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Filoctetes , de Sófocles a Heiner Müller

[ Philoctetes , from Sophocles to Heiner Müller]

Resumo:

O artigo aborda os dramas acerca do herói grego, herdeiro das armas de Héracles, concebidos por Sófocles e Heiner Müller. No que concerne à tragédia grega, a relação com o ritual sacrificial pelos estudos de Walter Burkert dá o ensejo a uma leitura alternativa da fala final, ex machina , de Héracles e, com isso, de término e sentido do drama. No caso de Müller, discute-se, para além de diferenças e continuidades em relação ao modelo grego, a atualidade da peça em tempos de encruzilhada.

Palavras-chave:
Sófocles; Heiner Müller; Filoctetes ; tragédia

Abstract:

The article focuses on two plays about the Greek hero, heir to the weapons of Heracles, written by Sophocles and Heiner Müller. With regard to the tragedy of Sophocles, the relationship with sacrificial ritual based on the studies of Walter Burkert gives rise to an alternative reading of the final speech, ex machina , of Heracles and the ending and meaning of the drama. In the case of Müller, the article discusses, in addition to differences and continuities in relation to the Greek model, the actuality of the play in times of crossroads.

Keywords:
Sophocles; Heiner Müller; Philoctetes ; tragedy

Ao que tudo indica, o tecido mitológico em torno de Filoctetes, herdeiro e portador do arco infalível de Héracles, parece ter sido moeda corrente na Antiguidade grega, ainda que sua história nos tenha chegado apenas de modo fragmentado. A obra homérica menciona o herói brevemente tanto na Ilíada quanto na Odisseia . Na Ilíada , o canto II enumera os gregos que embarcaram rumo a Troia. Entre os versos 716 e 725, narra-se que Filoctetes teria trazido sete navios, com cinquenta remeiros arqueiros cada, mas que, ao invés de seguir com o exército aqueu, teria sido deixado na ilha de Lemnos, sofrendo indizíveis tormentos, vítima de úlcera provocada pelos dentes de uma serpente aquática nociva. A passagem termina por dizer que em futuro breve os acaios se lembrariam do herói abandonado. Na Odisseia , Filoctetes é recordado pelo canto III (v. 190) como um dos heróis gregos que tiveram um feliz retorno para casa depois da batalha de Troia, e, no canto VIII, Odisseu, em seu famoso discurso aos feácios, observa que só o herdeiro das armas de Héracles o superava entre os gregos no manejo do arco (v. 219-220) 2 2 Veja-se, para as informações contidas neste parágrafo e nos três parágrafos subsequentes, o verbete “Philoktetes” em Der kleine Pauly , ( Pauly 1979: 766-767); ( Martinez 2003: xiii-xiv) e a “Introdução” de Fernando Brandão dos Santos à sua tradução da peça de Sófocles ( Sófocles 2008 ). .

As demais informações sobre Filoctetes vêm-nos da Pequena Ilíada , dos Cantos Cíprios e da Primeira Pítica , de Píndaro. As primeiras duas narrativas, poemas épicos posteriores à obra homérica, chegaram até os nossos dias apenas por fragmentos ou por comentários de escoliastas pós-período clássico, como a Crestomatia , de Proclo. Na Pequena Ilíada , narra-se, de acordo com Proclo, a disputa das armas de Aquiles por Ájax e Odisseu, que, depois do acesso de loucura e do suicídio de seu oponente, veio a aprisionar o vate troiano Heleno que teria previsto a queda de Troia. Odisseu traz então Neoptólemo de Ciro e entrega-lhe as armas de seu pai Aquiles. Nessa versão é Diomedes quem resgata Filoctetes em Lemnos. O herói teria então sido curado por Macaon e depois teria matado Paris. Dos Cantos Cíprios , também pelo comentário de Proclo, extraímos a informação de que Filoctetes foi picado por uma serpente na ilha de Tênedos e que foi abandonado em Lemnos por causa do mau cheiro de sua ferida. Píndaro, por sua vez, menciona na Primeira Pítica que se trataria no sofrimento de Filoctetes de uma determinação divina.

No que se refere ao palco, os três grandes tragediógrafos escreveram peças sobre a história de Filoctetes, sendo que as datas de composição e apresentação da tragédia de Ésquilo são incertas. O drama é, no entanto, seguramente anterior às versões de Eurípides e Sófocles 3 3 Supõe-se que Sófocles tenha escrito, para além da tragédia preservada, outra peça sobre o tema, com o título Filoctetes em Troia , com data de concepção certamente anterior ao drama que conhecemos, mas de que restaram apenas alguns poucos fragmentos cf. Lloyd-Jones 2003: 332-335. . Das tragédias de Ésquilo e Eurípides, ficaram apenas fragmentos. Outras informações valiosas sobre essas peças foram colhidas de um ensaio comparativo de Dion Crisóstomo, um orador, escritor, filósofo e historiador grego do séc. I. Na versão de Ésquilo, segundo Dion Crisóstomo, é Odisseu quem vai buscar Filoctetes em Lemnos. Não há nenhuma menção a algum acompanhante. O coro é composto por lemnianos, mas que aparentemente se aproximam de Filoctetes por primeira vez durante a peça. Odisseu ganha a confiança de Filoctetes contando-lhe a falsa história de que Agamemnon estava morto e que sua própria reputação teria sido destruída sob vergonhosa acusação. Ou seja, sem ser reconhecido por Filoctetes, Odisseu o manipula por seu ódio para com o exército grego e para consigo próprio. De um fragmento do drama, sabe-se ainda que, durante a ação, Filoctetes sofre de um acesso de sua doença, o que pode ter dado a Odisseu a chance de apoderar-se do arco e de persuadir ou forçar Filoctetes a acompanhá-lo a Troia.

Sobre a tragédia de Eurípides, que fazia parte de tetralogia da qual Medéia era a primeira peça e foi encenada em 431 a. C., Díon Crisóstomo conta que, no prólogo, Odisseu relataria as premissas de sua chegada a Lemnos, em companhia de Diomedes: o adivinho Heleno, filho de Príamo, havia profetizado que sem Filoctetes e seu arco seria impossível conquistar Troia. Odisseu chega à ilha disfarçado pela proteção da deusa Atena. Sua missão é ainda mais urgente na medida em que ele sabe que emissários troianos também estão a caminho de Lemnos, com o mesmo objetivo de ganhar Filoctetes como aliado, o que colocará este ante à decisão entre seu rancor pessoal e o sentimento pátrio. Como nas outras versões, Odisseu tenta ganhar a confiança de Filoctetes contando-lhe histórias falsas, mas na peça de Eurípides é Diomedes quem consegue roubar o arco durante o sono reparador de Filoctetes.

A encenação do Filoctetes de Sófocles é de 409 a. C., de um tempo, portanto, em que a derrota de Atenas na guerra do Peloponeso já se estava delineando. Trata-se da última peça do dramaturgo encenada em vida, visto que Édipo em Colono foi apresentada postumamente, em 401 a. C. Filoctetes é uma tragédia singular em vários aspectos. É a única das tragédias de Sófocles, preservadas na íntegra, que não compreende personagens femininos. Se o fato poderia, por um lado, ser justificado pelo assunto guerreiro, ligado à batalha em torno de Troia, não deixa por outro de ser notável. Isso tendo em vista que o fenômeno “tragédia” como um todo conta com o pano de fundo de uma sociedade patriarcal e guerreira, sem que o aspecto tenha afetado a importância do protagonismo feminino, pelo menos considerando o corpus das peças que nos foram legadas. O Filoctetes de Sófocles é peculiar também no que concerne à skené . Onde em tantas outras peças figura a fachada de um palácio real ou de um templo, temos aqui um cenário que mostra um lugar ermo, composto por pedras, rochedos, vegetação escassa e uma caverna, cenário este, aliás, que se liga intimamente ao estado selvagem, à condição de ápolis do protagonista. A tragédia é invulgar ainda com respeito à disposição dos cantos corais. Só há no Filoctetes de Sófocles um estásimo completamente desenvolvido. No párodo já encontramos o amoibaion entre o coro e Neoptólemo, e entre vários episódios bem como em meio a eles figuram interlúdios líricos. Finalmente Filoctetes é singular também com vistas à expectativa do público, como lembra Bernard Knox ( 1964Knox, Bernard M. W. The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedy. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1964.: 117-118). A plateia quer que o absolutamente intransigente herói deixe Lemnos. Porque sabe que Troia caiu, mas também para que finde seu terrível e insuportável sofrimento. Ou seja, a derrocada dos propósitos iniciais de Filoctetes não é apenas inevitável, mas também desejável: a tragédia é vinculada a ter um final “feliz”. Se em muitas outras tragédias sabemos que os caminhos do herói serão irremediavelmente descendentes depois da(s) peripécia(s), no Filoctetes esperamos que a reviravolta de alguma forma tenha de apontar, e apontará, para outra direção, apesar do herói insistir obstinadamente em seu falhanço.

O prólogo da tragédia de Sófocles reúne Odisseu e Neoptólemo. Para além de nomear o lugar e a razão do abandono de Filoctetes 4 4 Odisseu reporta em sua primeira fala que Filoctetes supurava no pé e estorvava libações e sacrifícios dos gregos com gritos e selvagens insultos. Tendo em vista a postura explícita de Odisseu na peça, de que os fins justificam todos os meios retóricos, não é forçoso dar-lhe crédito em seu relato. Contudo, a vinculação do sofrimento de Filoctetes ao sacrifício e à esfera divina aparece em mais lugares no drama e será também objeto de análise aqui. e de descrever sua erma morada atual, o pórtico do drama expõe também objetivo e meio da ação: o outrora exposto deve ser levado a Troia e reintegrado ao exército grego pelo dolo, já que a persuasão e a força não surtiriam efeito algum nesse sentido, como frisa Odisseu (v. 103). Logo de início, ao dirigir-se a Neoptólemo, Odisseu apresenta-o não só pelo nome, mas, antes de mais nada, por sua filiação, por ser descendente do poderoso Aquiles (v. 3-4). A passagem é programática em mais de um sentido. Se o nome próprio já indica juventude, ele só será pronunciado mais uma vez durante o drama. Na maioria das outras ocasiões, os personagens endereçam-se a Neoptólemo como filho ( téknon ). Harry C. Avery calculou que só Filoctetes o chama assim mais de cinquenta vezes ( 1961Avery, Harry C. Heracles, Philoctetes, Neoptolemus. Hermes. Stuttgart, n° 89, 279-297, 1961.: 285) e a condição em geral não passou despercebida pela crítica. Reginald P. Winnington-Ingram refere-se a ele como “homem novo, pouco mais velho que um menino” 5 5 Salvo nos casos em que se refere à tradução publicada, com indicação de autoria, as transposições dos textos originais para o português são de minha autoria. ( 1980Winnington-Ingram, Reginald P. Sophocles, an interpretation. London: Cambridge University Press, 1980.: 283), Knox, que recorre à mesma descrição, afirma ainda que na excursão a Lemnos, em companhia de Odisseu, se trataria da primeira missão conferida a ele pelo exército grego (1963: 123) e Pierre Vidal-Naquet ( 2002Vidal-Naquet, Pierre. O Filoctetes de Sófocles e a efebia. In: Vernant, Jean-Pierre; Vidal-Naquet, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2002, 125-145. ) analisa a peça toda em função da efebia, como rito de passagem, de iniciação de um jovem a guerreiro hoplita.

No entanto, a filiação não diz respeito apenas à juventude de Neoptólemo, mas principalmente à sua phýsis , do ponto de vista físico mesmo – o próprio Neoptólemo contará a Filoctetes que, tão logo tinha chegado ao acampamento dos gregos, foi reconhecido por eles imediatamente como filho de Aquiles, achando o exército até que o pai teria ressuscitado (v. 356-358) –, porém mais ainda no sentido de sua natureza, isto é, de sua índole e caráter. É por esta phýsis que Neoptólemo não é só subordinado de Odisseu, como este lhe frisa sem rodeios no verso 53, mas também seu antagonista. Knox ( 1964Knox, Bernard M. W. The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedy. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1964.: 121-122) comenta que Odisseu e Aquiles se teriam tornado, no séc. V a. C. grego, protótipos míticos e literários de dois mundos completamente distintos. Aquiles era a figura ideal da tradição aristocrática grega, um guerreiro invencível que goza de respeito ( timé ) de seus pares e do mundo e que sacrifica sua vida deliberadamente em troca de glória, de sobrevida eterna de seu nome ( kléos ). Odisseu, por sua vez, representaria o ideal de vertente democrática, segundo Knox típica de uma comunidade de navegadores e comerciantes, corporificando versatilidade, adaptabilidade, habilidade diplomática e curiosidade intelectual, além de insistir mais em uma glória combinada ao sucesso em vez de ser sacrificado em prol dela.

Odisseu dá uma amostra de sua versatilidade retórica logo de saída e justamente relacionada à phýsis de Neoptólemo quando inicia a explanação do propósito de ambos em Lemnos: “Filho de Aquiles, é preciso para o que vieste / Que sejas nobre, não só de corpo” ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 61, v. 50-51). “É preciso [...] que sejas nobre” ( gennaîos ); ora, a nobreza de caráter, sua phýsis , impediria justamente que Neoptólemo fizesse o que Odisseu lhe vai demandar. Trata-se do conhecido recurso retórico de apoderar-se do mais forte argumento do adversário e revertê-lo a favor da própria causa: é preciso ser audaz, vigoroso, forte como o pai Aquiles, mas não na ação, com o corpo, e sim na palavra, mentalmente. Contudo, a fala de Odisseu completa-se com os seguintes dois versos: “mas se algo novo, que antes não ouviste, / ouvires, obedece, já que estás aqui como um subordinado” ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 61, v. 52-53). Ou seja, Odisseu não se fia apenas em sua habilidade de persuasão, mas recorre igualmente à força da hierarquia. Nesse sentido, fica claro que, se logo mais descartará a persuasão ( peithó ) e a força ( bía ) como meios de mover Filoctetes, isso não ocorrerá por princípio, senão apenas porque não surtiriam efeito no caso específico. Odisseu é movido pelo resultado e não mede meios e esforços rumo a ele. O ponto culminante, que resume o seu ethos , provavelmente se localize no terceiro episódio. As tentativas de dolo já falharam e todas as máscaras já caíram. Filoctetes acaba de proferir uma longa invectiva contra Neoptólemo e, principalmente, Odisseu. O coro atesta em dois versos a gravidade das acusações e a inflexibilidade do herói. Ao que Odisseu responde, mais ao coro do que ao próprio Filoctetes:

Muitas coisas teria a responder às palavras dele,

se me fosse possível. Agora de um só discurso sou senhor:

Pois quando se precisa de um tal tipo de homem, o tal sou eu,

e onde houver uma escolha entre homens justos e bons,

não escolherás ninguém mais escrupuloso que eu

( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 157-159, v. 1047-1051)

Para Knox ( 1964Knox, Bernard M. W. The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedy. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1964.: 125), esses versos demonstram a quintessência do relativismo moral: “A palavra ‘tal’ (τοιοῦτος), ao invés de referir a algo fixo e inteligível, refere a outro tal (τοιούτων); isso é o credo de um serviçal do tempo sem face: ‘Sou qualquer coisa que as circunstâncias demandarem’”. Não há dúvida de que Odisseu aparece na tragédia de Sófocles numa luz muito menos favorável do que na Ilíada ou na Odisseia . Contudo, na autodefinição pelo dêitico de referência vazia parece ainda ressoar um quê da astúcia do herói do canto IX da Odisseia , quando escapa ao ciclope, chamando-se de ninguém. Martha Nussbaum ( 1991Nussbaum, Martha. Odysseus in Sophocles’ Philoctetes. In: Bloom, Harold (ed.). Odysseus/ Ulysses. New York, Filadelfia: Chelsea House Publishers, 1991, 203-213.: 204), por sua vez, observa que a palavra deî ( δεῖ ), do verso 1049, em oposição a khré ( χρή ), não designa uma necessidade subjetiva, mas, sim, uma necessidade objetiva. Odisseu é, nesse sentido, alguém que trabalha constantemente para o bem comum, para o bem da pólis – o que não é só enfatizado com frequência por ele, mas corroborado também por passagens do coro 6 6 Por exemplo em: “Ele [Odisseu] foi o único dentre muitos / que, designado, por ordens deles, / realizou aos amigos comum ajuda” ( Sófocles 2008: 167, v. 1142-1144). – e em cuja visão o resultado, mais do que justificar questionáveis meios, define de saída o alcance ético dos instrumentos: ações que promovem o bem geral jamais podem ser moralmente condenáveis. É verdade que, em seguida, Nussbaum se insere na linhagem dos muitos críticos de Odisseu, mostrando os problemas de sua particular posição utilitarista. Sófocles teria querido mostrar os dois lados da moeda, a atratividade inicial do argumento de Odisseu, assim como sua ulterior defectividade, na medida em que sua visão não apenas degrada a relação com os outros, mas também valores como os da manutenção de promessas, amizade, integridade e justiça. Seria igualmente nesse sentido duplo que teria de ser entendida a estranha evocação de Odisseu no final do prólogo: dirigindo-se, por um lado, a Hermes, ajudante e protetor do doloso e, por outro, a Atena, protetora não só dele, a quem salva sempre, mas também da cidade ( Nussbaum 1991Nussbaum, Martha. Odysseus in Sophocles’ Philoctetes. In: Bloom, Harold (ed.). Odysseus/ Ulysses. New York, Filadelfia: Chelsea House Publishers, 1991, 203-213.: 204 ss.). No âmbito de uma visão mais dialética da figura de Odisseu, não podemos esquecer ainda que os seus propósitos coincidem com o final do drama, ou seja, em última instância, ele parece estar do lado certo não só da história, mas também da esfera divina. Patricia Elizabeth Easterling ( 1983Easterling, Patricia Elisabeth. Philoctetes and Modern Criticism. In: Segal, Erich (ed.). Oxford Readings in Greek Tragedy. London: Oxford University Press, 1983, 217-228.: 226-227) finalmente sustenta que a ambiguidade de Odisseu, entre inescrupuloso defensor de vantagem e vitória 7 7 No sentido do verso 110: “Quando se faz algo para lucro, não convém hesitar” ( Sófocles 2008: 167). e advogado do bem comum da pólis, corresponderia à própria ambiguidade do exército grego, que representa tanto o mundo corrupto e nada heroico dos políticos quanto a sociedade à qual Neoptólemo deve ser integrado e Filoctetes reintegrado.

Filoctetes e Neoptólemo ficam face a face no início do primeiro episódio e já a alocução inicial, xénoi, com que o primeiro se dirige ao segundo, é cheia de significados e ambiguidades. A começar pelo plural: a saudação parece naturalmente estender-se, para além de Neoptólemo, ao coro composto por seus marinheiros que acaba de cantar no párodo. Contudo, no ouvido do espectador não deixa evidentemente de ressoar também a conversa inicial entre Odisseu e Neoptólemo e a tarefa dada pelo mais velho ao filho de Aquiles. É como se Filoctetes intuísse que pela boca de Neoptólemo lhe falará ainda um outro, ou principalmente um outro.

Do ponto de vista do significado, xénos designa tanto o estranho e estrangeiro quanto refere, no âmbito da xénia , ao convidado a quem se deve hospitalidade. A hospitalidade grega para com forasteiros helenos representava uma forma de honrar a Zeus, que, como mostra o epíteto Zeus Xénios, era também protetor dos estrangeiros. Nesse âmbito, a theoxénia constituía um tópos da mitologia grega em que os humanos demonstravam sua virtude e piedade mostrando-se hospitaleiros em relação a um humilde estranho que se acaba revelando um deus disfarçado, tópos esse que encontrará ainda sua versão latina na visita de Júpiter e Mercúrio à casa de Filemon e Baucis, nas Metamorfoses de Ovídio. No que refere à xénia na tragédia de Sófocles, a saudação como que antecipa, por um lado, as obrigações mútuas que o dolo visado por Neoptólemo ameaça infringir – materialmente na medida em que, ao invés de dar presentes a Filoctetes, tentará levar-lhe o arco e imaterialmente porque por trás do favor de levar-lhe para casa espreita o desfavor de arrastar Filoctetes a Troia e ao exército grego – e, por outro, a aparição ex machina de Hércules no final da tragédia, que participará a Filoctetes os desígnios de Zeus 8 8 Neoptólemo não é Zeus disfarçado, mas, ainda assim, leva sua mensagem a Filoctetes. . Se, no entanto, entende-se a interpelação como “estranhos”, “estrangeiros”, “forasteiros”, ela dá também a entender, por oposição, que Filoctetes se sente um tanto em casa em seu exílio.

A divisão quanto ao lugar, quer dizer, a ambiguidade entre a vontade de pertencer (novamente) à pólis e a obstinação ferrenha de permanecer um ápolis , será uma marca constante de Filoctetes. Já em suas primeiras duas falas a Neoptólemo, o herói solitário frisa por um lado que os trajes da Hélade são os mais agradáveis para ele e que está com grande saudade de ouvir o som da língua grega, mas pede, por outro, que os chegados à ilha não se assustem com seu aspecto asselvajado, isto é, com a relação metonímica existente entre a sua pessoa e o local de seu exílio. A ambivalência estará presente também quando logo mais contará a Neoptólemo a triste sorte e o cotidiano em seu selvagem desterro, em versos de singular beleza:

[...] O que convém ao estômago

este arco encontrava, atingindo

as aladas pombas, depois, o que atingia

a flecha esticada, eu mesmo, infeliz,

rastejava, arrastando o miserável pé,

até ele [...]

( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 85, v. 288-292)

O alto voo das flechas de Filoctetes, aladas como seu alvo, contrasta com a sua condição física, que o faz arrastar o pé com a feroz ferida no solo inóspito de seu desterro. A passagem corresponde a outra, no terceiro episódio, em que o herói, vendo o arco nas mãos de Neoptólemo e não disposto a acompanhá-lo a Troia, permanecendo, pois, sem a arma infalível de Héracles na selvagem Lemnos, vislumbra-se futura caça das antigas presas:

Agora, fui enganado, infeliz, o que devo eu fazer?

Vamos, devolve! Agora pelo menos volta a ser o mesmo.

[...]

Ó forma rochosa de dupla porta, de novo mais uma vez

entro em ti despido, sem alimento,

no entanto, secarei nesta caverna sozinho,

nem ave alada, nem fera montívaga,

com estas flechas capturando, mas eu próprio, infeliz,

morto, fornecerei repasto àqueles de quem me alimentei,

e aqueles, que um dia caçava, hão de me caçar agora!

( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 149, v. 951-960)

Voltando ao primeiro episódio e ao primeiro encontro entre Filoctetes e Neoptólemo, verifica-se que este último se apresenta recorrendo não só ao nome próprio – pronunciado aqui por segunda e última vez na tragédia –, mas principalmente à filiação: “Chamo-me Neoptólemo, filho de Aquiles. Já sabes tudo” ( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 81, v. 240-241). A fórmula lacônica, que supostamente dispensa qualquer explanação pelas credenciais do pai, que falam por si só, representa na verdade, de início, o maior dos logros: é justamente não de acordo com a phýsis de Aquiles que Neoptólemo agirá. Nesse sentido, negará logo em seguida não só que conheça Filoctetes, mas também que tenha em algum momento ouvido falar dele e de sua sorte, negando-lhe, portanto, todo e qualquer kléos , o bem mais valioso a que todo herói grego aspirava. Com isso, porém, aguça ainda mais a ira de Filoctetes contra os gregos, por terem silenciado sua fama, minando qualquer possibilidade de futura reintegração ao exército diante de Troia. Essa será a tônica do andamento da trama: o dolo planejado por Odisseu e Neoptólemo cavará constantemente sua própria cova.

No entanto, quando Neoptólemo se arrepende da estratégia determinada por Odisseu, já é tarde, se é que em algum momento haveria de fato possibilidade de mover Filoctetes de Lemnos rumo a Troia 9 9 Veja-se nesse sentido também sua reação quando da revelação da profecia por parte do integrante da tripulação de Neoptólemo e Odisseu, disfarçado de Mercador: “Ai de mim, será que esse homem, o dano completo, / jurou que me levaria aos aqueus, por me convencer? / Serei convencido antes a voltar do Hades / à luz depois de morto, como o pai dele” ( sófocles 2008: 115, v. 622-625). . Isso acontecerá no terceiro episódio. A insuportável dor corporal de Filoctetes, provocada por um novo acesso de sua doença no episódio anterior, transformou-se na dor do dilema moral de Neoptólemo, expresso no verso 895 com a mesma característica interjeição ( παπαῖ ) usada antes por Filoctetes para dizer o seu sofrer físico: “Ai, ai [ papaî ], o que devo fazer daqui em diante?” ( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 143). Movido pela compaixão, cujo início exato a peça deixa no obscuro, e pela percepção de que a atitude mentirosa não comprometeria seu kléos e sua timé apenas momentaneamente, como Odisseu havia argumentado no prólogo 10 10 À fala de Odisseu no prólogo, “Ousa: mais tarde justos pareceremos, / porém, agora, por uma breve parte indecorosa do dia, / entrega-te a mim, e, depois, no tempo restante, / sê aclamado o mais escrupuloso de todos os mortais” (v. 82-85), opõe-se à constatação de Neoptólemo do terceiro episódio, “Indecente revelar-me-ei. Isso há muito tempo me aflige.” (v. 906). ( sófocles 2008: 65 e 145). , Neoptólemo resolve então revelar a verdade a Filoctetes e tentar convencê-lo pela sua verdadeira amizade a seguir com ele rumo ao exército ante Troia e não ao lar como havia prometido. O obstinado herói, porém, não dará ouvido a nenhum de seus argumentos e as tentativas do uso da força por parte de Odisseu tampouco serão exitosas. Será precisa a intervenção ex machina de Héracles no êxodo, que participa os desígnios de Zeus: acompanhando Neoptólemo a Troia, Filoctetes será aliviado da triste ferida e matará a Paris com as flechas infalíveis de Héracles. Neoptólemo, por sua vez, ouve o conselho de que apenas incorporando o espírito de união da falange hoplita alcançará a glória de capturar a planície troiana. O “nem tu sem ele és forte [...] nem ele sem ti” (v. 1435 ss.) modifica a predição de Odisseu no prólogo, que havia deixado em suspensão a necessidade da presença de Filoctetes junto de seu arco na conquista 11 11 “Nem tu sem o arco, nem o arco sem ti” ( sófocles 2008: 65, v. 115). . A fala do semideus termina com uma exortação que parece dirigir-se a todos os presentes, tanto no palco quanto na plateia:

[...] honrai o que é divino,

porque nas outras coisas, todas secundárias, pensa o pai

Zeus. Pois a piedade não morre com os mortais,

quer vivam quer morram, não se destrói

( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 197, v. 1441-1444)

O Filoctetes de Sófocles é, com efeito, uma tragédia singular escrita e encenada em tempo singular, para a cidade de Atenas (pelo estágio da Guerra do Peloponeso), para o poeta (já com idade avançada) e para a forma literária que, com a morte próxima de Eurípides e do próprio Sófocles, encontra-se já no outono de seus dias. Um dos sentidos do drama é sem dúvida o reconforto à pólis, prestes a ser derrotada na Guerra do Peloponeso, reconectando-a com um passado glorioso e valores aristocráticos, mas também lembrando, pela boca de Héracles, que a dor-trabalho (no duplo sentido de pónos ), que o sofrimento, como demonstram os destinos de Filoctetes e do próprio Héracles, levam à excelência imortal. Pela figura de Neoptólemo, mostra-se ainda o valor do aprendizado, da compaixão, do agir corretamente (para com o outro e em acordo com a própria natureza e estirpe) e de integrar-se à comunidade solidária. A união final entre Filoctetes e Neoptólemo representa não apenas sintonia e coesão necessárias em exército e cidade, mas também um pacto entre gerações e tempos. Sófocles fala, finalmente, ainda, como é plausível para um ancião em seus últimos dias, do devido respeito para com a esfera divina, quer seja no que concerne ao muitas vezes obscuro vaticínio dos oráculos, quer seja com relação às incumbências nos lugares sagrados. Philía e eusébeia são duas noções centrais do drama e uma de suas imagens emblemáticas é aquela, ocorrida duas vezes, em que Neoptólemo serve de amparo a Filoctetes. Por ela e por tudo que se disse nesse parágrafo, convém ler Filoctetes em estreita conexão e correlação a Édipo em Colono 12 12 Isso foi observado também por Easterling, que na última frase de seu ensaio chama a atenção para a importância dos temas de phílos e xénos em ambas as peças ( Easterling 1983: 228). Edmundo Wilson lembra ainda que os versos (1239-1248) com que o coro se refere no terceiro estásimo à situação de Édipo em Colono lembram muito aquela de Filoctetes, no cabo de Lemnos. Na tradução de Trajano Vieira: “Não estou só. Comigo ele se encontra, mísero! / Como ao cabo boreal, que a escuma / multi-revolta açoita, / escumas na rebentação, terríveis / desde o acúmen, sem trégua, intermitentes, / as dores o fustigam, / uma desde o sol-pôr, / outras do sol-nascente, / outras do sol-a-pino, / outras do Ripeu, / noite fosca” ( Wilson 2009: 204). .

Antes de passar à releitura da história de Filoctetes por Heiner Müller, porém, gostaria de comentar rapidamente, a partir da fala de Héracles, a respeito de um outro sentido ainda da peça que se vincula a um aspecto mais geral da tragédia. Tomo como ponto de partida um estudo de Walter Burkert sobre a relação entre a tragédia e o ritual sacrificial ( Burkert 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39. ). Frisando, em primeiro lugar, que a tragédia é um fenômeno demasiado complexo para que possa ser reduzido a uma única fórmula de origem e que, em decorrência dessa complexidade, os estudiosos tendem a privilegiar suas próprias inclinações, Burkert discute a questão do surgimento do fenômeno a partir de sua denominação: por que a tragédia é chamada de tragoidía ( τραγωιδία )? Após refutar, por uma série de argumentos, a mais influente teoria do século XX, que remonta a Friedrich Gottlieb Welker e foi validada principalmente pelo prestígio de Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (que reivindicava em prol a autoridade de Aristóteles) de que tragoidía significaria “canto de bodes”, o filólogo debruça-se sobre a tese privilegiada por historiadores da religião e pela etimologia antiga.

O primeiro ponto de Burkert é de ordem linguística. De acordo com a evolução da língua grega, a palavra mais primordial não seria tragoidía , mas tragoidoí ou antes tragoidós . Tragoidós , por sua vez, sustenta o filólogo, não pode, de acordo com as leis de formação de palavra em grego, significar “bode cantante”, da mesma forma como komoidoí não designa “ kômoi cantantes”, mas “cantores por ocasião do kômos ”. Trata-se de um composto determinante, em que a primeira parte regularmente determina a área de operação da segunda, como em kitharoidós , o “cantor” que tem algo a ver com a “cítara” ( κιθάρα ).

O segundo passo é dado por uma passagem do séc. IV ou III a. C., em que Dionísio de Argos sustenta que o nome mais antigo dos rapsodos teria sido arnoidoí , explicando, na sequência, que teriam sido chamados assim porque o vencedor nos concursos teria sido premiado com um carneiro ( arnós ). Essa explicação, por sua vez, corresponde à etimologia corrente de tragoidía na Antiguidade: “canto pelo prêmio de um bode” ou “canto no sacrifício de um bode”. Ambas as interpretações seriam confluentes na medida em que o bode dado ao vencedor era sacrificado a Dionísio.

Na sequência, o estudo procura corroborar a probabilidade da presença do bode e de seu sacrifício na origem da tragédia. Mais relevantes do que esta questão, na medida em que aqui não importa tanto a etimologia de tragoidía que, em última instância, permanece indecidível pela revisão crítico-filológica das fontes, como sublinha o próprio Burkert, são, para a minha argumentação, as partes dois e três do ensaio, em que o filólogo discorre sobre a conexão entre sacrifício e tragédia – sugerida tanto por numerosos trechos das próprias tragédias legadas como pela presença da thuméle ( θυμέλη ) na orquestra dionisíaca 13 13 Thuméle ( θυμέλη ), o altar votado a Dionísio que ficava na orquestra do palco, não pode ser etimologicamente separado de thúein ( θύειν ), “sacrificar”, como lembra Burkert ( 1990: 20). – assim como sobre o significado dessa conexão.

Em sua busca do sentido da conexão entre sacrifício e tragédia e, consequentemente, do sentido profundo da tragédia, Burkert reúne fontes bastante heteróclitas: Hesíodo e Plutarco juntam-se a um artigo de Karl Meuli, em que este tenta iluminar os ritos sacrificiais gregos a partir dos depoimentos de caçadores siberianos sobre o sacrifício de crânios e ossos extensos; e as observações de Konrad Lorenz referentes à agressividade no reino animal são confrontadas com as teorias freudianas sobre a psique humana e o início da civilização. O resultado é tão conciso quanto instigante.

No centro do sacrifício, diz Burkert, não está a dádiva aos deuses nem tampouco a comunhão com eles, mas o matar do animal e o homem como matador: sacrifício é morte ritual, “no ritual sacrificial o homem causa e experiencia a morte” ( Burkert 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39.: 21). Essa experiência é profundamente ambígua: frenesi, intoxicação pelo sangue, por um lado, sentimento de remorso e culpa, por outro. Nesse sentido, o sacrifício tem a intricada estrutura de uma “comédia de inocência”, representa, no ato de dar a morte, ao mesmo tempo penitência e desagravo em relação ao sangue derramado. A razão da ambivalência é de ordem civilizacional. Se no centro das primeiras sociedades humanas estava a matança comum, a matança da presa, isso trouxe imediatamente o problema de que os instintos não dizem ao homem o que ele tem de fazer com suas armas: “ao invés de matar um urso ou um bisonte ele pode abater um homem, é mais fácil até” ( Burkert 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39.: 24). A ambivalência expressa-se ainda naquele que está à frente da comunidade, o sacrificador, o pater familias , o rei. Se ele tem, antes de mais nada, o poder de dar a morte, é-lhe atribuído ao contrário também o poder de preservação da vida. É nesse duplo aspecto de vida e morte, argumenta Burkert, que o ritual sacrificial, que o sacrifício de um trágos na thuméle toca nos fundamentos da existência humana, tem algo de fundamentalmente inquietante; e, pergunta, “podemos dizer: de trágico?” ( Burkert 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39.: 25). A resposta a essa pergunta será afirmativa: “A existência humana face a face com a morte”, essa é a conclusão do ensaio, “é o cerne de tragoidía ” ( Burkert 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39.: 30).

Para demonstrar o sacrifício, a morte ritual, como substrato da tragédia, Burkert aborda três exemplos para além daquelas tragédias cujo enredo é na íntegra relacionado ao sacrifício humano (como Ifigênia em Aulis , Ifigênia entre os Tauros ou As Bacantes ), um para cada um dos tragediógrafos: As Traquínias , de Sófocles, Medeia , de Eurípides, e Agamêmnon , de Ésquilo. Que Filoctetes poderia ter figurado entre os exemplos, mostra-se já pelo parágrafo que introduz as discussões sucintas dos dramas: “se a tragédia se fundamenta no mito heroico, todo herói tem com efeito seus cultos, e com isso seus sacrifícios. A situação do sacrifício poderia justamente ser o ponto em que mito heroico e tragoidía dionisíaca coincidiam” ( Burkert 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39.: 27). Ora, é bem sabido que Filoctetes recebeu as armas de Héracles por ter-lhe feito as honras fúnebres, por ter acendido sua pira funerária no monte Eta, local em que se instalaram templo e altar votados ao acontecimento. A razão da situação de Filoctetes em Lemnos, a peça de Sófocles a explica pela boca de Neoptólemo: “Tu sofres esta dor oriunda de sorte divina, / por teres te aproximado da guardiã de Crisa, a serpente que / guarda escondida como vigia o templo não coberto” ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 185, v. 1326-1328). Se ter penetrado o lugar sagrado do templo-altar a céu aberto provocou a punição divina da mordida pela serpente, sorte divina confirmada também pelo coro no kommós 14 14 O canto de lamentação da tragédia. (“Destino, destino das divindades a ti causou / isso, e não uma fraude / de minhas mãos [...]” ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 165, v. 1117-1119)), a consequência, a ferida supurante, estorva o sacrifício, como diz Odisseu no início da tragédia, e corrobora depois, de certa forma, o próprio Filoctetes (“[...] Como podes comigo a bordo, / queimar incensos, já fazer libações?” (Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 157, v. 1032-1033)) 15 15 É bem verdade que a fala aponta, antes de mais nada, de forma irada a contradição de Odisseu, que antes usara a impossibilidade de libações na presença de Filoctetes como justificativa do abandono do arqueiro em Lemnos e agora quer levá-lo a bordo e conduzi-lo a Troia na mesma condição. Contudo, Filoctetes tem consciência do incômodo e da repugnância que sua presença causaria no navio. É nesse sentido que um pouco antes da passagem citada havia perguntado ao hesitante Neoptólemo: “Será que a repugnância da doença te persuadiu / a não mais me levar como marujo?” ( Filoctetes 2008: 143; v. 899-900). .

A ferida, por sua vez, pode ser vista como uma figuração da própria morte 16 16 Veja-se a esse título também a ferida que não cicatriza no âmbito da definição do próprio trágico dada por Szondi: “Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável” ( Szondi 2004: 85 [ 1978: 209]). , assim como o exílio de Filoctetes em Lemnos representaria a morte cívica em vida. Ter suportado essa “existência [...] face a face com a morte”, consigna Filoctetes àquele algo tão difícil de definir, que já foi chamado de teor sublime da tragédia 17 17 Cf. por exemplo os ensaios de Schiller sobre o tema. ou de uma consagração como que por uma passagem pela chama 18 18 A forma foi cunhada por George Steiner no primeiro capítulo de seu A morte da tragédia ( Steiner 1996: 10 [ 2006: 5]). No entanto, Steiner certamente não incluiria o Filoctetes no rol dos dramas que ele chama de verdadeiras tragédias, aquelas “peças que comunicam” uma “metafísica do desespero” ( Steiner 1996: XI [ 2006: XVIII), por seu final de compensação heroica. e que marca a forma literária tanto quanto a derrocada do herói. Neoptólemo e o público participam dessa experiência. A conexão entre sacrifício e tragédia sugerida por Burkert confere, porém, ainda uma conotação bastante peculiar às palavras ex machina de Héracles:

pois a segunda coisa é que precisas a ela com minhas

flechas devastar. Isso tende em mente, quando

destruirdes a terra: honrai o que é divino ,

porque nas outras coisas, todas secundárias, pensa o pai

Zeus. Pois a piedade não morre com os mortais,

Quer vivam quer morram, não se destrói

( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 197, v. 1439-1444, grifos meus)

Se Neoptólemo, de acordo com algumas fontes mitológicas, imolou Príamo no altar de Zeus, sacrificou a filha deste, Polixena, por sugestão onírica de seu falecido pai Aquiles, para, no fim, ser ele próprio imolado por adagas sagradas no altar de Delfos, isso banha sua iniciação, banha a fala de Héracles sobre a eusébeia imortal em profunda ironia sofocliana.

Heiner Müller concebeu o seu Philoktet entre 1958 e 1964, embora o interesse no tema seja anterior, praticamente contemporâneo à fundação da RDA, como atesta o seu poema “ Philoktet 1950 ”. O período de escritura do drama foi incisivo autobiográfica como historicamente. O escritor pertenceu ao grupo de muitos intelectuais e artistas que viram na RDA, fundada em 1949, a possibilidade de recomeço depois da catástrofe do nacional-socialismo e um espaço utópico alternativo à expansão voraz do capitalismo. Essa postura de base pouco se modificou ao longo dos anos: Müller decidiu ficar em 1951, quando o seu pai – preso já em 1933 pelos nazistas por ser membro do Partido Socialista dos Trabalhadores – se viu forçado a deixar a RDA por motivos políticos e a mãe e seu irmão mais novo o acompanharam, e tampouco deixou a Alemanha Oriental depois das violentas repressões dos levantes em 1953. Ainda depois da reunificação das Alemanhas, declarou que, até o desmoronamento em 1989, considerava regime e sociedade da Alemanha Oriental reformáveis.

Após anos iniciais em Berlim, marcados por pouco sucesso literário e constantes necessidades financeiras, Müller começa a ter seus primeiros êxitos como dramaturgo: em 1957 estreia Dez dias que abalaram o mundo ( Zehn Tage, die die Welt erschütterten ) na Volksbühne de Berlim, no ano seguinte seguem O achatador de salários ( Der Lohndrücker ), no Teatro Municipal de Leipzig, e A correção ( Die Korrektur ), no Teatro Maxim-Gorki de Berlim, ambas as peças escritas em colaboração com sua segunda esposa, Inge Müller. Contudo, a ascensão seria logo interrompida. O work in progress , os ensaios e a pré-estreia da peça A espoliada ( Die Umsiedlerin ) coincidiram com a construção do muro, em 1961. A esperança de que o fechamento das comportas para o mundo ocidental pudesse levar a mais liberdades e flexibilidades no que concerne à crítica e construção internas mostrou-se equivocada: a comédia sobre as dificuldades e durezas da reforma agrária e a coletivização da produção agrícola foi considerada contrarrevolucionária e anticomunista, a estreia proibida, os exemplares confiscados, os atores participantes forçados à autocrítica e o diretor B. K. Tragelehn expulso do partido SED e mandado condicionalmente a uma mina de carvão. O próprio Müller viu-se, depois de uma autocrítica escrita com a ajuda de Helene Weigel, mas considerada insuficiente, expulso da Associação de Escritores da RDA e banido por quase dois anos de toda atividade intelectual e literária 19 19 Cf., entre outros, Lehmann e Primavesi ( 2005: 6) bem como Müller ( 2019: passim). . A proibição de trabalhar e as consequentes novas dificuldades financeiras contribuíram para a reabertura de antigos traumas e feridas psíquicas que levariam sua esposa Inge, depois de várias tentativas, em 1966 ao suicídio. É esse o contexto do período mais substancial de redação de Filoctetes que, publicado pela revista Sinn und Form , em 1965, teve sua estreia em Munique quatro anos depois, mas só veria os palcos da Alemanha Oriental em 1977.

A fala inicial de Odisseu é bom indicativo do andamento do drama na íntegra:

Eis o lugar, Lemnos. É aqui, filho de Aquiles,

Que eu abandonei o homem de Melos,

Filoctetes, o qual, ferido a nosso serviço,

Então não nos serviu mais, vazava pus

De sua ferida, fétido, seus urros

Abreviavam o sono e dilaceravam

O silencio prescrito aos que são sacrificados 20 20 O original, como se verá na nota seguinte, traz “ bei den Opfern ”, em que Opfern pode, teoricamente, ser o plural de vítimas. Na acepção da tradução, o verso remeteria, pois, àqueles que são sacrificados em prol dos objetivos dos poderosos e têm de suportar esse papel calados. É mais provável, porém, que Müller siga aqui o modelo grego. Nesse sentido, Opfern seria o plural no caso dativo de ‘sacrifício’, ou seja, o verso trataria do silêncio prescrito durante os sacrifícios. Foi essa a acepção adotada também pelo próprio Marcio Aurelio, na encenação da peça pela Cia Razões Inversas. Já a tradução de “ in unserem Dienst.… uns nicht mehr dienlich ” por “ferido a nosso serviço…não nos serviu mais”, segue muito de perto o original e refere-se, aí sim, a descartabilidade e substitutibilidade dos integrantes do exército / povo que será emblemática no desfecho do drama de Müller. .

A montanha é sua moradia, não sua tumba, espero

Um buraco, cavado pela água dentro da rocha

Um longo trabalho, onde outrora o peixe habitava

Hoje pisamos com a sola seca.

Em frente, uma fonte. Se dez anos não secam

Uma fonte. Descobre sua moradia. Depois

Ouve meu plano e o papel que te cabe

( Müller 1993Müller, Heiner. Filoctetes. In: Medeamaterial e outros textos. Tradução de Marcio Aurelio e Willi Bolle. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, 97-135.: 96-97) 21 21 “ Das ist der Platz, Lemnos. Hier Sohn Achills / Hab ich den Mann aus Melos ausgesetzt / Den Philoktet, in unserm Dienst verwundet / Uns nicht mehr dienlich seit dem, Eiter drang / Aus seiner Wunde stinkend, sein Gebrüll / Kürzte den Schlaf und gellte misslich in / Das vorgeshriebne Schweigen bei den Opfern. / Der Berg ist sein Quartier, sein Grab nicht, hoff ich / Ein Loch, vom Wasser in den Fels gewaschen / In langer Arbeit, als der Fisch bewohnte / Was wir mit trockner Sohle jetzt begehn. / Ein Quell davor. Wenn zehn Jahre einen Quell nicht / Austrocknen. Such mir seine Wohnung. Dann / Hör meinen Plan und was dabei dir zufällt ” ( Müller 2006: 7-8).

Enredo e forma da peça, composta sobretudo por pentâmetros jâmbicos, o verso por excelência da dramaturgia em língua alemã, seguem muito de perto o modelo sofocliano, sendo que a versão de Müller é ainda mais densa e concisa do que a tragédia grega. Há, contudo, divergências importantes. A começar pelo prólogo, em que o ator que representa Filoctetes avisa ao público, portando uma máscara de clown , que a ação levará ao passado, quando o homem era inimigo mortal do homem e a carnificina comum, e que não haverá nenhuma moral, nem nada a apreender, nem tampouco do que rir no que será mostrado. Cada um dos avisos comporta um subtexto para além de sua literalidade. É questionável se o homem, em meados do séc. XX, é menos inimigo do homem do que no passado. A negativa em relação à moral e aprendizagem, ao mesmo tempo que se distancia preventivamente da peça didática à la Brecht, forma que havia sido momentaneamente tolerada na RDA, mas que acabara de ser criticada por Walter Ulbricht, na quarta plenária do Comitê Central, em janeiro de 1959, sugere por outro lado que o Filoctetes de Müller foi concebido, sim, em confronto intenso com a obra brechtiana. E se é questionável que se trate de uma tragédia, aspecto a que voltaremos adiante, é, pois, absolutamente certo não se tratar de comédia, mais especificamente de qualquer forma que almeje primordialmente a diversão do público.

A peça de Müller também não conta com um coro e com Héracles, é concebida, por assim dizer, sem povo nem deus, concentrando-se nas relações entre os três protagonistas. Estas agudizam aquelas que unem e opõem os heróis na tragédia grega. Se Sófocles nos mostra um Neoptólemo cuja natureza deveria opô-lo, a princípio, à missão e às demandas de Odisseu, mas cuja simpatia migra apenas paulatinamente para o lado de Filoctetes, movido pela compaixão, em Müller a animosidade entre Neoptólemo e Odisseu, que privou o jovem da herança das armas paternas, é patente desde as primeiras falas. O rancor de Filoctetes, por sua vez, e seu ódio para com os gregos são particularmente acerbos:

Um ser vivo na minha praia morta.

Uma coisa que anda ereta como eu outrora

Sobre um outro solo, sobre duas pernas sãs.

Que és tu, bípede? Homem, animal ou grego?

Se és um grego, deixarás de existir.

[...]

Em qual língua, cão, aprendeste a mentir

Homem, qual cadela te jogou no mundo

Que bom ou mau vento jogou teu navio

Na minha praia de pedras, que os navios evitam

[...]?

Usas a roupa de grego que eu usava.

Sob a veste de um grego pode-se ter um grego.

Ou mataste um grego, amigo?

Pois assim te chamo, se de tua mão

Morreu um grego e pouco me importa a razão

( Müller 1993Müller, Heiner. Filoctetes. In: Medeamaterial e outros textos. Tradução de Marcio Aurelio e Willi Bolle. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, 97-135.: 106) 22 22 “ Ein Lebendes auf meinem Strand. / Ein Ding, das aufrecht geht wie vordem ich / Auf anderm Boden mit zwei heilen Beinen. / Wer bist du, Zweibein? Mensch, Tier oder Grieche? / Und wenn du der bist, hörst du auf zu sein. […] Mit welcher Sprache, Hund, lerntest du lügen / Mensch, welche Hündin warf dich in die Welt / Welch guter oder schlimmer Wind dein Schiff / Auf meinen Steinstrand, den die Schiffe meiden […]? Das Kleid des Griechen trägst du, das ich trug. / Im Kleid des Griechen mag ein Grieche stehn. / Oder erschlugst du einen Griechen, Freund? / Denn Freund nenn ich dich, wenn von deiner Hand / Ein Grieche starb und frag nach deinem Grund nicht […] ” ( Müller 2006: 16).

Ao passo que o arqueiro sofocliano fica dividido entre o rancor para com os gregos e a saudade de ver seus trajes e ouvir sua língua, saudade, aliás, verbalizada já em sua primeira fala na tragédia, bem como cindido entre a vontade de voltar ao seu lar e a permanência obstinada em seu exílio, o protagonista de Müller fala do amor à língua apenas no tempo passado e a recorda vinculada à expressão de sua dor insuportável: “Som que me foi tão caro. Língua 23 23 O original Sprache designa, em alemão, tanto a língua como a linguagem, ou seja, a fala de Filoctetes sobre a ausência refere-se tanto à língua grega em particular como à linguagem humana em geral. , tanto tempo ausente. / [...] Muito tempo só ouvida da minha boca / Quando a dor arrancava de meus dentes o grito” ( Müller 1993Müller, Heiner. Filoctetes. In: Medeamaterial e outros textos. Tradução de Marcio Aurelio e Willi Bolle. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, 97-135.: 107) 24 24 “ Laut, der mir lieb war. Sprache, lang entbehrt, / […] Lang hört ich aus meinem Mund allein / Wenn Schmerz mir aus den Zähnen grub den Schrei ” ( Müller 2006: 17-18). . A dor oriunda de sua ferida, porém, nem de longe é o terror que mais aflige o protagonista de Müller. Muito mais pesa a chaga que emana do solipsismo, da solidão em seu exílio:

E a minha dor a mais terrível não era

O pé doente me esmagando no pó.

Meu terror: meu inimigo não tem rosto.

Pudesse eu olhar em meus próprios olhos

Cravar o vento com flechas contra o sol,

Ele, que mancha com vagas o mar, o espelho.

Nos olhos dos abutres eu me veria, pode ser,

Mas só a flecha os tornaria bastante próximos,

Que cega o olhar deles e ao mesmo tempo o meu.

Eu não veria meu rosto senão na hora da morte

E não por um tempo maior que um piscar de olhos

( Müller 1993Müller, Heiner. Filoctetes. In: Medeamaterial e outros textos. Tradução de Marcio Aurelio e Willi Bolle. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, 97-135.: 110) 25 25 “ Und nicht der Schmerz war mir die schrecklichste / Mit dem der kranke Fuß mich in den Staub trat. / Mein Schrecken war: mein Feind hat kein Gesicht. / Könnt ich mir selber in die Augen sehn / Den Wind mit Pfeilen an die Sonne nageln / Der mir das Meer mit Wellen fleckt, den Spiegel. / Im Aug der Geier säh ich mich vielleicht / Doch bringt mir nur der Pfeil die nah genug / Der blind macht ihren Blick zugleich für meinen. / Nicht vor dem Sterben säh ich mein Gesicht / Und länger nicht als einen Augenblick lang ” ( Müller 2006: 20-21).

É um longo caminho de pertencimento ou não pertencimento à pólis, da singularidade do herói trágico em relação à sociedade grega e da coerção do indivíduo aos ritos sacrificiais e de iniciação, com que o coletivo intentava banir um exterior de morte, às consequências da era da subjetividade. O Filoctetes de Müller mostra, contudo, que as vicissitudes do sujeito, sua sensação de vazio, de horror desse vazio, e de solidão, assim como uma maior dependência ainda do outro, ao invés das promessas de autonomia e emancipação, eram perceptíveis também em Berlim Leste, além do futuro “muro de proteção” contra as atrocidades desenfreadas do capitalismo, antes que Christopher Lasch atestasse suas distorções narcísicas para a sociedade norte-americana do final do séc. XX ou que Cristoph Türcke observasse que nas sociedades (ocidentais) excitadas da virada do séc. XX para o séc. XXI o cogito cartesiano havia dado lugar ao lema sensacionista e sensacionalista do esse est percipi 26 26 Ser é ser percebido. ; 27 27 Cf. Lasch 1979 e Türcke 2002 . Em um dos subcapítulos de seu livro, Türcke descreve a atual proliferação de tattoo e piercing como atos de tomada de poder de si mesmo, empenhados contra a sensação de vazio existencial, provocada pelo sentimento da exclusão do campo de percepção, e contra a deficiência háptica em relação ao mundo, seguindo o lema sentio, ergo sum – sinto logo existo ( Türcke 2002: 71-77). Riscar e marcar a própria pele poderiam ser vistos, nessa perspectiva, por assim dizer ironicamente como substitutivos da ferida de Filoctetes: integração (também em seu sentido radical, o da morte) e segregação (também no sentido de distinção, eleição) interpenetram-se e condicionam-se dialeticamente. . Lasch e Türcke constatam que uma das consequências de vazio interno e hipercompensação narcísica, de dependência e deficiência da percepção do outro para autovalidação e estima é raiva, rancor e ódio (prometeico), voltado também contra o próprio eu 28 28 Se essa vertente masoquista é primária ou secundária, é outra discussão longa que não pode ter lugar aqui. . É o sentimento que habita o Filoctetes de Müller e se agrava depois que Neoptólemo lhe dá as costas, levando consigo o arco, não sem ter revelado todo o dolo e ardil de sua missão. A reação leva ao paroxismo a relação metonímica entre Filoctetes e o arco, existente já no drama sofocliano:

Pudesse eu mesmo me transformar em flecha

Que mata e tem a sensação de seu agir.

Pudesse eu rolar a ilha sobre ele,

Me afogando junto com o inimigo mortal, mas saboreando,

antes que o sal me saboreie, sua morte no sal

( Müller 1993Müller, Heiner. Filoctetes. In: Medeamaterial e outros textos. Tradução de Marcio Aurelio e Willi Bolle. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, 97-135.: 118, tradução levemente modificada) 29 29 “Könnt ich mich umbaun selber zum Geschoß / Das tötet, und Gefühl hat für sein Tun. / Könnt ich die Insel wälzen auf ihn, zwar / Ersaufend mit dem Todfeind, aber schmeckend / Eh mich das Salz schmeckt, seinen Tod im Salz ” ( Müller 2006: 31).

Pouco antes do fim da peça, depois de haver recebido o seu arco de volta das mãos de Neoptólemo, Filoctetes aponta a arma de fato e não apenas imaginariamente. O alvo, contudo, é Odisseu, que, nas palavras do arqueiro, deve morrer antes de Neoptólemo, cujo olhar especular lhe é necessário para que testemunhe efeito e afeto causados pela morte de quem mais odeia. No entanto, antes que a flecha deixe a corda, o próprio Filoctetes é morto por Neoptólemo, que lhe finca sua espada nas costas, em mais uma e decisiva mudança em relação ao modelo grego. Não há possibilidade, no enredo de Müller, de uma cura de Filoctetes, nem de uma parceria de responsabilidade mútua sua com Neoptólemo, em relação recíproca à sociedade em que a dupla se encontraria (re)integrada. A experiência de iniciação de Neoptólemo, por sua vez, é acentuadamente aquela de perfídia e assassinato, o que, porém, já se encontrava de certo modo prefigurado, como dito acima, pela possibilidade da ironia derradeira sofocliana. Em sua muito citada carta a Mitko Gotscheff, diretor da encenação búlgara bastante apreciada por Müller, o dramaturgo observa a respeito da figura de Neoptólemo, levado ao palco pelo ator Ivailo Gerasov:

Ele [Neoptólemo] corporifica, em oposição àquela dilacerada de Filoctetes, a autoconfiança 30 30 A palavra em alemão é Selbstbewußtsein , que designa, para além de autoconfiança e autoestima a consciência de si mesmo, no sentido filosófico. remendada, que transpõe a experiência da violência em agressão. Auxiliado por seu figurino, algo entre Idade de Pedra e Idade Derradeira, carapaça de dinossauro e traje de astronauta, seu corpo chacoalhado pela cãibra da puberdade como por dores de parto, como se quisesse indicar o nascimento da morte que será sua resposta à não superada desordem da vida, Ivailo Gerasow traça o contorno trêmulo da figura heráldica do guerreiro da ária do ator em Hamlet , que desenha a descida de Neoptólemo (que mudou sua plumagem para Pirro) à fama do primeiro carniceiro de Troia

( Müller 2005Müller, Heiner. Brief an den Regisseur der bulgarischen Erstaufführung von Philoktet am Dramatischen Theater Sofia. In: Schriften (Werke 8). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005, 259-269.: 263) 31 31 *“Er verkörpert, im Gegensatz zu dem zerrissenen des Philoktet, das geflickte Selbstbewusstsein, das die Erfahrung der Gewalt in Aggression umsetzt. Unterstützt von seinem Kostüm, etwas zwischen Stein- und Endzeit, Saurierpanzer und Raumfahrerdress, sein Körper vom Krampf der Pubertät geschüttelt wie von Wehen, als ob er die Geburt des Todes anzeigen will, der sein Antwort auf die nicht bewältigte Unordnung des Lebens sein wird, zeichnet Ivailo Gerasow den zitternden Umriss der heraldischen Figur des Kriegers aus der Schauspielerarie im* Hamlet , die den Abstieg des Neoptolemos (der sich zum Pyrrhus gemausert hat) in den Ruhm des ersten Schlächters von Troja beschreibt […]”.

Face a Filoctetes morto, Odisseu cogita num primeiro momento proteger seu cadáver dos abutres. Em seguida, porém, o estrategista ardiloso, descrito por Müller como executor – em duplo sentido – da tragédia ( Müller 2005Müller, Heiner. Brief an den Regisseur der bulgarischen Erstaufführung von Philoktet am Dramatischen Theater Sofia. In: Schriften (Werke 8). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005, 259-269.: 261), que havia o drama todo argumentado em prol da indispensabilidade de Filoctetes diante dos muros de Troia, observa repentinamente que seu cadáver lhes será tão útil ou mais útil até do que o herói vivo:

Se o peixe não entrou na nossa rede vivo

Que, morto, ele nos sirva de isca.

Para algo melhor talvez, ele não poderá impedir

Que sua ferida afie suas lanças.

Retire as pedras. Põe o cadáver nas minhas costas.

Emprestarei os meus pés ao morto

( Müller 1993Müller, Heiner. Filoctetes. In: Medeamaterial e outros textos. Tradução de Marcio Aurelio e Willi Bolle. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, 97-135.: 133) 32 32 “ Wenn uns der Fisch lebendig nicht ins Netz ging / Mag uns zum Köder brauchbar sein der tote. / Zu besserem vielleicht, er kanns nicht hindern / Dass seine Wunde seine Speere schärft. / Die Steine weg. Lad mir den Leichnam auf. / Ich will dem Toten meine Füße leihn ” ( Müller 2006: 46).

Em seguida explanará a Neoptólemo e ao público a história que contarão ao exército grego e que fará com que os soldados de Filoctetes mais seguramente entrarão na guerra, e com mais afinco, porque movidos pela sede de vingança.

Na já referida carta a Gotscheff, Müller aborda o fim de sua peça: “A tragédia leva (ao) nada” ( Müller 2005Müller, Heiner. Brief an den Regisseur der bulgarischen Erstaufführung von Philoktet am Dramatischen Theater Sofia. In: Schriften (Werke 8). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005, 259-269.: 261) 33 33 “ Die Tragödie geht leer aus ”. . A formulação é ambígua. Por um lado, ela designa, no sentido do gênero despojado,

a peripécia da tragédia em farsa, quer dizer, naquilo que Schiller chamou de sátira trágica, pelo salto de pensamento de Odisseu, da insubstituibilidade do Filoctetes vivo ao aproveitamento do morto, com o que adentra o palco uma nova espécie, o animal político

( Müller 2005Müller, Heiner. Brief an den Regisseur der bulgarischen Erstaufführung von Philoktet am Dramatischen Theater Sofia. In: Schriften (Werke 8). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005, 259-269.: 265) 34 34 “ [...] der Umschlag der Tragödie in die Farce, bzw. in die von Schiller so genannte tragische Satir, durch den Gedankensprung des Odysseus von der Unersetzlichkeit des lebenden zur Verwertung des toten Philoktet, mit dem eine neue Spezies die Bühne betritt, das politische Tier ”. .

Mas, por outro, na acepção do vazio final, o dito aponta também para a preservação da tragédia, ao “momento utópico [que jaz nesse vazio e o transcende], conservado na linguagem (em versos) como o inseto no âmbar” ( Müller 2005Müller, Heiner. Brief an den Regisseur der bulgarischen Erstaufführung von Philoktet am Dramatischen Theater Sofia. In: Schriften (Werke 8). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005, 259-269.: 260) 35 35 “ [...] das utopische Moment, das in der (Vers-) Sprache aufgehoben ist wie das Insekt im Bernstein ”. . Independentemente, porém, da questão se e sob que forma o gênero que floresceu no séc. V a.C. grego encontrou e encontra continuidade nos séculos XX e XXI 36 36 Em seu livro sobre a atualidade da tragédia, Christoph Menke ( 2005 ) dedica um subcapítulo à peça de Müller. Empreendo uma discussão mais pormenorizada de suas teses e da questão de atualidade e permanência do gênero no âmbito de meu projeto de pesquisa “Atualidade de tragédia e trágico? Sobre a fortuna de uma categoria estética” e do livro resultante da investigação. , a releitura por Müller da peça de Sófocles, em proximidades e modificações, continua atualíssima para os nossos dias. Quer dizer, findo o tempo da tragédia grega, no início já da era da pós-verdade, o corpo morto não mais se vincula ao sacrifício, já não expressa a ambivalência humana ante o matar. O destino perde o seu rosto e torna-se a máscara da manipulação. Na encruzilhada da história, a humanidade, sem poder contar com a intervenção divina e segregada da voz popular, é propensa a fincar a espada não só nas costas alheias, mas também nas próprias.

Referências bibliográficas

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  • Winnington-Ingram, Reginald P. Sophocles, an interpretation. London: Cambridge University Press, 1980.
  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 306242/2021-4
  • 2
    Veja-se, para as informações contidas neste parágrafo e nos três parágrafos subsequentes, o verbete “Philoktetes” em Der kleine Pauly , ( Pauly 1979Pauly, August Friedrich von. Der kleine Pauly: Lexikon der Antike. Stuttgart: Alfred Druckenmüller, 1979.: 766-767); ( Martinez 2003Martinez, Josiane T. Filoctetes, de Sófocles. Introdução Tradução e Notas. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 2003.: xiii-xiv) e a “Introdução” de Fernando Brandão dos Santos à sua tradução da peça de Sófocles ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. ).
  • 3
    Supõe-se que Sófocles tenha escrito, para além da tragédia preservada, outra peça sobre o tema, com o título Filoctetes em Troia , com data de concepção certamente anterior ao drama que conhecemos, mas de que restaram apenas alguns poucos fragmentos cf. Lloyd-Jones 2003Lloyd-Jones, Hugh (ed.). Sophocles: fragments. Edited and translated by Hugh Lloyd-Jones. Cambridge, US: Harvard University Press, 2003.: 332-335.
  • 4
    Odisseu reporta em sua primeira fala que Filoctetes supurava no pé e estorvava libações e sacrifícios dos gregos com gritos e selvagens insultos. Tendo em vista a postura explícita de Odisseu na peça, de que os fins justificam todos os meios retóricos, não é forçoso dar-lhe crédito em seu relato. Contudo, a vinculação do sofrimento de Filoctetes ao sacrifício e à esfera divina aparece em mais lugares no drama e será também objeto de análise aqui.
  • 5
    Salvo nos casos em que se refere à tradução publicada, com indicação de autoria, as transposições dos textos originais para o português são de minha autoria.
  • 6
    Por exemplo em: “Ele [Odisseu] foi o único dentre muitos / que, designado, por ordens deles, / realizou aos amigos comum ajuda” ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 167, v. 1142-1144).
  • 7
    No sentido do verso 110: “Quando se faz algo para lucro, não convém hesitar” ( Sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 167).
  • 8
    Neoptólemo não é Zeus disfarçado, mas, ainda assim, leva sua mensagem a Filoctetes.
  • 9
    Veja-se nesse sentido também sua reação quando da revelação da profecia por parte do integrante da tripulação de Neoptólemo e Odisseu, disfarçado de Mercador: “Ai de mim, será que esse homem, o dano completo, / jurou que me levaria aos aqueus, por me convencer? / Serei convencido antes a voltar do Hades / à luz depois de morto, como o pai dele” ( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 115, v. 622-625).
  • 10
    À fala de Odisseu no prólogo, “Ousa: mais tarde justos pareceremos, / porém, agora, por uma breve parte indecorosa do dia, / entrega-te a mim, e, depois, no tempo restante, / sê aclamado o mais escrupuloso de todos os mortais” (v. 82-85), opõe-se à constatação de Neoptólemo do terceiro episódio, “Indecente revelar-me-ei. Isso há muito tempo me aflige.” (v. 906). ( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 65 e 145).
  • 11
    “Nem tu sem o arco, nem o arco sem ti” ( sófocles 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 65, v. 115).
  • 12
    Isso foi observado também por Easterling, que na última frase de seu ensaio chama a atenção para a importância dos temas de phílos e xénos em ambas as peças ( Easterling 1983Easterling, Patricia Elisabeth. Philoctetes and Modern Criticism. In: Segal, Erich (ed.). Oxford Readings in Greek Tragedy. London: Oxford University Press, 1983, 217-228.: 228). Edmundo Wilson lembra ainda que os versos (1239-1248) com que o coro se refere no terceiro estásimo à situação de Édipo em Colono lembram muito aquela de Filoctetes, no cabo de Lemnos. Na tradução de Trajano Vieira: “Não estou só. Comigo ele se encontra, mísero! / Como ao cabo boreal, que a escuma / multi-revolta açoita, / escumas na rebentação, terríveis / desde o acúmen, sem trégua, intermitentes, / as dores o fustigam, / uma desde o sol-pôr, / outras do sol-nascente, / outras do sol-a-pino, / outras do Ripeu, / noite fosca” ( Wilson 2009Wilson, Edmund. Filoctetes: a ferida e o arco. In: Sófocles. Filoctetes. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2009, 193-213.: 204).
  • 13
    Thuméle ( θυμέλη ), o altar votado a Dionísio que ficava na orquestra do palco, não pode ser etimologicamente separado de thúein ( θύειν ), “sacrificar”, como lembra Burkert ( 1990Burkert, Walter. Griechische Tragödie und Opferritual. In: Wilder Ursprung. Opferritual und Mythos bei den Griechen. Berlin: Wagenbach, 1990, 13-39.: 20).
  • 14
    O canto de lamentação da tragédia.
  • 15
    É bem verdade que a fala aponta, antes de mais nada, de forma irada a contradição de Odisseu, que antes usara a impossibilidade de libações na presença de Filoctetes como justificativa do abandono do arqueiro em Lemnos e agora quer levá-lo a bordo e conduzi-lo a Troia na mesma condição. Contudo, Filoctetes tem consciência do incômodo e da repugnância que sua presença causaria no navio. É nesse sentido que um pouco antes da passagem citada havia perguntado ao hesitante Neoptólemo: “Será que a repugnância da doença te persuadiu / a não mais me levar como marujo?” ( Filoctetes 2008Sófocles. Filoctetes. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.: 143; v. 899-900).
  • 16
    Veja-se a esse título também a ferida que não cicatriza no âmbito da definição do próprio trágico dada por Szondi: “Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável” ( Szondi 2004Szondi, Peter. Ensaio sobre o trágico. Tradução de Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.: 85 [ 1978Szondi, Peter. Versuch über das Tragische. In: Schriften I. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1978.: 209]).
  • 17
    Cf. por exemplo os ensaios de Schiller sobre o tema.
  • 18
    A forma foi cunhada por George Steiner no primeiro capítulo de seu A morte da tragédia ( Steiner 1996Steiner, George. The Death of Tragedy. New Haven & London: Yale University Press, 1996.: 10 [ 2006Steiner, George. A morte da tragédia. Trad. Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.: 5]). No entanto, Steiner certamente não incluiria o Filoctetes no rol dos dramas que ele chama de verdadeiras tragédias, aquelas “peças que comunicam” uma “metafísica do desespero” ( Steiner 1996Steiner, George. The Death of Tragedy. New Haven & London: Yale University Press, 1996.: XI [ 2006Steiner, George. A morte da tragédia. Trad. Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.: XVIII), por seu final de compensação heroica.
  • 19
    Cf., entre outros, Lehmann e Primavesi ( 2005Lehmann, Hans-Thies; Primavesi, Patrick (eds.). Heiner Müller Handbuch. Leben, Werk, Wirkung. Stuttgart: Metzler, 2005.: 6) bem como Müller ( 2019Müller, Heiner. Krieg ohne Schlacht. Leben in zwei Diktaturen. Köln: Kiepenheuer & Witsch, 2019.: passim).
  • 20
    O original, como se verá na nota seguinte, traz “ bei den Opfern ”, em que Opfern pode, teoricamente, ser o plural de vítimas. Na acepção da tradução, o verso remeteria, pois, àqueles que são sacrificados em prol dos objetivos dos poderosos e têm de suportar esse papel calados. É mais provável, porém, que Müller siga aqui o modelo grego. Nesse sentido, Opfern seria o plural no caso dativo de ‘sacrifício’, ou seja, o verso trataria do silêncio prescrito durante os sacrifícios. Foi essa a acepção adotada também pelo próprio Marcio Aurelio, na encenação da peça pela Cia Razões Inversas. Já a tradução de “ in unserem Dienst.… uns nicht mehr dienlich ” por “ferido a nosso serviço…não nos serviu mais”, segue muito de perto o original e refere-se, aí sim, a descartabilidade e substitutibilidade dos integrantes do exército / povo que será emblemática no desfecho do drama de Müller.
  • 21
    Das ist der Platz, Lemnos. Hier Sohn Achills / Hab ich den Mann aus Melos ausgesetzt / Den Philoktet, in unserm Dienst verwundet / Uns nicht mehr dienlich seit dem, Eiter drang / Aus seiner Wunde stinkend, sein Gebrüll / Kürzte den Schlaf und gellte misslich in / Das vorgeshriebne Schweigen bei den Opfern. / Der Berg ist sein Quartier, sein Grab nicht, hoff ich / Ein Loch, vom Wasser in den Fels gewaschen / In langer Arbeit, als der Fisch bewohnte / Was wir mit trockner Sohle jetzt begehn. / Ein Quell davor. Wenn zehn Jahre einen Quell nicht / Austrocknen. Such mir seine Wohnung. Dann / Hör meinen Plan und was dabei dir zufällt ” ( Müller 2006Müller, Heiner. Philoktet. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006.: 7-8).
  • 22
    Ein Lebendes auf meinem Strand. / Ein Ding, das aufrecht geht wie vordem ich / Auf anderm Boden mit zwei heilen Beinen. / Wer bist du, Zweibein? Mensch, Tier oder Grieche? / Und wenn du der bist, hörst du auf zu sein. […] Mit welcher Sprache, Hund, lerntest du lügen / Mensch, welche Hündin warf dich in die Welt / Welch guter oder schlimmer Wind dein Schiff / Auf meinen Steinstrand, den die Schiffe meiden […]? Das Kleid des Griechen trägst du, das ich trug. / Im Kleid des Griechen mag ein Grieche stehn. / Oder erschlugst du einen Griechen, Freund? / Denn Freund nenn ich dich, wenn von deiner Hand / Ein Grieche starb und frag nach deinem Grund nicht […] ” ( Müller 2006Müller, Heiner. Philoktet. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006.: 16).
  • 23
    O original Sprache designa, em alemão, tanto a língua como a linguagem, ou seja, a fala de Filoctetes sobre a ausência refere-se tanto à língua grega em particular como à linguagem humana em geral.
  • 24
    Laut, der mir lieb war. Sprache, lang entbehrt, / […] Lang hört ich aus meinem Mund allein / Wenn Schmerz mir aus den Zähnen grub den Schrei ” ( Müller 2006Müller, Heiner. Philoktet. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006.: 17-18).
  • 25
    Und nicht der Schmerz war mir die schrecklichste / Mit dem der kranke Fuß mich in den Staub trat. / Mein Schrecken war: mein Feind hat kein Gesicht. / Könnt ich mir selber in die Augen sehn / Den Wind mit Pfeilen an die Sonne nageln / Der mir das Meer mit Wellen fleckt, den Spiegel. / Im Aug der Geier säh ich mich vielleicht / Doch bringt mir nur der Pfeil die nah genug / Der blind macht ihren Blick zugleich für meinen. / Nicht vor dem Sterben säh ich mein Gesicht / Und länger nicht als einen Augenblick lang ” ( Müller 2006Müller, Heiner. Philoktet. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006.: 20-21).
  • 26
    Ser é ser percebido.
  • 27
    Cf. Lasch 1979Lasch, Christopher. The Culture of Narcissism. American Life in an Age of Diminishing Expectations. New York: W. W. Norton & Company, 1979. e Türcke 2002Türcke, Christoph. Erregte Gesellschaft. Philosophie der Sensation. München: C. H. Beck, 2002. . Em um dos subcapítulos de seu livro, Türcke descreve a atual proliferação de tattoo e piercing como atos de tomada de poder de si mesmo, empenhados contra a sensação de vazio existencial, provocada pelo sentimento da exclusão do campo de percepção, e contra a deficiência háptica em relação ao mundo, seguindo o lema sentio, ergo sum – sinto logo existo ( Türcke 2002Türcke, Christoph. Erregte Gesellschaft. Philosophie der Sensation. München: C. H. Beck, 2002.: 71-77). Riscar e marcar a própria pele poderiam ser vistos, nessa perspectiva, por assim dizer ironicamente como substitutivos da ferida de Filoctetes: integração (também em seu sentido radical, o da morte) e segregação (também no sentido de distinção, eleição) interpenetram-se e condicionam-se dialeticamente.
  • 28
    Se essa vertente masoquista é primária ou secundária, é outra discussão longa que não pode ter lugar aqui.
  • 29
    “Könnt ich mich umbaun selber zum Geschoß / Das tötet, und Gefühl hat für sein Tun. / Könnt ich die Insel wälzen auf ihn, zwar / Ersaufend mit dem Todfeind, aber schmeckend / Eh mich das Salz schmeckt, seinen Tod im Salz ” ( Müller 2006Müller, Heiner. Philoktet. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006.: 31).
  • 30
    A palavra em alemão é Selbstbewußtsein , que designa, para além de autoconfiança e autoestima a consciência de si mesmo, no sentido filosófico.
  • 31
    *“Er verkörpert, im Gegensatz zu dem zerrissenen des Philoktet, das geflickte Selbstbewusstsein, das die Erfahrung der Gewalt in Aggression umsetzt. Unterstützt von seinem Kostüm, etwas zwischen Stein- und Endzeit, Saurierpanzer und Raumfahrerdress, sein Körper vom Krampf der Pubertät geschüttelt wie von Wehen, als ob er die Geburt des Todes anzeigen will, der sein Antwort auf die nicht bewältigte Unordnung des Lebens sein wird, zeichnet Ivailo Gerasow den zitternden Umriss der heraldischen Figur des Kriegers aus der Schauspielerarie im* Hamlet , die den Abstieg des Neoptolemos (der sich zum Pyrrhus gemausert hat) in den Ruhm des ersten Schlächters von Troja beschreibt […]”.
  • 32
    Wenn uns der Fisch lebendig nicht ins Netz ging / Mag uns zum Köder brauchbar sein der tote. / Zu besserem vielleicht, er kanns nicht hindern / Dass seine Wunde seine Speere schärft. / Die Steine weg. Lad mir den Leichnam auf. / Ich will dem Toten meine Füße leihn ” ( Müller 2006Müller, Heiner. Philoktet. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006.: 46).
  • 33
    Die Tragödie geht leer aus ”.
  • 34
    [...] der Umschlag der Tragödie in die Farce, bzw. in die von Schiller so genannte tragische Satir, durch den Gedankensprung des Odysseus von der Unersetzlichkeit des lebenden zur Verwertung des toten Philoktet, mit dem eine neue Spezies die Bühne betritt, das politische Tier ”.
  • 35
    [...] das utopische Moment, das in der (Vers-) Sprache aufgehoben ist wie das Insekt im Bernstein ”.
  • 36
    Em seu livro sobre a atualidade da tragédia, Christoph Menke ( 2005Menke, Christoph. Die Gegenwart der Tragödie. Versuch über Urteil und Spiel. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005. ) dedica um subcapítulo à peça de Müller. Empreendo uma discussão mais pormenorizada de suas teses e da questão de atualidade e permanência do gênero no âmbito de meu projeto de pesquisa “Atualidade de tragédia e trágico? Sobre a fortuna de uma categoria estética” e do livro resultante da investigação.

Editado por

Editor: Daniel Reizinger Bonomo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2023
  • Aceito
    03 Out 2023
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
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