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A PERMANÊNCIA DOS ESTUDANTES INDÍGENAS NA UNIVERSIDADE: O QUE FAZ A PSICOLOGIA?

La permanencia de los estudiantes indígenas en la universidad: ¿lo qué hace la psicología?

RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo conhecer o trabalho realizado por psicólogos visando à permanência dos estudantes indígenas na universidade. Foram entrevistados seis psicólogos que têm ou que tiveram vínculo com universidades públicas localizadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. As entrevistas foram realizadas individualmente pelo Google Meet e seguiram um roteiro previamente estabelecido, foram gravadas e transcritas. Após a transcrição e a leitura das entrevistas, elencamos os seguintes temas para discussão: 1- ações desenvolvidas; 2 - dificuldades e desafios; 3 - estratégias e recomendações. Entre as principais ações desenvolvidas estão a participação dos psicólogos em comissões que visam à permanência dos estudantes na universidade, ações com a comunidade acadêmica, ações específicas com os próprios estudantes indígenas, individuais ou grupais. Entre os desafios do trabalho, estão os relacionados ao vínculo - a formação e o risco de que o vínculo se transforme em um vínculo de dependência -, os desafios da temporalidade e a compreensão do papel da Psicologia. Concluímos que a Psicologia pode contribuir com a permanência dos estudantes indígenas na universidade; para isso, não é necessário abandonar suas teorias, suas técnicas, pois a escuta e a formulação de boas perguntas são recursos fundamentais que devem ser conjugados com outras formas de conhecimento.

Palavras-chave:
permanência estudantil; indígenas; universidade; psicologia

RESUMEN

En la presente investigación se tuvo como objetivo conocer el trabajo realizado por psicólogos visando a la permanencia de los estudiantes indígenas en la universidad. Se entrevistaron seis psicólogos que tienen o que tuvieron vínculo con universidades públicas localizadas en las regiones Sur, Sudeste y Centro-Oeste de Brasil. Las entrevistas se realizaron individualmente, por el Google Meet, siguieron un plan previamente establecido, fueron gravadas y transcritas. Tras la transcripción y la lectura de las entrevistas, listamos los siguientes temas para discusión: 1- acciones desarrolladas; 2 - dificultades y desafíos; 3 - estrategias y recomendaciones. Entre las principales acciones desarrolladas, están la participación de los psicólogos en comisiones que visan a la permanencia de los estudiantes en la universidad, acciones con la comunidad académica, acciones específicas con los propios estudiantes indígenas, individuales o en grupos. Entre los desafíos del trabajo, están los relacionados al vínculo - la formación y el riesgo que el vínculo se transforme en un vínculo de dependencia -, los desafíos de la temporalidad y la comprensión del papel de la Psicología. Concluimos que la Psicología puede contribuir con la permanencia de los estudiantes indígenas en la universidad, para esto, no es necesario abandonar sus teorías, sus técnicas; la escucha y la formulación de buenas preguntas son recursos fundamentales, que deben ser conjugados con otras formas de conocimiento.

Palabras clave:
permanencia del estudiante; indígenas; universidad; psicología

ABSTRACT

The research aimed to understand the work carried out by psychologists in order to guarantee that indigenous students stay at the university. Six psychologists with connections to public universities located in the South, Southeast, and Mid-West regions of Brazil were interviewed. The interviews were carried out individually via Google Meet and followed a previously established script, which was recorded and then transcribed. After transcribing and reading the interviews, we listed the following topics for discussion: 1 - actions developed; 2 - difficulties and challenges; 3 - strategies and recommendations. Among the main actions developed are the psychologists’ participation in committees with the objective to guarantee that students stay at the university, actions with the academic community, and specific actions with indigenous students themselves, whether individual or in group. Thus, the work challenges are those related to bonding - the formation and the risk that the emotional bond becomes a relation of dependence -, the challenges of temporality and understanding the role of Psychology. We conclude that Psychology can contribute to the permanence of indigenous students at universities. To achieve this, it is not necessary to abandon inefficient theories and techniques. Listening and asking good questions are fundamental resources that must be combined with other forms of knowledge.

Keywords:
student permanence; indigenous people; university; psychology

INTRODUÇÃO

A inclusão dos povos indígenas nas universidades brasileiras teve início na década de 1990, a partir de convênios da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) com instituições públicas e privadas, mas não há muitas informações sobre essas ações. A partir dos anos 2000, surgiram iniciativas e experiências mais consistentes voltadas ao ingresso e à permanência de estudantes indígenas no Ensino Superior, tanto na graduação como na pós-graduação, em consonância com a implantação das políticas de cotas nesse âmbito do ensino (Amaral, 2010Amaral, W. R. (2010). As trajetórias dos estudantes indígenas nas universidades estaduais do Paraná: sujeitos e pertencimentos. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. Recuperado de http://www.ppge.ufpr.br/teses%20d2010/d2010_Wagner%20Roberto%20do%20Amaral.pdf
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).

De acordo com Paulino (2008Paulino, M. M. (2008). Povos indígenas e ações afirmativas: o caso do Paraná. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de http://www.redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br/uploads/ufrj_dissertacao_2008_MPaulino.pdf
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), a primeira iniciativa que garantiu as políticas de acesso para indígenas nas universidades públicas foram as licenciaturas interculturais; em 2001, a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat) criou o primeiro curso de licenciatura intercultural de nível superior, seguida pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) em 2003. Conjuntamente, além da demanda por formação de professores nas licenciaturas interculturais, tornou-se pauta do movimento indígena a importância da educação superior para os povos indígenas e, segundo Paulino, a primeira política com corte étnico-racial, no Brasil, foi implementada no estado do Paraná em abril de 2001, pela Lei Estadual nº 13.134, de 18 de abril de 2001, que determinou inicialmente a criação de três novas vagas (e posteriormente seis) em cursos regulares nas universidades estaduais a serem ocupadas exclusivamente por estudantes indígenas . “As estaduais do Paraná foram as primeiras instituições de Ensino Superior público a oferecer vagas para indígenas em cursos regulares, seguidas da UEMS” (Paulino, 2008Paulino, M. M. (2008). Povos indígenas e ações afirmativas: o caso do Paraná. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de http://www.redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br/uploads/ufrj_dissertacao_2008_MPaulino.pdf
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, pp. 30 - 31).

Decorrente da Lei nº 13.134/2001Lei nº 13.134, de 18 de abril de 2001. Reserva 3 (três) vagas para serem disputadas entre os índios integrantes das sociedades indígenas paranaenses, nos vestibulares das universidades estaduais. Diário Oficial, Paraná, BR, nº 5969 de 19 de abril de 2001. Recuperado de https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=4440
https://www.legislacao.pr.gov.br/legisla...
, o Paraná foi o primeiro estado a implementar como política o vestibular específico - Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná - a partir de 2002 (Amaral, 2010Amaral, W. R. (2010). As trajetórias dos estudantes indígenas nas universidades estaduais do Paraná: sujeitos e pertencimentos. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. Recuperado de http://www.ppge.ufpr.br/teses%20d2010/d2010_Wagner%20Roberto%20do%20Amaral.pdf
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). A Universidade de Brasília (UnB) também foi uma das pioneiras a realizar um processo seletivo exclusivo para indígenas, em 2006 (Secom UnB, 2021SECOM UnB. (2021, 19 de abril). UnB completa 59 anos gerando impacto dentro e fora dos ambientes de ensino: Inovadora desde a concepção, instituição mantém princípios de seus criadores na valorização da diversidade e da ciência. UnB Notícias. Recuperado de https://noticias.unb.br/76-institucional/4911-unb-completa-59-anos-gerando-impacto-dentro-e-fora-dos-ambientes-de-ensino
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), e a primeira universidade federal a estabelecer ações afirmativas na forma de vagas suplementares para indígenas, no entanto tal política não foi regida por lei, mas por resolução do próprio Conselho Universitário (Paulino, 2008Paulino, M. M. (2008). Povos indígenas e ações afirmativas: o caso do Paraná. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de http://www.redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br/uploads/ufrj_dissertacao_2008_MPaulino.pdf
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).

Posteriormente, ocorreram avanços significativos com a finalidade de reformular e de aumentar a inclusão dos indígenas na educação, dentre elas, a promulgação da Lei Nacional nº 12.711, de 29 de agosto de 2012Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União, seção 1, p. 1. Recuperado de https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12711-29-agosto-2012-774113-norma-pl.html
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei...
, que definiu que as instituições de Ensino Superior vinculadas ao Ministério da Educação e as Instituições Federais de ensino técnico de nível médio deveriam, obrigatoriamente, reservar vagas para candidatos autodeclarados indígenas. Essa Lei, conhecida como Lei de Cotas, foi uma etapa importante na batalha pelo reconhecimento de direitos e pela equidade de acesso de alunos autodeclarados negros e índios nas universidades federais brasileiras, pois instituiu como caráter obrigatório a adoção de tais políticas, que anteriormente dependiam da iniciativa de cada instituição.

Atualmente, segundo Luciano e Amaral (2021Luciano, G. y Amaral, W. (2021). Povos indígenas e educação superior no Brasil e no Paraná: desafios e perspectivas. Integración y Conocimiento, 10(2), 13-37. Recuperado de: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/integracionyconocimiento/article/view/34069/34532
https://revistas.unc.edu.ar/index.php/in...
), o ingresso dos povos indígenas no Ensino Superior brasileiro já é uma realidade, o número de matrículas nas universidades do país, de acordo com dados do Censo da Educação Superior do Ministério da Educação, teve um crescimento significativo - de 7224 matriculados em 2010, passou para 57706 no ano de 2018 -, no entanto, a questão da permanência dos estudantes indígenas ainda é um grande desafio.

Muitos precisam se deslocar de suas aldeias e encontram dificuldades para sobreviver nos centros urbanos onde estão localizadas as universidades, principalmente os estudantes das universidades privadas que não contam com o apoio de programas públicos de auxílio estudantil. Em geral, a alegria das aprovações nos processos seletivos, por cotas ou mesmo por ampla concorrência, para a maioria um sonho quase impossível, logo se transforma em sofrimento na luta para chegar, permanecer e sair com êxito da universidade. (Luciano & Amaral, 2021Luciano, G. y Amaral, W. (2021). Povos indígenas e educação superior no Brasil e no Paraná: desafios e perspectivas. Integración y Conocimiento, 10(2), 13-37. Recuperado de: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/integracionyconocimiento/article/view/34069/34532
https://revistas.unc.edu.ar/index.php/in...
, p. 27).

A dificuldade para chegar, permanecer e concluir um curso superior não se reduz às questões materiais, ela é causada também por uma série de outras situações que produzem sofrimento, tais como: a referência da escolarização básica para a sua formação acadêmica; os limites do acompanhamento institucional pelas universidades; as experiências de interculturalidade vivenciadas no ambiente acadêmico e o sentimento de estrangeirismo na universidade (Amaral & Baibich-Faria, 2012Amaral, W. R., & Baibich-Faria, T. M. (2012). A presença dos estudantes indígenas nas universidades estaduais do Paraná: trajetórias e pertencimentos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 93(235),818-835. Recuperado de https://www.scielo.br/j/rbeped/a/F8qWHQJMzZtZL4VRYqq9Dnq/?lang=pt&format=pdf
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). Além disso, há a produção de um estereótipo indígena pelos colegas não indígenas; a vivência do preconceito social e institucional; o relacionamento com colegas e professores não indígenas; o desempenho no curso e as dificuldades na aprendizagem, que recaem sobre o indivíduo e não na instituição, produzindo sentimento de culpa e ansiedade (Hur, Couto, & Nascimento, 2018Hur, D. U., Couto, M. L. B. S., & Nascimento, J. S. (2018). Estudantes indígenas na Universidade: uma sessão de grupo operativo.Vínculo,15(2), 99-119. https://doi.org/75d323ad165443c59fb-33b1
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).

Essas adversidades, e outras ainda que poderiam ser elencadas aqui, interferem significativamente na permanência do estudante indígena no ambiente acadêmico e são questões que podem e devem ser objetos de intervenção e reflexão da Psicologia. Cientes da atuação de psicólogos na assistência estudantil e no acompanhamento das políticas de inclusão e permanência de estudantes indígenas na universidade, definimos como objetivo para a presente pesquisa conhecer o trabalho realizado por psicólogos nas universidades junto aos estudantes indígenas, suas dificuldades, desafios, estratégias e recomendações.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, com realização de entrevistas semiestruturadas via plataforma Google Meet. Os participantes da pesquisa foram selecionados utilizando-se o critério da conveniência.

Participantes

Participaram da pesquisa seis psicólogos, quatro mulheres e dois homens, com tempo de formação que variava entre dois e vinte e quatro anos no momento da entrevista. Três dentre eles possuem vínculo de trabalho com a universidade como psicólogos e estão envolvidos em comissões de apoio à permanência dos estudantes indígenas na universidade em que trabalham, um possui vínculo de pós-graduação em andamento e os outros dois tiveram vínculos de pós-graduação e desenvolveram pesquisas e/ou atividades acadêmicas referentes ao tema. Entre os seis participantes, três relataram que tiveram contato (por meio de disciplinas, eventos, projetos) com a temática “povos indígenas” durante a graduação, e três declararam que não tiveram.

As universidades em que os entrevistados exercem ou exerceram suas atividades são universidades públicas, localizadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. O critério para seleção dos participantes foi ter graduação em Psicologia e desenvolver ou ter desenvolvido ações com estudantes indígenas em universidades públicas brasileiras.

Procedimentos

A pesquisa teve aprovação pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, protocolo n. 4594317. Os participantes foram contatados via e-mail e, a partir do aceite, foi enviado, também por e-mail, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas semiestruturadas seguiram um roteiro com questões referentes à formação do profissional, ao contato com a temática “povos indígenas” na graduação e pós-graduação, às atividades realizadas envolvendo os estudantes indígenas na universidade, às dificuldades no trabalho e às estratégias encontradas para superá-las, às recomendações e contribuições da Psicologia para a permanência dos estudantes indígenas na universidade. Inicialmente, foi realizada uma entrevista piloto com um psicólogo que se enquadra no critério de seleção, com a finalidade de testar o roteiro de perguntas.

O contato inicial com os participantes foi feito por e-mail e se deu a partir do conhecimento prévio das pesquisadoras acerca do trabalho desenvolvido pelo psicólogo com os estudantes indígenas na universidade ou pela indicação de algum outro profissional. A intenção inicial era entrevistar psicólogos de todas as regiões do Brasil e utilizar a amostragem por bola-de-neve, na qual um primeiro entrevistado indica um segundo e, assim, sucessivamente, mas isso não foi possível, pois os psicólogos (com exceção da entrevista piloto e do último entrevistado) não indicaram ninguém que se enquadrasse nos critérios para realização da pesquisa. A partir da nossa rede de contatos, não identificamos ou não obtivemos o aceite de profissionais para serem entrevistados das regiões Norte e Nordeste, justamente as duas regiões com a maior população indígena do Brasil.

As entrevistas foram gravadas e realizadas individualmente, via plataforma Google Meet, em horários agendados, conforme a disponibilidade de cada participante. No início da entrevista, cada entrevistado declarou ter lido e estar de acordo com o TCLE. Após a realização das entrevistas, elas foram transcritas. Finalizadas as leituras e a discussão das transcrições, foram elencados os temas que se destacaram em relação ao objetivo proposto para pesquisa: 1 - ações desenvolvidas; 2 - dificuldades e desafios; 3 - estratégias e recomendações. A discussão dos dados teve caráter descritivo, buscou apresentar as contribuições das pessoas entrevistadas em suas ações e reflexões, assim como estabelecer algumas relações com a escassa literatura a respeito da temática.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

1 - Ações desenvolvidas junto aos estudantes indígenas na universidade

Nesta categoria, buscamos apresentar as ações desenvolvidas pelos psicólogos no trabalho com os estudantes indígenas. Todos os nomes dos profissionais citados ao longo do texto são fictícios, para preservar o anonimato dos participantes.

Luciana atua em um setor que faz atendimentos à comunidade interna da universidade, articulando ações de assistência estudantil juntamente à comissão que acompanha os estudantes indígenas. A psicóloga realiza atendimentos individuais, em grupo e rodas de conversa com esses alunos.

Sobre um grupo realizado com os estudantes indígenas, Luciana conta que em 2017 funcionou bem, mas em 2018 os alunos não aderiram à proposta e a relação da profissional com os estudantes foi restrita a atendimentos individuais. Em 2019, ocorreu a proposta de retomar o grupo em conjunto com outro psicólogo, no entanto como os encontros já não estavam acontecendo de uma forma contínua como no primeiro ano, a profissional percebeu que não estava tendo demanda. Em 2020, devido à pandemia de Covid-19, o setor em que trabalha começou a ofertar rodas de conversa na modalidade on-line para todos os alunos da universidade, e os estudantes indígenas também participaram, o que fez que os encontros se tornassem semanais a pedido dos participantes.

As rodas de conversa com estudantes indígenas e não indígenas organizadas por Luciana, tiveram encontros com e sem temas pré-estabelecidos. Em dias sem temas específicos, a psicóloga abria espaço para que os estudantes pudessem falar sobre suas vivências e experiências, a fim de observar quais temáticas mais apareciam. Em alguns momentos, ela propôs determinados temas a serem discutidos, pois percebeu que existiam muitos relatos sobre questões relacionadas às situações culturais específicas, ao racismo, à desigualdade e ao gênero.

Os participantes se interessaram pelos temas e foram realizadas rodas de conversa com algumas temáticas, como: as trajetórias e vivências indígenas; as trajetórias e vivências dos estudantes negros; o machismo e a misoginia; o desafio que é ser mulher, principalmente ser mulher na universidade e, ainda, ser mulher na universidade e ter filhos; questões de gênero e orientação sexual, dentre outras. A psicóloga pontuou que sempre tentava abordar os temas também no contexto indígena, para que os estudantes pudessem relatar como eram para eles essas questões, e que eles se sentiam confortáveis em compartilhá-las diante dos estudantes não indígenas. Por conta das aulas remotas e das dificuldades de alguns estudantes, principalmente dos indígenas, em acompanhar o ensino à distância durante a pandemia - seja por falta de estrutura, de internet ou por outros motivos - a frequência da participação nas rodas de conversa diminuiu.

A não adesão ou a continuidade de atividades em grupos, com objetivo de acolhimento dos estudantes indígenas na universidade, também foram relatadas no artigo de Hur, Couto e Nascimento (2018Hur, D. U., Couto, M. L. B. S., & Nascimento, J. S. (2018). Estudantes indígenas na Universidade: uma sessão de grupo operativo.Vínculo,15(2), 99-119. https://doi.org/75d323ad165443c59fb-33b1
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), que apresentou uma sessão de grupo operativo realizada com estudantes indígenas na UFGO, sendo que a proposta inicial seria a realização de cinco sessões. Segundo os autores, houve pouco interesse em participar do grupo, e os quatro estudantes presentes na primeira sessão não demostraram intenção de continuar as atividades.

Mariana também é uma das profissionais que tem vínculo com a universidade, trabalha como psicóloga na área educacional vinculada às pró-reitorias de assistência estudantil. Assim como Luciana, Mariana também realiza atendimentos individuais com os estudantes indígenas, mas salientou que o seu lugar enquanto psicóloga educacional é de buscar soluções coletivas:

Eu posso atender, isso faz parte do trabalho, mas eu não posso ficar só atendendo ali individualmente, ouvindo os problemas e não fazer nada, né. Então diante das demandas que a gente tem recebido na instituição, o papel é articular, é montar grupo… Pressionar a instituição em diferentes instâncias (Mariana).

Em busca de soluções coletivas, Mariana desenvolveu um grupo de trabalho com profissionais da assistência estudantil para pensar a permanência dos estudantes indígenas na universidade. O objetivo do grupo foi mostrar que toda a instituição está envolvida com a permanência desses alunos. O grupo rendeu relatórios propondo programas de permanência para a chefia da instituição. Além disso, a psicóloga também orientou um curso de capacitação, com a participação dos estudantes indígenas, para os trabalhadores da universidade.

Outro profissional que possui vínculo com a universidade é o psicólogo Paulo, que também atua no setor de assuntos estudantis. O psicólogo considera que desempenha um papel de mediação ao fazer parte da construção das políticas afirmativas, uma vez que tem contato com os estudantes indígenas e, ao mesmo tempo, contribui diretamente com o olhar da Psicologia. Paulo também realiza orientação acadêmica aos estudantes e, nesse caso, acredita ter um papel de orientador e tradutor: “é como se eu tivesse uma função de tradutor da linguagem acadêmica, da burocracia acadêmica, então eles me demandam, me perguntam “Como que é isso? Como que é aquilo? Quem eu procuro?”. Paulo também faz orientação profissional, pois a mudança de curso é uma demanda recorrente:

Eles vêm com uma visão do curso e, muitas vezes, não é o que eles gostariam... Por várias influências, desde a influência de que não foi uma decisão individual, foi uma decisão coletiva - muitas vezes da aldeia - uma influência de outros pontos, enfim… Uma não compreensão do que é o curso, tem várias questões, então isso ocorre (Paulo).

Já Gustavo, que é membro de um projeto que atua junto a pessoas e comunidades indígenas e cursa pós-graduação, realiza atendimento psicoterapêutico a uma pessoa indígena. Sobre o atendimento, Gustavo relatou que não sente tanta diferença entre atender uma pessoa indígena e uma não indígena, e elencou que um dos motivos pode ser por ter participado de projetos com pessoas indígenas durante quase toda sua graduação.

Fernanda e Marta desenvolveram atividades com os estudantes indígenas no decorrer da pós-graduação já concluída. Durante a pós-graduação, Fernanda atuou em um setor de serviços para a comunidade interna universitária, fazendo atendimentos psicológicos de diversas demandas, tanto pessoais quanto acadêmicas, que necessitavam de acolhimento e escuta. Ela contou que “realizava atendimentos individuais, porque no primeiro momento, essa era a demanda [da instituição]”, visto que havia uma grande dificuldade de aceitação para os atendimentos em grupo, pois “existia ali uma cultura institucional que demandava os atendimentos individuais”.

Entretanto, aos poucos, Fernanda conseguiu fazer com que a instituição aceitasse que as atividades grupais eram muito potentes para o fortalecimento das demandas comuns e o reconhecimento dos processos, e que facilitavam a busca de soluções e estratégias. Com isso, ela conseguiu organizar grupos para também trabalhar as demandas pessoais e acadêmicas dos estudantes indígenas de forma coletiva. Além disso, ela também ministrou palestras para os professores e os coordenadores de curso “que não estavam preparados e, muitas vezes, não estavam dispostos a se preparar para receber o estudante indígena” (Fernanda). Nas palestras, a psicóloga abordava a importância de considerar a diversidade dentro da sala de aula e de não se pensar em um ensino único e tradicional.

Semelhante à Fernanda, Marta também participou de grupos de discussão com acadêmicos indígenas durante sua pós-graduação. Na universidade em que realizou sua pesquisa, apenas uma pedagoga auxiliava os estudantes indígenas, tanto na recepção quanto ao longo do curso; entretanto, existia um centro que os próprios indígenas criaram, onde eles tinham autonomia e uma condição horizontalizada de ajuda mútua.

Sobre as ações desenvolvidas, é importante destacar o envolvimento dos profissionais que possuem vínculo com a universidade na articulação de políticas de permanência e de ações afirmativas estudantis, atuação que deve envolver a comunidade acadêmica como um todo. Sobre as ações específicas com os estudantes indígenas, estas têm sido individuais (seja para atendimento psicológico, uma orientação pontual ou profissional) ou grupais. As discussões em grupo e rodas de conversa se aproximam mais de modos de convivência dos povos indígenas, como relatou Luciana. Além disso, destacamos o papel de “tradutor”, na fala de Paulo, da linguagem acadêmica para uma linguagem acessível ao estudante indígena, de “mediador” entre o mundo acadêmico e o indígena.

2 - Dificuldades e desafios no trabalho com os estudantes indígenas na universidade

Entre as principais dificuldades e desafios elencados pelos profissionais estão: a construção de uma relação terapêutica que faça sentido para os estudantes indígenas, os desafios da temporalidade, a compreensão do papel da Psicologia por parte dos estudantes indígenas e o risco de construir um vínculo de dependência. Além disso, também foram citadas dificuldades referentes à própria estrutura da universidade.

Sobre a construção da relação terapêutica, Luciana se questiona:

[...] Como fazer essa terapia fazer sentido? Ou de que jeito nós vamos fazer essa terapia? Porque me parece que, no atendimento individual, não é um… Pelo menos a longo prazo [...] É do momento, é mais momentâneo assim, é mais situacional. Eu estou com uma situação, eu estou me afligindo, eu quero conversar, aí vai lá e conversa com essa situação, e daí depois para de vir. Pode ser que seja assim e pode ser que seja o suficiente e que funcione, mas eu sempre fico com receio de que “e se ela precisava de mais?” Ou “se ele precisava de mais e eu que não consegui entender o que precisava?” Esse é o desafio que eu sinto assim, até hoje (Luciana).

Nessa fala, Luciana expõe ainda, que há também um desafio relativo à temporalidade no atendimento dos estudantes indígenas, para ela essa dificuldade está relacionada ao contexto do “tempo” na visão ocidental. Ela complementa dizendo que:

Os estudantes indígenas e as estudantes indígenas são prioridades do nosso trabalho, mas pode ser que a gente não tenha conseguido atender no sentido de que ele não tenha dado continuidade [...] Aquele desafio que é da psico, às vezes, eu sinto essa dificuldade porque é outro time [...] Eu acho que a gente, a todo tempo, tem que descobrir esse tempo, que o indígena precisa do apoio psicológico, mas que é um tempo e uma forma diferente do que a gente tá acostumado e tem prescrito nas terapias ocidentais (Luciana).

Paulo também trouxe essa dificuldade ao retratar sobre o obstáculo do “horário marcado”:

Quando eles chegam, o tempo é tranquilo ‘olha, terminou, na semana que vem a gente volta a conversar’, isso é mais tranquilo, mas a hora de chegada, o horário marcado, ‘ah, às duas da tarde na terça-feira você vem na minha sala e a gente conversa’, isso é um desafio maior (Paulo).

Em relação à temporalidade, Rejane Nunes Carvalho, psicóloga Kaingang, apresenta importantes reflexões. Para ela, o adoecimento dos indígenas na universidade está relacionado à existência de um “fuso horário” pelo qual os estudantes precisam se guiar mesmo sem estarem acostumados, que ela chama de “ditadura do relógio”. Ela conta que, em sua casa, não tinha relógio, que seu avô constatava o horário pelo sol e pela sombra, e que os indígenas habitam outra temporalidade, “comemos e dormimos quando temos vontade” (Carvalho, 2020Carvalho, R. N. (2020). Kanhgang êg my há: para uma psicologia Kaingang. (Trabalho de conclusão de curso). Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil. Recuperado de https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/212727/001116972.pdf?sequence=1&isAllow
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, p. 27). Ao entrar na universidade, os estudantes indígenas precisam se adequar a ela e à sua carga horária, sendo “obrigados a viver a vida do fóg, falar, escrever e se comportar como tal” (Carvalho, 2020Carvalho, R. N. (2020). Kanhgang êg my há: para uma psicologia Kaingang. (Trabalho de conclusão de curso). Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil. Recuperado de https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/212727/001116972.pdf?sequence=1&isAllow
https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1...
, p. 27). No mesmo sentido que Carvalho (2020Carvalho, R. N. (2020). Kanhgang êg my há: para uma psicologia Kaingang. (Trabalho de conclusão de curso). Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil. Recuperado de https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/212727/001116972.pdf?sequence=1&isAllow
https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1...
), Angelin, Zoltowski e Teixeira (2017Angelin, A. P., Zoltowski, A. P., & Teixeira, M. A. P. (2017) A construção do projeto de vida e carreira em estudantes indígenas: um estudo exploratório. Psicologia & Sociedade, 29,1-10. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29161330
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v2...
, p. 4) escrevem:

Enquanto o ambiente acadêmico trata a “rotinização” do tempo como a forma mais adequada de organização dos estudos e tarefas, os estudantes indígenas em geral percebem a temporalidade de forma cíclica, não sendo algo que constantemente lhes escapa e que necessita, portanto, de planejamento.

Luciana fez um outro apontamento, de que a periodicidade do atendimento psicológico individual não faz muito sentido para os estudantes indígenas, dificultando a construção da relação terapêutica.

Eu estou vivenciando isso neste exato momento, eu estava fazendo um atendimento, com uma estudante indígena, que não está bem… E ela estava vindo nos atendimentos on-line e… Ela sumiu. Então, assim, cortou a conexão. Eu sei que acontece isso com não indígena também, mas o que eu tenho aprendido é que para as pessoas indígenas isso tem a ver também com o fato de que não faz muito sentido ficar muito tempo em um atendimento individual, não tem me parecido… (Luciana).

Já Fernanda apresentou como dificuldade a compreensão do papel da Psicologia. “Primeiro tem o entendimento do que é Psicologia, às vezes, tem muitas representações sociais da Psicologia, então, assim, por que eu preciso procurar uma psicóloga?” (Fernanda). Como consequência, a psicóloga relatou que havia “um misto às vezes de resistência, vergonha (...), desconfiança” (Fernanda). Sobre a compreensão do que faz o psicólogo, Paulo nos diz:

Eu fiquei muito pensando se há projeção do pajé ou qual seria o papel do psicólogo na cosmovisão daquela etnia, né, o que que eu estava representando enquanto aspecto transferencial, né, e aí precisamos entender: o pajé, ele aconselha? Ele diz isso e faz isso? Ele orienta assim? Então, muitas vezes, eu me senti colocado um pouco nessa posição e ok, eu acho que é, pensando psicanaliticamente, é você assumir a transferência, ver como ela vai se dar e trabalhar a partir dela, mas ficou sempre essa dúvida: dentro da dimensão cultural, qual figura que eu estou exercendo, é a figura da cura? Se é a figura da cura, não é psicólogo, é uma outra figura, e como que maneja naquela etnia? É mais ou menos o que eles esperam? (Paulo).

Voltando à questão do vínculo, se em um primeiro momento, podemos pensar na dificuldade do estabelecimento de uma relação terapêutica que faça sentido para o estudante indígena, superada, ao menos parcialmente, essa dificuldade, devemos pensar no risco da construção de um vínculo de dependência. Esta é uma preocupação de Paulo: “por estar no ambiente naturalmente diferente, diverso, muitas vezes sozinhos e tal, eles têm uma tendência, tiveram alguns, a se vincular de uma forma mais dependente. E aí eu acho que esse é um desafio”. Gustavo também trouxe essa questão ao relatar que, na “Psicologia, é muito difícil de traçar implicação e reserva, onde começa um e termina o outro”. No mesmo sentido, Mariana se depara com o impasse de perceber o seu limite enquanto profissional, pois sente a necessidade de suprir os espaços que faltam:

Eu tenho dificuldade de entender qual é o momento de não propor nada, de me ausentar, de sair [...] Então, às vezes, quando vêm as próprias demandas dos estudantes indígenas, se precisar, eu vou no sábado, eu dou um jeito. E, às vezes, eu vejo que… até pensando do ponto de vista psicológico, é importante dar espaço para demanda, sair um pouco de cena, deixar… Aprender a... Qual que é o meu limite? Qual que é o lugar do outro? De não… Também não ocupar tanto assim o espaço, deixar espaço para outras pessoas, especialmente para os próprios estudantes indígenas (Mariana).

Sobre a questão da implicação e da reserva citada por Gustavo, de acordo com Figueiredo (2007Figueiredo, L.C., & Coelho Jr., N. (2000). Ética e técnica em psicanálise. São Paulo: Escuta.), uma ideia geral do cuidado é o que o cuidador faz como presença implicada (acolher, reconhecer e interpelar) e como presença reservada (dar tempo e espaço, esperar), e que o excesso de implicação ou de reserva não é viável. Diante do excesso de implicação, o sujeito passa a se sentir reduzido e, no caso da reserva, instala-se uma dependência diante da atenção e da aprovação alheia, um estado de alienação. Dessa forma, a condução de uma análise requer do analista a capacidade de se manter, ao mesmo tempo, como presença implicada e presença reservada (Figueiredo & Coelho Jr., 2000Figueiredo, L.C., & Coelho Jr., N. (2000). Ética e técnica em psicanálise. São Paulo: Escuta.), sendo necessário um equilíbrio dinâmico entre essas formas de presença. Mesmo que os autores citados se refiram à clínica psicanalítica, ao falar do cuidado e da presença implicada e reservada, suas ideias também nos ajudam a pensar nas questões levantadas pelos entrevistados em que também se faz necessário lidar com a implicação e reserva.

Finalmente, no que tange às dificuldades referentes à própria universidade, não menos importante, Mariana pontuou duas dificuldades principais: a estrutura da instituição e a necessidade do reconhecimento da desigualdade estrutural pelas pessoas que trabalham na instituição. A psicóloga fez uma reflexão sobre a estrutura das universidades, pois apesar de muitas terem políticas de acesso, há algumas regras ou diretrizes que dificultam o processo:

Quando essas pessoas entram pelas políticas de ações afirmativas, elas se deparam com uma instituição que não as quer na prática. A gente diz que quer e tal, mas assim, a pessoa chega, vai no edital e tem um item dizendo que ela não pode se inscrever, ou chega e não tem moradia, não tem bolsa… (Mariana).

A fala da Mariana denota um ponto importante: por mais que existam políticas de acesso, a estrutura das universidades ainda está pautada na intenção de que as populações consideradas como minorias não permaneçam na instituição, ou seja, o discurso não condiz com a prática. Isso pode ser explicado pelo fato de que as instituições de Ensino Superior são produzidas historicamente sem pensar nas populações indígenas, negras e pobres. Logo, quando essas pessoas entram pelas políticas de ação afirmativa, elas se deparam com uma instituição que não as aceita verdadeiramente. Para complementar, Mariana citou uma analogia feita por um estudante indígena:

‘Não estou me sentindo em casa, parece que eu cheguei na universidade’... A pessoa fez um exemplo como se ela tivesse sido convidada para entrar e, quando entrou, não tinha anfitrião, ninguém explicou se podia sentar no sofá, se podia abrir a geladeira, só convidaram para entrar [...] ‘é, parece que eu fui convidado a entrar, mas não tem ninguém para me receber lá dentro e eu não sei o que que é para eu fazer aqui dentro’ (Mariana).

Para Krenak (2019Krenak, A. (2019). A presença indígena na universidade. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, 1(1),9-16, Recuperado de: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/maloca/article/view/13194
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
), a universidade reproduz o pensamento racista, preconceituoso, discriminatório e classificatório que há em nossa sociedade brasileira, os “organismos estranhos vão também sofrer um período de, digamos, adaptação ao meio, porque não são daqui, mas estão se inserindo nesse contexto” (p. 13). O líder indígena complementa ressaltando:

Mais do que pensar a presença dos índios na universidade, tomara que a presença de algumas pessoas desses povos originários possa implicar com os ambientes das universidades no Brasil, ao ponto de a ideia de universidade ser transformada por um pensamento crítico, acerca do que essa instituição privilegiada da sociedade ocidental elege como um lugar do pensamento culto, das ideias complexas e do planejamento que é devolvido, depois, para a sociedade como uma espécie de norma para a boa existência de uma comunidade civilizada, contemporânea e que reproduz o sistema capitalista do mundo do trabalho. (Krenak, 2019Krenak, A. (2019). A presença indígena na universidade. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, 1(1),9-16, Recuperado de: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/maloca/article/view/13194
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
, p. 14).

3 - Estratégias e recomendações para trabalho com estudantes indígenas na universidade

Os psicólogos entrevistados, além de exporem as dificuldades e os desafios que enfrentam no trabalho com os estudantes indígenas, também apresentaram as estratégias que utilizam para superar as dificuldades, os desafios e recomendações para aqueles que estão enfrentando as mesmas questões.

No que diz respeito à construção do vínculo e à compreensão do papel da Psicologia pelos estudantes indígenas, Fernanda conta que, antes de propor qualquer ação específica, passou a frequentar os mesmos espaços que os estudantes indígenas para que ambos pudessem se conhecer.

Então tinha dias que eu ficava lá no espaço, para as pessoas me verem, me conhecerem, sem fazer atendimento. Eu ia para lá, tentava ver o que eles estavam fazendo, conversar um pouco, saber da rotina, me apresentar, me tornar uma figura ali conhecida. Então essa foi uma grande estratégia, assim, de ir aos poucos e não tentar colocar nada na frente da relação. Precisava primeiro acontecer esse lugar da experiência, de olhar e falar ‘nossa, parece que é uma pessoa que está por aqui mesmo, será que eu posso confiar? Acho que posso, então vou marcar uma sessão?’. Às vezes, as pessoas, depois de me verem muitas vezes, falavam ‘ah, vamos marcar um atendimento’, ‘ah, vou participar do grupo’ (Fernanda).

Fernanda acrescentou que o fato de ter ido conhecer uma comunidade indígena fez toda a diferença para a construção do vínculo, pois possibilitou que os indígenas a enxergassem como uma pessoa que leva os seus conhecimentos, mas que também busca conhecer os deles. Embora fundamental para construção do vínculo o conhecer e ser conhecida, também é necessário, segundo Fernanda, ter o entendimento de quais são as demandas dos estudantes indígenas para, a partir daí, construir soluções e estratégias juntos.

Mariana também ressaltou a importância de conhecer a cultura dos estudantes indígenas, pois “quando você está ali na sua prática e você se dá conta de uma realidade que você não conhece, o mínimo que você tem que fazer é buscar elementos para conhecer”.

Para Luciana, é fundamental compreender o sentido que o sujeito dá para o que ele vive, conhecendo como os estudantes indígenas conseguem aprender as coisas, tanto no campo intelectual quanto no campo emocional, como eles conseguem elaborar os problemas, as dificuldades e as angústias, “[...] quando se entristece, o que que é essa tristeza para essas populações? A relação com o marido, a relação familiar com o filho, podemos ver do mesmo jeito?”.

No mesmo sentido das falas anteriores, Marta acrescenta que conhecer a lógica do outro e o seu mundo simbólico, possibilita “a gente não ficar jogando e projetando a nossa forma de ver o mundo no outro”. Para conhecer a lógica do outro, a escuta é fundamental: “sempre é o outro que vai dar as dicas (...) não é a Psicologia que vai ter um protocolo a priori pra aplicar” (Marta). Para Mariana, o conhecimento vem pela capacidade de ouvir “aquele outro que está ali me dizendo uma coisa que eu não entendo, inclusive, às vezes, ouvir na língua dele”.

Paulo, por sua vez, fala da importância do desenvolvimento de uma sensibilidade cultural e histórica e citou como exemplo a seguinte situação:

Nós tínhamos um estudante de uma etnia que foi quase dizimada nos anos 1960, e só sobraram 60 indígenas, e ele veio para cá, e ele tinha uma narrativa persecutória. Ele tinha uma narrativa muito de que o homem branco era ameaçador, que destruía e tal, então, à medida que eu fui entender a história da etnia dele, que eu fui entender aquele comportamento, porque ele se comportava de forma tão agressiva, muitas vezes tão hostil, o que significava, e talvez o significado estava na história da própria etnia, do que as narrativas e tal, era muito difícil o trato com ele, ele sempre se colocava em posição persecutória , então acho que isso, essa sensibilidade cultural eu acho que é fundamental (Paulo).

Outra questão levantada por Paulo é sobre a necessidade de repensar o setting no atendimento ao estudante indígena, sobre isso, ele diz:

Muitas vezes, eu acho a necessidade de criar uma clínica peripatética, que é uma clínica fora do setting, atendimentos que se dão caminhando pelo espaço da universidade, apresentando para eles o espaço da universidade. Ela não se dá fechadinha dentro de uma sala, ela se dá em um outro espaço de vivência integrativa que eu acho que, talvez, para os estudantes indígenas, possa fazer mais sentido do que o ‘face a face’ (Paulo).

A clínica peripatética citada por Paulo recebe diferentes denominações na literatura. Entre essas diferentes denominações, Lemke e Silva (2011Lemke, R. A.; Silva, R. A. N. (2011). Um estudo sobre a itinerância como estratégia de cuidado no contexto das políticas públicas de saúde no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 21(3), 979-1004. https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000300012
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201100...
) encontraram a proposta por Rolnik (1997Rolnik, S. (1997). Clínica Nômade. In Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia A Casa(Ed.),Crise e cidade: acompanhamento terapêutico(pp. 83-87). São Paulo: Educ.), que utilizou o termo “clínica nômade” para apresentar uma clínica que se dá “fora” das regras determinadas, ultrapassando os territórios conhecidos; a de Lancetti (2006Lancetti, A. (2006). Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec), que empregou o termo “práxis peripatética” para designar as diversas experiências que se dão peripateticamente, ou seja, em movimento, e a de Araújo (2006Araújo, F. (2006). Um passeio esquizo pelo acompanhamento terapêutico: dos especialismos à política de amizade. Niterói: Fábio Araújo.), que fez uso do termo para sinalizar um modo de cuidado que se dá sem local fixo, durante passeios, por exemplo. O que essas propostas têm em comum é sua natureza itinerante, sem um setting clínico fixo, que pode ocorrer fora dos consultórios e das instituições, elas podem ser pensadas como caminhos para que a construção de uma relação terapêutica faça sentido para os estudantes indígenas e para lidar com temporalidades diversas (Lemke & Silva, 2011Lemke, R. A.; Silva, R. A. N. (2011). Um estudo sobre a itinerância como estratégia de cuidado no contexto das políticas públicas de saúde no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 21(3), 979-1004. https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000300012
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).

No que diz respeito às recomendações, Mariana afirma que a Psicologia pode contribuir com a sua condição de fazer boas perguntas, pois, às vezes, não é preciso respostas, mas sim questionamentos, como: “Será? Mas é isso mesmo? Por quê? Desde quando? É só com ele? Quem mais?’. Essas perguntinhas básicas da Psicologia Escolar e Educacional que já estão no arcabouço da nossa área” (Mariana). Além disso, a Psicologia não pode ler só Psicologia, tem que ler outras disciplinas, outros autores, de outras áreas, como a Antropologia e a Sociologia, sobretudo os antropólogos “que são aqueles que trabalharam primeiro”, como destaca Marta. A leitura de autores indígenas, como Gersem Luciano Baniwa, Rita Potyguara, Davi Kopenawa e Ailton Krenak, também é fundamental e é reforçada por Mariana e Gustavo. Resumindo, fazer boas perguntas e criar pontes entre a Psicologia e outras formas de conhecimento é uma tarefa que se impõe.

Sobre a estrutura da própria universidade, Mariana diz que é necessário que a universidade seja reconhecida como uma instituição racista e desigual. Frente a isto, a forma que Mariana encontrou para lidar com a questão é sempre introduzir nas discussões os aspectos institucionais e legais da inclusão e permanência dos estudantes indígenas na universidade. Ela também disse que percebeu a importância de trabalhar coletivamente, de formar redes e de encontrar pessoas que também estão comprometidas com a questão, para se apoiarem e fortalecer a luta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da pesquisa foi conhecer o trabalho realizado por psicólogos nas universidades junto aos estudantes indígenas, suas dificuldades, desafios, estratégias e recomendações. Sobre as ações desenvolvidas pelos profissionais, destacamos a participação em comissões que visam à permanência dos estudantes na universidade, ações com a comunidade acadêmica e com os próprios estudantes indígenas. No que diz respeito a esta última, os psicólogos se questionaram a respeito da efetividade de suas intervenções. O grupo que não tem continuidade, o estudante que não volta para o atendimento, o que essas situações significam? A demanda já foi resolvida ou nem conseguiu se expressar? Frente a situações como essas, pode-se pensar que o estudante não compreende o que faz o psicólogo, se foi possível a construção de um vínculo terapêutico nas diferentes temporalidades e como uma das estratégias para lidar com essas questões pode ser repensar os espaços delimitados pré-estabelecidos e horários rígidos.

Seguindo nos questionamentos, podemos perguntar qual seria o papel do psicólogo e quais seriam as contribuições da Psicologia na inclusão e na permanência dos estudantes indígenas na universidade? Certamente, o psicólogo pode exercer um papel fundamental no acolhimento e na escuta das pessoas indígenas, contribuir na formulação de boas perguntas como propôs Mariana - “Será? Por quê? Desde quando? É só com ele?” -, além de desempenhar a função de “tradutor” da linguagem acadêmica para uma linguagem acessível ao estudante indígena, de “mediador” entre o mundo acadêmico e o indígena, como destacou Paulo.

Concluindo, para que o psicólogo possa contribuir com a inclusão e a permanência dos estudantes indígenas na universidade, não é necessário abandonar suas teorias, suas técnicas, mas é preciso dialogar com outras formas de conhecimento, com os saberes indígenas e com outras disciplinas como a Antropologia. Além disso, é importante ler autores indígenas, desenvolver uma sensibilidade histórica e cultural, aprender a ouvir e a conhecer a pessoa indígena, considerando sua alteridade. Nesse sentido, é preciso ocupar um lugar de tensão da presença implicada e reservada e do não saber.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2022
  • Aceito
    08 Maio 2023
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