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"A enganada" e "A morte em Veneza": a reconfiguração da doença no estilo tardio de Thomas Mann

“The Black Swann” and “Death in Venice”: the reconfiguration of disease in Thomas Mann’s late style

Resumo

O presente artigo busca determinar as diferentes elaborações literárias da doença, tema caro à obra de Thomas Mann, entre sua obra de juventude, A morte em Veneza (1912), e A enganada (Die Betrogene), uma “obra tardia”, publicada em 1953, dois anos antes da morte do escritor. Nesses quarenta anos de diferença, assistimos aos principais eventos históricos da primeira metade do século XX: a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que, tratando-se de um escritor realista, devem ser levadas em conta na construção de sua obra ficcional. Desse modo, busca-se compreender de que modo o escritor enquadra a doença como diapasão da história: na novela de 1912, assinalando a decadência da estética classicista e, na de 1953, reabilitando o amor romântico como forma de oposição ao mundo administrado após a derrocada de Hitler. Assim, o estilo tardio de Thomas Mann ganha forma através da reabilitação dos grandes temas da tradição literária alemã após atravessar sua maior crise cultural.

Palavras-chave:
estilo tardio; Thomas Mann; doença; crise da cultura

Abstract

This article seeks to determine the different literary elaborations of disease, an important theme in the work of Thomas Mann, between his young work, Death in Venice (1912), and The Black Swann (Die Betrogene), a “late work”, published in 1953, two years before the writer's death. In these forty years of difference, the main historical events of the first half of the 20th century occurred: the First and Second World Wars, events which, in the case of a writer of realism, must be taken into consideration with regard to the construction of his fictional work. We seek to understand how the writer frames disease as a compass of history: in the 1912 novella, as signalling the decadence of classicist aesthetics, and, in the 1953 novella, as rehabilitating romantic love as a form of opposition to the administered world after Hitler's downfall. Thus, Thomas Mann's late style takes shape through the rehabilitation of the great themes of the German literary tradition after going through its deepest cultural crisis.

Keywords:
late style; Thomas Mann; disease; cultural crisis

Em A enganada [Die Betrogene], última novela de Thomas Mann2 2 As citações terão como base a tradução de Gilda Lopes Encarnação (2015). Houve o cotejo com o original (MANN 2015), realizando alterações quando necessário para o melhor entendimento do argumento aqui defendido. , publicada em 1953 durante seu exílio na Suíça, a doença é um tema central. Em Düsseldorf, Rosalie von Tümmler, viúva de meia-idade, já passada da menopausa, se apaixona por Ken Keaton, um jovem estadunidense. Como sintoma deste amor, Rosalie volta a “menstruar”, porém, os sangramentos não são a redescoberta do amor - isto é, da fertilidade -, já que se trata de um câncer bastante avançado em seu ovário. O leitor descobre este “engano” apenas no leito de morte da protagonista, enganada por sua paixão, que a vitima.

Quarenta anos antes, em 1912, o escritor publicara A morte em Veneza, que até hoje se mantém como uma de suas narrativas mais afamadas - ao menos entre o público brasileiro. Nesta novela de juventude, Thomas Mann cria um escritor classicista, Gustav von Aschenbach, que, enfastiado da vida metropolitana, viaja à velha cidade renascentista a fim de encontrar novos ares para sua escrita. Num hotel de luxo, encontra Tadzio, garoto de beleza grega, apolínea, que perturba a consciência do escritor. Em conjunto com a crescente admiração pelo menino, se desvela uma epidemia de cólera na cidade, a qual Aschenbach opta por enfrentar para que possa desfrutar do prazer de observar o garoto. Ao final, o escritor sucumbe à enfermidade.

Diante dessa semelhança temática - o amor que conduz à doença, conduzindo à morte - o crítico alemão Hans Mayer (MAYER 1984MAYER, Hans. Der Tod in Düsseldorf (‘Die Betrogene’). In: MAYER, Hans. Thomas Mann, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, 408-426.), estabelece um paralelo entre as obras: nomeia Die Betrogene de “A morte em Düsseldorf”, pois percebe que há continuidades e remodelações de temas caros à poética de Thomas Mann, com ênfase na contradição entre vida e espírito, que, quando mediada pela doença, no caso de Veneza, leva Aschenbach à beira da loucura, e em Düsseldorf fez germinar a semente romântica de Rosalie - “nascida na primavera, uma criança de maio”3 3 “Im Früling geboren, ein Maienkind” , como descreve o narrador (MANN 2015MANN, Thomas. As últimas três novelas - As cabeças trocadas; A lei; A mulher atraiçoada. Trad. Gilda Lopes Encarnação, Porto: Livros do Brasil, 2015.: 170).

Num artigo ao Correio Paulistano publicado em 1948, Anatol Rosenfeld (ROSENFELD 1994ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva/Unicamp/Edusp, 1994.: 149) dedica-se sobre esse tema. Aqui, o crítico afirma que escritor se inscreve na acepção que Novalis atribui à “doença”:

Doenças, mormente as de longa duração, são os anos de aprendizagem na arte de viver e na formação da alma… Amor é inteiramente doença: eis o significado maravilhoso do cristianismo.

Rosenfeld atribui a Thomas Mann a continuidade dessa perspectiva porque, em sua obra, a doença nunca é apenas morte, mas também um meio de reafirmação do humano, da vida. Afinal, segundo o crítico, por meio da oposição à saúde, a doença seria capaz de aferrar o espírito a uma experiência limítrofe da vida, acessando fenômenos bloqueados aos saudáveis. Trata-se de um processo formativo, pois apresenta ao sujeito uma outra forma de apreensão dos sentidos e da realidade. Nos termos de Rosenfeld (1994ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva/Unicamp/Edusp, 1994.: 150), “é precisamente em virtude desse afastamento e dessa distância que o homem consegue apossar-se de um modo mais profundo da vida.”. Na obra de Thomas Mann, essa posse doentia da vida se dá por meio da criação artística, assim como da conquista de novas operações espirituais.

Na verdade, a doença pode ser compreendida como uma porta de entrada a outro estado de coisas e sensações, operando um impulso criativo estimulado pela pulsão de morte. Em sua juventude, era frequentemente associada a artistas - Hanno Budenbrook e Gustav von Aschenbach, por exemplo, - que se valem desse estado como meio de exercício dessa sensibilidade insana.

Nesses personagens artistas, a doença adquire essa dimensão formativa e de aprendizagem, causando certo estranhamento à sensibilidade técnica e instrumental de nosso tempo, posto que, para nós, a plena atividade espiritual estaria necessariamente conectada ao pleno funcionamento biológico do corpo. Essa associação é questionada pela literatura de Thomas Mann - claro que a morte sempre é o destino desses artistas enfermos, mas o percurso transfigura a vítima. Contudo, encontramos uma defesa teórica dessa acepção do termo no ensaio seu sobre Dostoiévski (MANN 2011: 122), publicado em 1946, no exílio norte-americano:

Antes de afundar a sua vítima na treva espiritual e matá-la, a doença a presenteia com experiências traiçoeiras - no sentido da saúde e da normalidade - de poder, de leveza soberana da iluminação e de bem-aventurada inspiração que o preenchem com arrepios de veneração de si próprio, com a convicção de que aquilo não acontecia há milênios, com a percepção de si mesmo como veículo divino, receptáculo de graça, quase um deus.

Essa perspectiva tem como pressuposto o dado ontológico de que “o homem não é um ser meramente biológico” (MANN 2011: 124), estando sujeito a mais influências - culturais, espirituais, psíquicas - que separam o homem da primazia biológica. Ora, fosse o contrário, ainda seguindo o argumento do ensaísta, “uma horda de rapazes receptivos e saudáveis” não se lançaria de chofre à obra de um “gênio doente” (MANN 2011: 125) como Dostoiévski, buscando nela o lado escuro da saúde, a forma “não-oficial” da cultura, já que “certas conquistas da alma e do conhecimento não podem existir sem a doença, a loucura, o crime intelectual” (MANN 2011: 125).

Sendo assim, a doença é um princípio criativo muito frequentado pelo autor. Retornando à sua juventude, é custoso encontrar um momento de êxtase estético que não derive da crise doentia, ou mesmo uma enfermidade que não viabilize outra experiência de fruição. Não é por acaso que a matéria do Doutor Fausto anima o escritor já em 1905, isto é, um artista enfermo que se vale de sua condição para a criação genial de obras de arte. Lemos esse princípio no seus Notizbücher (MANN apudKURZKE 1985KURZKE, Hermann. Thomas Mann: Epoche - Werk - Wirkung. Munique: C. H. Beck, 1984. : 287, tradução própria):

O veneno surte efeito como êxtase [Rausch], estímulo, inspiração; ele deve, numa encantadora animação, criar obras geniais, maravilhosas, o diabo guia sua mão. Finalmente, porém, o diabo vem buscá-lo: paralisia4 4 „Das Gift wirkt als Rausch, Stimulans, Inspiration; er darf in entzückter Begeisterung geniale, wunderbare Werke schaffen, der Teufel führt ihm die Hand. Schließlich aber holt ihn der Teufel: Paralyse“. .

Ora, aquilo que mata o artista, que o conduz à acefalia e à demência é o mesmo veículo de sua genialidade. Essa imbricação tão sui generis foi desenvolvida já em 1912 com A morte em Veneza. Como já mencionado, Hans Mayer estabelece um possível paralelo entre essa novela de juventude e Die Betrogene e, assim, é válido buscar dimensionar os diferentes desdobramentos deste motivo no início e no fim da obra do escritor.

Dentre as diversas diferenças estruturais entre as novelas, é válido ressaltar o espaço e o protagonista. Enquanto a narrativa de 1912 é centrada num artista com ideais classicistas em meio ao esteticismo decadente do romantismo tardio alemão, a de 1953 é conduzida por uma mulher comum, mera admiradora - das menos experimentadas - de arte, e de alma profundamente romântica - no sentido filosófico do termo: a harmonia com a natureza como um desdobramento do sentimento amoroso. Essa diferença incontornável é acentuada pelo espaço: uma em Veneza, outra em Düsseldorf, ou seja, de um lado a cidade renascentista decadente; de outro a romântica e florida cidade ao sul da Alemanha.

Como se vê, as discrepâncias dessas estruturas não ocorrem ao acaso, posto serem exigências das temáticas que abordam as diferentes crises históricas que respondem. Ora, seguindo este esquema, a doença presente nas novelas comporta-se também de modo distinto, dado que em Veneza ela acomete um artista espiritualmente entorpecido, e em Düsseldorf uma mulher sonhadora de meia-idade, que não tem quaisquer intenções de representar o que sente por Ken Keaton, regozijando-se com o simples sentimento.

O começo do século XX, “que por muitos meses mostrou ao continente europeu um cenho tão carregado” (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 11), é prismatizado, na obra do jovem Mann, através da dualidade vida-espírito. Esse é o principal objeto de sua novela mais famosa. Gustav von Aschenbach, escritor renomado cujos livros estão sendo incluídos em leituras escolares, se enfastia do cotidiano da metrópole e busca maiores pulsões numa viagem à cidade renascentista. Lá, encontra Tadzio, garoto de tamanha beleza “que fazia pensar na origem das formas e no nascimento dos deuses” (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 42). Ao travar contato com o adolescente, o escritor envelhecido desenvolve uma fascinação pela sua figura, deixando nebuloso ao leitor se tamanha obsessão é decorrente do deslumbramento apolíneo do belo ou se já se trata de um colérico devaneio febril.

É notável em A morte em Veneza a onipresença do “mormaço nojento”, do “cheiro podre da laguna”, que não pode ser esquecido principalmente em meio às descrições classicizantes do mar, do céu e de Tadzio. A experiência de Aschenbach com o garoto é um deslocamento da beleza espiritual para a da vida, mas esse movimento ocorre numa cidade que passa por dedetizações diárias, uma “cidade doente e [que] disfarçava esse fato por mera ganância” (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 64). Assim, na novela, nem sequer a obra de corte esteticista-classicista da personagem é ingênua, pois demonstra saber o desajuste do ideal apolíneo de beleza numa Europa em enervada e crescente crise cultural.

Sendo assim, o contato com Tadzio causa um curto-circuito no escritor, já que materializa algo que imaginava existir apenas como espírito, razão (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 53):

Estátua e espelho! Seus olhos envolviam o nobre vulto que ali se achava à beira do elemento azul e, num arroubo de entusiasmo, Aschenbach pensava em compreender nesse olhar a própria beleza, a forma como ideia divina, a perfeição una e pura que vive no espírito e cuja imagem, cujo símbolo lá se erguia, gracioso e leve, no intuito de ser adorado. Era o frenesi, e sem a menor hesitação, ávido mesmo, o artista envelhecido regozijava-se com ele.

É como se a existência de Tadzio invertesse o campo magnético da obra de Aschenbach, afinal dá concretude humana àquilo que se creditava somente ao ideal. A presença do jovem, então, testa o limite da arte classicista - que, assim como Veneza, está, no início do século, em inevitável decadência.

Esse decadentismo perpassa todo o livro - as demais personagens que perambulam pelo hotel e pela praia parecem ser feitas de cera, parte do cenário -, e a doença é o aspecto que confere verossimilhança à escolha do tema e à sua forma de representação naquela hora crepuscular da cultura da grande burguesia europeia.

Não seria acaso o fato de o historiador Modris Eksteins iniciar seu livro sobre “a Grande Guerra e o nascimento da modernidade” com uma recomposição de Veneza, pautando-se na novela de Thomas Mann. Neste prólogo (EKSTEINS 1991EKSTEINS, Modris. A sagração da primavera e o nascimento da modernidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.: 21, grifo próprio), ele escreve:

Talvez em grande parte do século XVIII e durante todo o século XIX o reino das ideias tenha sido mais distinto do mundo da ação e da realidade social. As duas esferas se achavam separadas por um senso moral, um código social. Era muito mais provável que as ideias surgissem de um conjunto prescrito de princípios morais, derivado essencialmente do cristianismo e, parenteticamente, do humanismo. A ação e o comportamento deviam ser interpretados em função dos mesmos princípios. Esse amortecedor, entre pensamento e ação, um código moral positivo, desintegrou-se no século XX, e desse modo, no colossal romantismo e irracionalismo de nossa era, a imaginação e a ação caminharam juntas e até se fundiram.

O parentesco entre ação e pensamento, juntamente com o “código social” que legislava essa relação de esferas distintas, segundo o historiador, foi dissolvido no início do século XX, encontrando na Grande Guerra a porta de entrada para o rompimento dos “amortecimentos” entre “imaginação” e “ação”, viabilizando a possibilidade objetiva de barbáries como as engendradas pelas décadas posteriores. Assim, para Eksteins, o Modernismo é uma forma de “romantismo” levado às últimas consequências, pois seria o propulsor de todas as forças mais recônditas do sujeito podendo tomar forma real. É neste campo de forças que a doença toma forma em A morte em Veneza, isto é, respondendo à degeneração de uma forma cultural lastreada no domínio racional e temperado das formas de pensamento e de espírito, o que, por consequência, deveria organizar também a esfera da vida. Claro que, por uma contingência histórica, a novela não poderia apontar claramente a catástrofe vindoura.

Aschenbach em Veneza encontra a fusão de arte e vida, espírito e sentido, levando à desintegração de todo o aparato cultural do artista moldado à moda classicista do século XIX. Nesta obra, a doença funciona, portanto, como uma bússola histórica, secularizando através do forte olor pútrido o “mundo magicamente desfigurado, cheio daquela vitalidade peculiar a Pan, [que] envolvia o sonhador fascinado, e seu coração [que] visionava delicados enredos” (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: p. 58). Toda essa mistificação “irracionalista” - para usarmos os termos de Eksteins - só adquire desdobramentos estéticos se matizada pelo estado enfermo do artista.

É válido mencionar também que a decadência formalizada na novela pavimenta o acesso ao amor e à beleza. A cena ao fim do quarto capítulo em que Aschenbach fica a ponto de perder os sentidos quando se aproxima muito de Tadzio e sussurra a “eterna fórmula do anelo” - o “eu te amo!” (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 60) -, elabora a tensa malha de contradições da narrativa. Ora, a obra de Thomas Mann, ao articular a crise da cultura com a doença, ou seja, a uma outra ordem de coisas e seres, habilita Aschenbach ao amor e à apreensão sensível - na esfera da vida - do belo. Tanto que, ao notar a efervescência amorosa, o escritor quer fugir de Veneza (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 46):

E, de súbito, o homem envelhecido julgava tão grave, tão importante tal divergência entre afeição da alma e as forças do corpo, tão ignominiosa a derrota de seu organismo, que cumpria evitá-las, custasse o que custasse.

O homem já de cabelos prateados percebe com tão profundo estranhamento o sentimento amoroso a ponto de julgar-se derrotado, já que seu “organismo” não mais suporta a descarga sensível provocada pelo amor. Seu corpo aponta para o descanso, para a reclusão, sua alma para o amor por Tadzio, gerando uma insolúvel contradição. Quando, na barbearia do hotel, o escritor se dá conta de sua aparência envelhecida, recebe um conselho do funcionário (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 78):

Afinal de contas somos tão velhos quanto se sentem o nosso espírito e a nossa alma, e cabelos grisalhos representam sob certas circunstâncias uma inverdade mais real do que significaria o menosprezado retoque.

O esteta aceita o retoque e mascara sua aparência na esperança de equiparar alma e corpo. É por isso que o escritor não se entristece quando sua bagagem é extraviada, imputando ao acaso a decisão de ficar em Veneza e, simbolicamente, optar pelo cultivo de seu sentimento íntimo pelo garoto apolínio. Desse modo, Aschenbach não é enganado, posto que tem ciência e dimensão do perigo de ficar em Veneza, de maneira que, ao final, a doença leva-o à contemplação da máxima beleza: Tadzio, confundindo-se com Apolo, aponta para a o infinito do mar “rumo ao vazio imenso, cheio de promessas” (MANN 2022MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.: 83). E o escritor, seguindo em direção ao inefável, morre na cadeira da praia.

Vê-se, então, que a morte de Aschenbach foi, de certo modo, perseguida por ele, como um modo de busca pelo infinito, pela apreensão total dos sentidos, da vida, pelo espírito. Essa fusão é o aspecto que marca o ponto final da decadência cultural do fin do siècle. A doença, portanto, coagula todos esses aspectos da narrativa para ligá-la ao momento da Grande Guerra, que já despontava no horizonte.

Como já se viu, esse afastamento do estado de alma das forças corporais é também ponto de interesse em Die Betrogene, mas, no caso desta novela de 1953, o amor - aliado à doença - são responsáveis pelo engano de Rosalie. Isso se dá, salvo engano, pela ampla diferença entre as personagens: esta protagonista não é artista e, logo, não possui a mesma intimidade com os assuntos do espírito que Aschenbach. O câncer no ovário, então, transubstancia-se numa nova vida, sem dúvidas nem ressalvas.

Em Die Betrogene não há o fedor da dedetização, mas o aroma dos deuses, exalado pelas flores, criando uma ambientação de simples ingenuidade romântica, sem o tom de gravidade classicista visto em Veneza. Num importante diálogo da novela, Rosalie revela para sua filha, Anna von Tümmler - de temperamento mais racional -, sua paixão e a volta da “menstruação”, o faz com uma grandiloquência que se aparente com o cômico. Afinal, descreve o ocorrido como um grande “triunfo!”, um milagre de reconhecimento da natureza diante de sua devoção incondicional. Desse modo, o leitor suspeita da veracidade desse milagre não porque a vítima leva ao questionamento, mas por conta do enquadramento narrativo em que essa “vitória” se dá. Diferente de A morte em Veneza, a novela de Düsseldorf se vale do motivo da doença para acusar ao mesmo tempo a ingenuidade sui generis de Rosalie e desfibrilar, pós-hitlerismo, algum encantamento pela síntese de vida e espírito.

A condução da narrativa na novela é que instila no texto a ironia necessária para figurar a paixão romântica dentro da ironia. Quando a relação de Rosalie e Ken começa a se estreitar, eles se encontram em diversos bailes. A descrição da protagonista é importante para se compreender o argumento, além de ecoar o conselho do barbeiro veneziano (MANN 2015MANN, Thomas. Die Betrogene und andere Erzählungen. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2015.: 219, grifo próprio):

Ora, não obstante os dilemas por que passava, sucede que Rosalie conheceu, naquela altura, como que um novo desabrochar, um rejuvenescimento insólito, o que lhe valia não raro elogios. A sua figura sempre se mantivera bem conservada ao longo dos anos, porém, o que se destacava acima de tudo era o brilho dos seus belos olhos castanhos, fonte do seu encanto, ainda que por vezes lhes assomasse um fulgor ligeiramente febril. Arrebatador era ainda o enrubescimento súbito do seu rosto, alternando com uma lividez fugidia, bem como a elasticidade dos seus traços fisionômicos durante o calor das conversas, geralmente divertidas, o que sempre lhe dava ensejo para corrigir, mediante um simples sorriso, qualquer ruga ou olheira que teimasse em despontar5 5 „Es kam hinzu, daß, so sehr sie litt, ihre Erscheinung damals ein Neuerblühen, eine Verjüngung ins Auge fallen ließ, über die man ihr Komplimente machte. Immer hatte ihre Gestalt sich ja jugendlich erhalten, aber auffiel, war er Glanz ihrer schönen braunen Augen, der, mochte er auch etwas fieberhaft Heißes haben, ihr doch reizend zustatten kam, die Erhöhung ihrer Gesichtsfarbe, die sich aus gelegentlichem Erbleichen rasch wiederherstellte, die Beweglichkeit der Züge ihres voller gewordenen Gesichtes bei Gesprächen, die lustig zu sein pflegten und ihr immer die Möglichkeit gaben, eine sich eindrängende Verzerrung ihrer Miene durch ein Lachen zu korrigieren“. .

Nestes encontros sociais, Rosalie é graciosa, simpática, de boas relações, de ares joviais. O modo, porém, com que essa aparência se constrói é pela “correção” de seus traços de idade. Pelo enquadramento do narrador, seus olhos são núcleo de seu encantamento e de seu rejuvenescimento, rendendo-lhe elogios. Contudo, ao invés desse narrador onisciente expor os elogios que Rosalie possa ter recebido, opta por demonstrar que esse “novo desabrochar” [Neuerblühen] era mascarado pelas simpáticas correções - como um “simples sorriso” -, dissimulando as rugas. Além disso, os olhos encerram também um ardor “febril”, que faz lembrar Aschenbach.

Fica claro, então, que o modus operandi do narrador ao mesmo tempo que afirma o aparente rejuvenescimento, abala seus alicerces através da alusão à febre e à correção dos traços de velhice. Desse modo, é com uma lente irônica que a “nova vida” é incorporada em Rosalie, devendo causar desconfiança. É importante salientar, diante disso, que Rosalie, diferente do escritor de 1912, almeja superar o afastamento de seu estado de alma do estado biológico de seu corpo, mas o que para o esteta é mascaramento intencional - “o menosprezado retoque” -, para a romântica de Düsseldorf é uma benção da natureza e do amor.

Nessa perspectiva, a doença tem pontos de toque com a de A morte em Veneza - o da verossimilhança histórica, como se verá -, porém é matizada por outros processos, que a afastam da obra de juventude. Ora, as configurações se aproximam quando a doença é vetor da reelaboração sensível da realidade, afinal, tanto em Veneza como em Düsseldorf inscreve suas vítimas numa perspectiva mais sublime do amor e da beleza ao mesmo tempo que as conduz à morte.

Com o espaço que contém duas Guerra Mundiais, por uma exigência realista, o motivo não poderia ser inteiramente idêntico nas duas obras. No início do século, prenunciando a Grande Guerra, a doença, ao construir uma ponte entre o arcabouço espiritual de Aschenbach e sua vivência [Erlebnis] mundana, leva o artista ao colapso nervoso e à beira da insanidade, demonstrando a inoperância do esteticismo provindo do século XIX. É conhecida a oposição que o jovem Mann fazia à l’art-pour-l’art, que na Alemanha tinha Stefan George como representante (cf. BOES 2019BOES, Tobias.Thomas Mann’s War. Itaca: Cornell University Press, 2019.: 25-29). O esteticismo do poeta é parodiado em A morte em Veneza, principalmente se tomarmos o princípio de “vivência” como o fio-condutor do colapso que assistimos. Esse é um conceito frequentemente debatido pelo jovem Lukács, que dedica um ensaio a George (LUKÁCS: 2015LUKÁCS, Györg. A nova solidão e sua lírica: Stefan George. In: LUKÁCS, Györg. A alma e as formas, São Paulo: Autêntica, 2015, 129-143.: 134), no qual argumenta a favor deste esteticismo:

[...] no que toca à expressão dessas vivências que se tornaram completamente típicas, desatadas para todo sempre da pessoa do poeta, destiladas mil vezes, ele possui palavras de maravilhosa instantaneidade, furtivas, repentinas, cheias de delicadeza e mais discretas que o crepitar de folhas em brasa.

Esse ponto de vista defende que as expressões poéticas do início do século XIX teriam maior espontaneidade, eram “vivência concreta”, e o curso histórico sedou gradativamente a expressão lírica até culminar no hermetismo que garantiria ainda sua verdade. Nesse sentido, troca-se a vivência pelo símbolo. Ora, Aschenbach pertence a essa esteira estética; e Tadzio, em Veneza, traz em forma de vivência o que o esteta antes concebia apenas como símbolo. É, como descreve Anatol Rosenfeld, um “tipo de intelectual que, entregue às suas tarefas transcendentes, se esquece do século” (ROSENFELD 1994ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva/Unicamp/Edusp, 1994.: 24-5). Nesse contexto, a doença é o que torna apreensível e fatal essa inversão, o real se impõe e triunfa diante do transcendente. Assim, esta novela responde à crise cultural localizada no início do século XX, que ainda não tinha sofrido seu maior abalo.

Atravessando a guerra total e, sobretudo, a barbárie nazista, a atmosfera de criação aponta para um reajuste deste motivo: a enfermidade não mais contagia a herança do esteticismo aristocrático, mas o romantismo - uma expressão tipicamente alemã arde em febre. Nessa diferença reside o teor de verdade de Die Betrogene: o câncer, a doença, promovendo um vislumbre de síntese entre vida e espírito (a volta dos sangramentos, lê-se, da fertilidade), causa em Rosalie a reação de “triunfo!”, e não de inação ou impasse como em Aschenbach, posto que essa harmonia é o pressuposto de seu ideal romântico. Com isso, as novelas se diferenciam substancialmente, já que o processo imposto pela enfermidade é antagônico, o que pode ser lido à luz da experiência do século XX, que separa as obras.

Escrita nos anos 50, a última novela pressupõe que o leitor leve em conta os eventos que separam o tempo da narrativa do da narração. É válido mencionar que a primeira frase da novela localiza o enredo no início dos anos 1920, atribuindo uma certa carga de coisa velha, ilhada no passado ao leitor dos anos 1950, dado que este sobreviveu à guerra total. Essa sutileza pode ser percebida também em Rosalie, numa conversa com Anna, na qual acusa a filha de ser moralmente muito antiquada para a época em que vivem (MANN 2015MANN, Thomas. Die Betrogene und andere Erzählungen. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2015.: 237, grifo próprio):

Na sua arte você é tão avançada e dedica-se ao mais novo, de modo que alguém com o meu conhecimento limitado somente com esforço consegue acompanhar. Mas moralmente você parece viver sabe Deus quando, no século passado, antes da guerra. Agora nós temos a república, nós temos a liberdade, e os princípios se tornaram mais suaves, se soltaram, o que é visível em todas as esferas da vida6 6 „In deiner Kunst bist du so fortgeschritten und betreibst das Allerneuste, so daß ein Mensch von meinem schlichten Verstande mit Mühe nur folgen kann. Aber moralisch scheinst du weiß Gott wann du leben, Anno dazumal, vor dem Kriege. Wir haben doch jetzt die Republik, wir haben die Freiheit, und die Begriffe haben sich sehr verändert zum Légèren, Gelockerten hin, das zeigt sich in allen Stücken“. .

Rosalie demonstra ter plena ciência do tempo em que vive, na verdade apresenta, não sem ironia, ainda mais agudeza que sua filha modernista, que vê com maus olhos o amor de uma mulher mais velha com um jovem adulto. Ou seja, o idealismo da mãe não se fundamenta na falta de conhecimento histórico ou na dificuldade de percepção de que horas são, tencionando a crença irrefletida no rejuvenescimento.

Na verdade, tendo consciência do processo social alemão dos anos 1920, a doença em Rosalie se redimensiona, afinal não se pode mais acusar a personagem de ser inteiramente ingênua. Trata-se de uma ingenuidade eletiva, que precisamente por reconhecer o tempo histórico em que vive, a síntese de vida e espírito se mostra ainda mais sedutora como meio de negação da era da técnica e da razão instrumental.

Seguindo esse ponto de vista, Rosalie é uma das personagens mais alemãs de Thomas Mann (cf. SCHOOLFIELD 1963SCHOOLFIELD, George. Thomas Mann’s ‘Die Betrogene’. The Germanic Review: Literature, Culture, Theory, v. 38, n. 1, 91-120, 1963.: 119), talvez tanto quanto Adrian Leverkühn. Afinal, a eleição da sinestesia enferma como caminho de combate romântico à situação cultural do século XX, é uma opção politicamente pouco efetiva, mas artisticamente muito rica. Assim, a doença não opera na contradição do sistema ideológico da personagem - como o faz com o escritor esteticista-classicista -, mas como brecha para a vivência daquilo que Rosalie mais ama: a natureza e o próprio Amor.

Há, claro, uma trágica ironia nessa opção. Como dito acima, a novela é escrita e publicada nos anos 50, tendo a experiência de “liberdade” e de “república” como pretérito perfeito do Terceiro Reich. Aqui, mais uma vez, a doença confere verossimilhança realista, mas não como estandarte do decadentismo como em A morte em Veneza. No pós-hitlerismo, ela permite que a personagem sonhe perigosamente, desafiando os limites históricos de sua era ao redescobrir e reviver a cosmovisão romântica que, por ser um delírio febril, termina por vitimar a sonhadora. A doença em Die Betrogene é a notação realista do vislumbre romântico, que é uma marca do estilo tardio de Thomas Mann.

Uma operação análoga a esta pode ser vista em forma de romance no Doutor Fausto. Como se sabe, Adrian Leverkühn é um artista de vanguarda, mas os meios para realização dessa revolução estética não nascem da saúde. A sífilis por ele contraída pode ser lida como condição de existência dessa arte modernista, já que a criação artística verdadeira no breve século XX - posto que “a arte deixou de ser exequível sem a ajuda do Diabo e sem fogos infernais sob a panela…” (MANN 2016: 578).

Neste sentido, no romance demoníaco, a doença se configura enquanto condição de verdade da arte, algo que é professado pelo duplo diabólico de Adrian no capítulo XXV (MANN 2016: 282):

À base de tua loucura, os jovens hão de se nutrir em plena saúde, e no íntimo deles tu serás sadio. Compreendes? Não somente vencerás as estorvadas dificuldades dos tempos; não, os próprios tempos, a fase da cultura e seu culto serão superados por ti; terás a audácia de uma barbárie duplamente bárbara, por ocorrer após o humanismo, após o refinamento burguês e qualquer tratamento de canal que se possa imaginar.

Em certo sentido, o diabo concorda com o diagnóstico de Eksteins, indicando a falência do “amortecedor” entre imaginação e ação, viabilizando a barbárie. Ou seja, para que a criação artística tenha efeito neste século, ela deve provir da insanidade, ou para utilizar o termo ínfero, “após o humanismo”. Assim, neste romance tardio, a doença tem outra operação, que também anseia por uma superação do estado atual de crise cultural. Neste aspecto, a doença tem um ponto de encontro em Doutor Fausto e Die Betrogene, mas a condução dessa superação causa uma diferença.

Na novela, a doença não leva a protagonista a acessar um estado de alma demoníaco como ocorre com Adrian Leverkühn. É bem verdade que o compositor tem suas raízes no romantismo tardio7 7 Segundo Hermann Kurzke (1984: 285), “sem Adorno, esse final se justificaria somente, a partir de Nietzsche, na psicologia da decadência. Leverkühn teria sido um wagneriano tardio.” [Ohne Adorno wäre dieses Ende nur, von Nietzsche her, dekadentpsychologisch zu begründen gewesen. Leverkühn wäre ein Spätwagnerianer geblieben]. , mas a doença - condição contratual do pacto no romance - reordena sua sensibilidade e provê a nova linguagem musical do dodecafonismo, mas ao final o diabo o leva - “caia o ponteiro” (GOETHE 2016 :169), como diz o verso goethiano. Noutras palavras, o caminho para a renovação da arte é a venda da própria alma, não havendo, como em Die Betrogene, uma alusão à reconciliação - Adrian provoca uma ruptura [Durchbruch]. Isto é, para o compositor não há redenção e tampouco uma “afirmação da vida por meio da morte”, há a execução do contrato, a queda do ponteiro. Em Die Betrogene, a doença não é uma cláusula, mas uma forma de afirmação daquilo que jazia na interioridade da protagonista - a reconciliação com a natureza através do amor - sem as acepções demoníacas que encontramos no romance, visto que para a realização da obra de vanguarda, o músico fora impedido de amar. Em suma, no seu estilo tardio, através de diferentes configurações - ora pela ruptura, ora pela reconciliação -, a doença é um motivo que elabora a crise social e cultural da Europa no século XX e principalmente na Alemanha após o nazismo.

Em maio de 1952 (MANN 1979MANN, Thomas. Briefwechsel III (1948-1955). Frankfurt am Main: Fischer Verlag , 1979.: 254, tradução própria), o escritor enviou uma carta ao médico Dr. Frederick Rosenthal - que também o auxiliara no Fausto -, elencando uma série de perguntas acerca das consequências médicas e biológicas da doença:

Em qual estágio do desenvolvimento cancerígeno (que, como se sabe, passa desapercebido no útero, sem dar qualquer sinal de dor) é possível ocorrer uma nova menstruação com um confundível sangramento? Talvez em um muito avançado? No que consiste a operação, quando ela é realizada? Na extração de todo o útero?8 8 „In welchen Stadium der Krebs-Entwicklung (die ja bekanntlich an der Gebärmutter unmerklich, ohne Schmerzsignal vor sich geht) mag eine solche, mit erneuter Menstruation verwechselbare Blutung eintreten? Wahrscheinlich doch in einem sehr vorgeschrittenen? Worin besteht die Operation, wenn man sie noch vornimmt? Im Herausnehmen des ganzen Uterus?“.

E o escritor continua numa lista grande de questões para o médico, pois a forma de mimetizar a dimensão romântica - lê-se o rejuvenescimento e ressureição da vida que se dão no amor e na reconciliação com a natureza - deve ser conduzida, para nosso autor, com rigor realista. Noutra carta ao doutor (MANN 1979MANN, Thomas. Briefwechsel III (1948-1955). Frankfurt am Main: Fischer Verlag , 1979.: 255, tradução e grifos próprios), redigida oito dias após a primeira, Mann deixa explícita essa necessidade do realismo:

A Senhora, de temperamento renano, viúva há 11 anos, é especialmente uma amante da natureza. No que concerne o enredo, não queria me estender muito, salvo o conhecimento da verdadeira razão do sangramento, que a pobre mulher, através de um elemento psíquico, através do amor, compreende como a causa do milagre natural, seguido o quanto antes de seu orgulhoso enobrecimento. Além disso, o fato de a menstruação de fachada já ser o sinal de uma doença pior, mais avançada ao ponto da completa desesperança. Isso são desejos narratológicos. Eles precisam, obviamente, se ajustar às possibilidades da medicina9 9 „Die Frau, von rheinischem Temperament, verwitwet seit 11 Jahren, ist besonders naturliebend. Was den Zeitraum der Handlung betrifft, so wünschte ich ihn mir nicht zu ausgedehnt, sondern so, daß die Erkenntnis der wahren Ursachen der Blutung, die die Arme für eine durchs Psychische, durch die Liebe herbeigeführtes Naturwunder hält, möglichst bald auf ihre stolze Erhebung folgt. Auch, daß die Schein-Menstruation schon das Zeichen einer weit, bis zur Hoffnungslosigkeit vorgeschrittenen Erkrankung ist. Das sind erzählerische Wünschbarkeiten. Sie müssen sich natürlich ins medizinisch Mögliche fügen“. .

Adequar as projeções estéticas às possibilidades concretas não é uma exigência de todos os escritores modernos - basta lembrarmos do início da narrativa de Gregor Samsa ou da mera existência de um Odradek -, mas sim de um escritor de calibre realista, que persiste na sua estética mesmo diante de toda a sua ruína. Assim, as formas dessa tradição realista podem servir-se de um tema que escapa às suas malhas de representação, caso o escritor tencione a forma a partir do conteúdo plasmado por ela. Esse é precisamente o caso de Die Betrogene, obra que por provocar a ânsia pela reconciliação romântica deve construir caminhos para sua negação objetiva, isto é, o câncer no útero.

Trocando os termos, o elemento romântico é circunscrito numa forma realista de narrativa, criando certo atrito entre as formas de representação em jogo que, como se sabe, são frequentemente contrapostas na historiografia da literatura. Porém o escritor encontra aqui uma modulação bastante sui generis, já que o delírio romântico só se torna realista e verossímil porque floresceu como corolário de uma doença fatal, cujo sintoma é provocar sangramentos vaginais e colorir o imaginário romântico de sua portadora apaixonada. Nesse sentido, o aparente atrito entre essas formas torna-se força criativa, pois não trabalha com elas como se fossem forças passadistas, que pouco ou nada teriam a ver com o presente. Na verdade, esse encontro organiza uma saída pouco conformista à situação da arte burguesa no pós-guerra.

Plasmada pela ironia trágica comum ao estilo de Thomas Mann, a doença na sua última novela desenvolve tanto uma crítica à instrumentalização burguesa do espírito e da vida como situa historicamente a distância que o sonho romântico se encontra após a Segunda Guerra, diferenciando-a de sua configuração de juventude. Essa tensão de afirmação e negação da tradição germânica é a pedra de toque de seu estilo tardio, cujo empenho está ainda na representação realista, mas configurada a partir da experiência furiosa e devastadora do nazismo.

Diante deste diagnóstico, é possível elaborar algumas reflexões acerca do estilo tardio do escritor. Enquadrando-o numa perspectiva mais ampla, a situação nacional da Alemanha nos anos 50 e 60 é de ampla reconstrução - econômica, geográfica, social e cultural. Para escritores já idosos, esse empenho não poderia realizar-se através do esquecimento da tradição. No caso de Thomas Mann, os alicerces de sua arte realista estão arraigadas no século XIX: a novela tradicional, a forma-romance, o Romantismo - enfim, formas e sistemas de pensamento que organizam o mundo numa visão totalizante, oposto às expressões de vanguarda, fundamentadas no fragmento.

Num pequeno ensaio dos anos 60, Theodor Adorno (2021ADORNO, Theodor W. Sobre a tradição. In: ADORNO, Theodor W. Sem diretriz - Parva estética. Trad. Luciano Gatti. São Paulo: Editora Unesp, 2021, 79-84.: 80, grifos próprios) faz uma defesa da tradição neste cenário de ruínas:

O gesto do “isso não interessa mais” é estranho à relação crítica com a tradição, assim como a impertinente subsunção do presente àqueles conceitos históricos excessivamente abrangentes como o de maneirismo, o qual veladamente obedece à máxima do “tudo já aconteceu”. Tais comportamentos são niveladores. Eles são indulgentes perante a crença supersticiosa na continuidade histórica não interrompida e, junto com isso, no veredito histórico; são conformistas. […] Deve-se buscar pelo que é vivo nas obras em seu interior, nas camadas que estavam encobertas em fases anteriores e que só vieram à tona quando outras entraram em declínio e pereceram.

A reflexão é bastante pertinente ao momento que vivem estes intelectuais nascidos no apagar das luzes do século XIX. Após a Segunda Guerra, a continuidade acrítica da tradição transforma-se em ideologia e a quebra radical e vanguardista desta tradição é componente da indústria cultural, blindando as obras do teor negativo e renovador que traziam nos anos 1920. Desse modo, para esta geração, a posição mais crítica diante dessa encruzilhada parece ser a recuperação da tradição, mas de maneira que se ilumine a pátina de passado inerente a ela, reabilitando-a em duas vias: pela negação e pela busca do “que é vivo nas obras” a partir da experiência recente.

É nesse sentido que a ação da doença em Rosalie pode ser lida como uma revisão da de Aschenbach. A protagonista da novela tardia é de uma ingenuidade romântica, pois almeja a síntese com a natureza através do amor, num percurso harmônico sem contradições. O problema, contudo, é representar essa força conciliatória após as catástrofes do século XX, posto que um escritor realista jamais foge ao escopo do real. Desse modo, a criação de uma personagem como essa engendra a complexa contradição que esta dissertação buscou analisar: ao mesmo tempo que demarca temporalmente essa ingenuidade - a morte de Rosalie determina sua inefetividade -, sua convicção eletiva atribui certa carga crítica e, portanto, negativa à sua época. Noutros termos, Rosalie é uma personagem anacrônica e esse seu traço fundamenta seus aspectos cômicos e afetados, plasmados nos grandiloquentes diálogos com sua filha, ao mesmo tempo que configura uma oposição à situação cultural do mundo administrado, eclipsado pela razão.

Na sua obra tardia, tomando Die Betrogene como objeto de estudo, a tradição está sob crítica através de uma perspectiva conciliatória, uma forma de “reconciliação destrutiva”10 10 Utilizo aspas porque se trata do título de uma recente dissertação de mestrado: A reconciliação destrutiva: a obra tardia de Thomas Mann, que pode ser acessada neste link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-22122023-170837/pt-br.php. . Afinal, não se trata de uma síntese alienante, que nega o presente a fim de apenas reabilitar o passado, mas de uma que põe o passado em revista, auscultando nele suas pertinências e os limites que ele estabelece à nova crise cultural instaurada pelo nazifascismo na Alemanha e na Europa.

Referências bibliográficas

  • ADORNO, Theodor W. Sobre a tradição. In: ADORNO, Theodor W. Sem diretriz - Parva estética. Trad. Luciano Gatti. São Paulo: Editora Unesp, 2021, 79-84.
  • BOES, Tobias.Thomas Mann’s War. Itaca: Cornell University Press, 2019.
  • EKSTEINS, Modris. A sagração da primavera e o nascimento da modernidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
  • KURZKE, Hermann. Thomas Mann: Epoche - Werk - Wirkung. Munique: C. H. Beck, 1984.
  • LUKÁCS, Györg. A nova solidão e sua lírica: Stefan George. In: LUKÁCS, Györg. A alma e as formas, São Paulo: Autêntica, 2015, 129-143.
  • MANN, Thomas. A morte em Veneza. In: MANN, Thomas A morte em Veneza; Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • MANN, Thomas. As últimas três novelas - As cabeças trocadas; A lei; A mulher atraiçoada. Trad. Gilda Lopes Encarnação, Porto: Livros do Brasil, 2015.
  • MANN, Thomas. Die Betrogene und andere Erzählungen. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2015.
  • MANN, Thomas. Briefwechsel III (1948-1955). Frankfurt am Main: Fischer Verlag , 1979.
  • MAYER, Hans. Der Tod in Düsseldorf (‘Die Betrogene’). In: MAYER, Hans. Thomas Mann, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, 408-426.
  • ROSENFELD, Anatol. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva/Unicamp/Edusp, 1994.
  • SCHOOLFIELD, George. Thomas Mann’s ‘Die Betrogene’. The Germanic Review: Literature, Culture, Theory, v. 38, n. 1, 91-120, 1963.
  • 2
    As citações terão como base a tradução de Gilda Lopes Encarnação (2015). Houve o cotejo com o original (MANN 2015), realizando alterações quando necessário para o melhor entendimento do argumento aqui defendido.
  • 3
    Im Früling geboren, ein Maienkind”
  • 4
    „Das Gift wirkt als Rausch, Stimulans, Inspiration; er darf in entzückter Begeisterung geniale, wunderbare Werke schaffen, der Teufel führt ihm die Hand. Schließlich aber holt ihn der Teufel: Paralyse“.
  • 5
    „Es kam hinzu, daß, so sehr sie litt, ihre Erscheinung damals ein Neuerblühen, eine Verjüngung ins Auge fallen ließ, über die man ihr Komplimente machte. Immer hatte ihre Gestalt sich ja jugendlich erhalten, aber auffiel, war er Glanz ihrer schönen braunen Augen, der, mochte er auch etwas fieberhaft Heißes haben, ihr doch reizend zustatten kam, die Erhöhung ihrer Gesichtsfarbe, die sich aus gelegentlichem Erbleichen rasch wiederherstellte, die Beweglichkeit der Züge ihres voller gewordenen Gesichtes bei Gesprächen, die lustig zu sein pflegten und ihr immer die Möglichkeit gaben, eine sich eindrängende Verzerrung ihrer Miene durch ein Lachen zu korrigieren“.
  • 6
    „In deiner Kunst bist du so fortgeschritten und betreibst das Allerneuste, so daß ein Mensch von meinem schlichten Verstande mit Mühe nur folgen kann. Aber moralisch scheinst du weiß Gott wann du leben, Anno dazumal, vor dem Kriege. Wir haben doch jetzt die Republik, wir haben die Freiheit, und die Begriffe haben sich sehr verändert zum Légèren, Gelockerten hin, das zeigt sich in allen Stücken“.
  • 7
    Segundo Hermann Kurzke (1984KURZKE, Hermann. Thomas Mann: Epoche - Werk - Wirkung. Munique: C. H. Beck, 1984. : 285), “sem Adorno, esse final se justificaria somente, a partir de Nietzsche, na psicologia da decadência. Leverkühn teria sido um wagneriano tardio.” [Ohne Adorno wäre dieses Ende nur, von Nietzsche her, dekadentpsychologisch zu begründen gewesen. Leverkühn wäre ein Spätwagnerianer geblieben].
  • 8
    „In welchen Stadium der Krebs-Entwicklung (die ja bekanntlich an der Gebärmutter unmerklich, ohne Schmerzsignal vor sich geht) mag eine solche, mit erneuter Menstruation verwechselbare Blutung eintreten? Wahrscheinlich doch in einem sehr vorgeschrittenen? Worin besteht die Operation, wenn man sie noch vornimmt? Im Herausnehmen des ganzen Uterus?“.
  • 9
    „Die Frau, von rheinischem Temperament, verwitwet seit 11 Jahren, ist besonders naturliebend. Was den Zeitraum der Handlung betrifft, so wünschte ich ihn mir nicht zu ausgedehnt, sondern so, daß die Erkenntnis der wahren Ursachen der Blutung, die die Arme für eine durchs Psychische, durch die Liebe herbeigeführtes Naturwunder hält, möglichst bald auf ihre stolze Erhebung folgt. Auch, daß die Schein-Menstruation schon das Zeichen einer weit, bis zur Hoffnungslosigkeit vorgeschrittenen Erkrankung ist. Das sind erzählerische Wünschbarkeiten. Sie müssen sich natürlich ins medizinisch Mögliche fügen“.
  • 10
    Utilizo aspas porque se trata do título de uma recente dissertação de mestrado: A reconciliação destrutiva: a obra tardia de Thomas Mann, que pode ser acessada neste link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-22122023-170837/pt-br.php.
Editor: Daniel Bonomo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2024
  • Aceito
    05 Fev 2024
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