RESUMO.
Esse artigo analisa a institucionalização da assistência social no Brasil e a implicação dos trabalhadores sociais neste campo. Partimos da narrativa de vida de Maria, que da experiência religiosa parte para a militância nos movimentos sociais e institucionaliza sua prática na ampliação da assistência social do governo de Luiz Inácio Lula da Silva em 2004. Neste contexto de luta e paixões, Maria investe em um saber prático que se torna o ponto de partida para a construção de uma sobreimplicação. Pelo método de narrativas de vida e da análise institucional, o trabalho contempla o campo micropolítico de um percurso biográfico para chegar a aspectos sócio-históricos da constituição da pasta no país e a construção de uma sensibilidade peculiar por parte dos trabalhadores. Essa sensibilidade, construída nas experiências anteriores ao trabalho social e potencializada no encontro com a política institucionalizada, pode adoecer os profissionais e favorecer a precarização da política pública quando alimenta um compromisso pessoal que se nega a enxergar a complexidade do que seja manter a seguridade social com competência e seriedade no país.
Palavras-chave:
Serviços sociais; análise institucional; subjetividade
RESUMEN
Analizamos la institucionalización de la Asistencia Social en Brasil y la implicación de los trabajadores sociales en este campo. Para esto, partimos de la narrativa de la vida de María, que a partir de la experiencia religiosa, comienza a ser militante en los movimientos sociales e institucionaliza su práctica en la expansión de la Asistencia Social del gobierno de Luiz Inácio Lula da Silva en 2004. En este contexto de lucha y pasiones, María invierte en conocimiento práctico que se convierte en el punto de partida para la construcción de una sobreimplicación. A través de la metodología de la historia de la vida y el análisis institucional, el trabajo contempla el campo micropolítico de una ruta biográfica para llegar a los aspectos sociohistóricos de la constitución de la pasta en el país y la construcción de una sensibilidad peculiar por parte de los trabajadores. Esta sensibilidad, basada en experiencias previas al trabajo social y mejorada en el encuentro con la política institucionalizada, puede enfermar a los profesionales y favorece la precariedad de las políticas públicas cuando alimenta un compromiso personal que se niega a ver la complejidad de lo que significa mantener la seguridad social con competencia y seriedad en el país.
Palabras clave:
Servicios sociales; análisis institucional; subjetividad
ABSTRACT.
This article analyses the institutionalization of Social Assistance in Brazil and the implication of social workers in this field. For this, we start from Maria’s life narrative, which from religious experience, starts to militancy in social movements and institutionalizes its practice in the expansion of Social Assistance. Maria invests in practical knowledge that becomes the beginning for construction of an overimplication. Through theory and institutional analysis, the work contemplates the micropolitical field of a biographical path to reach socio-historical aspects of the constitution of the paste in the country and the building of a peculiar sensitivity on the part of the workers. This sensitivity, built on experiences prior to social work and enhanced in the encounter with institutionalized politics, can make professionals sick and favors the precariousness of public policy when it feeds a personal commitment that refuses to see the complexity of what it means to maintain social security with competence and seriousness in the country.
Keywords:
Social services; institutional analysis; subjectivity
Introdução
A política de assistência social brasileira é marcada por uma história cujos efeitos incidem na forma em que esta pasta vem se institucionalizando no Brasil. Participaram da construção deste percurso os movimentos sociais, iniciativas políticas partidárias de diferentes escopos, Igreja Católica, o saber da universidade, mas, principalmente, os trabalhadores que, em diferentes épocas, se propuseram a constituir uma profissionalização da caridade e da filantropia no país. Partimos dos primeiros movimentos assistencialistas do estado, aliados a uma Igreja Católica investida no apoio caritativo, ao intenso investimento na constituição de legislações, normativas e aparatos técnicos, sobretudo no decorrer da década de 2000, que tentam garantir a política pública de forma definitiva no país.
A filantropia no Brasil teve movimentos diversificados, tendo como eixo estruturante tanto a recusa do estado em assumir a gestão de forma suficiente, levando em consideração a desigualdade social que sempre assolou o país, como a insistência dos movimentos religiosos em prover caridade no hiato que deveria ser ocupado pelas políticas públicas de busca pela igualdade social.
Entre 1964 a 1988, fase de repressão e autoritarismo no Brasil, a filantropia era organizada em torno de um estado autoritário que acreditava no racionalismo técnico, na segregação e higienização. Associações comunitárias e organizações não governamentais que prestassem serviços assistenciais eram duramente vigiadas. Destaque, nesta época, para o movimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), conforme cita Iamamoto (2019Iamamoto, M. V. (2019). Renovação do serviço social no Brasil e desafios contemporâneos. Serviço Social e Sociedade, 136, 439-461.), e trabalhos pastorais baseados no carisma católico, com vertente progressista e forte apoio aos grupos marginalizados.
A partir da Constituição Federal, em 1988, o Brasil chega à ‘Filantropia Democratizada’. Começam a se constituir políticas públicas e marcos legais fidelizados ao texto da Constituição Federal. Em 1993, institui-se a Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS (Lei nº 8.742, 1993Lei nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993 (1993, 08 de dezembro). Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União.) para, já na década de 2000, surgir a Política Nacional de Assistência Social (Brasil, 2004Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2004). política nacional de assistência social. Brasília, DF.) e, consequentemente, o Sistema Único de Assistência Social e a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Brasil, 2009Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009). Tipificação nacional dos serviços socioassistenciais. Brasília, DF.). Neste contexto, as universidades sempre estiveram presentes. Houve aumento de trabalhadores no campo com o início de variados concursos públicos e contratações temporárias. Atualmente, assistimos a uma extinção quase completa desta política pública, fazendo com que a omissão do estado diante da necessidade visível de ações socioassistenciais o aproxime de uma opção pela necropolítica, ou seja, deixar morrer como princípio de organização econômica na gestão das desigualdades hoje no país (Mbembe, 2019Marques, C. F., Roberto, N. L. B., Gonçalves, H. S. & Bernardes, A. G. (2019). O que significa o desmonte? Desmonte do que e para quem?Psicologia Ciência e Profissão, 39(2), 6-18.; Marques, Roberto, Golçalves & Bernardes, 2019Lourau, R. (1990) Implication e surimplication. Revue du Mauss, 10, 110-120.).
Com a aproximação com o carisma católico e sua perspectiva caritativa, a profissionalização da assistência social no Brasil ainda é um desafio. Este artigo discute como a tradição católica ganha espaço na construção profissional de uma trabalhadora e no incentivo ao assistencialismo e ao personalismo que insiste em atravessar a execução da política pública. Tentamos apontar a construção de cenários macropolíticos e os desafios da institucionalização das normativas e princípios, como também do gesto profissional das pessoas envolvidas nessa história.
No pêndulo entre momentos de expansão e outros de completa precariedade, interesses individuais, em sua maioria originários de políticas partidárias, ocupam e assumem a política pública. Atravessam e precarizam o trabalho, fazendo tanto a pasta estagnar em vários momentos históricos, quanto também favorecem a sobreimplicação dos profissionais baseada em uma vinculação maciça com o trabalho, adoecimentos, paralização profissional e, também, a construção de alegrias e resistências quando encontram a potência do coletivo.
Caminhos teóricos-metodológicos
Foram entrevistadas, no âmbito desta pesquisa, sete pessoas5 5 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMG - CAAE: 57346716.7.0000.5137 . Todas construíram o percurso profissional primeiro no atendimento a grupos vulneráveis para, em seguida, inserirem-se no âmbito da política de assistência social do estado. Compartilharam o tempo histórico de crescimento dessa política pública com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004, na presidência da República. E dividiram a experiência no mesmo campo de atuação, a prefeitura da cidade de Betim, região metropolitana de Belo Horizonte, nosso campo de estudo.
Destes sete percursos, elegemos a narrativa de vida de Maria6 6 Os nomes utilizados no artigo são fictícios. a fim de problematizarmos a construção da assistência social no país. Vida peculiar tanto pela sua densidade, quanto pelo envolvimento com movimentos sociais, movimentos católicos e, mais tarde, com a política de assistência social já institucionalizada. O percurso de vida de Maria, a forma como mobilizou recursos para construir, primeiro, sua vida religiosa para, em seguida, sua profissão, revela-nos nuances da história da constituição da seguridade social no Brasil e como esta influencia o ofício do trabalhador social ainda hoje.
Sua história lança luz sobre a possibilidade dos trabalhadores construírem um tipo de implicação com o trabalho que favorece a sensibilidade anterior ao ingresso nas políticas sociais, assim como a inventividade de forte militância, persistindo, dentre estes afetos, a ideologia normativa do exercício profissional que não permite uma crítica fundamental e contundente - a intenção político-partidária que, muitas vezes, assume a institucionalização da pasta e o uso dos corpos dos trabalhadores.
A teoria da análise institucional (Lourau, 2014Lourau, R. (2014). A análise institucional (3a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.) e o método Narrativas de Vida (Bertaux, 2010Bertaux, D. (2010). Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal, RN: EDUFRN.) são as principais conduções teóricas-metodológicas que permitiram chegarmos às análises aqui expostas. Sobre a análise institucional, esta dedica-se a compreender as relações que os indivíduos ou coletivos mantêm com a instituição, partindo do pressuposto de que há um movimento institucional regido por forças antagônicas, denominadas por René Lourau (2014)Lourau, R. (2014). A análise institucional (3a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. de ‘instituído’ e ‘instituinte’. Quando juntas, estas forças desenham um cenário abstrato o qual denominamos de instituição e investimos em expectativas, a construção dos laços sociais, do trabalho, da vida em sociedade e tantas outras formas de constituir marcos civilizatórios que orientam e organizam a vida em comum.
Os conceitos de implicação e sobreimplicação tratados aqui são fruto também da análise institucional. Implicação é o conjunto de relações (libidinais, organizacionais e ideológicas) que se estabelecem entre os sujeitos e as instituições (Monceau, 2017Monceau, G. (2017). Enquêter/intervenir?Paris, FR: Champ Social.). Nesse sentido, não é uma escolha, ou seja, sempre se está implicado, sendo esta relação constitutiva e indicativa de sentimentos, acontecimentos e percepções que atravessam os processos de institucionalização e de subjetivação (Londero & Soares, 2018Lei nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993 (1993, 08 de dezembro). Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União.).
A sobreimplicação, quando analisada, remete-nos ao que Lourau (1990Lourau, R. (2014). A análise institucional (3a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.) denominou de ideologia normativa do sobretrabalho, um ponto cego na relação do sujeito com a instituição, um excesso que se apoia na implicação para produzir um além que não está, necessariamente, vinculado ao bem-estar daquele que produz o trabalho. Ao discorrer acerca da implicação profissional, Rougerie (2019Rougerie, C. (2019). Implication professionnelle: (professional involvement - participación profesional). In A. Vandevelde-Rougale (Ed.),Dictionnaire de sociologie clinique(pp. 355-356). Toulouse, FR: ERES.) afirma que esta relação pode derivar de uma tal imersão na prática, que se torna difícil processar análises de implicação, análises críticas do fazer profissional. Portanto, como tentaremos ilustrar, a sobreimplicação aponta para a exploração da subjetividade, colocando o sujeito no exercício da autogestão de sua alienação (Lourau, 1990Lourau, R. (2014). A análise institucional (3a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).
A metodologia de narrativas de vida permitiu indagar um percurso biográfico individual a fim de descrever e de analisar fenômenos coletivos (Bertaux, 2010Bertaux, D. (2010). Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal, RN: EDUFRN.). Observar as práticas pode levar a compreender os contextos sociais nos quais elas se inscrevem, a acessar processos e ‘mundos sociais’. A pergunta “Como alguém se torna um trabalhador social?” norteou o trabalho de campo, possibilitando indagar sobre os mecanismos sociais que apoiam as lógicas intersubjetivas nesse processo de escolha e de profissionalização.
Nasce uma militante
Maria nasceu no estado do Mato Grosso, em 1968. Filha mais velha de uma família composta por pai, mãe e um irmão, ela começou a estudar com oito anos. Terminado o quarto ano na escola rural, Maria se viu no desafio de continuar seus estudos já que, sendo menina, não podia transitar sozinha pelo caminho até a escola. Com relação forte com a igreja, ela deu sequência à religiosidade herdada dos pais e tomou para si, nessa época, com 12 anos, o objetivo familiar de ser freira.
Diante da dificuldade em manter seus estudos, ser religiosa era uma forma de exercer sua fé, como também continuar na escola. Mesmo entristecida por ficar longe dos pais, ela foi para um colégio católico considerado de elite para o contexto local. Como seria freira, seus estudos foram custeados pela congregação que a acolhera, no entanto, em troca do apoio que recebeu, limpava o colégio. Não suportou o sofrimento de lidar com tanto trabalho ainda na infância e de ficar longe dos pais, pediu às religiosas que a mandassem de volta para casa.
Em uma segunda tentativa, ela foi acolhida pelas freiras da cidade onde morava. Logo depois, foi transferida para outro colégio particular, também elitizado, de uma cidade mais distante. Nas duas escolas particulares, Maria trocava seu trabalho pela oportunidade de estudar na instituição sem pagar. Aliado a isso, também teria que manter o objetivo de ser religiosa para ter suas mensalidades financiadas pela própria congregação. Estudar para Maria estava vinculado à sua religiosidade e, consequentemente, ao cumprimento da tarefa implícita de ser religiosa. Construiu com as colegas de turma laços de solidariedade e de amizade que faziam com que o trabalho fosse, mesmo que clandestinamente, dividido entre todas e ela pudesse estar mais descansada para os estudos que aconteciam sempre durante as madrugadas.
Em Cuiabá, onde fez o ensino médio de 1983 a 1985, com o Brasil ainda no período da ditadura e governado pelo general João Baptista Figueiredo, estudou em escola pública, cursou o magistério e continuou vinculada a uma congregação religiosa ainda com o intuito de ser freira. Foi nessa época, e a partir da relação com a Igreja Católica, que Maria se encontrou com a militância pelas causas sociais. Entre as linhas duras do governo ditatorial surgiram e se fortaleceram diversos movimentos sociais e comunitários que lutavam pela democracia e pela proteção das pessoas perseguidas por suas posições políticas. No caso de Maria, sua sensibilidade a aproximou, nesta época, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, fundado em 1984.
Anos mais tarde, Maria foi para um novo convento onde morou por três anos e se entregou à formação com afinco e também conflitos. Compreendendo a vida religiosa como a dedicação plena às causas dos mais pobres, enquanto permaneceu vinculada, questionou o trabalho da instituição em manter para as classes mais favorecidas um colégio considerado de alto nível. No entanto, apesar das divergências, terminou sua formação, foi reconhecida como freira e retornou para sua cidade de origem, agora como uma religiosa.
Segundo momento: intensifica-se uma militância
Um evento, em especial, produziu uma coesão importante para que Maria aliasse trabalho social e militância religiosa. No retorno para sua cidade, no ano de 1991, já freira, encontrou-se com um movimento de pessoas sem casa que cobravam da prefeitura um terreno e que tinham ações de construções comunitárias. Quando receberam a doação, a partir de um mutirão, todo final de semana as famílias se dedicavam a construir juntas as suas futuras moradias. Maria participou dessa experiência tendo o apoio da sua congregação religiosa da época.
Maria e sua história expressam uma tradição brasileira na construção das políticas sociais no Brasil. Num primeiro momento, que revela ainda hoje seus efeitos, a Igreja Católica assumiu a atenção às classes pobres a partir de uma série de ações caritativas, cujo caráter de benevolência predominava em meio a um país com profundas desigualdades. Uma filantropia regulada pela igreja através de parcerias público-privadas que, mais tarde, foi assumida pelo estado, mas nunca completamente a ponto de se tornar independente destas tradições que giram em torno das ações beneficentes, disciplinadoras, reguladoras e assistencialistas. Assim, “[...] podemos visualizar na trajetória brasileira fases e alianças: da filantropia caritativa à higiênica, disciplinadora, pedagógica profissionalizante, vigiada e de clientela” (Cruz & Guareschi, 2009Cruz, L. R., & Guareschi, N. (2009). A constituição da assistência social como políticas públicas: interrogações à Psicologia. In L. R. Cruz & N. Guareschi. Políticas públicas e assistência social. (p. 13-40). Petrópolis, RJ: Vozes., p. 17). Nesse cenário, gradativamente, os pobres transformaram-se em ‘assistidos sociais’, e precisavam ser amparados por um estado e uma igreja que não queria apenas promover, mas também controlar. Nesse percurso, Serpa, Virginia e Cavalcanti (2015Serpa, V., Virginia, C., & Cavalcante, S. (2015). Assistência social pública brasileira: uma política da autonomia - um dispositivo biopolítico.Revista Subjetividades,15(3), 428-437. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000300011&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
) destacam a importância de se problematizar não só essa conexão com o estado, mas também a mudança do estatuto do usuário de ‘indigente’ para ‘sujeito de direitos’, o que, com certeza, traz tensões e o risco de disciplinarizações.
O período histórico em que Maria se envolveu com mais entusiasmo no carisma católico e no trabalho social corresponde ao mesmo momento de forte repressão política no país (1964 a 1985). Tempos de uma ditadura violenta em que a assistência aos pobres apresentava caráter redistributivo, embora funcionasse a todo vapor em favor do crescimento capitalista. Desse cenário, surge o ‘racionalismo técnico’ como forma de ocultar mazelas sociais. Ele só será repensado a partir das reflexões althusserianas e marxistas que se iniciavam na prática das assistentes sociais e nos cursos de serviço social. Enfrentar o racionalismo técnico foi uma das forças instituídas contra a qual os movimentos sociais, em sua gênese histórico-conceitual, lutaram, e cuja luta influenciou diretamente o campo da assistência social.
Desse estado assistencial e autoritário, surgem saídas de negação do discurso oficial via movimentos sociais, militâncias diversas e atividades marginais que questionaram o sistema vigente e apontaram um horizonte democrático a ser conquistado. Conforme Cruz e Guareschi (2009Cruz, L. R., & Guareschi, N. (2009). A constituição da assistência social como políticas públicas: interrogações à Psicologia. In L. R. Cruz & N. Guareschi. Políticas públicas e assistência social. (p. 13-40). Petrópolis, RJ: Vozes.), o período de 1975 a 1985 foi de efervescência política. Maria não tinha clareza da complexidade política que tomava o país, mas já havia assumido uma posição que a colocava no seio dos movimentos de caráter progressista da época. E isso modificou a passos largos sua vida dali em diante, assim como sua sensibilidade para com o trabalho social que se tornou um apoio fundamental para sua profissionalização futura.
O envolvimento de Maria no apoio ao movimento social da sua cidade, que lutava por moradia, foi tão significativo que ela também ganhou uma casa para morar. No entanto, apesar de querer viver ali naquele momento e continuar o trabalho social iniciado, como estava ligada à congregação religiosa como freira, não tinha autonomia de assumir o imóvel sem que fosse de interesse dos seus superiores manter a casa como local de evangelização. Quando conseguiu que a congregação assumisse a casa como uma extensão institucional, aliou, de forma definitiva, trabalho social e vida religiosa, transformando todo seu cotidiano em uma imersão de fato, fortalecendo seu envolvimento com a causa dos mais pobres a partir do carisma da igreja.
Afinada com seu tempo histórico, a partir da sensibilidade que a vinculava com o trabalho com os mais vulneráveis, a aproximação com a prática das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs que Maria desejava para a sua congregação, então conservadora e rígida, era o que havia de mais audacioso no processo de expansão da Igreja Católica latino-americana naquele momento. Maria fez com que a congregação, então centralizada e conservadora, aderisse às premissas das CEBs, mesmo que de forma improvisada e não oficializada, transformando sua casa em uma célula da teologia da libertação7 7 Corrente teológica cristã que preconiza a evangelização a partir da opção preferencial pelos pobres e envolvendo o estudo das ciências humanas e sociais. , principal fundamentação religiosa das CEBs.
As CEBs, na história do catolicismo, foram forças de organização político-espiritual que se espalharam pelo Brasil e pela América Latina, produzindo feitos tanto na formação de pessoas sensíveis às causas sociais e que hoje atuam nas políticas sociais, como Maria, quanto na formação de lideranças políticas e religiosas que influenciaram na luta pelos direitos sociais na história do país e da América Latina.
Mudanças significativas aconteceram no cenário religioso católico a partir da década de 1960, o que promoveu uma virada no processo de institucionalização da Igreja Católica e, de forma especial, na América Latina, favorecendo o surgimento de outras formas de compreensão do mundo e edificando, a nosso ver, o que compreendemos atualmente como trabalho social na política de assistência social. Após a realização do Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, a partir da determinação do papa João XXIII, a igreja se viu às voltas com a necessidade de criação de estratégias que ampliassem o número de fiéis pelo mundo. Surge na América Latina, potencializada pela experiência com as ditaduras violentas em vários países, a possibilidade de conciliar política e religião a partir da teologia da libertação.
Maria e tantas outras pessoas, que buscavam conciliar a ética católica com os trabalhos com os pobres, começaram a frequentar as CEBs e a refletirem sobre problemas sociais a partir da metodologia freiriana do ver-julgar-agir (Freire, 2019Freire, P. (2019). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.). No caso de Maria, a CEBs a qual estava vinculada funcionava dentro da sua própria casa e ela era uma das coordenadoras. Tendo o conceito de práxis como centro, o método proposto promovia um processo dialético e processual de reflexão, que tem em sua natureza o despertar da consciência crítica, do reconhecimento da opressão e o favorecimento da libertação dos povos oprimidos diante da pobreza imposta pelo sistema capitalista e pelos detentores dos meios de produção (Betto, 1981Betto, F. (1981). O que são comunidades eclesiais de base. São Paulo, SP: Brasiliense.). A principal ação seria a libertação da consciência que poderia gerar uma libertação social, ao convidar o sujeito a ver e a atuar na vida cotidiana de forma a reagir e a mudar as condições concretas onde vivia e que o oprimia. Dessa maneira, não há, de acordo com Paulo Freire (2019Freire, P. (2019). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), diferença entre teoria e prática, portanto, não existe palavra sem ação. Aparecia na cena religiosa um catolicismo que pregava a salvação no aqui e agora, pela via da formação política e da consciência crítica. Não era mais apenas o risco de morrer e ir para o inferno, mas de viver sob os mandos de opressores e exploradores da força de trabalho do povo pobre e marginalizado.
Avistamos, a partir de Freire (2019Freire, P. (2019). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), a ideia de um compromisso que exige sempre uma movimentação concreta daquele que vê a desigualdade social, alinhado, agora a partir do carisma católico, com a ideia de que é preciso agir. Essa aproximação nos esclarece, como veremos adiante, sobre um tipo de trabalho nas pastorais católicas que parece refletir na institucionalização das políticas sociais hoje, em especial da assistência social e, mais ainda, na vinculação dos trabalhadores ao ofício.
A Igreja Católica se envolveu com a assistência social brasileira de várias formas e em todos os tempos, fazendo dela um meio de atingir fiéis e de promover caridade e evangelização. No caso da teologia da libertação, um ponto interessante é a entrada de leigos no exercício de evangelização. Tal estratégia tanto promovia a ampliação dos fiéis, objetivo determinado pelo concílio, mas também favorecia o trânsito de outras pessoas que não somente os religiosos nos trabalhos pastorais. Dessa influência surge um tipo de sensibilidade e de concepção do que seria o trabalho social com os grupos vulneráveis que vemos hoje na atuação dos trabalhadores sociais. Maria mostra efeitos da formação religiosa na prática profissional, ficando difícil reconhecer uma profissionalização que não seja circunscrita, também, em crenças e afetos que não passam, apenas, pela racionalização e objetividade da prática.
Um pouco depois dessa época, Maria, ainda morando na comunidade, e depois de brigas políticas com a prefeitura local, foi demitida da escola onde trabalhava. Mobilizada pelas lutas por moradia, decidiu, em 1995, fazer o curso de direito em Belo Horizonte. Chegando na nova cidade, envolveu-se com a população de rua e passou uma semana morando nas ruas da capital mineira. Seu fascínio pelo trabalho rendeu uma contratação pela Pastoral de Rua e a garantia de algum dinheiro para viver naquela nova e desconhecida cidade.
Maria já navegava com entusiasmo por mares propícios à militância, quando descobriu o curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Logo em seguida, nos anos 2000, motivada pelo início dos financiamentos robustos das políticas sociais no país, foi aprovada no concurso público da cidade de Betim, Minas Gerais. Nesse momento, decisivo em sua história profissional, não só precisou confrontar sua histórica militância com a necessidade de institucionalizá-la a partir das linhas duras do estado, como vivenciou a expansão e tentativa de institucionalização da assistência social brasileira tendo como interferência as políticas partidárias municipais.
Terceiro momento: institucionaliza-se uma militância
Maria narra a sua entrada na prefeitura de Betim, no ano de 2002, de uma forma interessante. Junto com a alegria de conquistar um emprego estável e com salário interessante, seu primeiro contato com o trabalho foi ao abrir uma gaveta com documentos sobre 200 famílias em situação de risco para serem acompanhadas e nenhuma metodologia, recurso estrutural e apoio técnico que a pudesse orientar. Se antes atuava a partir do corpo a corpo da militância e fora de ambientes institucionais, estava agora diante de planilhas e formulários que teria que preencher, atualizar e prestar contas.
Deparou-se, também, com o avanço rápido das normativas, orientações e investimentos nas políticas sociais do país a partir de 2004. Mesmo diante dos inúmeros desafios, destacou-se com facilidade entre os outros trabalhadores pelo seu compromisso ininterrupto com o trabalho, colecionou cargos de chefia e o início de um incômodo com o assistencialismo que atravessava o trabalho de todos.
A cidade de Betim, com aproximadamente 440.000 mil habitantes, comporta um parque industrial importante, assim como índices de desigualdade e violência alarmantes. Nesta época, tinha um prefeito que, apesar de pactuar com a expansão das políticas sociais promovendo financiamentos e expansão da equipe técnica, também articulou, a partir da assistência social, um fortalecimento dos seus correligionários e do próprio partido promovendo programas assistencialistas e ações motivadas pelas intenções políticas-partidárias.
Maria lembra que era comum ofertas de cesta-básica sem critérios socioassistenciais, perseguição aos trabalhadores com posições progressistas e filiados aos partidos de oposição, assim como tantas outras formas de uso da máquina pública para promover pessoas e não serviços baseados nas diretrizes e leis. Muitas destas políticas de âmbito municipal eram cofinanciadas pelo governo federal, cuja agenda de governo priorizava acesso a direitos sociais, à cidadania e o combate à fome.
Para Fagnani (2011Fagnani, E. (2011). A política social do governo Lula (2003-2010): perspectiva histórica. SER Social, 13(28), 41-80.), o ano de 2004, primeiro do governo Lula, foi o momento de nos perguntarmos se veríamos mudança ou continuidade, sobretudo quando se pensava no papel do estado. Na política de assistência social, o governo federal propunha, num primeiro momento, o combate à fome através do Programa Fome Zero, principal promessa da campanha eleitoral. O programa oferecia um leque de ações que contemplava diferentes aspectos da segurança alimentar que iam desde a reforma agrária, até a proposta de construção de cisternas e de cozinhas comunitárias.
O Programa Fome Zero deu origem ao Programa Bolsa Família (PBF), que teria sua aceitação e expansão aumentadas pelos próximos anos. O enfrentamento da pobreza e suas consequências no Brasil ganhavam nova face e múltiplas compreensões, colocando em um campo conciliatório a expansão econômica, o crescimento do mercado e o avanço no enfrentamento da desigualdade.
O exemplo da expansão do PBF e as problematizações que o acompanham exemplificam o início de um esforço para transformar a tradição assistencialista em políticas de governo. Maria vivia este momento na efervescência da cidade de Betim: de assistente social com sua gaveta que guardava casos de 200 famílias em situação de fome e violência, passou rapidamente a ser coordenadora do equipamento público que atuava. Em seguida, assumiu uma assessoria técnica da Secretaria de Assistência Social do município, um cargo ainda mais importante. Maria avançava porque os financiamentos cresciam em números e variedades, os serviços e programas chegavam com velocidade impressionante e os cargos se multiplicavam cada vez mais, provocando a necessidade de especialização, principalmente, das profissões de assistente social e psicólogo. Multiplicaram-se os cursos destas respectivas áreas, os currículos universitários foram alterados de forma a acompanhar o novo tempo e os conselhos profissionais começavam a se organizar para estabelecer novas diretrizes e documentos técnicos para orientar a atuação no campo.
Neste contexto de expoente crescimento da pasta, Maria começou a vivenciar os embates entre sua ética profissional e as diversas intenções políticas partidárias que atravessavam a institucionalização da política pública. Vivenciou episódios de adoecimento e uma decepção com o cotidiano de trabalho. Longe de abalar sua sobreimplicação, ao invés de distanciar-se do objeto de sofrimento, no caso o próprio trabalho, reunia energia, como em uma luta ou mesmo na militância, para continuar e fazer valer o que acreditava.
Às vezes em grupo, às vezes individualmente, pouco questionava, nessa época, o excesso de envolvimento e as consequências em sua vida pessoal. Não se sentia no direito de desistir ou recuar do que, para ela, era uma causa. Já no final das entrevistas que realizamos, revelou-me que recentemente havia convivido com a suspeita de um câncer. Acreditava que a doença era fruto da preocupação com o trabalho, as vivências de violência nos casos, a falta de apoio institucional para fazer valer seu esforço.
Nessa encruzilhada subjetiva vivida por Maria e seus colegas, sempre houve terreno fértil para um compromisso que surge de experiências no trabalho, indissociável da trajetória de vida, que parecem aflorar em um cenário institucional pouco ingênuo a essa sensibilidade, com características para promover o fortalecimento dessa militância e, consequentemente, o aumento gradativo de uma sobreimplicação, de um hiperenvolvimento com a prática.
A trajetória de vida dos profissionais afinada com as necessidades do trabalho não nos parece uma coincidência que possa ser banalizada para pensar tanto as conquistas, quanto os fracassos dessa política pública. Com aparatos institucionais precários, na maioria das vezes, sem condições técnicas e metodológicas adequadas, trabalhando em territórios de risco, com baixos salários e, no caso dos contratados, com poucas garantias sobre o seu vínculo empregatício, os trabalhadores lidam com variadas mazelas humanas: diversos tipos de violência contra crianças e adolescentes (sejam elas exercidas pelos próprios cuidadores ou terceiros) e, inclusive, a violência sexual; mortes constantes das pessoas que são acompanhadas pelos programas; situações limites da existência humana (fome, abrigamento, ameaças de morte, situações de abandono e de negligências) nas quais é preciso tomar providências urgentes e nem sempre apoiadas pela instituição; visitas domiciliares em territórios em guerra pelo tráfico de drogas; uma constituição muitas vezes deficitária da rede socioassistencial, que provoca inúmeras dificuldades para realizar encaminhamentos e interlocuções necessárias para o caminhar dos casos; entre tantas outras.
Por essa ótica, parece mesmo ser necessário um trabalhador peculiar para essa política pública. Um que não preze, necessariamente, pela sua vida financeira; que não relacione as dificuldades do trabalho cotidiano com o investimento institucional na sua função de trabalhador; um que, mesmo questionando, do ponto de vista político, seu lugar e sua função, não rompa, ou seja, continue motivado por outras questões que não só o ganho salarial; um que saiba reconsiderar os momentos de tensão e insista na construção do seu trabalho; um que se motive sem, necessariamente, precisar de boas condições de trabalho.
Prades e Rueff-Escoubes (2018Monceau, G. (2017). Enquêter/intervenir?Paris, FR: Champ Social.) apresentam a obra de Gerard Mendel, autor que faz um diálogo entre o marxismo e a psicanálise, e desvela as tensões existentes entre o social e o psíquico que se referem ao lugar que cada classe ocupa na estrutura social, a relação com os meios de produção e os efeitos em suas determinações psíquicas inconscientes. Nessa interação, existem algumas dimensões da relação institucional em que é possível que o político regrida para o plano do psíquico, favorecendo o estabelecimento de soluções para o conflito a partir de suas crenças arcaicas, próprias das dimensões familiares, e abandone o jogo político que sempre vai exigir luta e renúncia (Prades & Rueff-Escoubes, 2018Monceau, G. (2017). Enquêter/intervenir?Paris, FR: Champ Social.).
Segundo Prades e Rueff-Escoubes (2018Monceau, G. (2017). Enquêter/intervenir?Paris, FR: Champ Social.), Mendel pontua que alguns indivíduos, da mesma classe social, não conseguem organizar-se como um grupo reivindicativo, podendo desenvolver sua consciência de classe em uma determinada relação. Filiam-se a grupos que não permitem que o conflito seja debatido em todas as suas dimensões, ou seja, impedem o reconhecimento profundo das condições multilaterais de surgimento e de persistência de alguma diferença.
Diante da omissão dos processos de institucionalização da assistência social, que se revela através de uma contínua precarização da política pública, o trabalhador toma para si o conflito, seja sozinho ou em pequenos grupos, o que aumenta sua motivação em relação ao trabalho, mesmo que tal investimento não seja refratário no plano coletivo. No caso de Betim, especialmente, os movimentos micropolíticos se embaraçavam com as mudanças na cena do país, ofuscando interesses da política partidária municipal diante de um cenário nacional efusivo de apoio às políticas sociais através de financiamentos do governo federal.
Sendo parte desse processo, o trabalhador social sobreimplicado abandona a cena institucional quando não faz dela um lugar primordial da construção de resistências, mas utiliza seu corpo, seus afetos, e sua história individual arcaica para dar conta da tarefa. Se fizesse o contrário, ou seja, coletivizasse o sofrimento, construiria embates dentro dos processos de institucionalização, o que poderia desembocar em uma reflexão genuína sobre a sua implicação com o trabalho. Quando insiste deliberadamente em resolver o que é do nível institucional em sua solidão, o trabalhador adoece sem conseguir nomear o processo psíquico que regrediu para o fisiológico. Sustenta essa disposição uma sobreimplicação que, envolvida de forma peculiar com o trabalho, impede o sujeito de analisar criticamente as forças que atravessam essa relação, como nos lembra Lourau (1990Lourau, R. (2014). A análise institucional (3a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).
Observamos não só em Maria como em todos os outros entrevistados que a vida marcada por instituições ligadas às doutrinas religiosas, sobretudo a católica e sua tradição pastoral, facilita a existência de formas de vinculação que reforçam mais a dimensão pessoal do que, necessariamente, a dialética exterioridade/interioridade, quando se trata de constituir uma relação duradoura com uma instituição. Assim como outras condições de vida exercidas, principalmente, em família, como a experiência da pobreza e da luta pela igualdade, por exemplo, podem propiciar arranjos subjetivos condizentes com a lógica institucional que prevalece na assistência social, aquela em que o direito se confunde com a caridade, o trabalho se confunde com uma causa e a profissionalização se perde na ideia de uma luta política por um ideal.
Curioso observarmos que a maioria dos entrevistados esteve boa parte da vida no trabalho social, pouco ou nada experimentando outros ofícios que não estivessem no contexto das políticas sociais. Quase todos apontavam a realização de mestrado e doutorado como uma forma de aliviar-se dos adoecimentos oriundos da atuação na assistência social, mas viam poucas chances de concretizar este projeto.
As instituições família, igreja e, de forma mais periférica, as lutas progressistas são condições que ‘atravessam’ os processos de subjetivação de Maria de forma a interligar vida e trabalho em uma única temporalidade, o que dificulta a distinção entre suas lutas pessoais da dimensão impossível do trabalho social. Quando os processos institucionais operam por ‘atravessamento’, eles visam à reprodução e são comandados pelo instituído, pelo organizado e pela repetição. Geram a manutenção de modos heterogestivos de exploração, dominação e mistificação. Quando mobilizam por transversalidade, para além das reproduções e na busca de conexões, eles visam à produção e são comandados pelo instituinte e pela inventividade. Nesse movimento, geram modos autoanalíticos, autogestivos e libertários (Baremblitt, 1992Baremblitt, G. (1992). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Rosa dos Tempos.).
Para Baremblitt (1992Baremblitt, G. (1992). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Rosa dos Tempos.), o reconhecimento do trabalho enquanto um modo-indivíduo e não um modo-coletivo, como discute Mendel (1973Mbembe, A. (2019). Necropolítica. São Paulo, SP: n-1 edições.), causando a expressão psicológica dos conflitos da vida social, é um sintoma patológico que aponta a imaturidade em nível político. As forças institucionais que apoiam a regressão do político para o psíquico pretendem manter as formas instituídas, a hierarquia de poder, o controle dos corpos, dos discursos e favorecem o anestesiamento das forças instituintes. Maria, em sua narrativa, problematiza a incompetência do grupo de trabalhadores para promover coletivos duráveis, dialógicos, sem hierarquizações e barreiras que favorecessem a reunião de todos em torno das questões políticas do trabalho. Não tinham sindicatos que os representassem, nunca haviam feito greve.
A subjetividade que se mostra enlaçada com a institucionalização desta política pública é aquela que, como um mártir, não desiste da luta e permanece em defesa de uma causa que diz também de si. Maria estava convivendo com seus próprios adoecimentos e também com o afastamento dos colegas, alguns também adoecidos, outros de licença, outros ainda haviam pedido exoneração ou transferência para a secretaria de saúde. Na crise atual da sua relação com o trabalho, decidiu, por um tempo, sair dos cargos de coordenação e investir no atendimento das famílias, acreditando que assim poderia ser mais útil e, consequentemente, tendo sua militância e realização pessoal alimentadas na rotina dos atendimentos e contato direto com as famílias.
Quando assumiu o seu primeiro caso, essa esperança desapareceu como mágica. Acompanhou uma família em que as duas crianças sofriam abuso sexual por parte do padrasto. Uma morreu em função dos ferimentos internos da relação sexual, a outra quando fugia das investidas do agressor correu para a rua, foi atropelada e também veio a óbito. Maria disse que teve vômitos por vários dias quando assumiu o caso e descobriu, ainda, que não havia registros do acompanhamento na instituição. Enfrentava novamente algo que é comum na política de assistência social: a fragilidade ou inexistência dos recursos que devem apoiar os processos de trabalho e garantir aos profissionais condições plenas de atuar em situações com essa gravidade.
Uma vida, um trabalho
Duas instituições se destacam na trajetória de Maria: num primeiro momento a família e seu investimento na religiosidade da filha, levando-a a projetar uma vida religiosa como freira; e a influência da Igreja Católica e seus movimentos progressistas na construção da sua religiosidade. Mais tarde, essa sensibilidade surge na construção da vinculação de Maria ao trabalho social e na forma como o concebe.
No que diz respeito à sua relação com as instituições, cabe pensar como a Igreja Católica, diante da sua expansão a partir da proposta de movimentos progressistas com a participação dos leigos, forjou em seu bojo um grupo militante que, mais tarde, assim como Maria, pôde estudar e encontrar uma forma de traçar a vida profissional dentro das suas experiências pastorais, utilizando as habilidades que lá construiu e conciliando com suas afinidades afetivas. Doimo (1984Doimo, A. M. (1984). Movimento social urbano, igreja e participação popular. Petrópolis, RJ: Vozes.) faz duas ponderações importantes: a de que a igreja influenciou profundamente, sobretudo a partir das CEBs, a constituição dos movimentos sociais, sejam eles operários, do campo ou das lutas por moradia; e de que não há estudos que mostrem, de forma contundente, os efeitos da influência da igreja no contexto sociopolítico. Silva (2006Silva, C. N. (2006). Igreja católica, assistência social e caridade: aproximações e divergências. Sociologias, 8(15), 326-351.), em um dos poucos estudos que correlacionam carisma católico e assistência social, vai apontar que a ideia de ‘caridade’, reforçada sobretudo pela experiência das CEBs, é definitiva no fazer das lideranças pastorais, grupo leigo da igreja que mantém trabalhos voluntários ou filantrópicos no âmbito das ações da evangelização e da filantropia. Um dos efeitos dessa interlocução seria um moralismo que ainda persiste na leitura das questões sociais (Silva, 2015Silva. M. M. (2015). Assistência social na realidade municipal: o SUAS e a persistência do conservadorismo. Revista Katálysys, 18(1), 41-49.).
Quando a Política Nacional de Assistência Social começou a intensificar a produção de documentos e de normatizações para profissionalizar e para padronizar a atuação dos profissionais nas instituições, Maria se surpreendeu e investiu em um processo de estudo que, até então, era novo em sua trajetória no trabalho social. Não era, apenas, uma questão de entender as normativas e tentar operacionalizá-las diante do desafio da incompletude dos documentos. Era preciso sistematizar sua prática levando em consideração parâmetros instituídos e aos quais teria que responder. Teria que, de forma permanente, conciliar os saberes da prática, intuitivos e militantes, com rigidez e regulamentação trazidas pela política pública a partir de seus documentos.
Em uma ética marcada pela ação dirigida ao outro, cuja natureza se faz pautada na práxis da emergência, da caridade e da doação, alinhada com o assistencialismo fundante do trabalho social no Brasil, Maria, através de sua trajetória, nos revela que o sentido da prática do trabalhador social se faz no contingente de um movimento pendular. De um lado, interesses político-partidários atravessam e precarizam o trabalho, fazendo a política pública estagnar e retroceder. Ao mesmo tempo, o envolvimento individual, e por vezes coletivo, pode vislumbrar crescimentos, construir saberes críticos e possível responsabilidade estatal com o rompimento da desigualdade no país. Capturada nesta esperança equilibrista, a implicação dos trabalhadores se sustenta em uma sobreimplicação que acredita na mudança e em um corpo para a ação, ao mesmo tempo que é atropelada por adoecimentos e decepções.
(In) Conclusões
A análise da trajetória de Maria revela uma sensibilidade para o trabalho social que não é construída, necessariamente, no encontro com o ofício, mas que pode ser mapeada em experiências de vida com a família, com a igreja ou com as lutas políticas do campo progressista.
Através da observação da forma pela qual a trabalhadora se implica com a política pública, sua atuação é marcada pelas características de um sacerdócio, já que independe das condições estruturais, teóricas, metodológicas, financeiras e da legislação trabalhista para que ela se dedique ao máximo. Nesta implicação, há um ponto cego que impede o indivíduo de manter-se no nível do coletivo, fazendo deste lugar um espaço de resistência, de reivindicação e da possibilidade de pensar em sua atuação, para voltar-se para questões arcaicas, individuais e que marcaram sua escolha profissional. Alimentando o modo indivíduo em detrimento do modo coletivo de se relacionar, o trabalhador constrói uma sobreimplicação que se encaixa nas formas de institucionalização da política de assistência social brasileira e contribui para sua precariedade sempre alimentada pelas ações arbitrárias de gestores públicos.
O movimento de institucionalização pendular que captura a subjetividade ‘mártir’ do trabalhador social, ora estabelece um horizonte de possibilidades, de competência e de crescimento ao favorecer a criatividade, a militância e a capacidade de autonomia do grupo; ora se vincula aos interesses da política partidária, ao empobrecer e despotencializar o fazer profissional.
Somente quando os trabalhadores se afastam da execução direta da assistência social é que conseguem pensar sobre a própria implicação e sobre os prejuízos pessoais que o trabalho acarreta. Nas tensões do trabalho, marcadas, principalmente, pela interferência político-partidária e por seus aspectos personalistas na gestão da pasta, os afetos dos trabalhadores são capturados de modo a aumentar a sobreimplicação a favor da militância ostensiva e da precariedade da política.
No entanto, quando se organizam de forma coletiva, conseguem olhar para além das questões individuais e do cotidiano de trabalho, dando lugar a um modo crítico de pensar sobre si e sobre o fazer profissional. O cuidado de si para o trabalhador social, portanto, depende de uma vinculação menos onipotente com o fazer profissional, reconhecendo limites políticos e pessoais na aposta de uma vida profissional menos adoecedora e inventiva.
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O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMG - CAAE: 57346716.7.0000.5137
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Os nomes utilizados no artigo são fictícios.
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Corrente teológica cristã que preconiza a evangelização a partir da opção preferencial pelos pobres e envolvendo o estudo das ciências humanas e sociais.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
08 Ago 2020 -
Aceito
29 Maio 2021