho, aulas de música e ginástica, português, exercícios militares e uma oficina de sapatos que atendia à demanda da Brigada Policial, Guarda Civil, Colônia Correcional Dois Rios, Casa de Detenção e do próprio corpo de alunos (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Em 1909, a Escola Correcional Quinze de Novembro passou a ter oficinas também de sapateiro, alfaiate, vassoureiro, entalhador, marceneiro, correeiro, seleiro, funileiro, ferreiro, serralheiro, olaria, trabalhos agrícolas, oficinas de música, ginástica, instrução primária e militar (Relatório..., 1910Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Esmeraldino Olympio de Torres Bandeira Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1910. (1910). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). A produção de sapatos, primeira oficina da escola, e de vestuário, alcançava um patamar bastante significativo. Durante o ano de 1910, por exemplo, os internos produziram 6.665 peças de vestuário e 3.055 pares de sapato, dentre outros produtos (Relatório..., 1911Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Rivadávia da Cunha Correa Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1911. (1911). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.).

O trabalho na prisão ainda ocuparia um lugar simbólico de ressarcimento social ao dano causado pelo seu crime, ao prejuízo material provocado. Esperava-se que o valor do trabalho realizado pelos detentos poderia sustentar, ou auxiliar na manutenção do estabelecimento prisional, reduzindo o gasto público; prestar auxílio à família do detento, potencialmente na miséria, sem o sustento provido pelo detento; e proporcionar um recomeço, após a liberdade, tendo em vista a dificuldade encontrada pelo egresso para encontrar trabalho. O recebimento de proventos também seria eficaz em controlar os sentimentos negativos do detento. O trabalho prisional foi utilizado em obras públicas, como a construção de estradas (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Há uma recorrência do argumento da falta de trabalho para justificar a imposição de um trabalho alienado para a população carcerária.

A campanha pela educação não se restringia às prisões, mas difundia-se como via de transformação social e de progresso do país, mobilizando a classe intelectual e política em discursos inflamados a seu favor. Enquanto suposta causa da criminalidade adulta e infantil o combate à criminalidade deveria ser feito por meio da educação, dentro e fora dos muros prisionais e dos estabelecimentos de internação (Relatório..., 1914Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Wadislau Herculano de Freitas Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em abril de 1914. (1914). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.).

Uma educação precoce poderia combater o efeito de uma herança má. A educação proporcionaria sentimentos nobres, e bons costumes, “[...] como agentes aperfeiçoadores de sugestão e contágio, sobre essas condições materiais grosseiras e imperfeitas - tal como a erva boa mata a erva má” (Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional ., p. A-G-110).

A transformação de estabelecimentos de privação de liberdade em instituições privilegiadas para o trato da sociedade com o crime derivou do deslocamento da função da pena, de punição e vingança, para um objetivo terapêutico. Entra em jogo não mais o delito cometido e a sua pena correspondente, mas o criminoso, a figura do delinquente, vítima de impulsos e tendências inclinadas ao crime, de determinações biológicas e determinações sociais, como a miséria e a falta de acesso à educação formal. Indivíduo que pode ser regenerado por meio da educação e do trabalho. Estas proposições estavam carregadas com preceitos da Escola de Criminologia Positiva e justificaram o direito de punir e segregar parcela da sociedade e o controle social sobre a população, estabelecendo a possibilidade de uma profilaxia à criminalidade (Frigessi, 2009Frigessi, D. (2009). Cesare Lombroso tra medicina e società. In S. Montaldo, & P. Tappero (Orgs.), Cesare Lombroso: cento anni dopo (p. 22-45). Torino, IT: UTET Libreria.).

A reorganização do sistema penal teve papel importante na construção e desenvolvimento dos regimes liberais dos Estados (Aguirre, 2009Aguirre, C. (2009). Cárcere e sociedade na América Latina. In C. N. Maia, F. Sá, M. Costa, & M. L. Bretas (Orgs.), História das Prisões no Brasil(Vol. 1, p. 19-40). Rio de Janeiro, RJ: Rocco.). Foucault (1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.) realiza uma leitura crítica da internação, apontando o seu uso para incutir hábitos condizentes ao trabalho em fábricas e oficinas em uma população rural, acostumada a um ritmo de trabalho diverso. Melossi e Pavarini (2014Melossi, D., & Pavarini, M. (2014). Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI - XIX). Rio de Janeiro, RJ: Editora Revan.) corroboram a assertiva de que os estabelecimentos de internação cumpriram papel de habituar populações rurais ao trabalho urbano. Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil passava por um processo, ainda que incipiente, de urbanização e deslocamento de populações rurais para a cidade, era preciso acomodar esta população ao novo ritmo de trabalho.

A importância da educação sobressai em um contexto onde grande parcela da população, especialmente aquela pertencente aos setores mais empobrecidos da sociedade, não tinha acesso à educação formal e em que as demandas da vida urbano-industrial em crescimento passaram a demandar novos hábitos. O trabalho e a educação serviriam para fornecer um instrumento de modificação interna do criminoso, trazendo a legitimação e a justificação da manutenção dos estabelecimentos prisionais e da construção de instituições de internamento, para adultos e crianças, respectivamente.

Internação para domar os sentimentos: saberes psicológicos

A diferenciação entre adultos e crianças nos estabelecimentos de privação de liberdade e nas determinações do sistema jurídico foi fundamentada por meio de saberes psicológicos. Os adultos teriam maior capacidade de reflexão e desenvolvimento das faculdades intelectuais, conhecimento das leis e domínio sobre as paixões. Por outro lado, “[...] os menores, di-lo a Psicologia, não tem, mesmo quando normais, em funcionamento perfeito, a válvula destinada a manter o equilíbrio das paixões e impulsos naturais” (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916., p. 40). Aplicar a pena destinada ao adulto para a infância seria um absurdo. Igualmente indesejável a declaração de irresponsabilidade dos menores que lhes daria permissão para o crime. A saída seria uma mudança na legislação penal, com o estabelecimento de uma classificação dos delinquentes, e a execução da privação de liberdade. A determinação da idade na qual o sujeito poderia ser considerado responsável, no entanto, seria, de difícil definição, já que o desenvolvimento psíquico e intelectual é singular. Este limite seria sempre arbitrário, a responsabilidade variaria “[...] de acordo com a raça, o sexo e o estado de saúde” (Britto, 1959bConselho Nacional do Ministério Público. (2013). Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes: Relatório da Resolução nº 67/2011. Brasília, DF., p. 185).

Preconiza-se a necessidade de exame médico-psicológico nos estabelecimentos prisionais e correcionais, para a individualização da pena. Para tanto, seria preciso conhecer a sua ascendência, e legitimar a autoridade de ‘médicos psicólogos’ para um tratamento médico-pedagógico individual (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916.). Os criminosos seriam diferentes entre si quanto à índole, educação, meio social, herança de caracteres fisiológicos e psicológicos. Para transformar a pena em instrumento de remissão dos culpados e defesa social seria necessário destinar tratamento desigual para sujeitos desiguais. O detido é um doente passível de cura e, por consequência, é preciso aplicar os mesmos princípios da arte médica, aos males diversos se destinam medicamentos diversos. Seria necessária uma adequação das medidas defensivas às categorias antropológicas dos delinquentes (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916., Relatório..., 1918Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em julho de 1919. (1919). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Para cumprir o objetivo de transformação do indivíduo era preciso conhecer intimamente o detido. A pena não seria justa se igual para todos, a justiça deveria tratar desigualmente os diversos criminosos (Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .). Para tanto seria importante a instalação de gabinetes de observação anatômica e fisiológica e um estudo detalhado do detido, em busca de dividi-los entre as classificações científicas dos criminosos. O critério para a punição seria a mentalidade, variável de acordo com o sujeito, sexo, idade, estado psíquico atual e fatores sociais e morais. O exame do criminoso seria o primeiro passo para a execução da pena, em cumprimento a um direito do culpado e da sociedade (Relatório..., 1918Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em julho de 1919. (1919). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.). Os estabelecimentos destinados à reforma de seus internos deveriam converter-se em clínicas criminológicas, preparadas para o estudo e a regeneração dos mesmos (Relatório..., 1919Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em julho de 1919. (1919). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.).

Com a preocupação de prevenir o crime, advogou-se a retirada do uso do medo no sistema penal, por sua ineficiência. Era preciso disciplinar os sentimentos do criminoso e inculcar a sensação de dever. A sociedade não obteria resultados por meio da mera expiação, proceder desta forma seria desumano. A regeneração, apesar de não ser vista como possível em todos os casos, deveria ser buscada. Regeneração, neste contexto, consistiria em “[...] educar a vontade do sentenciado, eliminando tudo quanto nele é fera e despertando tudo quanto em sua alma tem de humano” (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional., p. A-E-4). Seria obtida por meio de três elementos: o regime disciplinar; a instrução educativa, que atuaria na inteligência e sentimento do sentenciado; e o trabalho obrigatório e produtivo, que regenera, incutindo hábitos saudáveis. A correção moral e a transformação íntima do delinquente seriam a base da atividade penal, obtidas cultivando a inteligência e educando o sentimento. O regime disciplinar deveria ser severo, com recompensa ao bom comportamento e aplicação de castigo ao mau comportamento. A aplicação de recompensas e punições deveria ser feita por quem conhecesse o funcionamento psíquico do detido, preferencialmente o diretor do estabelecimento (Relatório..., 1918Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil por Dr. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em agosto de 1918. (1918). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.).

Nos primeiros anos do século XX, o diretor da Escola Correcional Quinze de Novembro solicita ao MJNI uma enfermaria isolada, equipada com eletroterapia, hidroterapia, entre outras técnicas do período, para tratar os nevropatas, histéricos, neurastênicos, cerebrastênicos, sifilíticos e os que, por hereditariedade, sofrem de taras, como os descendentes de tuberculosos e sifilíticos. O pedido foi negado (Relatório..., 1905). O diretor aponta as peculiaridades da infância recebida na escola, “[...] o estado cerebral dos meus alunos, por motivos que lhe são intrínsecos, é o mais perturbado que tenho observado e, portanto, ao seu sistema nervoso [...] falta esse tônus nervoso do qual depende o equilíbrio de qualquer unidade orgânica” (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional., p. A-F-16). O relatório da Colônia Correcional Dois Rios aponta a existência de histéricos entre os detidos no estabelecimento (Relatório..., 1905Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905(Vol. I). (1905). Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional.).

A criação do Juízo de Menores deveria vir acompanhada de auxiliares destinados a colher informações sobre a vida e os costumes do menor em julgamento, por meio de indagações aos pais, mestres, parentes, patrões e autoridades locais. O juiz deveria conhecer a alma infantil, ter conhecimentos de psicologia, fisiologia e doenças mentais, ser calmo, amável e paternal (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916., p. 52).

Alterações no sistema penal, como a criação de estabelecimentos diferentes de acordo com sexo, idade e a classificação criminológica do interno, possibilitando a individualização da pena; introdução da condenação condicional, para os réus primários não considerados temíveis e perigosos; fim da pena com tempo determinado, evitando a liberação à sociedade de indivíduos nocivos, são defendidas. O objetivo principal seria a proteção da sociedade, durante o tempo que for preciso, evitando que a estadia em um estabelecimento prisional ultrapassasse o tempo de reforma do detido, ou que ele fosse mantido aprisionado por um tempo menor que o necessário, sendo ambos os resultados igualmente prejudiciais, inutilizando uma força de trabalho disponível e colocando em risco a regeneração obtida. Seria necessário combater a indulgência judiciária em caso de presença de circunstâncias atenuantes (Vaz, 1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .).

Britto (1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916.) defendeu uma posição favorável à internação, mas restrita a alguns casos. O autor enfatiza a internação como capaz de produzir criminosos, em concordância com Vaz (1905Vaz, F. (1905). Infância abandonada. In Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores em março de 1905. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Nacional .) e os relatórios do MJNI, apoiando uma reforma dos estabelecimentos de internação, em acordo com a ciência penitenciária, porém também introduz a relevância da substituição da internação pela liberdade assistida, em muitos casos, desde que o infante e sua família passassem por criteriosa avaliação e acompanhamento por parte de subordinados ao Juiz de Menores. Não propõe a extinção da internação, mas argumenta que em diversas situações esta medida pode representar um perigo social, para os quais se deveria instaurar penas alternativas. Da mesma forma, em 1929, Brito faz críticas às amplas disposições que impõem a retirada da infância de suas famílias, encontradas no Código de Menores de 1927, o que virtualmente impossibilitaria o estado de manter sob tutela um número tão significativo de crianças, além de apontar limitações na eficácia da internação (Britto, 1959bConselho Nacional do Ministério Público. (2013). Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes: Relatório da Resolução nº 67/2011. Brasília, DF.).

Neste contexto, há a diferenciação entre a criminalidade adulta e a infantil. Para ambas as penas devem objetivar a regeneração, utilizando o trabalho e a educação para modificar a índole e os sentimentos do detido, mas entre a vida adulta e a infância se estabelece uma diferença de grau de responsabilidade e capacidade de controle de si. A atenção da Criminologia Positiva se volta à infância. No menor, a regeneração seria mais eficiente, pelo seu estado de desenvolvimento, e seria mais fácil concretizar as medidas legais almejadas, como a privação de liberdade sem tempo determinado e a análise individual detalhada para a execução da pena. O tratamento destinado ao menor também cumpriria o papel de laboratório para a regeneração do adulto (Britto, 1959aBritto, J. G. L. (1959a). Um problema gravíssimo, colônias correcionais e tribunais de menores. In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária) (p. 16-25). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1916., Ferla, 2012Ferla, L. (2012). El determinismo biotipológico y sured de sustentación a través de eugenistas españoles, brasileños y argentinos. In M. Miranda, & G. Vallejo (Orgs.), Una historia de la eugenesia. Argentina y las redes biopolíticas internacionales (1912-1945) (p. 97-222). Buenos Aires, AR: Biblos.).

A partir da prisão, organiza-se um saber individualizante que toma como campo de referência não tanto o crime cometido, mas a virtualidade de perigos contida no indivíduo. Assim, o exame, um instrumento desenvolvido nos espaços da escola e do hospital, é utilizado nas prisões. Tem a sua emergência no fim do século XVIII, com o desenvolvimento das ciências clínicas, marcando a entrada do indivíduo no campo do saber, entrada da descrição singular, do interrogatório e da anamnese (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.). Vemos que o exame se coloca como um instrumento útil para os autores analisados neste estudo, sendo possível, a partir do conhecimento produzido pelo mesmo, individualizar a pena e propiciar a regeneração. Neste contexto, há uma leitura individualizante dos fenômenos, atribuindo a características individuais diversos problemas que são complexos construtos sociais, como a criminalidade. Processos que pressupõem a concepção de indivíduo, campo fértil para a prosperidade da psicologia.

Por meio deste exame detalhado do criminoso, estabelece-se uma causalidade psicológica do crime que altera a noção de responsabilidade jurídica, baseada no direito clássico e no livre-arbítrio, e aumenta a temibilidade do indivíduo. Os discursos penal e psiquiátrico confundem as suas fronteiras. Delinquente não se constitui autor de seu ato, responsável, livre e consciente, mas está amarrado ao delito por instintos, pulsões, tendências, temperamento. A pena enquanto prevenção não representava uma novidade, era utilizada há séculos, mas, na prisão, este é um princípio chave (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.).

A instituição da pena da prisão, para Foucault (1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.), não visa atingir o corpo, como nos suplícios, utilizados até o fim do século XVIII, mas a alma. A prisão representa um espaço onde os detentos poderiam ser transformados e se devolveria à sociedade indivíduos dóceis, em lugar dos criminosos que ali adentraram.

O conhecimento psicológico foi se fazendo necessário de forma crescente neste contexto, sendo reivindicado que juízes, carcereiros, diretores de instituições de internação e agentes que lidassem com os menores fossem conhecedores da alma infantil. Uma análise apurada e detalhada da vida do menor assumiu um papel mais relevante que o delito cometido.

A emergência da prisão moderna e seu correspondente para a infância tiveram entre os seus objetivos a transformação do indivíduo, de delinquente, em cidadão honesto e trabalhador, com hábitos de ordem, disciplina e higiene, preparado para a construção de um Brasil modernizado. Mas, é para a infância que esta recomendação ecoou de forma mais contundente, e esteve mais próxima da concretização. A junção de uma infância a ser protegida e da qual a sociedade deve, ao mesmo tempo, se proteger, é solucionada ao menos temporariamente, por meio de patologias e distúrbios (Vianna, 1999Vianna, A. R. B. (1999). O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro, RJ: Arquivo Nacional.).

Considerações finais

As primeiras décadas do século XX foram fundamentais para a construção da assistência à infância desviante. Traços da política delineada neste período permanecem até a atualidade, se não na legislação, na prática cotidiana policial e judiciária, como a identificação de pobreza com a produção de criminalidade, e da classe popular como um segmento da sociedade a ser controlado e contido para o bem social. O problema da infância aparece entrelaçado com a pobreza. A internação da infância atravessou o século, e esta categoria permanece fragmentada entre os que sofrem sanções e contenção pelo estado por ser entendida como problema social, e os que são protegidos.

O período analisado foi crucial no desenvolvimento da prisão enquanto pena privilegiada ainda na atualidade, bem como da medida de internação para a infância. Na transição para o século XX houve a inauguração da primeira instituição republicana de internação exclusivamente para os menores no Brasil, e até 1928, de acordo com Britto (1959bBritto, J. G. L. (1959b). As leis de menores no Brasil (páginas de crítica e doutrina). In Obras completas (assistência a menores - direito penal - ciência e prática penitenciária). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de documentação. Publicado originalmente em 1929.), o número de instituições para recolhimento de menores que cometeram delito alcançou dez colônias e 12 escolas correcionais. Ainda assim o período foi marcado pela superlotação e manutenção de menores em estabelecimentos prisionais para adultos, sem separação. É preciso destacar que o termo menor no período estudado não restringia o seu uso ao referir-se à infância que cometeu delitos, mas também aos órfãos e à infância pobre em geral, os quais também tiveram instituições criadas para recolhimento.

Nos arquivos oficiais e obras utilizadas para análise, verificamos o uso de saberes psicológicos no processo de constituição da internação enquanto medida privilegiada para a infância desviante da norma da sociedade burguesa, seja abandonada, ou autora de delitos, fornecendo a possibilidade científica de domar sentimentos, hábitos e comportamentos. Porém, ainda que de forma marginal na história do período, não implicando em maiores mudanças da ação tutelar do estado, que se intensificou e consolidou com o Código de Menores de 1927, saberes psicológicos também serviram para criticar a institucionalização em larga escala e defender a instauração de medidas alternativas.

A relação entre saberes psicológicos produzidos no período e a política de internação que se consolidava ocorreu de forma dialética. Saberes psicológicos forneceram legitimação científica para o aprisionamento e a noção de menoridade, por outro lado, também foram se construindo a partir da demanda de discussão dessa medida por parte do estado, e dos problemas sociais apresentados pelo Brasil naquele momento, como a criminalidade e a presença de crianças nas ruas das cidades. Neste sentido, foi importante para os autores estudados e para representantes do MJNI utilizarem argumentos psicológicos para a reivindicação de alterações no sistema penal e penitenciário, especialmente em relação à infância, na campanha empreendida em favor de alterações na política de proteção e repressão à infância. Por outro lado, temas classicamente pertencentes à psicologia, como doença mental, histeria, desenvolvimento psicológico, inteligência e emoções, foram debatidos e colocados em análise, desenvolvendo a discussão psicológica no Brasil. Escamotear a intrincada relação que se estabeleceu, no processo de construção da psicologia, entre práticas de higiene social e institucionalização de grupos vulneráveis na assistência e repressão do estado à infância inibe a transformação necessária. A análise histórica tem sido um recurso fundamental para a identificação criteriosa e qualificada das conceituações psi e dos efeitos de controle e opressão da prática psicológica e, nesta operação histórica, apoio e ferramenta para ações emancipatórias.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2020
  • Aceito
    22 Jan 2021
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