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UMA ABORDAGEM INTEGRADORA DA CONSTRUÇÃO BIOLÓGICA E PSICOSSOCIAL DO SELF E DA IDENTIDADE

RESUMO

Self (si mesmo) e identidade são constructos psicossociais que têm sido estudados sob diferentes perspectivas teóricas e metodológicas nos campos da neurologia e da psicologia, sem, no entanto, que sejam evidenciadas as continuidades e convergências que possibilitam uma visão integradora de sua construção e funcionamento. Apesar de muitas vezes esses conceitos serem empregados como sinônimos, diversos estudos têm delimitado suas distinções e definido a identidade como uma configuração madura e mais elaborada do self, que emerge no início da adolescência. O presente estudo, de enfoque teórico, tem como objetivo apresentar uma abordagem integradora dos processos biológicos e psicossociais de construção do self e da identidade. Para tanto, inicia conceituando self e traçando um percurso que explora os componentes biológico, cognitivo-afetivo, sociocultural e moral que interatuam na construção do self e da identidade. Diferentes perspectivas tributárias da epistemologia piagetiana e da teoria da identidade de Erik Erikson (status da identidade e identidade narrativa) são postas em diálogo, evidenciando suas convergências e complementariedades, do que se desdobra uma visão integradora dos processos de construção da identidade.

Palavras-chave:
Self; representação de si; identidade

RESUMEN

Self (si mismo) e identidad son constructos psicosociales que han sido estudiados bajo diferentes perspectivas teóricas y metodológicas en los campos de la neurología y la psicología cognitiva, sin destacar, sin embargo, las continuidades y convergencias que permiten una visión integradora de su construcción y funcionamiento. Aunque estos conceptos sean usados a menudo como sinónimos, varios estudios han delimitado sus distinciones y definido la identidad como una configuración madura y más elaborada del yo, que surge en el comienzo de la adolescencia. El presente estudio, de enfoque teórico, tiene como objetivo enseñar un abordaje integrativo de los procesos biológicos y psicosociales de construcción del self y de la identidad. Con este fin, comienza por conceptualizar el yo y trazar un camino que explora los componentes biológico-filogenético, cognitivo-afectivo, sociocultural y moral que interactúan en la construcción del self y la identidad. Diferentes perspectivas tributarias de la epistemología de Piaget y de la teoría de la identidad de Erik Erikson (status de identidad e identidad narrativa) se ponen en diálogo, mostrando sus convergencias y complementariedades, a partir de las cuales se desarrolla una visión integradora de los procesos de construcción de la identidad.

Palabras clave:
Self; representación de si mismo; identidad

ABSTRACT

Self and identity are psychosocial constructs studied under different theoretical and methodological perspectives in the neurology and psychology fields without highlighting the continuities and convergences that enable an integrative view of their construction and functioning. Although these concepts are often used interchangeably, several studies have delimited their distinctions and defined identity as a mature and more elaborate configuration of the self, which emerges in early adolescence. With a theoretical focus, the present study aims to present an integrative approach to the biological and psychosocial processes of self and identity construction. To do so, it begins by conceptualizing the self and tracing a path that explores the biological, cognitive-affective, sociocultural and moral components that interact with self and identity construction. Different perspectives based on Piagetian epistemology and Erik Erikson's theory of identity (status and narrative identity) are put into dialogue, highlighting their convergences and complementarities, resulting in an integrative view of identity construction processes.

Keywords:
Self; self-representation; identity

Introdução

O self (si mesmo) e a identidade pessoal são constructos psicossociais cuja natureza e funcionamento têm sido tematizados por estudiosos de diversas áreas do conhecimento interessados em compreender a capacidade da espécie humana de elaborar representações sobre si e regular, ativa e conscientemente, pensamentos, sentimentos e ações (Piaget, 1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.; Erikson, 1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Taylor, 1994Taylor, C. (1994). As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo, SP: Loyola. ; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Damásio, 2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.; Ricoeur, 2014Ricoeur, P. (2014). O si-mesmo como outro. São Paulo, SP: Martins Fontes.).

Termos como autoconhecimento, senso de si, autoconceito ou representação de si compõem o universo de estudos que orbitam em torno dos conceitos de self e identidade, revelando as variadas maneiras pelas quais estes têm sido definidos e investigados. Tais conceitos comumente são empregados como sinônimos, mas diversos estudos têm pontuado suas diferenças e advertido sobre a importância de demarcá-las (Erikson, 1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.).

Estudos nos campos da neurologia (Damásio, 2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.) e da psicologia - sobretudo, tributários da epistemologia de Piaget e da teoria da identidade de Erikson (Marcia, 1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.; Piaget, 1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.; Erikson, 1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Damon & Hart; 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Schwartz, Luyckx, & Crocetti, 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; Berzonsky, 2016Berzonsky, M. D. (2016). An exploration of personal assumptions about self-construction and self-discovery. Identity, 16(4), 267-281. https://doi.org/10.1080/15283488.2016.1229609
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; Fadjukoff, Pulkkinen, & Kokko, 2016Fadjukoff, P., Pulkkinen, L., & Kokko, K. (2016) Identity formation in adulthood: A longitudinal study from age 27 to 50. Identity, 16(1), 8-23. https://doi.org/10.1080/15283488.2015.1121820
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; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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) têm proposto definições e revelado, sob diferentes enfoques e perspectivas, múltiplos aspectos acerca da construção e do funcionamento do self e da identidade. Contudo, Harter (2012)Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications. e Schwartz et al. (2015)Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561). advertem que é necessário estabelecer um diálogo e articular diferentes teorias e pesquisas com o propósito de evidenciar suas continuidades no que tange à construção e funcionamento desses constructos.

O presente estudo, de enfoque teórico, tem como objetivo apresentar uma abordagem integradora dos processos biológicos e psicossociais de construção do self e da identidade. Partindo do pressuposto de que a identidade é uma configuração mais elaborada do self, que emerge no início da adolescência4 4 O termo adolescência é amplamente utilizado na literatura em psicologia para referir-se ao período etário entre a infância e a idade adulta, marcado por transformações biológicas (como a puberdade) e psicossociais. Não há um consenso sobre a faixa etária que designa a adolescência. Alguns pesquisadores indicam a faixa de 11 a 19 anos de idade (Blasi & Glodis, 1995; Moshman, 2011), ao passo que para outros a adolescência pode ser iniciada aos dez anos e se estender até os 18 anos (Damon & Hart, 1988; Harter, 2012), para ficar apenas em alguns exemplos. Neste estudo estaremos considerando o limite entre dez e 19 anos, de modo a incluir as variações do referencial utilizado. , iniciaremos conceituando o self para, na sequência, explorar a construção do self e da identidade mediante uma abordagem que integra os componentes biológico-filogenético, cognitivo-afetivo e sociocultural, ao pôr em diálogo diferentes perspectivas sobre esse fenômeno.

O self como um sistema de representações de si

Nosso ponto de partida para a definição de self é a formulação teórica do psicólogo William James (1961James, W. (1961). Psychology: the briefer course. New York, NY: Harper e Row.), que recorre à proposição linguística ‘eu mesmo’ para denotar o caráter fundamentalmente reflexivo e dialético do self, o qual admite simultaneamente um sujeito conhecedor (eu) e um objeto de conhecimento (me). O pronome pessoal ‘eu’ representa a dimensão subjetiva do self (self subjetivo), que se traduz na consciência de um conjunto de traços de individuação que se coordenam, com consequências profundas para a criação do senso de identidade pessoal, quais sejam: I) a consciência da própria atividade sobre os eventos da vida, ou seja, de que se é um agente com autonomia; II) a consciência de que se é único e distinto dos demais, o que acarreta na percepção da individualidade; III) a consciência da própria continuidade no tempo; e IV) a autoconsciência, que desenha os significados de identidade pessoal para si mesmo. Já o pronome reflexivo ‘me’ representa a dimensão objetiva do self (self objetivo), aquilo que é acessado como objeto de conhecimento pelo sujeito. James refere-se a essa dimensão como autoconceito e afirma que apenas ela é passível de ser conhecida e investigada empiricamente.

Embora diversos autores concordem que o conjunto de traços de individuação que constituem o self subjetivo não são completamente conscientes e, portanto, não são passíveis de se apreender empiricamente em sua totalidade, advogam que é possível acessá-los em certa medida por meio do self objetivo (Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.). Por isso consideram mais pertinente empregar termos como compreensão de si, autoconceito ou representação de si para referir-se à manifestação consciente do self que adotam como unidade de análise empírica.

Neste artigo adotamos o termo representação de si por ser mais recorrente na literatura e para dar destaque ao conceito de representação, comumente utilizado para definir autoconceito (Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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) ou compreensão de si (Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), pois consiste em um procedimento cognitivo empregado pelos sujeitos para criar um substituto dos objetos em plano mental, que possibilita reconhecer, interpretar, descrever e conceituar a si mesmo por intermédio de recursos simbólicos (Piaget, 2014Piaget, J. (2014). Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Rio de Janeiro, RJ: Wak Editora. Publicado originalmente em 1953., 1996Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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; Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Damásio, 2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.).

Definimos a representação de si como um sistema de representações cognitivas construído pelos indivíduos para organizar suas experiências de vida, que integra o conhecimento de seus atributos físicos, sociais, psicológicos, suas crenças filosóficas ou filiações ideológicas, permitindo identificar a posição única que ocupam no mundo social, sendo a base para a constituição da identidade pessoal (Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Utilizamos o conceito de ‘sistema’ por reconhecermos a existência de múltiplas representações de si que interagem e se coordenam na configuração de um sistema de conjunto de maior abrangência - a representação de si global ou completa, conforme definem Markus e Wurf (1987)Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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e Harter (2012)Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.. Em um mesmo indivíduo, podem coexistir representações positivas e negativas acerca da própria imagem (que conformam sua autoestima); representações de si no passado, presente e futuro; representações sobre quem se é no momento atual (self atual) e sobre quem se deseja ser (ideal de self) (Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Kristjánsson, 2009Kristjánsson, K. (2009). Putting emotion into the self: a response to the 2008 Journal of Moral Education Special Issue on moral functioning. Journal of Moral Education, 38(3), 255-270. https://doi.org/10.1080/03057240903101374
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; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Ademais, há representações de si que são tidas como centrais para a autodefinição, estando cronicamente ativadas e exercendo grande influência sobre a interpretação de informações, juízos, sentimentos e ações. Outras, no entanto, podem deter menor importância e ocupar uma posição mais periférica no sistema do self, estando sua acessibilidade mais sujeita a flutuações em virtude do contexto social, do estado de ânimo individual, entre outras variáveis (Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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; Lapsley, 2010Lapsley, D. K. (2010). Moral agency, identity and narrative in moral development. Human Development, 53(2), 87-97. https://doi.org/10.1159/000288210
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; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Isso significa que o sistema de representações de si é dinâmico e que nem todas as representações de si que compõem uma representação de si global estarão ativadas a qualquer momento.

Ainda sobre o caráter sistêmico da representação de si, cumpre acrescentar que esta se constitui de uma pluralidade de conteúdos, tais como imagens, teorias, objetivos, princípios e protótipos de conduta, que, para Markus e Wurf (1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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), configuram um espaço de significados multidimensional. Tais conteúdos não se expressam apenas na forma de proposições linguísticas ou operações estritamente cognitivas sobre si, mas também mediante emoções e sentimentos por meio dos quais o sujeito conhece, define, avalia e regula a si mesmo (Markus & Wurf, 1987; Blasi, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Kristjánsson, 2009Kristjánsson, K. (2009). Putting emotion into the self: a response to the 2008 Journal of Moral Education Special Issue on moral functioning. Journal of Moral Education, 38(3), 255-270. https://doi.org/10.1080/03057240903101374
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; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Damásio, 2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Kristjànsson (2009)Kristjánsson, K. (2009). Putting emotion into the self: a response to the 2008 Journal of Moral Education Special Issue on moral functioning. Journal of Moral Education, 38(3), 255-270. https://doi.org/10.1080/03057240903101374
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, por exemplo, contrapõe o paradigma racionalista, segundo o qual o self é fundamentalmente operado por mecanismos racionais e as emoções exercem papel tácito e secundário. Para o autor, as emoções exercem igual papel na constituição e funcionamento do self, como é o caso de emoções morais que nos definem (exemplo: empatia e compaixão) e que regulam nossa autoestima e nossas ações (exemplo: culpa e vergonha).

Na seção subsequente dedicaremos a abordar a construção do self com ênfase em sua gênese na infância e seu desenvolvimento até a adolescência. Destacaremos os componentes biológico, cognitivo-afetivo, social e moral que conformam o self.

A construção biológica e psicossocial do self

A construção do self pressupõe a tomada de consciência sobre a própria individualidade, a noção de que se é sujeito distinto dos demais objetos que habitam o mundo. Conquanto o desenvolvimento de formas aprimoradas de consciência dependa das interações entre o sujeito e o meio - comportando os conteúdos socioculturais -, a capacidade de desenvolvê-la tem seu embrião em uma estrutura biológica que herdamos como resultado de uma longa jornada filogenética. Na obra O sentimento de si: corpo, emoção e consciência (2013), o neurologista António Damásio afirma que a consciência é um dispositivo do organismo que se desenvolveu no curso da filogênese, possibilitando a adaptação e gestão mais eficientes da vida no ambiente. Consiste “[...] na construção de conhecimento sobre dois fatos: que o organismo está envolvido numa relação com um objeto e que o objeto presente nessa relação provoca uma modificação no organismo” (Damásio, 2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates., p. 39).

Para Damásio (2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.), o precursor biológico da consciência é a representação não consciente (logo, não simbólica) e contínua do estado do organismo em suas várias dimensões, na forma de um modelo cujo objetivo é a gestão automatizada da vida. Tal modelo, que ele denomina proto-self, é formado por um conjunto de padrões neuronais que mapeia, a cada instante, o estado da estrutura física do organismo. Do proto-self origina-se, filogeneticamente, a consciência em sua forma mais elementar, nomeada de ‘consciência nuclear’, que surge quando os padrões neurais que mapeiam o estado do organismo e os padrões sensório-motores que mapeiam o objeto se coordenam, resultando em um relato imagético, não verbal, da relação causal entre organismo e objeto em mapas de segunda ordem, que se manifestam no corpo na forma de sentimentos e causam o realce do objeto, deixando-o saliente. Neste momento, o sujeito percebe que a imagem pertence a ele e que pode atuar sobre ela.

Vale destacar que, segundo Damásio (2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.), nesse primeiro nível de consciência a percepção de si é essencialmente sobre as próprias emoções na forma de um sentimento5 5 Convém assinalar a diferença conceitual entre emoções e sentimentos. Segundo Damásio (2013), as emoções são reações corporais, produzidas pelo sistema neuroendócrino, em função de situações ou estímulos provenientes do exterior ou do nosso próprio organismo. O sentimento, por sua vez, diz respeito à percepção consciente de uma ou mais emoções. que acompanha a produção de imagens não verbais. Tais imagens, que são um padrão mental em qualquer modalidade sensorial (sonora, tátil, de um estado de bem-estar etc.), tem como primeira utilidade informar ao organismo o que se passa e produzir o sentimento do conhecer. A segunda utilidade é produzir o sentido de ação potencial: ‘estas imagens são minhas e posso atuar sobre o objeto que as causou’. Daí poderá resultar a possibilidade de selecionar, eleger ou planejar respostas que vão além das programações biológicas, conferindo-lhe liberdade. A terceira utilidade é que a produção da consciência nuclear produz mais vigília e atenção dirigida, o que melhora o processamento da imagem e otimiza tanto as reações do organismo ao objeto quanto o planejamento de ações.

De acordo com Damásio (2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.), a consciência nuclear fornece ao organismo o sentido do self no aqui e agora. Um self nuclear, que otimiza a adaptação do organismo ao meio, mas incapaz de projetar o futuro e remeter-se ao passado, pois é transitório e recriado incessantemente para lidar com as situações. Um self que não é exclusivo do ser humano, que não depende da memória, tampouco do raciocínio ou da linguagem. Apesar disso, é continuamente ativado e, por isso, assegura a estabilidade do indivíduo ao longo de grandes períodos de tempo, de modo a suprir a necessidade de uma continuidade de autorreferência.

A ‘consciência alargada’, em contrapartida, é, consoante Damásio (2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.), mais elaborada, configurada pelo pensamento representacional e pela memória. Edifica-se sobre a consciência nuclear, mas extrapola sua simplicidade estrutural e funcional. Confere ao organismo a capacidade de aprender e reter registros e de reativá-los na forma de representações simbólicas - tais como a linguagem. Permite, por isso, a definição de si por intermédio de enunciados linguísticos e fornece o sentido de um self autobiográfico, situando-o historicamente e informando-o acerca do passado e do futuro.

A espécie humana, como resultado de sua história evolutiva, abarca e põe em funcionamento os três níveis de sentimento (ou consciência) de si supracitados - proto-self, self ‘nuclear’ e self ‘autobiográfico’. É no último, porém, que a consciência deixa de ser apenas uma percepção efêmera das próprias emoções para se tornar uma representação cognitiva que provê ao self um sentido de permanência no tempo, de individuação e autonomia, que possibilita ao sujeito qualificar seus atributos físicos e psicológicos e assimilar as referências culturais que permeiam seu processo de socialização (Damásio, 2013Damásio, A. (2013). O sentimento de si: corpo emoção e consciência. Lisboa, PT: Temas e Debates.).

Não obstante, a construção do self estar condicionada a priori por uma estrutura biológica que constitui seu alicerce (sistema neuroendócrino), tal estrutura nos fornece tão somente um campo de possibilidades sobre o qual se edificarão estruturas e procedimentos cognitivo-afetivos, conhecimentos e significados, que conformarão um arranjo particular na representação que cada indivíduo elabora sobre si, como resultado de sua interação ativa com o mundo social (Piaget, 1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.; Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Dunn, 2017Dunn, C. D. (2017). Personal narratives and self-transformation in postindustrial societies. Annual Review of Anthropology, 46, 65-80. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102116-041702
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; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Enquanto para Damásio, as características que definem a consciência nuclear são suficientes para afirmar a existência de um self em sua expressão mais elementar, estudiosos da psicologia cognitiva ou sociocognitiva concordam com o epistemólogo suíço Jean Piaget (1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.) que é apenas com o advento da representação cognitiva (o que para Damásio caracteriza a consciência alargada) que se efetiva a construção do self (Markus & Wurf, 1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.).

Na perspectiva de Piaget (1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.), a construção do si mesmo (termo que no presente artigo é sinônimo de self), depende da representação cognitiva - a capacidade de produzir imagens mentais (significados) para ‘imitar’ ou substituir um objeto ou uma situação (significante). Essa capacidade surge ao redor dos dois anos de idade. Antes disso a criança estabelece fronteiras entre o eu e o mundo, mas ainda não dissocia o eu e o mundo por completo, pois, dada a ausência da capacidade de representação, é incapaz de evocar a existência dos objetos (o que inclui a si mesma) como algo permanente, independentemente de sua presença, ação ou percepção material imediata. Para Piaget (1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.), a construção do self ocorre simultaneamente à construção da noção de objeto permanente, ou seja, de um objeto I) independente da ação do sujeito, II) submetido às leis da causalidade, III) que ocupa uma localização e ordenamento no espaço e IV) com espaço definido e dimensões constantes que se conservam no tempo.

De acordo com Piaget (1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.), nos primeiros meses de vida, a criança, em absoluto estado de egocentrismo, é incapaz de conceber o mundo fenomênico que a circunda como diferente de si própria. A existência e os movimentos dos objetos não são reconhecidos por evocação de imagem mental, mas como percepção de sua própria ação, isto é, como uma extensão de sua ação. Com a construção da função representativa, a criança finalmente irá superar o egocentrismo radical e conceberá a existência objetiva de si e do mundo. Convém sublinhar que a construção da noção de objeto não é uma consequência apenas da maturação das estruturas neurológicas, mas decorre do acúmulo de experiências de interação ativa do sujeito com o objeto. A criança começa a construir as imagens representacionais pelo desequilíbrio gerado pela ausência do objeto, que engendra a necessidade de (e a busca ativa em) ‘manter’ o objeto para melhor se adaptar à realidade. Neste momento, à ‘descentração cognitiva’ se conjuga uma ‘descentração afetiva’, que se revela no interesse por fontes de prazer concebidas como distintas da própria ação (Piaget, 2014Piaget, J. (2014). Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Rio de Janeiro, RJ: Wak Editora. Publicado originalmente em 1953., 1996Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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).

Apesar de o surgimento da função representativa permitir ao sujeito reconhecer-se como distinto do mundo exterior, antes de ter desenvolvido o pensamento reversível6 6 Refere-se à capacidade de executar, em plano representativo, uma ação nos dois sentidos de um percurso (ir e vir), sabendo que é a mesma ação. Possibilita diferenciar variáveis e coordená-las (Inhelder & Piaget, 1976). (na transição da infância para a adolescência), essa distinção ocorre apenas no plano físico, pois ele ainda conserva um egocentrismo, agora relativo aos seus pontos de vista (pensamentos, juízos ou sentimentos). A criança, nesse caso, é incapaz de reconhecer a existência de dois pontos de vista diferentes sobre um mesmo fenômeno e de coordená-los como igualmente possíveis. Ao mesmo tempo que tem dificuldade de adaptar seu pensamento ao dos outros, julgando apenas por seu próprio ponto de vista, ela imita o outro. É graças ao pensamento reversível que poderá colocar em relação seu ponto de vista com o do outro ou vários pontos de vista entre si (Piaget, 1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.; Inhelder & Piaget, 1976Inhelder, B., & Piaget, J. (1976). Da lógica da criança à lógica do adolescente. São Paulo, SP: Livraria Pioneira.).

A aquisição do pensamento reversível traz implicações profundas para a constituição do self, uma vez que com ele o sujeito poderá diferenciar seus pensamentos, sentimentos e opiniões daqueles emitidos pelos demais, e reconhecer sua idiossincrasia. Poderá dissociar a avaliação que realiza sobre si da opinião de terceiros a seu respeito, o que representa um importante passo na construção da autonomia (Piaget, 1996Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. São Paulo, SP: Ática. Publicado originalmente em 1970.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.).

Outro importante ponto de inflexão no desenvolvimento do self é a aquisição da linguagem, um tipo sofisticado de representação simbólica. Com a linguagem, a criança passa a organizar a realidade na forma de conceitos construídos intersubjetivamente e socialmente. Isso lhe possibilita assimilar constructos culturais, elaborar significados sobre a realidade social e guiar sua conduta com referência nas convenções e normas linguisticamente codificadas. Como consequência, a criança adquire a capacidade de descrever, explicar e avaliar tanto práticas socioculturais como a própria atividade física e mental (Piaget, 2014Piaget, J. (2014). Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Rio de Janeiro, RJ: Wak Editora. Publicado originalmente em 1953., 1996Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.). Adquire, destarte, a capacidade de conceituar a si mesma. Além disso, os conceitos conferem maior duração aos seus pensamentos e sentimentos, o que é sumamente importante para a noção de si como uma entidade contínua no tempo e espaço (Piaget, 1996Piaget, J. (2014). Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Rio de Janeiro, RJ: Wak Editora. Publicado originalmente em 1953.). É por essas e outras razões que Markus e Wurf (1987Markus, H., & Wurf, E. (1987). The dynamic self-concept: A psychological perspective. Annual Review of Psychology, 38, 299-337. http://doi.org/10.1146/annurev.ps.38.020187.001503
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) e Harter (2012)Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications. consideram que a linguagem é a ferramenta por excelência da representação de si.

O surgimento da linguagem também irá desempenhar importante papel na superação do egocentrismo e na tomada de consciência sobre a individualidade, pois o discurso do outro sobre si, a pluralidade de narrativas sobre um mesmo fenômeno e o uso de pronomes pessoais ajudarão a delimitar as fronteiras objetivas e subjetivas entre o eu e o outro (Piaget, 2014Piaget, J. (2014). Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Rio de Janeiro, RJ: Wak Editora. Publicado originalmente em 1953., 1996Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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).

A linguagem, por fim, terá papel crucial na organização da memória autobiográfica, importante componente do self e base para a formulação da narrativa de vida e da identidade no final da adolescência (Dunn, 2017Dunn, C. D. (2017). Personal narratives and self-transformation in postindustrial societies. Annual Review of Anthropology, 46, 65-80. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102116-041702
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; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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).

A memória autobiográfica consiste em uma vasta gama de informações e eventos que auxiliam a localizar e ancorar o self em uma estrutura de história de vida em curso; conserva a experiência e estabelece vínculos causais entre os eventos, auxiliando a organizá-la. Porém, conforme adverte McAdams (2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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), na infância, e mesmo no início da adolescência (12 anos), a memória autobiográfica ainda não se organizou na forma de uma narrativa de vida. Diferentemente da memória autobiográfica, a narrativa de vida consiste em um conjunto delimitado de cenas e scripts temporais e tematicamente organizados, que conectam coerentemente passado, presente e futuro, conferindo, em sua versão mais elaborada, unidade e propósito à identidade.

Os registros de eventos e os significados que compõem a memória autobiográfica e a narrativa de vida são construídos sob a influência da narrativa do outro, a qual se soma aos signos e à própria concepção de história de vida de dada cultura. Assim, a cultura e as relações interpessoais fornecem o conteúdo e condicionam a interpretação dos eventos e os vínculos causais que estruturam a memória autobiográfica e a narrativa de vida. São, portanto também nessa perspectiva, fundamentais para a construção do self (Dunn, 2017Dunn, C. D. (2017). Personal narratives and self-transformation in postindustrial societies. Annual Review of Anthropology, 46, 65-80. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102116-041702
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; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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).

Além da construção das referidas estruturas cognitivas e da linguagem, o self se configura por um arranjo particular de conteúdos que, desde a infância, o sujeito reconhece como pertencentes a si, ou seja, conteúdos que integram ao seu sistema conceitual. O tipo de conteúdo e a forma com que tais conteúdos se integram à representação de si resultam das experiências de socialização e irão variar ao longo do desenvolvimento (Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Damon e Hart (1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.) apresentam um modelo multidimensional sobre o desenvolvimento da compreensão de si da infância (até 10 anos de idade) ao final da adolescência (até 18 anos de idade), como resultado de uma pesquisa longitudinal. Os autores assinalam que da infância ao final da adolescência, há uma tendência do sujeito a conferir destaque a uma dimensão do self sobre outras, iniciando pelo enfoque nas características físicas, passando pelas ações materiais, pelos papéis e relações sociais, para, por último, conferir ênfase aos atributos psicológicos (crenças, filosofias, percepção da dinâmica psíquica etc.). Assim, indivíduos menores de 12 anos, aproximadamente, centram suas definições sobre si em atributos físicos (ex.: “sou uma pessoa alta”) e de ação (ex.: “gosto de jogar videogame”). Quando mencionam aspectos relativos à dimensão social do self, restringem-se ao pertencimento a um grupo (ex.: “faço parte do time de basquete”) e às atividades que realizam com os outros (ex.: “gosto de brincar com os amigos”). A menção à dimensão psicológica, por seu turno, limita-se aos estados internos (ex.: “costumo estar feliz”) e capacidades (ex.: “sou inteligente”). Já a ênfase em características da personalidade vinculadas às relações sociais (ex.: “sou um amigo fiel”) torna-se mais recorrente somente na adolescência, ao passo que a referência a um sistema de crenças e à própria dinâmica psíquica (ex.: “sou uma pessoa ansiosa e sensível”) é destacada apenas no final da adolescência (entre 16 e 18 anos, aproximadamente). É nesse período que conteúdos morais passam a comparecer, explícita e espontaneamente, como parte das representações de si.

Harter (2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.) revisa uma série de estudos que endossam esses resultados e acrescenta que, no interior de cada uma dessas dimensões, encontraremos variações nos conteúdos e no valor e valência que o indivíduo atribui a eles, que sofrem profunda influência dos padrões e valores expressos na cultura e nos discursos e ações das pessoas valoradas pela criança.

A construção da identidade

Self e identidade são conceitos comumente utilizados como sinônimos. A despeito de serem constructos sobrepostos do ponto de vista da estrutura e do funcionamento psíquicos, diversos autores têm assinalado a distinção conceitual entre eles, convergindo para a concepção de que a identidade é uma configuração mais elaborada do self marcada por um sentido de unidade e propósito e pelo compromisso com determinados papéis sociais, valores e ideologias, tidos como centrais para a representação de si (Marcia, 1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.; Erikson, 1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Carlsson, Wängqvist, & Frisén, 2015Carlsson, J., Wängqvist, M., & Frisén, A. (2015). Identity development in the late twenties: A never ending story. Developmental Psychology, 51(3), 334-345. https://doi.org/10.1037/a0038745
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; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; Fadjukoff et al., 2016Fadjukoff, P., Pulkkinen, L., & Kokko, K. (2016) Identity formation in adulthood: A longitudinal study from age 27 to 50. Identity, 16(1), 8-23. https://doi.org/10.1080/15283488.2015.1121820
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; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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). A identidade, consoante esses autores, começará a se manifestar no início da adolescência (ao redor dos 12 anos de idade), mas é apenas no final desse período e no início da juventude adulta que será mais ativamente elaborada e adquirirá contornos mais definidos.

Tal concepção tem sua gênese na proeminente obra do psicanalista Erik Erikson (1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) sobre o desenvolvimento da identidade na adolescência. Segundo Blasi e Glodis (1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.), podemos pensar na constituição da identidade em Erikson por meio de três perspectivas complementares: I) perspectiva estrutural: reorganização, na maior parte das vezes inconsciente, de necessidades, motivações e identificações; II) perspectiva social: assimilação e compromisso com papéis sociais e valores de determinada cultura, bem como maior integração na própria sociedade e cultura; e III) perspectiva fenomenológica: uma nova forma de experienciar o self, caracterizada por um senso de unidade e individualidade e por um sentimento de propósito.

De acordo com Erikson (1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), o processo de formação da identidade resulta da necessidade de integrar (no sentido de sintetizar) os elementos da individualidade que foram sendo formados ao longo da infância e conferir unidade a ela; mas agora tendo a sociedade adulta como unidade privilegiada de referência, que demanda a assunção de papéis sociais e suscita a vinculação a valores e ideologias capazes de conferir pertencimento e propósito à identidade. Nesse sentido, a identidade em Erikson caracteriza-se pela exploração de opções axiológicas, de crenças e de ocupação disponíveis na sociedade, com o objetivo de ,consolidá-las em uma ideologia pessoal, estabelecendo compromissos com planos de vida que permitirão ao jovem se situar em um novo nicho societal - nominalmente, o mundo adulto.

Tributário da teoria de Erikson, Marcia (1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.) desenvolveu um modelo teórico-metodológico amplamente utilizado (Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Carlsson et al., 2015Carlsson, J., Wängqvist, M., & Frisén, A. (2015). Identity development in the late twenties: A never ending story. Developmental Psychology, 51(3), 334-345. https://doi.org/10.1037/a0038745
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; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; Fadjukoff et al., 2016Fadjukoff, P., Pulkkinen, L., & Kokko, K. (2016) Identity formation in adulthood: A longitudinal study from age 27 to 50. Identity, 16(1), 8-23. https://doi.org/10.1080/15283488.2015.1121820
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), que sintetiza a formação da identidade em dois processos: o estabelecimento de compromissos com determinados domínios de conteúdos (carreira, religião, sexualidade, ideologia política, amizades e família) que constituirão a concepção de si e a exploração ativa de alternativas relativas a tais domínios. O autor encontrou quatro formas diferentes de experienciar esses dois processos de formação da identidade (status da identidade). São eles: I) conquista da identidade: o sujeito possui compromissos definidos mediante um processo de exploração ativa; II) moratória: não há compromissos definidos, mas há a busca ativa em alcançá-lo; III) identidade fechada: compromisso estabelecido sem exploração pessoal autônoma, mas pela reprodução dos valores e crenças de figuras de referência; IV) identidade difusa: não há compromisso e nem processo exploratório.

Assim, para Marcia (1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.), uma identidade madura tem a ver com possuir compromissos fortes, autoconscientes e escolhidos por si próprio, marcados por profundo investimento pessoal em relação aos referidos domínios. A exploração e o estabelecimento desses compromissos como parte da própria identidade passarão a ocorrer com gradativo nível de intensidade a partir da metade da adolescência (Carlsson et al., 2015Carlsson, J., Wängqvist, M., & Frisén, A. (2015). Identity development in the late twenties: A never ending story. Developmental Psychology, 51(3), 334-345. https://doi.org/10.1037/a0038745
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; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; Fadjukoff et al., 2016Fadjukoff, P., Pulkkinen, L., & Kokko, K. (2016) Identity formation in adulthood: A longitudinal study from age 27 to 50. Identity, 16(1), 8-23. https://doi.org/10.1080/15283488.2015.1121820
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).

Apesar de concordarem com a maior parte das formulações teóricas da tradição de Erikson e Marcia, Blasi e colaboradores (Blasi, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A. (1995). Moral understanding and moral personality: the process of moral integration. In W. Kurtines(Org.), Moral development: an introduction(p. 229-254). London, UK: Allyn and Bacon.) consideram que a dimensão fenomenológica da identidade não recebeu a devida atenção dos estudiosos filiados a essa tradição. Investidos dessa crítica, os autores, que se inscrevem no campo da psicologia cognitiva, empreenderam uma série de investigações sobre o desenvolvimento do self na adolescência, buscando apreender como os sujeitos experienciam esse constructo psicossocial. Como resultado, identificaram a existência de quatro modos de experienciar o self. O que nos interessa destacar acerca de seus estudos é que, no início da adolescência, o self é uma entidade difusa, marcada por múltiplos atributos que o sujeito ainda não articula no sentido de buscar unidade e identidade. Centra-se em características físicas, em ações que gosta de realizar, nas relações sociais e em sentimentos e traços com aprovação social, mas não há nada que indique o reconhecimento de um núcleo do self, dotado de atributos, crenças, sentimentos e opiniões que o tornam único e que lhe conferem integridade. Com o transcorrer da adolescência, a tendência é que o sujeito passe a reconhecer a existência de características que são genuinamente parte do self, em contraste com características superficiais e externas, sentindo-as como essencialmente importantes para quem é como pessoa e comprometendo-se em ser leal a si mesmo. Passará também, principalmente na etapa final desse período etário, a afirmar-se como um agente responsável por sua própria construção e não mero observador de uma identidade imanente.

De modo semelhante, Berzonsky (2016Berzonsky, M. D. (2016). An exploration of personal assumptions about self-construction and self-discovery. Identity, 16(4), 267-281. https://doi.org/10.1080/15283488.2016.1229609
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) identificou que sujeitos para os quais a identidade é o resultado de uma construção da qual são agentes, apresentaram maior correlação com indicadores para propósito de vida, compromisso com a própria identidade e autorregulação.

Na perspectiva desses autores, para falarmos de identidade, não basta que haja um conjunto de conteúdos (seja religião ou ideologia política) que figuram como parte da representação que o sujeito elabora sobre si mesmo. É necessário que o sujeito reconheça esses conteúdos como centrais para o seu senso de si mais básico e os unifique de modo coerente. Nesse sentido, Blasi (1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.) sintetiza a identidade como uma representação de si madura, que constitui aquilo que é mais importante para o self, caracterizando-se por um forte senso de unidade e de agência, pela sua saliência na consciência da pessoa e por sua habilidade em ancorar o senso de estabilidade pessoal e de propósito.

Nessa perspectiva, Moshman (2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ) e Berzonsky (2016Berzonsky, M. D. (2016). An exploration of personal assumptions about self-construction and self-discovery. Identity, 16(4), 267-281. https://doi.org/10.1080/15283488.2016.1229609
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) argumentam que a existência de um autoconceito ou representação de si não é suficiente para falarmos de identidade, pois até mesmo uma criança o possui. Na concepção dos autores, a identidade é uma representação sofisticada de si mesmo, mais precisamente, uma ‘teoria sobre si mesmo’. Moshman (2011)Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. defende essa ideia por considerar que a identidade reúne características análogas às teorias científicas, sendo, em linhas gerais, uma estrutura conceitual composta por postulados, suposições e constructos tidos como relevantes para organizar e experiência do self no mundo.

Segundo Moshman (2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ), há duas características que autorizam afirmar essa proposição: I) teorias são organizadas e, idealmente, coerentes. Afirmar a identidade como teoria sobre si significa dizer que não se trata de uma coleção de crenças, mas de uma concepção organizada e integrada; II) teorias são explanatórias. A identidade é uma tentativa de ‘explicar’ a si mesmo, baseada em uma compreensão de si, e não apenas uma tentativa de descrever características e comportamentos. É uma consideração sobre crenças, valores e propósitos centrais que a pessoa constrói e que elege para explicar seus pensamentos e comportamentos. Disso se desdobra a ideia de que a identidade é uma teoria ‘explícita’ sobre si mesmo, em que suposições implícitas, disposições inconscientes e emoções que constituem o self precisam ser consideradas como parte da identidade para sê-lo.

Além dessas características, Moshman (2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ) alinha-se a Blasi e Glodis (1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.), assim como a Erikson (1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) e Marcia (1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.), ao alegar que a construção de teorias sobre si ocorre ao redor de determinados domínios com os quais os indivíduos se comprometem. O autor destaca aqueles identificados pela tradição fundada por Erikson e Marcia (carreira, religião, sexualidade, ideologia política, amizades e família) e acrescenta, a partir da revisão de diversos estudos, os domínios moral, étnico e de gênero. Assim, conclui que ter uma identidade supõe ter compromisso nos domínios que a pessoa considera central para si e ter uma teoria de si que coordene tais compromissos.

À luz desse marco teórico, podemos sintetizar a identidade como a noção de si mesmo como um agente que unifica um conjunto de conteúdos (traços, objetivos, princípios, crenças, sentimentos etc.) reconhecidos como pertencentes ao núcleo do self, os quais o situam em um nicho psicossocial, conferem-lhe unidade e propósito e são mobilizados como centrais na explicação do sujeito sobre os pensamentos, sentimentos e ações que o caracterizam.

A construção dessa configuração particular do self poderá ocorrer graças à conjunção entre transformações cognitivo-afetivas que caracterizam o período da adolescência e a inserção do sujeito no mundo adulto.

Do ponto de vista cognitivo, a adolescência é o período em que se desenvolve o pensamento formal, cuja expressão mais proeminente é o raciocínio hipotético-dedutivo. Com o pensamento formal, o adolescente adquire a capacidade de realizar representações sobre representações, de pensar em possibilidades no plano abstrato, de conjecturar sobre o real e o possível, extraindo deduções independentemente de sua relação com a realidade observável. O adolescente torna-se capaz de coordenar múltiplas possibilidades de escolha sobre quem deseja ser, de testar hipóteses sobre si mesmo, de compreender, assimilar e construir ideologias e teorias, sobre si e sobre o mundo. E isso ocorre justamente porque se tornou capaz de operar seu pensamento na direção do possível e do abstrato. É, portanto, também em decorrência dessa aquisição cognitiva que o adolescente tornar-se-á capaz de projetar seu próprio futuro (Inhelder & Piaget, 1976Inhelder, B., & Piaget, J. (1976). Da lógica da criança à lógica do adolescente. São Paulo, SP: Livraria Pioneira.; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Danza, 2019Danza, H. C. (2019). Conservação e mudança dos projetos de vida de jovens: um estudo longitudinal sobre Educação em Valores (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

De acordo com Harter (2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.), é graças a esse instrumento intelectual que o adolescente passa a coordenar ou integrar coerentemente diferentes traços ou representações de si aparentemente contraditórios em um mesmo traço ou representação de si mais global - por exemplo, quando sintetiza o fato de ser habilidoso em artes, matemática e línguas no atributo ‘sou inteligente’. A autora demonstra como no início da adolescência tal capacidade ainda não foi plenamente desenvolvida, pois muitos indivíduos têm dificuldades em coordenar atributos e pensam-nos de modo isolado, o que frequentemente gera conflitos sobre o self e dúvidas sobre a existência de um núcleo do self.

A aquisição do pensamento formal dependerá tanto da maturação do sistema nervoso como das condições socioculturais e do papel ativo do sujeito na construção de estruturas e procedimentos cognitivos em decorrência de sua interação com o meio. Mas, embora o pensamento formal seja indispensável para a construção da identidade, esta depende tanto ou até mais dos fatores sociais, os quais fornecerão os conteúdos e as condições para a sua construção (Inhelder & Piaget, 1976Inhelder, B., & Piaget, J. (1976). Da lógica da criança à lógica do adolescente. São Paulo, SP: Livraria Pioneira.).

A aproximação do adolescente ao mundo adulto e as expectativas da sociedade sobre quem ele irá se tornar impõem a necessidade de integrar papéis, objetivos, valores, crenças, pertencimento de grupo etc. em um padrão coerente que especifique como o adulto emergente irá viver, amar, trabalhar, inserir-se no mundo e no que irá acreditar no interior de um mundo complexo e mutável (Inhelder & Piaget, 1976Inhelder, B., & Piaget, J. (1976). Da lógica da criança à lógica do adolescente. São Paulo, SP: Livraria Pioneira.; Erikson, 1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Carlsson et al., 2015Carlsson, J., Wängqvist, M., & Frisén, A. (2015). Identity development in the late twenties: A never ending story. Developmental Psychology, 51(3), 334-345. https://doi.org/10.1037/a0038745
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; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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; Danza, 2019Danza, H. C. (2019). Conservação e mudança dos projetos de vida de jovens: um estudo longitudinal sobre Educação em Valores (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Na medida em que o adolescente se aproxima da maioridade, passa a explorar, de modo ativo e com cada vez mais intensidade, esse processo de construção identitária, momento em que se acentuam os vínculos afetivos com modos de vida, grupos sociais, ideologias e/ou princípios morais (Marcia, 1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.; Erikson, 1976; Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; Carlsson et al., 2015Carlsson, J., Wängqvist, M., & Frisén, A. (2015). Identity development in the late twenties: A never ending story. Developmental Psychology, 51(3), 334-345. https://doi.org/10.1037/a0038745
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; Berzonsky, 2016Berzonsky, M. D. (2016). An exploration of personal assumptions about self-construction and self-discovery. Identity, 16(4), 267-281. https://doi.org/10.1080/15283488.2016.1229609
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; Fadjukoff et al., 2016Fadjukoff, P., Pulkkinen, L., & Kokko, K. (2016) Identity formation in adulthood: A longitudinal study from age 27 to 50. Identity, 16(1), 8-23. https://doi.org/10.1080/15283488.2015.1121820
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), vínculos estes que constituem o mecanismo funcional de integração de tais objetos de identificação como valores à identidade pessoal (Blasi, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). As identidades sociais (étnica, de classe ou gênero), nesse sentido, resultam da vinculação afetiva e senso de pertencimento do sujeito a um grupo social determinado, que passa a formar parte de sua identidade pessoal (Moshman, 2011Moshman, D. (2011). Adolescent rationality and development: cognition, morality, and identity(3rd ed.). Abingon: Taylor and Francis Group. ; Chandler & Dunlop, 2015Chandler, M. J., & Dunlop, W. L. (2015). Development of personal and cultural identities. In R. M. Lerner(Ed.), Handbook of child psychology and developmental science(p. 452-483). New Jersey, NY: Wiley. ; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).).

Consoante estudos longitudinais, é nessa etapa da vida que conteúdos morais passarão a figurar como parte da representação que os indivíduos elaboram para descrever e explicar seus atributos, pensamentos, sentimentos e ações (Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Pratt, Hunsberger, Pancer, & Alisat, 2003Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Uma vez que a moral é um domínio fundamental das relações humanas e que a inserção no mundo adulto demanda a assunção de critérios pessoais de regulação da própria conduta e de um senso de responsabilização pessoal, o adolescente busca referências e identificações com modos de vida, princípios normativos, modelos de conduta e ideologias que expressam valores morais, integrando-os à sua representação de si. Para alguns deles, tais valores poderão tornar-se centrais para a pessoa que são e desejam ser. Neste caso, tem-se a formação de uma ‘identidade moral’, conceito empregado para definir indivíduos que integram valores morais às suas identidades e que costumam demonstrar grande compromisso com condutas morais (Blasi, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Pratt et al., 2003Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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; Frimer, Walker, Dunlop, Lee, & Riches, 2011Frimer, J. A., Walker, L. J., Dunlop, W.L., Lee, B. H., & Riches, A. (2011). The integration of agency and communion in moral personality: Evidence of enlightened self-interest. Journal of Personality and Social Psychology, 101(1), 149-163. https://doi.org/10.1037/a0023780
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; Lepsley, 2015; Hertz & Krettenauer, 2016Hertz, S. G., & Krettenauer, T. (2016). Does moral identity effectively predict moral behavior? A meta-analysis. Review of General Psychology, 20(2), 129-140. https://doi.org/10.1037/gpr0000062
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; Silva, 2020Lapsley, D. K. (2015). Moral identity and developmental theory. Human Development, 58(3), 164-171.).

É no final da adolescência e início da idade adulta que o indivíduo passa a sintetizar passado, presente e futuro, a fim de conferir senso de continuidade e coerência entre a criança da qual se despede e o adulto que se anuncia. Nesse momento, converte a vasta coleção de memórias autobiográficas em uma narrativa de vida, que abarca um conjunto delimitado de cenas e scripts temporal e tematicamente organizados, cuja função e consequência é prover unidade, coerência e propósito à identidade (McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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). Revisões sobre a perspectiva de identidade narrativa (Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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) apontam que uma identidade madura pode ser reconhecida pela capacidade do sujeito em reconhecer e conferir sentido aos eventos de sua vida, conectá-los de modo coerente e identificá-los como significativos para a construção do self no presente.

Embora muitos autores concordem que o final da adolescência é o período mais ativo e um momento crítico para a construção da identidade (Marcia, 1966Marcia, J. (1966). Development and validation of ego identity status. Journal of Personality and Social Psychology, 3(5), 551-558.; Inhelder & Piaget, 1976Inhelder, B., & Piaget, J. (1976). Da lógica da criança à lógica do adolescente. São Paulo, SP: Livraria Pioneira.; Erikson, 1976Erikson E. (1976). Identidade: juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Damon & Hart, 1988Damon, W., & Hart, D. (1988). Self-understanding in childhood and adolescence. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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), estudos indicam que a formação da identidade só irá adquirir um arranjo maduro, consistente e mais consolidado no início da idade adulta - o que se convencionou denominar de jovens adultos (19 a 25 anos de idade) (Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Harter, 2012Harter, S. (2012). The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations. New York, NY: Guilford Publications.; McAdams, 2018McAdams, D. P. (2018). Narrative identity: What is it? What does it do? How do you measure it? Imagination, Cognition and Personality, 37(3), 359-372. https://doi.org/10.1177/0276236618756704
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). Ademais, diversos estudos têm demonstrado que a identidade não é algo consolidado e estático, mas um sistema aberto e dinâmico, passível de sofrer mudanças no modo como o sujeito a experiencia e nos conteúdos que compõem o núcleo da representação de si (Blasi & Glodis, 1995Blasi, A., & Glodis, K. (1995). The development of identity. A critical analysis from the perspective of the self as subject. Development Review, 15(4), 404-433.; Pratt et al., 2003Pratt, M. W., Hunsberger, S., Pancer, M., & Alisat, S. (2003). A longitudinal analysis of personal values socialization: Correlates of a moral self-ideal in late adolescence. Social Development, 12(4), 563-585. https://doi.org/10.1111/1467-9507.00249
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; Carlsson et al., 2015Carlsson, J., Wängqvist, M., & Frisén, A. (2015). Identity development in the late twenties: A never ending story. Developmental Psychology, 51(3), 334-345. https://doi.org/10.1037/a0038745
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; Schwartz et al., 2015Schwartz, S. J., Luyckx, K., & Crocetti, E. (2015). What have we learned since Schwartz (2001)? A reappraisal of the field of identity development. In K. C. McLean, & M. Syed(Eds.), The Oxford handbook of identity development(p. 539-561).; Fadjukoff et al., 2016Fadjukoff, P., Pulkkinen, L., & Kokko, K. (2016) Identity formation in adulthood: A longitudinal study from age 27 to 50. Identity, 16(1), 8-23. https://doi.org/10.1080/15283488.2015.1121820
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; Silva, 2020Silva, M. A. M. (2020). Integração de valores morais às representações de si de adolescentes [Tese de Doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Considerações finais

A partir da revisão e articulação de diferentes perspectivas teóricas e estudos empíricos sobre self e identidade, definimos o self como um sistema de representações de si, cuja construção resulta de um processo no qual interatuam fatores biológicos, cognitivo-afetivos e socioculturais. Parte de uma herança filogenética, que proporciona as bases biológicas de seu desenvolvimento, para, na interação ativa com o meio social, desenvolver estruturas cognitivas e assimilar referências culturais, criando as condições para a construção da identidade a partir da adolescência.

A identidade, por seu turno, consiste em uma configuração madura do self, sendo definida como a unificação de um conjunto de conteúdos reconhecidos como pertencentes ao núcleo do self, os quais o situam em um nicho psicossocial, conferem-lhe unidade e propósito e são mobilizados como centrais na explicação do sujeito sobre os pensamentos, sentimentos e ações que o caracterizam. Tal constructo psicossocial passa a ser definido consciente e sistematicamente no início da adolescência, sob a necessidade do sujeito, ao aproximar-se do mundo adulto, de definir quem será e como irá atuar no mundo. Mas não é uma construção que se consolida e se conserva no curso do tempo, pois trata-se de um sistema aberto que se constrói na interação ativa do sujeito com o meio e que, portanto, não obstante mantenha certa estabilidade temporal, é sujeito a transformações.

Se ao longo deste artigo foi possível conceituar e integrar diferentes componentes estruturais e funcionais da construção da identidade, por outro lado, é preciso reconhecer suas limitações no que concerne à possibilidade de abarcar o amplo espectro de estudos sobre este constructo, sobretudo aqueles inscritos em outros domínios epistemológicos - tal como a psicanálise. Também o recorte restrito à psicologia acaba por subsumir a compreensão de outras facetas do objeto em sua inserção em um mundo social em constante mudança, cujas trocas culturais decorrentes da globalização digital e as múltiplas possibilidades existenciais que se apresentam (Guichard & Puvaud, 2015Guichard J., & Puvaud, J. (2015). Processes of identity construction in liquid modernity: Actions, emotions, identifications, and interpretations. In R. Young, J. Domene, & L. Valach(Eds.), Counseling and action (p. 91-114). New York, NY: Springer. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-0773-1_6
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) tornam a construção da identidade um fenômeno psicossocial de ainda maior complexidade, cuja compreensão demanda o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento.

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  • 4
    O termo adolescência é amplamente utilizado na literatura em psicologia para referir-se ao período etário entre a infância e a idade adulta, marcado por transformações biológicas (como a puberdade) e psicossociais. Não há um consenso sobre a faixa etária que designa a adolescência. Alguns pesquisadores indicam a faixa de 11 a 19 anos de idade (Blasi & Glodis, 1995; Moshman, 2011), ao passo que para outros a adolescência pode ser iniciada aos dez anos e se estender até os 18 anos (Damon & Hart, 1988; Harter, 2012), para ficar apenas em alguns exemplos. Neste estudo estaremos considerando o limite entre dez e 19 anos, de modo a incluir as variações do referencial utilizado.
  • 5
    Convém assinalar a diferença conceitual entre emoções e sentimentos. Segundo Damásio (2013), as emoções são reações corporais, produzidas pelo sistema neuroendócrino, em função de situações ou estímulos provenientes do exterior ou do nosso próprio organismo. O sentimento, por sua vez, diz respeito à percepção consciente de uma ou mais emoções.
  • 6
    Refere-se à capacidade de executar, em plano representativo, uma ação nos dois sentidos de um percurso (ir e vir), sabendo que é a mesma ação. Possibilita diferenciar variáveis e coordená-las (Inhelder & Piaget, 1976).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2020
  • Aceito
    01 Jul 2021
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