A primeira proposta deste trabalho é debater o tema inclusão no ensino superior a partir da prática profissional das estagiárias do serviço de estágio em psicologia escolar de uma Instituição de Ensino superior (IES) localizada em Brasília. Posteriormente, com base na emergência dessa demanda no interior da instituição, o presente relato pretende tratar da implantação de um Serviço de Atendimento às Queixas Escolares (SAQUE) nesse estabelecimento.
O estágio específico em Psicologia Escolar da IES mencionada foi criado, a princípio, para atender à comunidade escolar a sua volta, mas com o passar do tempo foi sendo requisitado para tratar das demandas emergentes no interior da própria instituição. Esta demanda converge com uma problemática que se mostra proeminente no atual cenário educacional do país, qual seja, a inclusão de alunos com necessidades especiais no Ensino Superior. Contudo, o tema não é tratado em si mesmo, pois ainda que esteja bastante em voga, verifica-se que no ambiente institucional, em alguns casos, a demanda por inclusão é vista pela via da queixa escolar de ordem individualizante.
Analisando a legislação que versa sobre educação, verifica-se que a constituição federal de 1988 garante o acesso ao ensino, em seus mais variados níveis, a todos os cidadãos indiscriminadamente. Com relação à educação inclusiva verifica-se essa temática passa a aparecer em Leis, a partir de 1996 - como na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996, conforme citado por Roriz & cols., 2005Roriz, T. M., Amorim, K.S., & Rossetti-Ferreira, M. C. (2005). Inclusão social/escolar de pessoas com necessidades especiais: múltiplas perspectivas e controversas práticas discursivas. Psicologia USP vol.16, n.3, pp. 167-194.).
No que concerne mais especificamente à inclusão no ensino superior, verifica-se a existência de um aviso Circular de nº 277 do Ministério da Educação que orienta as instituições de nível superior a viabilizarem ações que permitam maior mobilidade dos "serviços educacionais e da infraestrutura, a capacitação de recursos humanos, de modo a melhor atender às necessidades especiais dos portadores de deficiência, possibilitando sua permanência, com sucesso, em certos cursos" (Ministério da Educação, 1996Ministério da Educação (1996). Aviso Circular no. 277/MEC/GM, de 08 de Maio de 1996 Dirigido aos Reitores das IES, solicitando a execução adequada de uma política educacional dirigida aos portadores de necessidades especiais. Recuperado: 29 de Setembro de 2014. Disponível: <Disponível: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/aviso277.pdf
>.
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, p.2). Contudo, mesmo sendo uma um direito assegurado, a inclusão ainda não é uma prática consolidada no interior das Universidades. Prova disso são os inúmeros casos que batem à porta do serviço de estágio em Psicologia Escolar com demanda por uma inclusão escamoteada de queixa escolar. A seguir dois casos ilustrativos dessa realidade.
Relato caso 1
Joana, 24 anos, graduanda do primeiro semestre, foi encaminhada para atendimento de queixa escolar pelo coordenador de seu curso porque a aluna demandou da coordenação atendimento diferenciado devido ao um déficit de aprendizado diagnosticado na infância. Outro argumento era de que a discente havia recebido acompanhamento especializado no Ensino Especial. Contudo, a instituição rebateu o pedido alegando não haver possibilidade de um atendimento individualizado diante das dificuldades da discente de se adaptar a procedimentos padronizados, tais como planos de ensino, avaliações, metodologias utilizadas nas aulas. Sendo assim, a solução seria um acompanhamento com a área da Psicologia Escolar, pois a estudante era uma forte candidata a não atingir a segunda metade do curso devido às suas limitações.
No atendimento, a aluna demonstrou insatisfação com a falta de manejo da instituição com seu caso. Os encontros iniciais foram destinados à avaliação do nível atual de desenvolvimento da estudante, processo que não teve caráter primordialmente classificatório, mas sim a função de oferecer subsídios para as intervenções que partiram do que ela conseguia fazer até se chegar ao desenvolvimento de capacidades definidas como metas. Concomitantemente, a proposta dos atendimentos girou em torno da desconstrução do estigma de incapacidade que a aluna carregou durante um longo período e a fomentação de ações emancipadoras por parte dela em relação à instituição, que naquele momento se mostrava pouco favorável para lhe oferecer um atendimento mais inclusivo.
Relato caso 2
Maria, estudante do sétimo semestre foi encaminhada pela coordenadora de seu curso. A aluna foi diagnosticada com dislexia ainda na adolescência e apresenta dificuldade no que se refere à interpretação textual e manuseio da escrita. Desde que iniciou o curso a aluna vem apresentando um histórico de reprovações, provenientes de suas dificuldades. Dessa forma, precisou que a faculdade fizesse uma adaptação na sua grade curricular; porém, tal procedimento não foi efetivado. A única providencia tomada pela instituição foi permitir que a aluna fizesse prova em um local separado sob a monitoria de um funcionário da coordenação, que não necessariamente possui alguma formação pedagógica para acompanhar o caso. Contudo, esse benefício durou poucos semestres.
Após a entrevista iniciou-se o processo de investigação para a definição de estratégias de intervenção, para isso foi necessário avaliar o grau de dificuldade apresentada pela aluna. Com os resultados, procurou-se desenvolver as suas potencialidades, retirando o foco principal de suas limitações. Ao longo de dois anos de atendimento, foi possível ir acompanhando o desenvolvimento de Maria. A reavaliação confirmou que o trabalho havia feito uma diferença positiva. Percebe-se que hoje, Maria consegue lidar com diversas situações apresentadas pela dislexia, além disso, acredita na sua capacidade e se sente uma vitoriosa, por estar concluindo seu tão desejado curso.
Esses casos delineiam a realidade de grande parte dos alunos que necessitam de educação inclusiva. Ambos retratam histórias perpassadas por dificuldades de aprendizagem e de fracasso escolar de longa data. Segundo Machado (2002Machado, A. M. (2002). Avaliação psicológica na escola: mudanças necessárias. Em: E. Tanamachi; Souza, M.R.P., & M.E. Meira. (Orgs.), Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos (pp. 143-167).), esse fenômeno é uma produção social, historicamente determinado por ideias construídas de modo a colocar o aluno como único responsável por seus acertos e insucessos. Ainda sobre esse tema, Collares e Moysés (1992Collares, C.A.L. & Moysés, M.A.A. (1992). Diagnóstico da medicalização do processo ensino-aprendizagem na 1ª série do 1º grau no município de Campinas. Em Aberto, Brasília, 11(53), 13-28.) há mais de duas décadas trouxeram à tona a discussão dessa problemática que evidencia uma tendência medicalizante e patologizante de um problema que é, sobretudo, social e institucional. Nesses casos há uma postura das instituições de se eximirem da responsabilidade em relação à construção desse fracasso. Neves & Almeida (1996Neves, M.M.B.J. & Almeida, S.F.C. (1996). O Fracasso Escolar na 5ª Série, na Perspectiva de Alunos Repetentes, seus Pais e Professores. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília: Maio- Ago., vol. 12, no 2, p.147-156.) numa análise mais profunda da questão, demonstram que o fracasso escolar é conveniente para a nossa sociedade que, de maneira velada, busca manter e legitimar suas enormes desigualdades, mantendo assim um discurso meritocrático.
Nessa perspectiva, tais casos, dentre outros, fomentaram a ideia de implantação de um serviço de atendimento às queixas escolares (SAQUE) a fim de identificar esses alunos que precisam de inclusão, dar voz a eles e assim desenvolver um canal de debate sobre esse tema na universidade.
O Serviço de atendimento às queixas escolares (SAQUE)
O SAQUE tem como objetivo atender os alunos que apresentam algum tipo de dificuldade no processo de ensino aprendizagem, devidamente encaminhados pelos professores. A implantação desse projeto se deu no segundo semestre de 2014 na IES mencionada. Os primeiros procedimentos adotados consistiram em divulgar o serviço aos professores por meio de cartazes. Os docentes ficaram responsáveis por encaminhar os alunos que, na percepção deles, possuíam algum tipo de dificuldade escolar. Posteriormente o SAQUE entrou em contato com os educadores via e-mail para que estes comunicassem aos alunos o atendimento oferecido e os orientassem a respeito dos primeiros encontros coletivos.
A segunda etapa do projeto consistiu em oferecer três encontros aos alunos encaminhados que se interessaram pelo serviço. Os objetivos desses encontros foram acolher os sujeitos e avaliar a demanda, se se tratava ou não de queixa relacionada à questão da inclusão. De fato surgiram casos de alunos com demanda de inclusão cujo discurso era de uma expectativa de ajustamento da IES em relação à necessidade especial deles. Logo na finalização dos encontros iniciais definiu-se que os atendimentos específicos se dariam de maneira individualizada a partir do primeiro semestre de 2015, terceira fase do projeto. Esta consistirá em oferecer acompanhamento aos interessados por meio de uma metodologia de base histórico-cultural, visando o desenvolvimento de habilidades e competências, além disso, buscar maior diálogo com a instituição para atendimento de casos que denotam necessidade de inclusão.
Considerações Finais
Diante desse cenário que proclama a inclusão, o esperado é que a Psicologia Escolar contribua com o rompimento da visão individualizante. Um dos caminhos possíveis propostos por Collares e Moysés (1992Collares, C.A.L. & Moysés, M.A.A. (1992). Diagnóstico da medicalização do processo ensino-aprendizagem na 1ª série do 1º grau no município de Campinas. Em Aberto, Brasília, 11(53), 13-28.), além de Machado (2002Machado, A. M. (2002). Avaliação psicológica na escola: mudanças necessárias. Em: E. Tanamachi; Souza, M.R.P., & M.E. Meira. (Orgs.), Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos (pp. 143-167).), é retirar o aluno da posição nuclear a ele atribuída na avaliação de desempenho acadêmico, trazendo a instituição para arcar com sua parte nesse processo. Dito de outra forma, a inclusão de tais alunos no Ensino Superior requer medidas que facilitem e auxiliem a concretização desse processo, como: formação continuada de professores, produção e adequação de recursos pedagógicos, adaptação do currículo, bem como reflexão de todos os envolvidos no processo educativo.
Segundo Marinho-Araújo (2009Marinho-Araujo, C.M. (2009). Psicologia escolar na educação superior: novos cenários de intervenção e pesquisa. Em: Marinho-Araujo, C. M. (Org.), Psicologia escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, prática e formação. Campinas: Alínea, (pp. 155-202).) é papel do psicólogo escolar se atentar as questões instrumentais que cercam o processo de inclusão desses alunos, além de atuar de forma comprometida com o desenvolvimento desses sujeitos, através da promoção de sua autonomia e emancipação. Tomando a breve experiência do SAQUE, cuja proposta vai ao encontro do que esses autores defendem, é de suma importância que sejam desenvolvidas novas práticas profissionais em Psicologia Escolar com enfoque na inclusão, para que seja construído um instrumental mais aprimorado acerca dessa temática.
Referências
- Collares, C.A.L. & Moysés, M.A.A. (1992). Diagnóstico da medicalização do processo ensino-aprendizagem na 1ª série do 1º grau no município de Campinas. Em Aberto, Brasília, 11(53), 13-28.
- Machado, A. M. (2002). Avaliação psicológica na escola: mudanças necessárias. Em: E. Tanamachi; Souza, M.R.P., & M.E. Meira. (Orgs.), Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos (pp. 143-167).
- Marinho-Araujo, C.M. (2009). Psicologia escolar na educação superior: novos cenários de intervenção e pesquisa. Em: Marinho-Araujo, C. M. (Org.), Psicologia escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, prática e formação. Campinas: Alínea, (pp. 155-202).
- Ministério da Educação (1996). Aviso Circular no. 277/MEC/GM, de 08 de Maio de 1996 Dirigido aos Reitores das IES, solicitando a execução adequada de uma política educacional dirigida aos portadores de necessidades especiais. Recuperado: 29 de Setembro de 2014. Disponível: <Disponível: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/aviso277.pdf >.
» http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/aviso277.pdf - Neves, M.M.B.J. & Almeida, S.F.C. (1996). O Fracasso Escolar na 5ª Série, na Perspectiva de Alunos Repetentes, seus Pais e Professores. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília: Maio- Ago., vol. 12, no 2, p.147-156.
- Roriz, T. M., Amorim, K.S., & Rossetti-Ferreira, M. C. (2005). Inclusão social/escolar de pessoas com necessidades especiais: múltiplas perspectivas e controversas práticas discursivas. Psicologia USP vol.16, n.3, pp. 167-194.
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1
Aline Lima (aline_limalima@hotmail.com) - Graduanda em Psicologia pela Universidade Paulista, campus Brasília.
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2
Adriana Pereira dos Santos Marques (drickap@hotmail.com) - Graduanda em Psicologia pela Universidade Paulista, campus Brasília.
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3
Angélica Hosana dos Santos Lima (angelica.hosana@bol.com.br) - Graduanda em Psicologia pela Universidade Paulista, campus Brasília.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2016
Histórico
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Recebido
01 Dez 2014 -
Aceito
04 Fev 2016