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A tensão entre as línguas teuto-brasileiras e a colonialidade linguística nas práticas de ensino de alemão para brasileiros

The tension between German-Brazilian languages and the coloniality of language in teaching practices of German to Brazilian learners

Resumo

A pesquisa apresentada neste artigo teve como objetivo investigar a presença da colonialidade linguística nas práticas de ensino de alemão para brasileiros, mais especificamente para os aprendizes que vêm de um histórico de contato com línguas teuto-brasileiras presentes em regiões de imigração. Professores brasileiros já atuantes ou ainda em formação inicial foram convidados a refletir em conjunto, em sessões online que foram gravadas e transcritas, sobre o que fariam caso fossem procurados para aulas particulares por um aluno com esse histórico. Em seus discursos, foram mapeados os indícios de uma postura de submissão à colonialidade linguística, ou de subversão dessa lógica. A introdução resume o problema que motivou a investigação. A seguir, revisita-se o histórico do ensino de alemão no Brasil, e são citados e comentados trechos de falas dos professores participantes da pesquisa, subdivididos por temas. As considerações finais argumentam que parte dos professores demonstra uma postura de submissão à colonialidade linguística, sem dar-se conta de que reproduz discursos contraditórios, mas que alguns deles parecem dispostos a subverter a colonialidade em sua prática docente. Defende-se que a superação da mentalidade colonial funcione como ponto de partida para uma Educação Linguística crítica em alemão para o aprendiz brasileiro.

Palavras-chave:
língua teuto-brasileira; ensino de alemão; colonialidade linguística

Abstract

The research presented in this article aimed to investigate the presence of the coloniality of language in German teaching practices for Brazilian learners, more specifically for learners who come from immigration areas with a history of contact with German-Brazilian languages. Brazilian teachers, both already working and still in initial training, were invited to reflect together, in online sessions that were recorded and transcribed, about how they would proceed if they were asked for private German classes by a student with this kind of background. In their enunciations, signs of submission or subversion to the coloniality of language were identified. The introduction summarizes the problem that led to the investigation. The history of German teaching in Brazil is then revisited, and excerpts of the participants’ enunciations, grouped under themes, are cited and commented. The final considerations argue that, on the one hand, some of the teachers demonstrate a posture of submission to the coloniality of language, without realizing that they reproduce contradictory discourses. On the other hand, some of them seem willing to subvert coloniality in their teaching practice. It is concluded that overcoming the colonial mentality works as a starting point for a critical Language Education in German for Brazilian learners.

Keywords:
German-Brazilian language; German teaching; coloniality of language

A língua estrangeira sempre representou prestígio. Quem domina uma língua estrangeira é admirado como pessoa culta e distinta.

RAJAGOPALAN

1 Introdução

O problema que motivou a investigação aqui apresentada se refere à ideologia colonial que embasa as práticas de ensino de línguas de prestígio no Brasil, e, mais especificamente, da língua alemã.

O monolinguismo, isto é, a comunicação exclusiva em língua portuguesa, tem sido imposto no Brasil desde a invasão europeia. Essa imposição acontece por meio de medidas ora diretas, como aquelas implementadas pelo Marquês de Pombal em 1759 ou por Getúlio Vargas durante o Estado Novo (CAMPOS 2006CAMPOS, Cynthia Machado. A política da língua na era Vargas: proibição do falar alemão e resistências no Sul do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2006.; FRITZEN 2012FRITZEN, Maristela P. “Ia na escola alemã e de um dia pro outro fechou. E nós não sabíamos falar o português”: refletindo sobre as políticas linguísticas em contexto de língua minoritária. Linguagem & Ensino, v. 15, n. 1, 113-138, 2012.), ora indiretas, como as sucessivas diminuições da carga horária de línguas adicionais no sistema escolar e a popularização da ideia de que não é possível aprender outra língua na escola.

Reconhecer esses fatores significa reconhecer que fazem parte de um mesmo projeto colonial. Em outras palavras, essa falta de contato do povo brasileiro com línguas de prestígio não se deve a uma falta de interesse ou esforço pessoal, como quer o ideário neoliberal. O sistema escolar brasileiro não recebe investimento compatível com seu crescimento há décadas, como parte do projeto de redirecionamento dos recursos para as instituições de ensino privadas. Em resumo, as políticas linguísticas e educacionais no Brasil caminharam no sentido de retirar da população o direito à língua e à educação.

Porém, nem tudo são más notícias. No âmbito do alemão, uma das propostas do GEPELAB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de Língua Alemã no e do Brasil - é trabalhar no mapeamento de políticas linguísticas brasileiras decoloniais envolvendo a língua alemã. As discussões acerca da produção de material didático voltado para a realidade brasileira também vêm avançando: o texto de Puh (2020PUH, Milan. Políticas linguísticas, decolonialidade e material didático no Brasil. In: BERGER, Isis Ribeiro; REDEL, Elisângela (Orgs.). Políticas de gestão do multilinguismo: práticas e debates. Campinas: Pontes Editores, 2020, 207-229.) sobre a suposta ausência da produção desse tipo de material no Brasil destaca o caráter colonial da atitude de importá-los da Alemanha, e, partindo de questionamentos semelhantes, o grupo de pesquisa Zeitgeist vem dando início à produção de livros didáticos para o ensino universitário de alemão nas universidades brasileiras (AQUINO; FERREIRA 2023AQUINO, Marceli; FERREIRA, Mergenfel Vaz. Ensino de alemão com foco decolonial: uma discussão sobre propostas didáticas para o projeto Zeitgeist. Domínios de Lingu@gem, v. 17, 1-33, 2023.).

Partindo desses fatores, a pesquisa apresentada no presente artigo teve como objetivo investigar a presença da colonialidade linguística no discurso de professores brasileiros para alunos brasileiros de alemão, incluindo tanto professores já atuantes como professores em formação inicial.

2 O papel da língua alemã no Brasil

Conforme resume Cavalcanti (1999CAVALCANTI, Marilda. Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias lingüísticas no Brasil. Revista D.E.L.T.A., v. 15, número especial, 388-418, 1999.: 32), “desde o princípio de sua história, o Brasil é marcado por situações de conflito e repressão linguística”. A colonização moldou não somente a paisagem da diversidade sociolinguística no Brasil, como também os modos como são representadas as identidades individuais e coletivas das minorias linguísticas (CAVALCANTI; MAHER 2013CAVALCANTI, Marilda; MAHER, Terezinha. Contemporary Brazilian perspectives on Multilingualism: An Introduction. In: CAVANCANTI, Marilda C.; MAHER, Terezinha M. Multilingual Brazil: Language Resources, Identities and Ideologies in a Globalized World. New York: Routledge, 2018, p. 1-18.: 4).

A construção da narrativa da modernidade, no século XVI, produziu a falsa impressão de linearidade do tempo-espaço, em que a civilização europeia seria a mais avançada, e as demais, “ainda” primitivas. A lógica colonial determina que todos os outros povos, culturas, civilizações que não a europeia pertenceriam ao passado, e, dessa forma, teve início uma colonização do tempo e do espaço (MIGNOLO 2011).

Veronelli (2015) analisa a presença da colonialidade nas Américas a partir da relação entre raça e língua. Segundo a autora, a colonialidade da língua - aqui denominada colonialidade linguística - “é um aspecto do processo de desumanização dos povos colonizados por meio da racialização” (Ibidem: 119). Para a autora, um sintoma da colonialidade é a dificuldade de entender os povos colonizados como agentes comunicadores (Ibidem: 113). Isso significa que esses povos não eram percebidos enquanto imbuídos de agência pelo colonizador, simplesmente por não estarem organizados de acordo com os padrões europeus de cultura e civilidade.

Partindo dessa lógica, Veronelli (2015: 124) introduz o conceito de monolinguismo do colonizador, como “modo de convivência que desumaniza o interlocutor colonizado”. Trata-se de mais um dos desdobramentos da desumanização dos povos racializados: é como se somente o colonizador tivesse uma língua, no sentido pleno do termo, isto é, um sistema capaz de expressar conhecimento. Somente a sua língua era real. O atrelamento da condição de civilidade à escrita alfabética funcionou como argumento no sentido de que as línguas dos nativos americanos não eram capazes de expressar conhecimento.

Portanto, os histórico do ensino de línguas em um país colonizado é o histórico da ideologia colonial, que vem sendo implementada no Brasil desde o início do processo de aculturação das populações de nativos brasileiros e de africanos trazidos à força ao continente americano. Isso significa que os primeiros registros de um “ensino” de línguas no Brasil, notadamente o português, já trazem marcas da imposição de uma língua considerada superior àquelas que aqui coexistiam. Por sua vez, as línguas clássicas eram dotadas de grande prestígio, e o acesso a elas constituía um privilégio destinado aos filhos da elite que podiam frequentar escolas no Brasil colônia.

Passados alguns séculos desde o início da invasão portuguesa do território que viria a ser brasileiro, teve início a imigração alemã para o Brasil em 1824, concentrada predominantemente na região Sul do país. Esses imigrantes costumavam instalar-se em regiões rurais afastadas do contato com o português brasileiro, e lá fundaram escolas. Em 1837, algumas línguas estrangeiras modernas começaram a ser ensinadas oficialmente nas escolas brasileiras: além do latim e do grego, tornaram-se obrigatórios o inglês, o francês e o alemão (SILVA 2015SILVA, Flávia Matias. Dos PCN LE às OCEM: o ensino de língua inglesa e as políticas linguísticas educativas brasileiras. Pesquisas em Discurso Pedagógico, Rio de Janeiro, v. 1, 2015, s/p.).

No início do século XX, mais precisamente entre as décadas de 1920 e 1930, tiveram início medidas de nacionalização do ensino, que levaram ao desmonte das comunidades de fala de línguas de imigração em prol de uma nação unificada e monocultural (MAAS; FRITZEN 2017MAAS, Martha R.; FRITZEN, Maristela P. “A gente fala muito errado o português”: representações sobre línguas em um contexto plurilíngue. Organon, v. 32, n. 62, 2017. DOI: 10.22456/2238-8915.72106
https://doi.org/10.22456/2238-8915.72106...
: 4). Nas escolas, a Reforma Francisco de Campos tornou línguas obrigatórias somente o francês e o inglês, sendo o alemão facultativo (Brasil 1931BRASIL. Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do ensino secundário. Disponível em: <Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19890-18-abril-1931-504631-publicacaooriginal-141245-pe.html > (10/4/2022).
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
).

Já a Constituição de 1934 proibiu o ensino das línguas de imigração nas escolas: o artigo 150 estabelece o ensino escolar “ministrado no idioma pátrio, salvo o de línguas estrangeiras” (Brasil 1934BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm > (10/4/2022).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
). Essas línguas nunca chegaram a desaparecer por completo, mas seu ensino permaneceu proibido por cerca de 40 anos, ao longo dos quais essas línguas sofreram forte estigmatização. Muitos falantes passaram a optar por não as transmitir às gerações mais novas da família, com vergonha de seus falares ‘errados’ (SPINASSÉ 2013SPINASSÉ, Karen Pupp. Duas faces do ensino do alemão como língua estrangeira no Brasil. Em Aberto, v. 22, n. 81, 61-79, 2013.; MAAS; FRITZEN; AVELINO NETO 2014MAAS, Martha R.; FRITZEN, Maristela P.; AVELINO NETO, Abelardo José. A língua alemã em antiga zona de imigração no vale do Itajaí (SC): um estudo em duas comunidades. Calidoscópio, v. 12, n. 2, 143-152, 2014.). Assim, línguas como o Hunsrückisch e o Pomerano, faladas respectivamente em algumas regiões do Sul do Brasil e do Espírito Santo, foram duramente reprimidas.

Em 1942, a Reforma Capanema deixou somente o latim, o francês e o inglês como línguas estrangeiras a serem ensinadas nas escolas (Brasil 1942BRASIL. Decreto-Lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942. Lei orgânica do ensino secundário. Disponível em: <Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4244-9-abril-1942-414155-publicacaooriginal-1-pe.html > (10/4/2020).
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
). Segundo Uphoff (2011UPHOFF, Dörthe. Uma pequena história do ensino de alemão no Brasil. In: BOHUNOVSKY, R. (Org.). Ensinar alemão no Brasil: contextos e conteúdos. Curitiba: Editora UFPR, 2011, 13-30.: 19), a política implantada por Getúlio Vargas durante o Estado Novo significou a perda traumática “de um importante símbolo da identidade teuto-brasileira”.

Enquanto isso, a Alemanha não poupava esforços para promover sua língua e cultura ao redor do mundo. O Instituto Goethe começou a oferecer cursos de alemão em outros países no ano de 1953, e rapidamente montou sua rede de filiais ao redor do mundo (UPHOFF 2013UPHOFF, Dörthe. A área de Alemão como Língua Estrangeira: desenvolvimento histórico e perspectivas atuais. Pandaemonium Germanicum, v. 16, n. 22, 2013, 219-241.: 223). Assim, a língua alemã ia deixando de ocupar uma posição de língua materna nas comunidades de imigração para tornar-se uma segunda língua no Brasil (UPHOFF 2011UPHOFF, Dörthe. Uma pequena história do ensino de alemão no Brasil. In: BOHUNOVSKY, R. (Org.). Ensinar alemão no Brasil: contextos e conteúdos. Curitiba: Editora UFPR, 2011, 13-30.: 23-24). Isso significou a diversificação do público que buscava aulas de outras línguas, em relação à idade, conhecimento de mundo e objetivos que pretendiam alcançar por meio da nova língua. Na década de 1980, a língua alemã já era ensinada quase que exclusivamente como língua adicional (Ibidem: 25).

Em 1996, a LDB 9.394 determinou a obrigatoriedade de uma língua estrangeira moderna a partir do segundo ciclo do Ensino Fundamental, isto é, da quinta série à época, conforme escolha da comunidade; no Ensino Médio, haveria a possibilidade de oferta de uma segunda língua estrangeira, em caráter optativo, conforme as possibilidades de cada instituição. Lamentavelmente, no ano de 2017, a lei nº 13.415 estabeleceu o inglês como língua obrigatória a ser ofertada no Ensino Fundamental a partir do sexto ano, antiga quinta série, e no Ensino Médio, retirando da comunidade escolar a autonomia na escolha da língua (Brasil 2017BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, DF: 2017b. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm#art22 > (10/4/2022).
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). Ainda hoje, a LDB e a Constituição Federal determinam que a instrução escolar ocorra em língua portuguesa, salvo poucas exceções (Brasil 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > (10/01/2022).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
; 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm > (14/4/2022).
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
).

Conhecendo esse histórico de altos e baixos da história do ensino de línguas no Brasil, é possível perceber por que o acesso ao alemão no Brasil é tão restrito. Considerando a obrigatoriedade do inglês e a preferência pelo espanhol como línguas adicionais a serem oferecidas, são muito poucas as escolas que oferecem o alemão na grade curricular. A aprendizagem da língua alemã em nosso país fica praticamente restrita aos cursos privados e aos Centros de Ensino de Línguas de iniciativa estadual em alguns estados brasileiros.

Entretanto, o controle quase que exclusivo das iniciativas de ensino de alemão por parte de editoras e instituições alemãs a transformou em língua de prestígio no Brasil. Esse monopólio se sustenta sobre características explícitas da colonialidade, que determinam o modo como os povos subalternizados devem agir e falar, sem reconhecer que uma mesma língua se desenvolve de maneiras diferentes ao redor do mundo e que as múltiplas formas de falar alemão, dentre elas as teuto-brasileiras, são tão válidas quanto a língua padrão da Alemanha.

3 Identificando indícios da colonialidade linguística

A pesquisa apresentada nesta seção teve início na definição de uma situação comum com a qual se deparam professores de alemão para alunos brasileiros que têm histórico de convívio com uma variação do alemão como língua de herança, isto é, que estão familiarizados com uma língua teuto-brasileira.

A situação foi enunciada da maneira como se segue, convidando professores de alemão das regiões Sul e Sudeste do Brasil, onde existe histórico de imigração alemã, para refletir sobre ela em conjunto:

Uma pessoa consegue o seu contato e te procura para aulas particulares. Ela afirma que já tem um nível básico na fala e entende tudo, pois vem de família alemã. Aí você começa a conversar com ela e percebe que a pronúncia dela é de variedade teuto-brasileira - os chamados dialetos do sul do Brasil - e que você não entende muito bem o que ela fala. O que você faz?

O momento de reflexão coletiva que aconteceu em quatro sessões: duas delas em grupos de professores de alemão já atuantes, e outras duas para professores em formação inicial.

As sessões de discussão com foco nos professores ainda em formação aconteceram nas aulas de Metodologia de Ensino de Língua Alemã I, disciplina eletiva no curso de licenciatura em Letras/Alemão na USP. Para tanto, o professor regente cedeu-me parte do tempo de uma aula no período matutino e de outra no período noturno, estando presente durante toda a minha intervenção. Em cada sessão, com duração de uma hora e meia, estiveram presentes cerca de 15 graduandas e graduandos.

Já a divulgação das duas sessões mais voltadas para professores atuantes foi organizada em conjunto com a APPA - Associação Paulista de Professores de Alemão, por meio de posts nas redes sociais e listas de e-mails de associadas. Em cada sessão, com duração de duas horas, estiveram presentes quatro professores.

O trabalho com grupos de professores em dois momentos distintos da carreira foi pensado para testar uma hipótese: dada a recente popularização do pensamento decolonial no ensino de línguas, esperava-se que os professores em formação tivessem maior abertura para questionar as premissas da colonialidade linguística do que aqueles que iniciaram seu trabalho sob os paradigmas da modernidade anos atrás.

Os momentos reflexivos foram conduzidos de modo que a pesquisadora fizesse intervenções pontuais no decorrer das falas, a fim de incentivar a reflexão e compreender o pensamento dos participantes com a maior riqueza de detalhes possível, sem pretender confrontar nenhuma das falas ou posturas dos participantes.

As sessões aconteceram online, foram gravadas em vídeo e posteriormente transcritas. Nas transcrições comentadas, os nomes dos participantes da pesquisa foram substituídos pelas marcas [F], no caso de professores em formação e [A] no caso de professores atuantes, de acordo com a sessão da qual participaram. Aparecem neste artigo trechos de falas de seis professores em formação e de seis professores já atuantes.

A análise dos dados obtidos nas seções baseou-se nas diretrizes da Análise Textual Discursiva (ATD), cuja proposta é combinar a definição de categorias que se repetem na Análise de Conteúdo e a abertura para interpretações mais subjetivas da Análise do Discurso. Assim, as falas dos participantes das quatro sessões da oficina foram agrupadas segundo os temas que nelas apareceram, e a análise foi executada com foco no grau de submissão à colonialidade linguística por parte dos professores.

As cinco subseções a seguir representam as categorias encontradas nas falas dos participantes, apresentando trechos dessas falas comentados conforme o arcabouço teórico-crítico já apresentado.

3.1 Desconhecimento

A resposta honesta de um professor em formação deixa transparecer que ele não tem familiaridade com variedades do alemão que não o Hochdeutsch2 2 Alemão padrão. . Ao ouvir falar da pronúncia “de variante teuto-brasileira”, entendeu tratar-se de uma única variante, demonstrando desconhecer a complexidade da paisagem linguística brasileira no quesito línguas de herança.

[F1]: Eu ficaria um pouco inseguro a princípio, porque eu ia pensar, será que eu vou ter tempo, eu, eu consigo me preparar pra essa aula? Primeiro assim, no sentido de eu... bom, eu digo no meu caso, eu não conheço essa... essa variante. [...] Mas.... eu acho que isso vai demandar mais trabalho do professor, isso, isso certamente, de, de você se aproximar do aluno, e não só do aluno, mas dessa variante dele, né?

A percepção de que é trabalhoso moldar uma aula ou um curso de língua ao aprendiz vem da tradição de importarmos materiais e métodos europeus em vez de investir na formação de equipes para produzir os nossos próprios materiais, voltados para as necessidades do aprendiz brasileiro. Essa é uma ideia colonial: por que implementar um material didático que retrata uma realidade muito distante daquela que nos cerca, e ter de adaptá-lo a cada aula e a cada grupo de aprendizes, seria menos trabalhoso do que partir da realidade concreta?

Outro comentário franco à situação apresentada, desta vez tecido por uma professora já atuante, foi o seguinte:

[A1]: Olha, eu acho que eu seria bem sincera, porque eu acho que, é... não teria como ajudá-la... sem entendê-la, né, então... eu apontaria pra ela esse fato, né, hã... comentaria com ela que sim, na Alemanha nós temos dialetos, e que muitas vezes nem os alemães se entendem, dependendo do dialeto, mas que geralmente a gente costuma trabalhar com o Hochdeutsch, né?

Realmente, não é verdade que toda a população da Alemanha ou dos outros países onde o alemão é língua oficial apresenta características homogêneas na fala, incluindo léxico e sotaque: sabe-se que existe uma série de dialetos dentro do país, e o portal deutschland.de lista ao menos 16 grupos dialetais presentes somente na Alemanha3 3 Disponível em: <https://www.deutschland.de/de/topic/leben/dialekte-in-deutschland> (15/12/2023). , sem contar as variedades padrão e as variedades populares faladas na Áustria, na Suíça e no Liechtenstein, além de outros países que não têm o alemão como língua oficial.

Entretanto, chama atenção na fala da professora [A1] o uso do pronome “nós”, por uma professora que não vem de uma família de origem alemã nem cresceu em contato com a língua. Ficam explícitas, na escolha desse pronome, a vontade de fazer parte de um grupo pertencente ao Norte Global e a crença em que ter acesso à língua desse grupo representa a possibilidade de fazer parte dele: o conhecimento de uma língua de prestígio como o alemão figura como símbolo de maior proximidade ao Norte Global, conferindo ao falante um status diferenciado em relação ao restante dos brasileiros.

Desse modo, o conhecimento de línguas de prestígio no Brasil atual, sobretudo daquelas não comumente ensinadas nas escolas, é um traço de pertencimento a um seleto grupo. A colonialidade linguística contribui para estabelecer uma hierarquia em cujo topo estão os países do Norte Global; no meio, os brasileiros que figuram como representantes dos interesses daqueles países; e na base, o restante do povo. Essa hierarquização reforça a predominância da cultura europeia sobre qualquer traço cultural reconhecido como brasileiro.

O pronome “nós” empregado por [A1] na frase “na Alemanha nós temos dialetos” serve para reafirmar o pretenso pertencimento a esse seleto grupo perante o aluno, que deverá enxergar na professora uma autêntica representante dos interesses alemães. É esse o papel que cabe a ela na hierarquia da colonialidade, e que, julgando pelo uso do pronome “nós”, ela parece assumir com satisfação. Logo a seguir, porém, a professora diz que “muitas vezes nem os alemães se entendem”, em terceira pessoa. Deduz-se que ela tem consciência de que não é alemã, mas, mesmo assim, defende os interesses do colonizador.

Dessa maneira, a professora [A1] se coloca como parte do grupo de pessoas que compartilham dos valores da colonialidade, mas considera que sua autoridade como conhecedora da língua não é tão alta quanto a de um falante nativo. É a aparente incoerência na fala dela, ao colocar-se ora como parte do grupo de falantes, ora como externa a ele, que ilustra perfeitamente o pensamento colonial.

Por fim, essa fala deixa explícita uma necessidade de justificar a variação dialetal a partir da comparação com a Alemanha, como que validando a existência de variedades linguísticas na colônia por meio da metrópole.

Também [A2] vai por esse caminho, conforme mostra o trecho a seguir.

[A2]: Eu acho que também faria assim, explicaria pra... para ela que até na Alemanha tem dialetos, e quando eles falam a gente não entende, o suíço também... e a gente também, é difícil, e que ela... pro alemão culto é necessário ela começar do comecinho, com os livros e tudo, porque, inclusive, as palavras que eles usam são diferentes do alemão culto. E, provavelmente, o aprendizado dela seria mais rápido que dos outros, mas... seria necessário começar do básico, mesmo.

[A3]: Isso mesmo.

[A2] e [A3] acreditam que, se a professora de alemão padrão não entende a variedade linguística do aluno, esse aluno precisa começar seu aprendizado do zero. Vamos explorar essa questão.

3.2. Valorização

Uma tarefa que faz parte das responsabilidades de quem ensina uma língua adicional é partir do conhecimento de mundo que o aluno já traz para a sala de aula ao invés de impor sobre ele o conhecimento considerado válido como se ele não tivesse conhecimento algum. [A3] declara pensar assim:

[A3]: [...] e valorizar o que ela já sabe, né? Principalmente a parte de vocabulário, né? Então, só mostrar, olha, a variante é que você fala assim, mas, né, o Hochdeutsch é assim, mas assim, ela já... memorizou aquilo, já é um grande passo, né? Eu tentaria valorizar muito o que ela já sabe, porque já é uma grande coisa. Mesmo porque ela já desenvolveu a habilidade em ouvir, né...

É interessante como a palavra “valorizar” é empregada por uma professora que concordou, no trecho citado anteriormente, que o conhecimento do aprendiz seja menosprezado, fazendo-o iniciar seus estudos do alemão como qualquer outra pessoa sem conhecimentos prévios da língua. Essa atitude pode servir para refletirmos até que ponto estamos conseguindo consolidar na prática aquilo em que acreditamos, de forma congruente e coerente, mas também pode significar que o próprio conceito de valorização do saber do aprendiz reproduz a verticalidade, pois coloca o professor na posição de decidir se o conhecimento do aluno tem valor ou não.

[A3] não fala de valorizar o conhecimento do aluno, mas apenas de aproveitá-lo enquanto atalho rumo ao Hochdeutsch. Parece tratar a variedade teuto-brasileira como meio caminho andado na busca pelo conhecimento da língua alemã considerada verdadeira, importada diretamente da Europa e posicionada num patamar superior ao das línguas minoritárias de um país do Sul Global como o Brasil.

É muito tênue aqui a linha entre o bilinguismo de adição, uma proposta de desenvolvimento bilíngue que tem como objetivo tornar o falante competente em duas ou mais línguas, e o bilinguismo de subtração, uma proposta de apagamento da língua menos prestigiada, servindo esta apenas como ponte para o domínio de uma língua de maior prestígio.

Mello (2010MELLO, Heloísa A. B. Educação bilíngue: uma breve discussão. Horizontes de Linguística Aplicada, v. 9, n. 1, 118-140, 2010.) explica que, quando um programa de educação bilíngue é subtrativo, transicional ou assimilacionista, a instrução na língua materna minorizada se limita à fase inicial da escolarização, somente até que a criança consiga acompanhar as aulas na língua-alvo. Assim, o objetivo principal não é o bilinguismo e sim o desenvolvimento de um monolinguismo na língua majoritária. Essa estrutura é muito comum em modelos de ensino por imersão, nos quais os alunos se tornam bilíngues à medida que usam na escola uma língua diferente daquela que é falada em casa.

Na imersão, não existe acolhimento da língua materna ou preocupação em estimular o falante a desenvolver seus repertórios espaciais acomodando a eles os recursos da nova língua. É o aprendiz que deve se acomodar a essa língua, pois somente ela importa. Não por acaso, o ensino de língua por imersão é conhecido como sink or swim: é como se o falante fosse atirado a um mar de recursos linguísticos desconhecidos, e aprender a nadar em meio a eles fosse a sua única chance de sobreviver.

Podemos observar a mesma lógica hostil no ensino de uma língua adicional fora do contexto escolar: se a língua materna teuto-brasileira é tolerada como fonte de conhecimento somente até que o aprendiz adulto consiga acompanhar as aulas em alemão padrão, sendo abandonada assim que ele se iguala aos demais aprendizes do mesmo nível, percebe-se uma postura assimilacionista.

Porém, o objetivo de aprender uma língua é, ou deveria ser, ampliar repertórios e visões de mundo, em vez de diminuí-los, substituindo a língua minoritária por uma língua com maior validade dentro dos parâmetros coloniais - isto é, uma língua europeia e com status de língua oficial. Essa atitude reflete a concepção de bilinguismo como subtração, advinda da colonialidade linguística. Assim, nota-se um indício de como o bilinguismo ainda é empregado como estratégia para consolidar a ideologia do monolinguismo, segundo a qual somente a língua validada pela Europa é língua de verdade.

A verdadeira valorização do conhecimento do aluno pressupõe uma atitude oposta à assimilacionista, que tem como objetivo mais ou menos explícito o esquecimento da língua minoritária. A fala de [F2] está mais de acordo com o que se entende por promover o bilinguismo de adição:

[F2]: [...] explicar, realmente, como que é, que se deu essa diferença entre as línguas, tal, falar que, joia, mas que, de repente, ela precisa também ter a visão do... do Hochdeutsch, pra... pra ter uma coisa mais global, tal, e que a gente podia trabalhar as duas coisas ao mesmo tempo. De repente, até propondo dela me ensinar o dela, que eu, provavelmente, não saberia, e... e a gente ir trocando as pronúncias e os conhecimentos.

Aqui vemos uma visão menos hierarquizada e mais horizontal, dos saberes que a professora e o aluno trazem para a sala de aula, pois a professora se mostra disposta a aprender com o aluno ao mesmo tempo em que lhe ensina algo. Desse modo, a língua minorizada não é empregada somente como recurso para atingir o domínio de uma variedade mais valorizada, mas é considerada igualmente objeto de conhecimento, na medida em que a professora mostra interesse por aprendê-la.

Esse movimento reflete uma postura dialógica na educação, que pressupõe tanto o aluno como o professor como “sujeitos do processo em que crescem juntos, e em que os ‘argumentos de autoridade’ já não valem” (FREIRE 2019 [1968]FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 71ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019 [1968].: 96). Afinal, é necessário saber escutar os alunos: não é falando a eles que aprendemos a escutá-los, e sim, é escutando que aprendemos a falar com eles (FREIRE 2019 [1996]FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz & Terra, 2019 [1996].: 111).

[F3] complementa a fala da colega:

[F3]: O que eu gostei do que a [F2] falou foi que ela comentou sobre o aluno ensinar algumas coisas, algumas palavras. Eu acho que essa troca de experiência é muito legal, porque a gente estimula também o aluno. A gente faz isso com os falantes de português. Então a gente pode olhar também pra esse aluno e também pensar em como estimulá-lo, porque se se a gente criar uma barreira ali com ele, ele não vai conseguir nem aprender o, o alemão padrão, vai acabar acontecendo esse... essa dificuldade dele, de ele conseguir aprender o básico, né? Então eu acho que primeiro eu tentaria criar essa troca de experiência, esse ambiente saudável, pra que ele se sinta confortável. E aí conseguir ir ensinando com ele, e aprendendo com ele, e estimulando cada vez mais. Acho que isso é importante.

A fala de [F3] defende a troca de conhecimentos com o objetivo de estimular o aluno a progredir de maneira saudável e confortável na aprendizagem do Hochdeutsch. A justificativa é plausível, mas reflete uma visão de língua não muito horizontal, pois remete à estratégia de tolerar o bilinguismo envolvendo uma língua minorizada como mero degrau para atingir o domínio da variedade hegemônica.

Além disso, [F3] menciona a preocupação com uma possível dificuldade de esse aluno “conseguir aprender o básico”, caso não haja espaço para a sua variedade linguística na aula de alemão padrão. Trata-se de uma preocupação um tanto quanto intrigante, pois a descrição da situação 1 deixa claro que o aluno já atingiu um nível básico na fala e avançado na compreensão. É possível depreender que [F3], assim como [A2] e [A3], acredita que o melhor para esse aluno seja começar a aprender o Hochdeutsch do zero, como qualquer outro aprendiz sem conhecimentos prévios - ainda que ela pareça não estar plenamente consciente dessa crença.

A respeito de crenças negativas sobre o conhecimento de línguas teuto-brasileiras na aprendizagem do alemão padrão, um estudo realizado em Santa Catarina por Kersch & Sauer (2010) revelou o seguinte: embora a professora e os alunos pensassem que o Hunsrückisch atrapalhava a aprendizagem da escrita em alemão padrão, concluiu-se que as dificuldades levantadas poderiam não ser decorrentes do conhecimento do Hunsrückisch, e sim do próprio português.

Nota-se aí um exemplo de como a estigmatização dos falantes de línguas minoritárias - resquício da colonialidade - não se sustenta diante de um olhar mais atento. Entretanto, é igualmente resquício da colonialidade afirmar que a dificuldade de aprendizagem do alemão padrão decorre do conhecimento do português brasileiro - isto é, que a dificuldade de se aprender uma língua é devida a conhecimentos de outra língua.

Vê-se aí a reprodução do paradigma monolíngue que chama interferência, termo de conotação pejorativa, ao processo de integração de saberes oriundos de diversas línguas nos repertórios espaciais do aprendiz. Afinal, a divisão de recursos linguísticos entre línguas isoladas é artificial. Afirmar que uma delas tem o poder de prejudicar o desenvolvimento de outra é considerar que esse desenvolvimento só é bem-sucedido quando o aprendiz em questão se aproxima o máximo possível de um falante monolíngue da nova língua.

[A4] transforma a ideia de valorizar os conhecimentos do aluno em uma proposta mais concreta:

[A4]: É, eu acho que nesse sentido eu proporia uma revisão, né? Pá, vamos a partir do que você conhece, vamos revisar o... algumas, algumas... ainda que, é, a questão é que você não entende, né? (Risos) Então, mas ainda assim, como a [A3] disse, valorizar muito essa, essa, esse vocabulário que ela já traz, né, internalizado, e... e propor que fosse feita uma, uma revisão pra que ela pudesse dominar também, é... o Standarddeutsch4 4 Alemão padrão. , Hochdeutsch, que vai ser pra ela mais uma, uma variante, e uma variante que talvez possibilite que ela compreenda outras pessoas, de outras regiões, que... assim, mostrando que isso pode ampliar aquilo que ela já conhece, né?

O que [A4] denomina aqui como “revisão” funciona também como avaliação diagnóstica ao possibilitar que a professora se aproxime dos saberes que a aluna traz consigo. Se avaliar é diagnosticar, a atitude diagnóstica só funciona quando a avaliação serve como ponto de partida para o planejamento das aulas, e não ignorada, fazendo com que o aprendiz comece a aprender a língua do básico - conforme sugeriram [A2] e [A3], e, de maneira mais sutil, [F3].

[A5] traz um exemplo específico de como dar início a essa revisão:

[A5]: [...] se eu não entendesse o que ela falasse, eu ia convidá-la mesmo a... ter aula com o Hochdeutsch e... pegar algum tema que abarcasse algo que... transversasse A1, A2, B1 pra conseguir dialogar, um tema que fosse... que todo mundo, tipo, o que você faz no final de semana, ou o que você gostaria de fazer, e trabalhar, sei lá, Konjunktiv II. Não sei. E a partir disso ir treinando a pronúncia, né, porque se ela falar, por exemplo, Konjunktiv II, é o maior problema, né, se eles... se falar como se fosse Präteritum, aí não dá pra entender (risos).

[A4] dá continuidade a seu raciocínio:

[A4]: Não como uma forma de dizer, ai, esse daí que você fala ninguém mais fala, ou alguma coisa assim, mas no sentido de ampliar mesmo o domínio, e... e as possibilidades dela num contexto de eventualmente ir pra Alemanha, ou de precisar desse alemão pra, enfim, pra se comunicar com outras pessoas, que não daquele... daquele círculo ou daquela região onde ela aprendeu.

Aproveitar o conhecimento lexical do aprendiz e começar com uma revisão, que servirá também como avaliação diagnóstica para a professora, é uma forma de valorizar de fato o conhecimento do aprendiz. Não foi isso o que [A3] sugeriu anteriormente. Mas nesta fala de [A4] transparece a ideia de que o Hochdeutsch venha a ser apenas mais uma variedade linguística no repertório do falante.

Ainda na fala citada acima, a possibilidade de ir para a Alemanha aparece como eventual meta de quem aprende a língua, e, embora essa não seja exatamente uma visão decolonial, seria ingênuo ignorarmos o fato de que muitos aprendizes de alemão têm esse objetivo.

3.3 Vivências

Saindo do campo das hipóteses, [F4] afirma já ter passado pela situação proposta.

[F4]: Posso falar? Então, eu, na verdade, eu tive um caso, assim, na verdade (risos). Eu tinha, tive um aluno que ele era do Sul, né? [...] E eu achava superinteressante, e ele realmente, ele tinha uma pronúncia maravilhosa, e trazia várias palavras, mas... e compreendia muito bem, porque a avó falava, né, o alemão, mas ele ainda tava, né, tinha um nível... não conseguia se comunicar, acho que, mais, talvez, por falta de contato, né, porque ele perdeu o contato com a língua, do que por não saber.

É interessante aqui a menção à pronúncia maravilhosa do falante de língua teuto-brasileira, pois geralmente não é assim que esses falares são considerados: para a sociedade majoritária “quem fala alemão é visto como colono, tem pouca instrução e fala um dialeto, isto é, uma língua considerada inferior” (FRITZEN 2008FRITZEN, Maristela P. Ich spreche anders, aber das ist auch Deutsch: línguas em conflito numa escola rural localizada em zona de imigração no sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., v. 47, n. 2, 341-356, 2008.: 344), “pelo fato de se distanciar da língua falada no país de origem ou por não ter passado pelo ensino formal na escola” (FRITZEN 2012FRITZEN, Maristela P. “Ia na escola alemã e de um dia pro outro fechou. E nós não sabíamos falar o português”: refletindo sobre as políticas linguísticas em contexto de língua minoritária. Linguagem & Ensino, v. 15, n. 1, 113-138, 2012.: 115).

Isso acontece porque um dos mais gritantes reflexos da colonialidade linguística no Brasil atual é a ideia de que só são válidas como línguas as possibilidades de comunicação prescritas em uma gramática. Por esse motivo, variedades linguísticas não massivamente difundidas pelo ensino formal costumam ser relegadas ao lado abissal da linha divisória entre metrópole e colônia (SOUSA SANTOS 2019SOUSA SANTOS, Boaventura de. O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.).

Também [A5] já viveu uma situação semelhante.

[A5]: eu tenho um aluno de Joinville que tem um... um avô... um sogro que fala a variante. Então, ele... nas aulas comigo, ele tem muito essa postura comparativa. E aí, a gente acaba aprendendo muito juntos nesse sentido, né? Então, o que ele não sabe, eu consigo explicar. E quando tem alguma diferença que ele não consegue entender, eu consigo explicar também, e ele acaba dominando os dois, né? Mas o interesse dele é o Hochdeutsch, então, eu consigo atender melhor. Mas eu acho que é... é um desafio interessante, a pessoa tem que estar disposta a te ajudar a aprender, também, um pouco, né, nesse caso. (risos)

Pesquisadora: E aí você acaba aprendendo também?

[A5]: É, eu acabo... eu acabo, é, fazendo algumas anotações dessas variações e aí vai ficando mais fácil de eu entender quando esse aluno meu, por exemplo, fala muito rápido, que eu percebo que tem essa influência de conversar com o sogro, aí eu falo ach so, bitte langsam5 5 Bem… [fale] devagar, por favor. , e aí eu consigo entender essas variantes também e explicar pra ele onde tá a diferença, enfim... então, dá pra fazer um jogo, assim.

[A5] não tem medo de demonstrar que não entende tudo que o aluno diz quando ele fala muito rápido, a fim de sustentar uma imagem de quem sabe tudo. Essa postura condiz com a proposta de descentralizar o professor enquanto detentor de todo o conhecimento. [A6] complementa, compartilhando seus exemplos pessoais:

[A6]: Eu acho que talvez a gente possa até aprender, assim, palavras, de vocabulário, que não são mais comuns no Hochdeutsch atual. Porque muitos dialetos, essas variantes do Sul são de imigrantes, de décadas passadas, que vieram pro Brasil, e que aí teve influência do português, aí ficou uma... uma mistura daqui e de lá, e... pode haver algumas palavras que ainda se usam nos dialetos daqui e já não são tão comuns no Hochdeutsch... ou digamos assim na Alemanha. Eu sei que tem a palavra Penal em Santa Catarina, que é pra estojo, que... que vem do latim, é de pena, que é tipo Federmäppchen, e pelo uma vez que eu pesquisei, assim, eu vi que... que é de alguma região, não lembra agora da onde, talvez da Alemanha ou da Áustria, ou seja, acho que era talvez uma palavra comum, sei lá, nos anos trinta, vinte, que aqueles imigrantes usavam, e que acabou virando palavra do vocabulário do português das pessoas dali também. Então, acho que teria algumas... alguns aprendizados interessantes, assim, também, meio que... de vocabulário, um pouco também de história, né?

[A5]: Sim.

[A6]: Dependendo da família, porque você pode também ter contato com a história da família da aluna... ou às vezes a aluna quer ler cartas ou documentos, dos... dos parentes antigos, aí você também vai estar ali se informando ou conhecendo.

A fala de [A6] representa o reconhecimento da língua minoritária como bem cultural digno de ser preservado por seus falantes. Ele não defende que se corrija a pronúncia do aprendiz em questão; em vez disso, fala de trocar conhecimento com ele, de maneira horizontal.

[A2] também fala em troca de conhecimentos com o aluno:

[A2]: Talvez para, pra valorizar um pouco a língua dele também, assim, se ele for... do Sul do Brasil, falar, ah, então me ensina como que fala, sei lá, Marmelade6 6 Geleia. , eles falam lá Schmier, ah então é Schmier, fazer um aprendizado meio que um ensina o outro e valorizá-lo né.

[A5], [A6] e [F4] se referem ao aluno como um usuário pleno da língua, e não como aprendiz que ainda não atingiu o nível de falante. Segundo [A5], seu aluno conversa com o sogro; [A6] e [F4] reconhecem em experiências similares a existência de saberes que o aluno carregava consigo, enquanto eles, na qualidade de professores, não dispunham dos mesmos conhecimentos.

Em outro trecho, [A6] relata ter vivenciado algo parecido com a situação 1:

[A6]: o primeiro lugar que eu dei aula foi na UFSC, né, na universidade, nos cursos de idiomas que tem, e eu tive duas alunas que eram... não lembro agora de qual cidade, mas que... sabiam já falar alemão, e aconteceu uma situação um pouco parecida assim, que às vezes elas falavam alguma coisa na aula, e eu... tinha que ouvir umas duas ou três vezes pra entender, ah, que ela tá falando A como I ou I como... assim, aí eu entendia a palavra. Mas assim... eu sempre tinha que pedir, tipo, pra elas, pra... pra elas repetirem, assim, porque é... é como se eu estivesse ouvindo talvez um dialeto...

[A6]: [...] eu, pessoalmente, sou mais familiarizado com o Hochdeutsch mesmo, de livro didático ou de telejornais e coisas assim, porque eu nunca morei na Alemanha, então, não tenho muito contato com um dialeto assim.

[A6] não deixa claro se chegou a comentar com essas alunas que também existem variações dialetais na Alemanha, como fez [A1]. Mas sua fala permite inferir que mesmo quando o professor não faz essa comparação de maneira explícita na aula, ele a traz interiorizada.

Vamos aprofundar a reflexão sobre o “alemão de livro didático”.

3.4 Materiais e métodos de ensino

Em trecho reproduzido anteriormente, [A1] comenta que existem variantes da língua alemã, mas que nas aulas se trabalha com o Hochdeutsch. Ainda sobre a comparação entre variantes e a língua padrão, ela sugere:

[A1]: Hoje em dia, né, com as aulas online, até com as... com as tecnologias, a gente pode até, poderia até, talvez, trazer vídeos, né, dos próprios nativos. Porque tem vídeos, né, na internet, em que se compara o Hochdeutsch com outro dialeto. Então, pra mostrar essa realidade da Alemanha, de dialetos pra aluna, a gente poderia até trazer um vídeo, falar, olha, é assim também, na Alemanha, né, então, não tem nenhum problema você ter, né, o seu dialeto, mas você vai aprender uma outra, né, uma outra forma, aí, da língua, que é mais utilizada... você vai ser entendida por todos e todos vão, é, te... te entender. Então vai abrir mais portas pra você, né?

Essa fala reforça a impressão de que [A1] não consegue pensar a língua alemã de maneira dissociada da Alemanha. Atrelar cada língua a um Estado-nação foi parte do projeto colonial de categorização e hierarquização de conhecimentos, e falas como a de [A1], em pleno século XXI, mostram o quanto esse projeto foi bem-sucedido.

A menção a trazer para a sala de aula vídeos “dos próprios nativos”, em que se comparam o alemão padrão e outras variedades linguísticas presentes na Alemanha, reforça que o falante de uma língua teuto-brasileira não é considerado por [A1] como falante nativo de uma variedade do alemão. Nota-se que “nativo” é uma palavra que se aplica somente a falantes nascidos nos países hegemônicos.

Tal argumento não seria válido caso a variedade teuto-brasileira em questão fosse reconhecida como outra língua que não o alemão padrão, implicando que o falante dessa outra língua não poderia ser considerado um falante nativo do alemão padrão. Mas não é esse o caso: a atitude mais comum diante de variedades teuto-brasileiras é a de não as considerar línguas propriamente ditas, e sim, “apenas” dialetos (FRITZEN 2008FRITZEN, Maristela P. Ich spreche anders, aber das ist auch Deutsch: línguas em conflito numa escola rural localizada em zona de imigração no sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., v. 47, n. 2, 341-356, 2008.; 2012).

Essa lógica colonial, que dá origem aos mais diversos preconceitos linguísticos, é a mesma que determina que línguas de imigração como o pomerano e o hunsrückisch ainda sejam consideradas dialetos em vez de línguas de fato - porque carecem do prestígio que só lhes poderia conferir uma padronização gramatical oficializada. Essas línguas chegam a ser consideradas motivo de vergonha para seus falantes, tal a força da colonialidade linguística que hierarquiza línguas e modos de expressão (Cf. MAAS; FRITZEN 2017MAAS, Martha R.; FRITZEN, Maristela P. “A gente fala muito errado o português”: representações sobre línguas em um contexto plurilíngue. Organon, v. 32, n. 62, 2017. DOI: 10.22456/2238-8915.72106
https://doi.org/10.22456/2238-8915.72106...
). Em última análise, é a mesma lógica que determina que as línguas indígenas continuem sendo exterminadas no território brasileiro.

As falas de [A1] reproduzem a visão colonial: “não tem nenhum problema você ter [...] o seu dialeto, mas você vai aprender uma outra [...] forma [...] da língua, que é mais utilizada... você vai ser entendida por todos e todos vão [...] te entender”. Vê-se aí a necessidade de enquadrar o falante de uma língua de prestígio em um lugar de homogeneidade, a fim de que “todos” lhe entendam - isto é, todos os falantes nativos da variedade hegemônica da língua, desprezando-se qualquer outra.

Trabalhar para retirar do falante de variedade minoritária o protagonismo na própria biografia linguística é relegá-lo a coadjuvante do padrão linguístico da metrópole.

Por fim, o argumento de que o conhecimento do Hochdeutsch é capaz de “abrir mais portas” também merece uma reflexão crítica. É verdade que o povo brasileiro ocupa uma posição de desvantagem em relação aos países do Norte global, inclusive do ponto de vista linguístico. É verdade que ter acesso às línguas de prestígio representa ter acesso a melhores oportunidades, do ponto de vista socioeconômico, do que aquelas destinadas à grande maioria da população. Mas nada disso deve ser sinônimo de conformidade e passividade diante das forças hegemônicas que nos mantêm em posição subalterna.

[A3]: É, eu também faria mais ou menos como a [A1] falou, mas, é... já de início conversaria com ela, que, que o alemão, assim, que a gente ensina, é o Hochdeutsch, e pra isso a gente ia adotar um livro, né, um método, tudo, né? E... e nesse método, hã, ela poderia já ver a, a variante, né? Então, é, trabalhar, já, com o livro, já, que já tem a base... da teoria, né?

Percebe-se a crença em que o único caminho para ensinar a língua alemã a um aprendiz brasileiro passa por dois fatores imutáveis. O primeiro é partir do alemão padrão mais básico, como em qualquer outro curso para iniciantes, desconsiderando toda a vivência que esse aprendiz tem em uma língua muito similar. Essa postura representa uma fiel reprodução da visão de aluno como tábula rasa, conforme defendido por John Locke no século XVII, aliada à premissa básica da colonialidade: o verdadeiro conhecimento vem da Europa.

O segundo fator é o “método”, palavra frequentemente empregada como sinônimo de livro didático: o ensino é embasado pelo livro didático importado, inclusive para trabalhar com algo que o aluno traz a partir da própria vivência. Não se tem preparo para trabalhar a partir de saberes que emergem do cotidiano, mas somente do conhecimento instituído como formal - ou, em outras palavras, não se tem preparo para trabalhar com a realidade do aluno, mas somente com o conhecimento definido como válido no material didático importado. Novamente, reafirma-se a ideologia de que o verdadeiro conhecimento vem da Europa.

O conceito de língua estruturada e padronizada, tão distante quanto possível das influências trazidas por outras línguas ou até mesmo variantes de menor prestígio de uma mesma língua, serviu e ainda serve como pano de fundo para o desenvolvimento de métodos de ensino de línguas. Segundo Kumaravadivelu (2016KUMARAVADIVELU, Bala. The Decolonial Option in English Teaching: Can the Subaltern Act? TESOL Quarterly, v. 50, n. 1, 66-85, 2016.: 73), o método é a área sobre a qual as forças hegemônicas sentem necessidade de exercer o maior controle, “porque ele funciona como um princípio operacional que dá forma a todos os outros aspectos da educação linguística”7 7 No original, “because method functions as an operating principle shaping all other aspects of language education” (p. 73). . Segundo o autor, todos os métodos vindos dos países centrais estão claramente ligados ao ideal do falante nativo - e os materiais didáticos vindos desses países servem diretamente à imposição dos métodos.

Mas o questionamento dos métodos de ensino de línguas não tem base somente na perspectiva decolonial, e não é de hoje que sua eficácia vem sendo questionada. O desenvolvimento das teorias de aprendizagem que serviram como base teórica na chamada Era dos Grandes Métodos, tanto pelo viés da Psicologia quanto da Linguística, levou à impressão de que cada método novo era a solução ideal para todos os aprendizes de outras línguas, fazendo com que fossem praticamente descartados os métodos anteriores. Assim, foi-se consolidando uma busca pelo melhor método, pelo método ideal.

Uma informação pouco difundida é que essa busca não começou a ser desacreditada somente no fim dos anos 1980. Em meados da década anterior, já se entendia que não seria possível descobrir o melhor método de ensino de línguas, e as novas propostas nesse sentido passaram a ser denominadas ‘orientações’ ou ‘abordagens’ (Rösler 2012RÖSLER, Dietmar. Deutsch als Fremdsprache. Eine Einführung. Stuttgart: Metzler, 2012.: 76), numa tentativa de conferir flexibilidade às premissas que deveriam embasar o trabalho do professor.

Além disso, a discussão sobre adaptação do material didático para o ensino de alemão às necessidades dos aprendizes no Brasil remonta a décadas anteriores ao questionamento do próprio conceito de método. Conforme relata Uphoff (2011UPHOFF, Dörthe. Uma pequena história do ensino de alemão no Brasil. In: BOHUNOVSKY, R. (Org.). Ensinar alemão no Brasil: contextos e conteúdos. Curitiba: Editora UFPR, 2011, 13-30.: 16-17), o autor da revista Das Schulbuch8 8 “O livro escolar”. , publicada pela primeira vez em 1917 com o objetivo de estabelecer um espaço de debate para a questão dos materiais didáticos aqui produzidos, escreveu já na abertura do volume inaugural:

Qualquer pessoa que pensa entenderá facilmente que a simples aplicação dos livros didáticos da Alemanha era apenas uma medida emergencial e provisória, na primeira fase da colonização no Brasil. O meio ao qual o professor precisa introduzir a criança, e os objetivos para os quais a conduz, aqui não são os mesmos de lá (ROTERMUND 1917ROTERMUND, Wilhelm. Die ersten deutschen Schulbücher. Das Schulbuch: Organ zum Ausbau der Schulliteratur in Brasilien, v. 1, 2-3, 2017.: 2).

Wilhelm Rotermund defendia que o meio e os objetivos de se aprender alemão no Brasil e na Alemanha eram muito diferentes, e que, por isso, não bastava importar materiais da Alemanha para ensinar aqui. Os materiais nacionais continham textos sobre aspectos do Brasil, contribuindo para criar uma identidade teuto-brasileira (UPHOFF 2011UPHOFF, Dörthe. Uma pequena história do ensino de alemão no Brasil. In: BOHUNOVSKY, R. (Org.). Ensinar alemão no Brasil: contextos e conteúdos. Curitiba: Editora UFPR, 2011, 13-30.: 16-17).

Porém, conforme mencionado anteriormente, a colonialidade impôs a ideia de que é mais fácil importar soluções didáticas prontas do que partir das necessidades e dos objetivos do aprendiz brasileiro para elaborar um curso de língua.

3.5 Objetivos de aprendizagem

[A5] e [A6] consideram a possibilidade de ser interessante, para o aprendiz em questão, buscar aulas com um professor mais familiarizado com as línguas teuto-brasileiras.

[A6]: Mas eu acho que, pessoalmente, eu, eu teria um pouco de receio, assim, de... de aceitar a aluna, porque eu não quero, também, ter que toda hora interromper, porque eu não tô entendendo. Eu acho que o meu... eu acho que eu passaria mesmo pra um professor do Sul, que tem mais familiaridade com... com essa variante.

[A5]: É, se o aluno não tá disposto a estar fazendo essa troca, a ter essa paciência, de certa forma, com o professor, aí realmente eu também acho que seria mais interessante pro aluno... ter alguém que atendesse o que ele precisa, que entende melhor.

[F5] faz questão de pontuar que procuraria entender a motivação do aluno para aprender o alemão padrão, e que não consideraria um problema a diferença na pronúncia.

[F5]: Ah, eu provavelmente esclareceria que... abriria o jogo, então, né? Acho que eu esclareceria essa questão dele falar uma língua teuto-brasileira, e que eu ensino Hochdeutsch, e eu explicaria a questão pra ele e eu perguntaria se ele quer, por que ele gostaria de continuar o curso com essa ênfase no Hochdeutsch, mas que eu não, por outro lado, não corrigiria ele por falar de um jeito mais seguindo a variante teuto-brasileira. Mas isso também, mas eu também poderia continuar tendo o problema de não entender ele, esse eu não saberia resolver. É difícil essa questão (risos).

A fala de [F5] sobre “continuar o curso com essa ênfase no Hochdeutsch” demonstra um entendimento de que o aluno já tem conhecimento suficiente da língua para comunicar-se, conforme consta na descrição da situação 1, e que não necessariamente precisaria adequar-se ao padrão da Alemanha.

Ele continua:

[F5]: Também tomando muito cuidado na hora dessa explicação, pra não ficar a impressão de que eu tô deixando um alemão que é superior, ou que o alemão dele é errado, que não tem tanta variedade quanto. Então, problematizar essa questão, também, com o aluno.

Problematizar a questão é importante porque não necessariamente o aluno acredita na superioridade do Hochdeutsch em relação à sua variedade linguística. Essa crença não seria o único motivo capaz de levar um falante de língua teuto-brasileira a buscar aulas de alemão padrão: a colonialidade se manifesta na busca pela validação de saberes não-hegemônicos por parte dos países hegemônicos.

[A4] traz à tona outro aspecto da busca de um falante de língua teuto-brasileira por aulas de alemão padrão:

[A4]: Porque às vezes a pessoa só quer... tipo, ah, não, nem quero ir pra Alemanha, eu nem, né? Só não quero esquecer, ou só não quero perder, eu tenho um vínculo familiar, tenho um... né? Então, eu acho que depende muito de quais são os objetivos dela.

As aulas de alemão padrão são praticamente a única opção disponível ao falante de língua teuto-brasileira que pretende manter o contato com a herança linguístico-cultural da família. Quase não se encontram aulas de variações minoritárias fora das comunidades em que são faladas, e, mesmo nestas, a oferta e a estrutura dos cursos não se compara àquela que se vem consolidando por meio da expansão da indústria alemã de materiais didáticos desde a década de 1950, conforme mencionamos no capítulo 1.1.

Em outras palavras, o contato com o alemão padrão acaba sendo o único meio de consolidação da língua de herança no repertório do indivíduo. Essa situação se configura por meio da monocultura da superioridade do global, que determina que propostas de organização locais são menos válidas do que aquelas hegemônicas, isto é, impostas por quem detém o poder (SOUSA SANTOS 2019SOUSA SANTOS, Boaventura de. O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.: 50).

A melhor qualidade de vida dos moradores de países hegemônicos, constituída por meio da colonialidade, faz com que muitos indivíduos de países menos privilegiados sonhem em estudar ou trabalhar na Europa. Sonhar com uma vida mais justa é um direito de todos, e deve haver espaço da aula de língua para acolher esse direito e prover o conhecimento linguístico necessário para que ele esteja mais próximo de se concretizar. Isso não significa, entretanto, presumir que ir para a Europa é o grande objetivo de todos os aprendizes brasileiros de alemão - tampouco reforçar a visão colonial de um continente cultuo e civilizado em oposição ao nosso.

[A6]: Eu acho que depende um pouco do objetivo dessa aluna, se ela quer aprender alemão só por diversão, assim, porque ela é interessada no idioma [...] Mas se o objetivo dela é estudar numa universidade alemã, então eu falaria, ah, a gente vai ter que... porque ela já entende bastante, por já ter crescido, então acho que ela não vai ter problema no entendimento, mas na fala é importante, talvez, pensar, será que no contexto dela na Alemanha, ela vai conseguir se fazer entender, ou não?

De fato, a não ser que o objetivo do aprendiz seja estudar ou trabalhar na Alemanha, cabe refletirmos sobre os possíveis motivos que a levam a crer que precisa aprender o alemão padrão, sendo plenamente capaz de comunicar-se na sua língua de herança. Nas palavras de Fritzen (2008FRITZEN, Maristela P. Ich spreche anders, aber das ist auch Deutsch: línguas em conflito numa escola rural localizada em zona de imigração no sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., v. 47, n. 2, 341-356, 2008.: 346-347, grifo do autor),

mesmo que pudéssemos de fato constatar que o alemão falado nos grupos de descendentes fosse totalmente incompreensível para os alemães da Alemanha [...], isso por si só não tiraria seu valor dentro dessas comunidades. As pessoas que falam alemão em zonas de imigração aqui no Brasil não o aprendem em casa com o objetivo de falarem alemão com alemães da Alemanha.

A postura de [A6] parece não reforçar que é melhor se fazer entender por “alemães da Alemanha” do que usar a língua em contexto brasileiro, sem ter como objetivo absoluto o reconhecimento do falante nativo de um país hegemônico. Do mesmo modo, [A5] e [F6] preferem esclarecer que dominam a variação padrão da língua alemã, mas sem diminuir o valor da herança teuto-brasileira ou tratá-la como um problema a ser resolvido ao longo das aulas, como na proposta do bilinguismo de subtração.

[A5]: É, eu acho que vai muito de um... do que você comentou do interesse do aluno, né? Como a aula é particular, você tem que atender o que o aluno precisa, né? Mas eu explicaria, olha, eu domino o Hochdeutsch, variantes de qualquer lugar, são um desafio (risos), eu tô disposta a aprender, né, de repente, porque pra mim também é interessante, né, como eu nunca tive tanto contato [...]

[F6]: [...] a gente tem que encontrar um, não um meio termo, mas um pouco meio termo (risos), que é de aproveitar o que ele já tem pra poder enriquecer a aula, mas também apresentar o Hochdeutsch, né? Então, eu acho que talvez eu faria algo similar à Clarice, tipo, olha, então, o que você fala é, na verdade, uma variante, e tal. E também tem o Hochdeutsch e pipipi popopó, e o que a gente pode fazer é dar uma revisada, porque assim, eu vou te apresentando os outros elementos da... do outro alemão que talvez você não tenha tanto contato, mas que é importante você saber, e fazendo esse meio termo, pra pessoa também não sentir que tipo, ai, meu Deus, eu não sei falar alemão, eu não sei falar nada de nada, porque eu acho que esse não é um sentimento saudável (risos), né? Mas, tipo... e aí, ir apresentando pra ela.

A única ressalva à fala de [F6] é que dizer ao aluno “o que você fala é, na verdade, uma variante” pode soar como uma tentativa de diminuir a importância desse conhecimento prévio. Por outro lado, essa pode ser uma forma de marcar o reconhecimento da língua teuto-brasileira como independente do Hochdeutsch.

É fundamental que a professora esteja consciente dessa dicotomia e faça uma escolha consciente de qual perspectiva será levada adiante em sua forma de ensinar o alemão padrão. Porém, não se trata de uma escolha a ser feita pela professora de maneira unilateral: é preciso que o aprendiz participe dessa decisão a partir de uma consciência crítica do papel que as línguas teuto-brasileiras representam e do valor histórico-cultural que carregam consigo, em paralelo aos padrões estabelecidos pela colonialidade.

No plano concreto, isso se manifesta no diálogo constante, conforme resumido por [F2].

[F2]: você tem que conversar com o cara, porque você tem que chegar a um meio termo, né? Ele tem uma língua que não pode ser jogada fora, e você tem que apresentar uma outra versão dessa língua pra ele. Então, a gente tem que conversar, ali, e a gente tem que chegar numa, numa solução, nós dois.

Boa parte dos participantes, embora em diferentes níveis de consciência, acreditam que o ponto de partida do trabalho com um aprendiz de alemão padrão que tem conhecimento de uma língua teuto-brasileira é o objetivo desse aluno: o que ele pretende ao buscar aulas de alemão padrão? Esse objetivo não está necessariamente atrelado aos objetivos de aprendizagem definidos pela mentalidade colonial. Entretanto, nota-se claramente uma postura mais crítica à colonialidade linguística por parte dos professores em formação, conforme a hipótese inicial, enquanto a maior parte dos professores já atuantes não chega a reconhecer explicitamente que pautar-se pela suposta superioridade do alemão padrão é um problema.

Em resumo, o ponto de partida para superar a colonialidade linguística nas práticas de ensino de alemão está na escuta ativa e na provocação crítica, dois pontos-chave na relação com o aluno para a construção de uma verdadeira Educação Linguística em língua alemã.

4 Considerações finais

A estigmatização das línguas de imigração faladas no Brasil, que se desenvolveram segundo um curso próprio e muito diferente das línguas europeias que lhes serviram de base, deu origem à impressão de que é necessário apropriar-se da variedade europeia. Esse é um dos motivos que leva falantes de línguas teuto-brasileiras a tomar aulas de alemão padrão.

Como resultado, temos no Brasil um interesse quase que exclusivo em aprender a variedade padrão da Alemanha, o Hochdeutsch, e um desconhecimento ou desprezo das línguas teuto-brasileiras. Quando se discute o pluricentrismo da língua alemã, mesmo no Brasil, são mencionados como exemplos de países onde se fala a língua somente os três principais que a têm como língua oficial no continente europeu - Alemanha, Áustria e Suíça - conforme demonstra a pesquisa de Meirelles (2020MEIRELLES, Camilla. DACH-Prinzip e pluricentrismo na formação de professores de alemão no estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado (Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras. Universidade Federal Fluminense, 2020. ).

Porém, a não ser que o objetivo do aprendiz seja estudar ou trabalhar na Alemanha, cabe refletirmos sobre os possíveis motivos que a levam a crer que precisa aprender o alemão padrão, sendo plenamente capaz de comunicar-se na sua língua de herança. A ausência desse questionamento demonstra que as línguas teuto-brasileiras não são reconhecidas como línguas em status de igualdade em relação às línguas de prestígio europeias, tampouco como variantes do alemão. Consequentemente, professores brasileiros de alemão, salvo aqueles inseridos nas comunidades de imigrantes, não são preparados para trabalhar com as variedades do alemão que existem dentro do próprio território brasileiro, mas somente com o Hochdeutsch.

Assim, se aprender o alemão padrão representa a única possibilidade de manter a língua de herança no repertório do indivíduo, isso mostra o quanto estão colonizados os repertórios espaciais desse indivíduo: o contato sistemático com a herança cultural e afetiva da família só pode ser acessado por meio de parâmetros coloniais.

Nesse sentido, o professor brasileiro demonstra submissão à colonialidade ao iniciar as aulas de alemão como se o aluno não soubesse nada a respeito da língua, tanto quanto qualquer outra aprendiz que nunca tivesse tido qualquer contato com ela - porque só é válido o conhecimento que se enquadra nos padrões europeus.

Os mecanismos da colonialidade levam o professor brasileiro de alemão a sentir-se um degrau mais próximo do colonizador, como representante da elite brasileira que serve aos interesses da elite global. A mentalidade colonial fica perfeitamente explícita, por exemplo, quando uma professora afirma que “na Alemanha nós temos dialetos, e que muitas vezes nem os alemães se entendem”. Ela parece não se dar conta de que está sujeita à exclusão abissal por parte dos europeus, ainda que fale muito bem a língua alemã, pois a exclusão abissal incide sobre quem se é e não sobre o que se faz. Aludindo ao prestigiado grupo de falantes de alemão como nós, ela não só reflete a lógica colonial como a reforça, porque essa lógica só se sustenta com a anuência de parte dos subalternos.

Outra fala da mesma professora, no que concerne à variedade de línguas teuto-brasileira e suas grandes diferenças em relação ao alemão padrão, se refere a trazer para as aulas vídeos “dos próprios nativos” que comparem o Hochdeutsch com outras variações da língua dentro da Alemanha. Em outras palavras, ela considera nativas as pessoas nascidas em um país de língua alemã, que dominam variações linguísticas de seu país - mas não os falantes brasileiros de uma variação teuto-brasileira.

Isso porque o “falante nativo” é um mito construído justamente para simbolizar um ideal distante de perfeição na língua. Mais do que distante, inalcançável. Por mais que se esforce, a aluna brasileira não poderá se tornar nativa, isto é, não chegará a ser reconhecida como parte daquele seleto grupo, porque está sujeita à exclusão abissal. É a exclusão abissal a raiz do mito do falante nativo: nenhum conhecimento linguístico, nenhuma vivência em um país hegemônico e nenhuma similaridade fenotípica com os povos brancos do Norte Global confere o poder de cruzar a linha abissal.

Muito diversos podem ser os falantes nativos de uma mesma língua, originários de regiões diferentes de um mesmo país, ou de um grupo de países. Há falantes nativos de idades diferentes, classes sociais diferentes, mesmo cores de pele diferentes. De onde surgiu, então, a ideia de um grupo homogêneo de pessoas a serem imitadas por todos os demais falantes do mundo?

A autoridade linguística do falante nativo deriva daquela do “falante-ouvinte ideal” de Chomsky (Kramsch 1997KRAMSCH, Claire. The Privilege of the Nonnative Speaker. PMLA, v. 112, n. 3, 359-269, 1997.: 362). Antes da década de 1980, esse ideal havia se estendido para além da gramática, incluindo comportamento social e conhecimento cultural. Porém, desde os anos 1990, o número crescente de falantes plurilíngues e multiculturais ao redor do mundo levanta dúvidas sobre a validade do modelo nativo para a aprendizagem de uma língua adicional (Ibidem: 362).

Negar o acesso à língua e ao status de falante, alimentando o mito do nativo, é um projeto colonial. Segundo Paulo Freire (2019 [1968]FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 71ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019 [1968].: 67),

Será na sua convivência com os oprimidos, sabendo-se também um deles - somente a um nível diferente de percepção da realidade - que poderá compreender as formas de ser e comportar-se dos oprimidos, que refletem, em momentos diversos, a estrutura da dominação.

Um primeiro passo para superar o paradigma colonial vai no sentido de valorizar esses conhecimentos de forma genuína, algo muito diferente de afirmar que os valoriza para, em seguida, reforçar que o único alemão correto é aquele importado da Alemanha e consolidado no livro didático. Esse reconhecimento, no entanto, está aquém do necessário para dar um passo no sentido da subversão, isto é, de subverter a colonialidade linguística que se impõe sobre o aprendiz brasileiro de alemão. Não basta reconhecer que um falante de língua teuto-brasileira pode ter outro objetivo que não viajar para um país de língua alemã. É preciso aprofundar o questionamento: qual o problema de viajar para um país de língua alemã e expressar-se em língua teuto-brasileira? Para que serve o reconhecimento de que também existem variações linguísticas na Alemanha, se não para derrubar a suposta necessidade de homogeneizar as formas de expressão?

Mesmo o fato de ainda falarmos em “países de língua alemã” para nos referirmos àqueles onde a língua tem status oficial, desconsiderando a rica paisagem linguística composta por falantes de variações e falantes não-nativos ao redor do mundo, é digno de observação crítica a quem pretende questionar a colonialidade linguística. Mas a pergunta é: de onde vem a ideia de que um falante deveria ocultar sua origem teuto-brasileira ao viajar para um país de língua alemã? Por vezes, ser falante de uma variação de língua europeia parece um ponto de maior desvantagem do que ser um aprendiz iniciante, “do zero”.

A colonialidade não reconhece valor em outras vivências que não aquelas padronizadas por seus moldes. A monocultura do conhecimento válido se faz presente na vergonha e na invalidação da origem teuto-brasileira, tanto ao deparar-se com “os próprios nativos” quanto na ideia de começar do zero os estudos de Hochdeutsch, sugerida por algumas professoras durante as oficinas.

A vergonha e a invalidação da origem teuto-brasileira conquistaram espaço até mesmo nas próprias comunidades teuto-brasileiras, a partir da campanha de nacionalização perpetrada por Getúlio Vargas durante o Estado Novo. Desde então, o descendente de alemão “é visto como colono, tem pouca instrução e fala um dialeto, isto é, uma língua considerada inferior” (Fritzen 2008FRITZEN, Maristela P. Ich spreche anders, aber das ist auch Deutsch: línguas em conflito numa escola rural localizada em zona de imigração no sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., v. 47, n. 2, 341-356, 2008.: 344).

Está claro que o falante de uma variação do alemão teme ser tratado de forma preconceituosa ao viajar para um país de língua alemã, assim como toda pessoa nascida no Sul Global logo percebe que não obterá um tratamento de igualdade na Europa devido à exclusão abissal a que está sujeita. Mas não é ignorando essa questão sociopolítica que vamos contribuir para a emancipação linguística do nosso aluno. Não é ignorando a história e a memória das comunidades teuto-brasileiras no Brasil para ensinar uma língua europeia “do zero”, exatamente como faziam os jesuítas aos nativos durante os primeiros séculos da invasão europeia, que construiremos uma Educação Linguística crítica e eficaz.

Desse modo, o movimento de subversão da colonialidade no ensino de alemão para brasileiros passa pela compreensão de que falar uma língua teuto-brasileira no seio familiar não é, e não precisa ser, um mero passo para atingir o objetivo de se comunicar com nativos da Alemanha (Fritzen 2008FRITZEN, Maristela P. Ich spreche anders, aber das ist auch Deutsch: línguas em conflito numa escola rural localizada em zona de imigração no sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., v. 47, n. 2, 341-356, 2008.: 346-347). Essa é uma falsa impressão que tem raízes na monocultura da classificação social e na monocultura da superioridade do universal e do global, porque pressupõe uma hierarquia entre Alemanha e Brasil, entre a língua padronizada pelo Norte Global e a língua minoritária que resiste no Sul Global.

Subverter a colonialidade linguística no ensino de alemão é abolir o ideal colonial do bilinguismo de transição, em vez de tratar o falante de variedade minoritária como alguém que precisa do conhecimento validado pelo Norte Global. A comparação entre recursos linguísticos deve servir ao propósito de conferir mais recursos ao aprendiz, e não menos recursos - como ocorre nas propostas de bilinguismo de transição, nas quais a interação bilíngue ou translíngue é uma condição temporária, a ser sustentada somente até que se atinja o monolinguismo na língua de prestígio.

Na perspectiva de subversão se encontra a proposição de que professora e aluna troquem conhecimentos, mencionada por [A2], [A5], [A6] e [F4]. Enquanto alguns mencionam ter aprendido termos diferentes para galinha, estojo e geleia, outra afirma que, se a aluna não está disposta a fazer esse tipo de troca com a professora, talvez seja melhor ela buscar outra profissional. Essa percepção inverte a lógica de que é a professora quem deve ter paciência com a aluna, colocando ambos os papéis em horizontalidade. Tanto professora como aluna são indivíduos com conhecimentos a trocar, e passíveis de falhas.

Será que os professores de alemão para alunos brasileiros estão preparados para abrir-se a essas trocas horizontais de conhecimento, em busca de uma Educação Linguística crítica? Não podemos depender da nova geração de professores, que ainda se encontra em formação, para realizar esse feito. Que comecemos hoje mesmo a subverter o paradigma colonial no ensino de alemão, no Brasil e em qualquer outro lugar.

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    Alemão padrão.
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    “O livro escolar”.
  • 1
    Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Editora: Erica Schlude Wels

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2024
  • Aceito
    21 Maio 2024
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