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Destruição e o negativo da experiência em A Patriota e Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945 de Alexander Kluge

Destruction and the negative of experience in The Patriot and The Air Raid on Halberstadt on April 8, 1945 by Alexander Kluge

Resumo

O presente artigo visa uma análise combinada de duas produções do cineasta, escritor e pensador alemão Alexander Kluge, a saber o filme “A Patriota” (Die Patriotin) e o livro “Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945” (Der Luftangriff auf Halberstadt am 8. April 1945). Ambas produções, de caráter marcadamente ensaísticas, guardam uma singular relação de intertextualidade, na qual trechos, temas e passagens da obra escrita são retrabalhados na obra audiovisual. Em especial, buscaremos destacar o tema da destruição em massa inaugurada no século XX através das guerras mundiais. Kluge posiciona o tema abordando a história alemã a partir da noção de experiência e de seu negativo, confrontado a pequena escala dos afazeres humanos com a grande escala da destruição em massa. Tanto em “A Patriota” como em “Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945”, a composição se dá a partir da hibridização de matérias primas ficcionais e documentais, dado que o ataque aéreo que dá título ao livro ocorreu de fato na cidade natal de Kluge, durante a segunda guerra mundial mas, ao mesmo tempo, trechos ficcionais são desenvolvidos buscando enfatizar o valor heurístico da imaginação.

Palavras-chave:
Alexander Kluge; A Patriota; Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945; ensaio; destruição em massa

Abstract

This article aims at a combined analysis of two works by the German filmmaker, writer, and thinker, Alexander Kluge, namely the film “The Patriot” (Die Patriotin, 1979) and the book “The Air Raid on Halberstadt on April 8, 1945” (Der Luftangriff auf Halberstadt am 8. April 1945, 1977). Both productions, of an markedly essayistic nature, maintain a unique relationship of intertextuality, as excerpts, themes, and passages from the book are rendered in the audiovisual format. In particular, the article will highlight the theme of mass destruction inaugurated in the 20th century in the context of two world wars. Kluge positions the theme by approaching German history from the notion of experience and its adverse manifestations, confronting the small scale of human affairs with the large scale of mass destruction. In both “The Patriot” and “The Air Raid on Halberstadt on April 8, 1945”, the composition is based on the hybridization of fictional and documentary raw materials, as the air raid that gives the book its title actually occurred in Kluge's hometown during World War II. At the same time, however, fictional sections are developed to emphasize the heuristic value of imagination.

Key-words:
Alexander Kluge; The Patriot; The Air Raid on Halberstadt on April 8, 1945; essay; mass destruction

1 Introdução

O cineasta alemão Alexander Kluge destaca-se como um dos maiores expoentes do cinema europeu e mundial. Sua trajetória é marcada por uma intensa tentativa de redefinição e investigação dos limites do cinema, em constante diálogo com outras formas de expressão estéticas e intelectuais. Kluge foi aluno e interlocutor de T. W. Adorno e leitor da obra de Walter Benjamin, vinculando-se de maneira substantiva ao legado da Teoria Crítica. A busca por desenvolver um pensamento conceitual, capaz de manter vivas a sensibilidade e a singularidade de seus objetos, nos parece uma das principais aproximações de sua empreitada estético-intelectual com esta tradição. Desde 1962 assume posição de destaque como um dos principais formuladores do novo cinema alemão. Não tendo-se limitado à área cinematográfica, Kluge desenvolveu substantivos trabalhos em formato televisivo e fecundas produções escritas no campo teórico e literário. Esta multiplicidade de sua produção possibilita interessantes momentos de intertextualidade, no qual fragmentos teóricos ou literários são retrabalhados em seus filmes. Iremos nos deter em alguns aspectos de “A Patriota” (Die Patriotin), expressão forte do seu audiovisual ensaístico, que aproxima questões decisivas da história alemã com seu presente histórico. Buscaremos destacar as conexões do filme com “Ataque Aéreo a Halberstadtem 8 de Abril de 1945” (Der Luftangriff auf Halberstadt am 8. April 1945), livro publicado em 1977, que lança mão da hibridização entre relato pessoal-ensaístico com a narração ficcional para enfrentar o difícil tema da destruição em massa que marcou o século XX.

É possível identificar, nas obras de Kluge anteriores a “A Patriota”, realizadas no rescaldo de 1968, ora um balanço direto do período e eventos que sucederam as rebeliões, ora uma tentativa de apreensão das contradições constitutivas daquele momento histórico. Em “A Patriota”, parece ocorrer uma inflexão em direção a uma tematização indireta desta problemática, buscando criar um campo de tensão a partir de elementos de ordem distintas. O filme parece conter, assim, um duplo movimento, de distanciamento e aproximação em relação ao seu presente histórico, que funcionará como uma espécie de tensão em movimento a impulsionar o sentido do filme. A personagem ficcional Gabi Teichert (interpretada por Hannelore Hoger), professora de História que apareceu inicialmente em “Alemanha no Outono”2 2 Filme que retrata os acontecimentos do outono de 1977 que culminam com o sequestro e execução de Hanns-Martin Schleyer, presidente da Confederação de Associações de Empregadores da Alemanha, ex-integrante das SS e do exército nazista, pela Facção do Exército Vermelho, a RAF, também conhecida como grupo Baader-Meinhoff. O filme foi realizado em colaboração por diversos expoentes do Novo Cinema Alemão (Rainer Werner Fassbinder, Alf Brustellin, Hans Peter Cloos, Maximiliane Mainka, Edgar Reitz, Katja Rupé, Volker Schölondorff, Peter Schubert e Bernhard Sinkel), tendo sido coordenado por Kluge, que também dirigiu e roteirizou o episódio Gabi Teichert e codirigiu os episódios de “Hanns-Martin Schleyer e Funeral”. (Deutschland im Herbst), insatisfeita com suas condições de vida e com o tipo de conteúdo que tem que lecionar, lança-se em direção à recuperação de fragmentos de momentos decisivos da história alemã. Concomitantemente às cenas da personagem, a narração é feita pelo joelho do soldado alemão Wieland, morto na batalha de Stalingrado, durante a Segunda Guerra Mundial. A narração funciona como alegoria, na qual são apresentadas imagens de arquivo, ilustrações, encenações e fotografias que remetem a diversos períodos da história da Alemanha. A consolidação do sentido ensaístico neste momento da obra de Kluge parece assim se afirmar a partir desta imbricação de fragmentos do real recolhidos e ressignificados a partir de um sentido ficcional ou narrativo. A tensão entre a narração, seu sentido e suas dificuldades de representação, que marcaram o início do novo cinema alemão, reaparece aqui.

A máxima de Alexander Kluge de que a realidade é carente de imaginação, e que a ficção é carente de teor de verdade é expandida neste movimento de imbricação entre a construção de uma “dramaticidade” que parte das angústias e crises de uma personagem individual e se direciona ao encontro de fragmentos de natureza pública e “documental”. O gesto ensaístico de Kluge revela, assim, uma aproximação com a problemática apresentada em “Esfera Pública e Experiência”3 3 Öffentlichkeit und Erfahrung: zur Organisations analyse von bürgerlicher und proletarischer Öffentlichkeit - sem tradução para o português (CAMPATO, 2007), escrito em 1972 em parceria com Oskar Negt, o livro busca desenvolver um exame crítico da categoria Habermasiana a luz dos acontecimentos do final dos anos 60 e de algumas premissas da primeira geração da Teoria Crítica. , ao explicitar, por um lado, a dimensão “pública” nas vivências consideradas privadas, e, por outro, a redução do horizonte das mesmas quando esta dimensão pública é alienada. Assim, “A Patriota” parece aproximar a imbricação entre documentação e ficção em seu aspecto formal, com uma aproximação entre as vivências privadas e os eventos públicos, do ponto de vista da narrativa do filme. Parece-nos necessário, por isso, analisar algumas passagens do filme, com intuito de percebermos de que maneira este tipo de composição se desenvolve.

2 O Joelho e a Professora

A sequência de abertura traz um close do rosto de Hannelore Hoger, sob fundo escuro, com uma narração em off que diz “Gabi Teichert, professora de História em Hesse, é uma patriota, o que quer dizer que se sente responsável por todos os mortos do Reich” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color.: [0h:00m:15s-0h:00m:23s]). Vemos então um intertítulo em cartela com o título do filme e depois um travelling que mostra corpos de soldados mortos, em imagens que remetem às guerras que marcaram o período de unificação da Prússia, sob a trilha sonora da composição de Hanns Eisler para o filme “Noite e neblina” (Nuitetbrouillard), de Alain Resnais. Em seguida, vemos outra cartela com intertítulo, no qual se lê “O Joelho”. A locução em off então recita o poema de Morgenstern (1905 apud A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color.: [0h:01m:13s-0h:01m:41s]), escritor ligado à literatura do absurdo da virada do século:

Na terra perambula um joelho solitário.
É apenas um joelho, nada mais.
Não é uma barraca, não é uma árvore,
É apenas um joelho, nada mais.
Na batalha, há muito tempo, um homem
Foi crivado e pensou e pensou.
O joelho sozinho escapou ileso
Como se isso fosse apenas um tabu.
Desde então, perambula um joelho solitário,
É apenas um joelho, isso é tudo.
Não é uma barraca, não é uma árvore,
É apenas um joelho, isso é tudo.

Enquanto o poema é recitado, observamos uma combinação de ilustrações criando um mosaico de referências que estabelecem uma espécie de tônica para o filme. Conforme a descrição de Amaral (2015AMARAL, Leonardo Guimarães Rabelo. O cinema ensaístico de Alexandre Kluge: alegorias e contra escrita da história em A Patriota. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.: 64):

As imagens apresentam ilustrações de árvores e folhagens no período do inverno, e em seguida também no inverno imagens de um casarão e uma tocha. Em seguida, temos a Terra e lua em rotação (em uma das várias referências de passagem do tempo) e um novo corte apresenta a ilustração (vinda, talvez, de um conto?) de um homem subindo por uma encosta repleta de neve, tendo, ao lado, um castelo refletido na água (de cabeça para baixo). O final da sequência apresenta pessoas caminhando na neve, tanques de guerra explodindo juntamente com soldados, imagens de explosão na guerra. Essas figuras e imagens de arquivo não identificáveis remetem sempre à Batalha de Stalingrado, na qual o exército nazista alemão sucumbiu diante do exército soviético por conta das dificuldades climáticas.

Quando o poema termina de ser recitado, a banda sonora inicia uma melodia de órgão que parece ao mesmo tempo reforçar o sentido de passagem do tempo e conferir uma sensação de circularidade a esta passagem. Em seguida, quando aparece o castelo refletido na água de cabeça para baixo, o joelho retoma seu monólogo, agora aparentemente com um texto desenvolvido por Kluge exclusivamente para o filme. Este monólogo na banda sonora irá acompanhar todas as ilustrações e culminará num movimento de câmera panorâmico no qual são exibidas belas imagens de uma floresta, ao que tudo indica da região de Obersalzberg (Figura 1).

Figura 1
Floresta de Obersalzberg

Parece interessante destacar algumas passagens do monólogo do joelho, que acompanham as imagens descritas, para novamente adentrarmos em algumas nuances do jogo de sentidos proposto:

Tem gente que diz que um joelho não pode falar, nem assumir posição. O fato de que eu fale prova que não é assim. Sou o joelho que sobrou da perna do cabo Wieland, ou de todo aquele corpo assim que, em 29 de janeiro, este caiu em Stalingrado. Eu sobrevivi, e tenho algo a dizer. Recorro ao mundo e falo pelo cabo Wieland, porque ninguém está simplesmente morto quando morre. Não é possível esquecermos assim, sem mais, os desejos, os membros, as pernas, as costelas, nossa pele gelada, porque não sobrou mais do que eu, o joelho, então tenho que falar, falar e falar. Já que não posso viver normalmente, e ser parte de um homem inteiro, que é parte de um povo, que é parte de uma história, da fauna da natureza ou da flora, dos jardins etc., terão que se acostumar que eu o faça. Tenho direito a fazê-lo. E não exijo nada. Nem que em mim acreditem, nem que o que eu diga tenha sentido. Só quero falar. Se alguém tem um direito, não o exige, luta por ele (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [0h:02m:03s-0h:03m:17]).

Após este trecho, o monologo é interrompido, a banda sonora nos traz uma música dramática e, nas imagens, vemos a ilustração de uma coruja e, em seguida, de homens perfilados com uniformes que parecem ser de trabalho. Após novo corte o monólogo do joelho é retomado, agora sobre imagens em movimento da região de Obersalzberg (região na qual Hitler construiu seu bunker). “Se diz que estou obcecado pela história. É verdade. A história me preocupa, eu seria parte de um todo, se o cabo Wieland, meu antigo dono, também fosse parte de um todo, parte de nossa bela Alemanha. E não em seu bunker” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [00h:03m:48-00h:04m:04s]). Com o encerramento do monólogo do joelho, Gaby Teichert reaparece, agora em uma imagem colorida e em movimento, em frente ao espelho, se preparando para sair. Enquanto ela se maquia, coloca seu gorro, pega uma pá vai em direção à porta vestindo botas de neve (Figura 2).

Figura 2
Gabi Teichert se prepara para um dia de trabalho

O interessante, aqui, é que a narração em off se torna indefinida: não sabemos se a voz é de uma espécie de narrador em terceira pessoa, aquele que iniciou o filme apresentando a personagem, ou se é o próprio joelho que continua a falar, já que as narrações em off são feitas sempre pelo próprio Alexander Kluge. Esta imbricação irá marcar todas as narrações em off do filme de maneira que podemos imaginar que o mesmo é narrado pelo joelho do cabo Wieland. A narração afirma: “Gabi Teichert fala que o material didático para as aulas de História tem deficiências. É difícil narrar a história da Alemanha em tom patriótico” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [0h:06m:14s-0h:06m]). Logo em seguida, vemos a personagem andando com dificuldades na neve, fazendo escavações e anotações, em imagens escuras e em preto e branco que nos remetem àquelas de arquivo dos homens andando na neve. A associação mais direta que parece ser estimulada aqui é que Gabi estaria procurando o joelho que ficou perdido na neve, ou os elementos aos quais o mesmo fez referência em seu monólogo inicial. Este trecho encerra a extensa sequência inicial da obra, que parece cumprir o papel de introduzir, de maneira dispersa, porém ricamente associativa, os motivos que serão desenvolvidos ao longo do filme.

Assim se estabelece a conexão entre os dois elementos narrativos do filme: a personagem Gabi Teichert e a alegoria constituída pelo joelho do Cabo Weiland. Enquanto a primeira busca os elementos que ficaram suprimidos como forma de se opor à historiografia oficial, em um movimento de documentação, o segundo aparece como uma necessidade de imaginação, consequência de uma realidade que suprimiu grande parte de suas possibilidades. É por conta disso que a história oficial, patriótica, aparecerá como uma impossibilidade para Gabi Teichert: ela é consequência de uma série de supressões, interrupções e deformações. A narrativa que se estabelecerá em torno da conexão destes dois elementos permitirá ao filme explicitar, por exemplo, as dificuldades, injustiças e mortes que precisaram ser suplantadas para que se criasse a aparência da historiografia oficial. Uma história que possa realmente ser contada passa demandar então esta operação de resgate e rearticulação, alegorizada através das articulações estabelecidas por homens andando na neve e um joelho despedaçado no campo de batalha, as belas paisagens da fauna e da flora alemã e seu vínculo com a utopia romântica da redescoberta de uma natureza originária e, posteriormente, a tensão que esta ideia estabelece com a necessidade de proteção e clausura diante das ameaças externas, representada pelo bunker. Tal qual explicitado por Kaes (2012KAES, Anton. In Search of Germany: Alexander Kluge’s The Patriot. In: FORREST, Tara (org.). Raw materials of imagination. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012, 95-126.) em seu artigo na coletânea “Alexander Kluge Raw Materials for the Imagination”, intitulado “In Serach of Germany: Alexander Kluge´s The Patriot”, a montagem desempenhará lugar decisivo na construção de sentido proposto pelo filme justamente porque será ela a responsável por possibilitar este movimento de contra escrita da história a partir da rearticulação de seus fragmentos.

Para Kluge, a montagem torna-se um meio de questionar o mundo ao redor, uma abordagem que não produz mais a verdade simplesmente através da representação. “Na montagem”, observa Ernst Bloch em seu Erbschaft dieser Zeit [Herança desta época], o contexto da antiga superfície é destruído, um novo contexto é construído. Isso é possível porque o contexto antigo se revela mais e mais como aparência, como frágil, como simplesmente uma superfície. Nesse sentido, o princípio da montagem é uma forma de protesto que perturba as antigas coordenadas de significado e estabelece novas: “Deve-se perceber os fragmentos subjetivos (do antigo sentido), coletá-los e usá-los para remontar um mundo centrado em torno dos valores humanos”. Perceber, colecionar, montar: o princípio construtivista oferece uma contra-história crítica, demonstrando a possibilidade de uma organização alternativa (“montagem”) da realidade e da sua experiência (KAES, 2012KAES, Anton. In Search of Germany: Alexander Kluge’s The Patriot. In: FORREST, Tara (org.). Raw materials of imagination. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012, 95-126.: 104, tradução nossa).

3 Bombardeios, destruição e a impossibilidade da experiência

Após a abertura o filme se desenvolve combinando temas relacionados a questões centrais do seu presente histórico (o final dos anos 1970 na Alemanha) com momentos decisivos da história do país. Na sequência que segue a abertura o filme abordará os bombardeios sofridos pela Alemanha na segunda guerra mundial. Este tema assume relevância particular, em diversos sentidos. Primeiro, porque remete a uma situação vivida pelo próprio Alexander Kluge, que testemunhou, quando tinha 13 anos de idade, sua cidade natal, Halberstadt, ser atacada por um bombardeio aliado perpetrado pela Royal Air Force inglesa. Além disso, se trata de um tema quase tabu na arte e na representação do imaginário alemão do pós-guerra. Esta espécie de ponto cego narrativo se impõe então ao filme justamente por expressar um importante impasse da narrativa e da autoimagem oficial do país. Como lidar com o tema da violência e destruição radical no país que iniciou a guerra e que realizou durante a mesma atrocidades unanimemente condenadas pelo sentido comum das sociedades europeias do pós-guerra? Como sinalizamos anteriormente, Kluge aborda o tema inicialmente em seu livro “Ataque Aéreo a Halberstadtem 8 de Abril de 1945”, escrito por volta de 1970 e publicado em 1977. O livro tem um posfácio do escritor e crítico literário Alemão W. G. Sebald, que posteriormente, em “Guerra Aérea e Literatura” (Luftkrieg Und Literatur) se debruça longamente sobre os impasses que toda a cultura alemã terá que enfrentar no pós-guerra para tratar (ou por não tratar) dos bombardeios aos quais o país foi submetido na segunda guerra. Assim, a sequência do bombardeio que aparece em “A Patriota” se inscreve numa ampla problemática estruturante dos impasses da identidade alemã, marcada por uma interdição reflexiva no período do imediato pós-guerra, que exige um retorno de destacados expoentes literários e intelectuais, marcadamente a partir do final dos anos 1960.

Um breve interlúdio no qual são apresentadas paisagens urbanas de Frankfurt parece fazer a ligação entre a sequência inicial e a sequência do bombardeio. Vemos uma a fábrica pegando fogo, um bebê nascendo e uma poça d’água que, segundo a locução em off tem uma “história de três dias”, seguidos por closes e planos detalhes de rostos masculinos e femininos, no qual identificamos o rosto de Gabi Teichert em meio a alguns outros. Os planos dos rostos são inicialmente impassíveis e lentamente começam a demonstrar pequenas expressões de tensão ou sorriso, enquanto na banda sonora se inicia uma música crescentemente tensa. Temos então um novo corte e vemos aviões de guerra voando em formação, e em seguida uma câmera aérea assume o lugar dos aviões, dando a impressão de que estamos dentro dos mesmos, nos aproximando da cidade a ser bombardeada. Um feixe de luz (que parece ser um míssil) se aproxima dos prédios explodindo nos mesmos, o que nos dá a impressão de que se trata de um registro documental das próprias forças áreas britânicas do ataque, filmado por uma câmera instalada dentro do avião.

Assistimos então um curioso diálogo de desarmadores de bombas que se encontram abrigados no sótão de uma fábrica em conjunto com um oficial militar. Não iremos nos deter aqui nos pormenores deste diálogo, mas nos parece relevante notar que o mesmo parece apresentar, de maneira irônica, a desproporção entre o humano que se torna objeto da destruição em massa e o maquinário industrial bélico que se volta contra estes homens, que será desenvolvida ao longo do trecho do filme ao qual iremos nos remeter em seguida. A cena do sótão termina com um fade para tela escura depois de um forte estrondo, expressando que, provavelmente, a fábrica ou as suas cercanias foi atingida por uma bomba. Após esse trecho, a cena prossegue sem nenhum diálogo. Assistimos uma conjunção de planos que irão remeter ao bombardeio, permeados por observações da narração em off, porém sem que se apresente uma conexão factual direta entre esses planos. Ao mesmo tempo é retomado o questionamento acerca das imbricações e diferenciações entre documentação e ficção, que parecem sondar as possibilidades de expressão deste acontecimento. A sequência se inicia com um homem fumando, ao fundo do quadro, numa paisagem em que só se vê neve. A câmera faz uma panorâmica até um aclive mostrando a paisagem, enquanto escutamos sons da natureza, deixando o homem fora de quadro e depois o reenquadrando. A locução em off irá observar: “Documentário: Um homem fuma a 800 metros de distância. Não posso saber sua história”. (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [00h:14m:21s-00h:14m:29s]). A tela novamente escurece, e só vemos a ponta do cigarro do homem que se movimenta no escuro, assim como ocorreu no plano anterior. Quando a tela fica clara novamente, através de uma transição por fusão de quadros, vemos uma série de aviões voando outra vez em formação no céu, sem uma direção definida, - primeiro voam para direita do quadro e depois para a esquerda (Figura 3).

Figura 3
Aviões se alinhando para um bombardeio

A narração em off então irá dizer: “Encenação! Estes bombardeios não são verdadeiros. Não sei dizer se são esses bombardeios cuja bomba atingirá o alvo, só sei dizer que estão lá em cima” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color.)[00h:14m:57s-00h:15m:07s] Durante a narração, temos um raccord de movimento de câmera. Quando a câmera faz uma panorâmica para a esquerda, para acompanhar o movimento dos aviões, ocorre uma nova fusão e o próximo plano se inicia também com uma panorâmica para a esquerda, apresentando a sala de uma casa onde uma mãe se encontra com dois filhos. O som de aviões e bombas ao fundo continua, nos dando a sensação de que a família será atingida por uma bomba. A narração prossegue “E lá embaixo uma mulher, duas crianças, 1944” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [00h:15m:14s- 00h:15m:16s], cf. Figura 4).

Figura 4
Uma mãe se protege com dois filhos dos bombardeios

Vemos então um close da menina com o rosto impassível e então escutamos um estrondo de bomba. Novamente as luzes piscam, e vemos a mãe e os filhos com as mãos no ouvido. Sirenes são disparadas e vemos então imagens das ruas de uma cidade em escombros enquanto policiais e cidadãos comuns se movimentam e apontam para os destroços, como se sinalizassem algo. Ocorre um novo corte e a câmera faz uma panorâmica em contra-plongée mostrando prédios vazios, em ruínas ou destruídos.

Parece-nos interessante observar de maneira mais detalhada este encadeamento de planos, que tem uma duração relativamente curta e prescinde de diálogos, na medida em que expressam uma abordagem singular de Kluge sobre os bombardeios e suas diversas implicações. A interação entre, de um lado, os acontecimentos e regimes de percepção cotidianos e, de outro lado, os eventos de destruição em massa parece ganhar expressão aqui, através da utilização da montagem de atrações, convertendo-se numa espécie de tônica para a articulação desses planos. O questionamento da divisão da narrativa cinematográfica entre documentação e ficção também reaparece, aparentemente como uma exigência colocada pelos acontecimentos retratados. Assim, somos remetidos mais uma vez à máxima do manifesto de Oberhausen de que a realidade é carente de imaginação e de que a ficção é carente de teor de verdade, como se a forma de classificar e orientar a prática cinematográfica até o momento fosse incapaz de lidar com o acontecimento inqualificável da destruição em massa. Tal necessidade parece conduzir a uma imbricação curiosa entre planos encenados, imagens de arquivo e inserts imagéticos que recebem uma conotação totalmente diferente daquela para o qual supostamente foram inicialmente produzidos. Esse tipo de arranjo parece conter uma forte marca de provisoriedade em seu significado e também certo inacabamento. Parece ecoar novamente aqui o debate entre Kluge e Adorno, uma vez que o último, em seu pequeno texto tardio, de 1967, “Notas Sobre o Filme”, faz apontamentos acerca do vínculo entre o “cinema emancipado” e a utilização de técnicas e recursos expressivos que não estejam plenamente desenvolvidos pela técnica cinematográfica estabelecida mas que, por isso mesmo, possam escapar dos esquematismos codificados pela indústria cultural.

4 Gerda Baethe e a Estratégia desde Baixo

A passagem comentada acima remete ao segundo capítulo do livro de Kluge “Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945”, intitulado “Estratégia desde baixo”. Trata-se da história da professora Gerda Baethe, que busca se abrigar dos ataques com seus três filhos em sua casa, enquanto imagina uma forma de protegê-los e escapar da região sitiada pelo bombardeio. O capítulo se inicia da seguinte forma:

Evacuada da parte de Gelsenkirchen, professora do ensino fundamental e atualmente em serviço obrigatório na produção de munição, Gerda Baethe vive com três filhos de nove, sete e cinco anos de idade na casa de caseiro de Breiter Weg 55-57, que não tem porão. As 11'32 ela ouviu a sirene de alarme geral, e então choques de bombas ao longe, justamente quando acabou de arrumar as crianças, os explosivos atingiram diretamente o porão de número 9 (Koch press), o 26º, o 69º, e a casa da frente. A porta de entrada da casa se rompe, dilúvio de poeira e fumaça. As explosões vinham acompanhadas de um ruído extremamente estridente, agudo, desagradável (KLUGE 2014KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros, 2014.: 35, tradução nossa).

Como Sebald irá afirmar em seu posfácio ao livro de Kluge, o que parece caracterizar sua intervenção é a busca por um tipo de abordagem que escape à pura constatação e reprodução do horror da destruição, direcionando-se a uma atitude compreensiva acerca dos mecanismos que engendram este processo e das reações que o mesmo produz nos indivíduos e em suas relações.

Crescido em Halberstadt, Kluge tinha 13 anos na época do ataque. “A forma de um impacto explosivo de bomba deixa uma impressão muito profunda”, diz ele no preâmbulo às suas histórias; “Eu estava lá quando, em 8 de abril de 1945, a 10 metros de distância, uma [bomba] explodiu”. Além dessas duas passagens, em nenhuma outra no texto o autor se refere diretamente à sua pessoa. Sua relação com a destruição que ele descreve, o de sua cidade natal, é uma busca por tempos perdidos mediante a qual são resgatados para a realidade presente, condicionados pela história enterrada, algumas experiências traumáticas que o afetado deixou confiada à amnésia através de processos complexos de repressão. Aqui a averiguação do que ocorreu, em contraste exato com Nossack4 4 Has Eric Nossack, autor de Der Untergang, escrito três meses depois do bombardeio de Hamburgo pelas forças aliadas, considerado o relato pioneiro dos bombardeios sofridos pela Alemanha durante a Segunda Guerra. , é orientada não tanto ao que o autor viu dos acontecimentos com seus olhos, ainda que esteja acessível a suas recordações, e sim aos processos circundantes da sua existência atual ou àquela de então; mesmo assim, como demostraremos mais adiante, a intenção do texto em conjunto repousa na compreensão de que “experiência”, no sentido do real, simplesmente não era possível no momento por causa da esmagadora velocidade da destruição e seu caráter total, e que [a experiência] só é cabível fazendo um desvio pela via indireta de uma aprendizagem posterior (SEBALD 2014SEBALD, Winfried Georg. Posfácio. In: KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros , 2014, 157-164 .: 157, tradução nossa).

Se, em “A Patriota”, o plano da mãe protegendo os filhos é rápido e se encontra entre o plano dos aviões realizando os bombardeios e as ruínas das cidades alemãs, em “Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945”, aparece uma descrição mais prolongada e detalhada das reações e sensações dos indivíduos que sofrem o bombardeio.

Imediatamente antes, um zumbido baixo e um apito alto, mais um sussurro que subiu e desceu, que Gerda calculou estar localizado mais ou menos entre 15 e 20 metros de altura. Tudo isso junto foi o “próximo”, mais perto do perímetro de proteção que ela traçou em torno de si e de sua propriedade. Caiu no chão, com dois filhos próximos, o terceiro correu para ali, colado ao chão. Pensou: estão próximos. Ela, claro, deitada ali, não fora atingida. As crianças rastejaram para enfiar-se embaixo, pressionadas contra sua coxa, junto à sua cabeça, procurando superfícies corporais mais largas para abrigar-se; o de cinco, enfiando a cabeça embaixo do corpo da mãe. Assim pelo menos a tropa de Gerda não se debandava aos quatro ventos, mas procurava o corpo para o corpo (KLUGE 2014KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros, 2014.: 36, tradução nossa).

Temos assim um exemplo da relação de complementaridade estabelecida entre a produção literária e cinematográfica de Kluge, o que torna importante que nos detenhamos um pouco mais em seu livro. Se as imagens em movimento priorizam a expressão da conexão entre os eventos que acontecem no céu em larga escala e seu impacto e consequências na casa da família, a descrição documental/literária do acontecimento por escrito se detém mais demoradamente nas reações e ações que se desenvolvem naquele microcosmo. A destruição desse microcosmo expressa a derrocada das relações interpessoais e privadas no momento em que a esfera pública se desestrutura totalmente, dado que as ações que nela têm lugar se tornam a expressão acabada do irracionalismo. Fica mais uma vez enfatizada a interdependência dessas duas esferas, porém pela via negativa; ou seja, a ausência de um sentido comum para a existência humana se objetiva na destruição das vidas particulares. Coloca-se assim este paradoxo que a tentativa de representação e documentação de eventos de tal ordem tem que enfrentar. Eventos como a destruição em massa são sentidos pelos indivíduos como o colapso absoluto de sentido e significado.

Aqui, parece ganhar força a constatação de Sebald de que a experiência, em sua necessidade de um contato verdadeiro com real, se torna, diante de tais eventos, algo impossível. Aparece assim a exigência de uma reestruturação expressiva, que Sebald chama de um “desvio” na abordagem de Kluge, apontando para uma reestruturação da forma da documentação e da ficcionalização. Busca-se uma apreciação de elementos circundantes ao acontecimento, quer seja no momento em que acontecem, quer seja nas consequências e resquícios dos mesmos para o momento atual. A ideia de uma "estratégia desde baixo" parece assumir dupla conotação. Primeiro, na ênfase na ação da mãe ao buscar catalogar as consequências imediatas do bombardeio e as vias possíveis para escapar da região sitiada com seus filhos, já temos um primeiro traço desses “elementos circundantes ao evento”: na maneira como os homens cogitam o melhor plano de fuga, na sucessiva paralisia deles diante da perspectiva de que o ataque cesse ou se repita, na proximidade física com as crianças.

Taticamente, parecia pelo menos favorável que, com esta pequena casa que os tocara, não seria tanto o que cairia sobre eles. Uma vantagem do sistema de sublocação de habitações. Ele se arrastou até as crianças, que se amontoaram umas sobre as outras. Mas foi precisamente isso que a assustou de repente, movimentou-se um pouco para sacudi-lo, notou que ao fazê-lo respirava fundo e se repreendeu por precaução: não "ingerir" uma gota daquele ar, de pressão variável com os impactos. Estrategicamente, isto é, em relação às linhas mestras, ele se forçou a "pensar", isto é, por onde fugir no caso de que ainda surgisse uma oportunidade enquanto aguardava uma próxima onda. Eu iria correr para Fischmarkt, Martiniplan, rua Schmiede e depois Westendorf. Um carrinho de mão no quintal, crianças dentro e galopando pelos campos ou vilarejos (KLUGE 2014KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros, 2014.: 38, tradução nossa).

A partir daqui, num segundo nível de significado podemos pensar na própria tentativa de reconstruir um sentido para esses eventos, buscando os “elementos circundantes”, seus condicionantes e suas consequências para a posteridade. A conexão dessas duas dimensões pode assim se aproximar da ideia de “contra esfera pública” na medida em que, ao recolocar a dimensão sensível no centro do problema, ambiciona uma nova modalidade, uma ampliação de significados que possa fazer frente à deterioração da esfera pública burguesa, orientada inicialmente por preceitos abstratos e generalizantes, posteriormente convertidos em imperativos de mercado e dominação que convergiram para eventos catastróficos como as guerras de destruição em massa. Esse retorno a uma espécie de grau mínimo da experiência se volta para a apreensão de condicionantes e desdobramentos de um evento que, em seu momento deflagração, configura o real como a negação imperativa da noção de experiência, na medida em que se impõe como uma inexorabilidade destrutiva absoluta.

Ela manteve essa imagem consoladora, tão pouco dispunha de mais meios de defesa enquanto a quarta e quinta ondas arrasavam o centro da cidade: Schuh, Hoher Weg, Lichtwer e outros. Do telhado vinha um estalado e rangido de entulho, ou seria que havia fogo. Mais uma vez começou, como há onze minutos, o sussurro ondulante se intensificou. Ele tentou influenciar o curso das bombas orando em voz alta. Mas, e se esse cálculo estivesse errado? Tampouco quis passar por crente ou supersticiosa depois de tantos anos de exercício esclarecido no magistério. Lá fora, as vozes dos vizinhos que, no meio do ataque, para não queimarem nos sótãos, saiam pelas suas portas e se colocavam a discutir rotas de fuga. Fiquem aqui parados, disse Gerda para as crianças. Ela atravessou o pátio: nada de céu, fumaça preta, o ronco estrondoso se afastando. Ali havia antes sol e azul. E belas nuvens brancas passam. É como se estivesse morto há muito tempo. Agora, fumaça. Em blocos de entulho, o carrinho de mão, de pernas pro alto ali no meio; Ele alcançou a porta da garagem da entrada principal, onde um grupo de homens com machados e pulseiras da defesa civil começaram uma deliberação. Ela se postou ali, para ver se captava alguma boa ideia. Todos estavam já mais do que fartos do assunto, tanto que não esperavam que houvesse mais ondas [de ataque] sobre esta cidade inofensiva! Assim, se comportavam como se nada mais fosse acontecer. Não há nada para salvar, diziam. Todo mundo tem que correr para o Oeste. Mas eles não corriam, eles olhavam deslumbrados da porta da garagem como desabava a fachada do 60, e atrás um armazém gigante queimando. Gerda ouvira o suficiente. A partir da espera prudente, nenhuma estratégia confiável é lançada. Abandonando-os à própria sorte correu para o casebre, não aceitava mais que houvesse qualquer finalidade fugir através dos incêndios da cidade, assim, melhor se posicionava tomando distâncias objetivamente, até as casas vizinhas, até a entrada da porta da frente da Fazenda (KLUGE 2014KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros, 2014.: 39, tradução nossa).

A imbricação entre recordações factuais e o discurso indireto livre parece criar um paralelo literário ao tipo de abordagem ensaística que caracteriza a construção de discurso fílmico em “A Patriota”. As oscilações expressas na consciência da professora Gerda, entre rezar e querer manter uma postura “esclarecida”, nos remetem tanto a tendência de apelar a forças transcendentes em momentos de extremo perigo, quando o indivíduo se vê impotente frente a ameaças de morte, quanto à tentativa de “resistência da razão” ao rejeitar este impulso e procurar alternativas factíveis, como buscar uma rota de fuga dos bombardeios. Ao que tudo indica, a utilização do termo “magistério esclarecido” como uma contra tendência ao impulso de Gerda de começar a rezar assume também uma conotação irônico-critica, pois evidentemente a situação que ela enfrenta junto com seus filhos é uma expressão brutal da conversão dos meios mais avançados da razão instrumental, os aparatos técnicos, em mecanismos de produção da mais absoluta irracionalidade. Também a sua busca por informações junto aos homens responsáveis pelas brigadas de defesa civil e sua decepção com a postura catatônica dos mesmos parece convergir para a expressão de oposição entre a paralisia frente ao choque e a tentativa de buscar soluções racionais. A crença de que os ataques parariam, por Halberstadt ser uma “cidade inofensiva” e desimportante na economia de guerra, mais uma vez expressa as armadilhas da racionalização na medida em que, ao que tudo indica, o objetivo do ataque ia muito além de neutralizar alvos militares. Assim, a crença em uma razão que perdeu seus meios de efetivação, seu sentido comum, se torna uma ideologia paralisante. Por isso podemos pensar o ato de Gerda, de abandonar os homens da brigada de defesa civil e tentar construir uma rota de fuga para ela e seus filhos como uma metáfora desta “estratégia por baixo” que tenta revitalizar a razão restituindo-a de sua dimensão sensível e tátil, na busca por um itinerário, mesmo que num meio destroçado. Nesse sentido, temos aqui mais uma interessante complementaridade dos diversos aspectos da obra de Kluge, agora entre sua produção literária e sua produção teórica. Num discurso por ocasião da sua escolha para receber o prêmio Lessing, expandido para publicação em seu livro de 1990, “O Que Há de Político na Política?”, terceiro volume de sua parceria com Oskar Negt, Kluge volta a se referir a passagem de Gerda Baethe:

Fiquei muito contente que na justificativa do júri fosse citada uma metáfora que provém de umas das minhas histórias, isto é, o conceito de "estratégia por baixo". Quero avivar a imagem na sua lembrança, leitor: Em 1945 durante um ataque aéreo, uma mulher, Gerda Baethe, está sentada em um porão com seus filhos, e naquele momento nada lhe ocorre para que possa defendê-los. Do ponto de vista dela, a esquadrilha de aviões, que ataca a cidade em função de um planejamento abstrato é um sistema de poder extraordinário.[...] Não existe uma relação humana entre as pessoas que estão sentadas num abrigo antiaéreo e uma esquadrilha de bombardeiros. Não posso capitular, não posso me proteger, não posso me arrepender de nada, não posso defender aquilo que amo. E nem sequer faz sentido ter medo. É isso que a professora no abrigo diz a si mesma. Por um momento ela experimenta rezar para ver se ajuda. Mas pedir o quê? Rezar para que as bombas não caiam sobre ela e seus filhos, mais caiam sobre seu vizinho? Isso seria um pedido pecaminoso e invalidaria a ação. Não existe um microdrama desses, nenhum programa de ação que pudesse ser desenvolvido linearmente [...] trata-se de uma conexão sistêmica que libera violência e deixa de lado, debaixo ou na abstração, um ser humano que não pode reagir seja o que for que ele faça. Para mim isso é trágico. [...] Dramas desse tipo exigem uma análise: Quando o foi o último momento em que eu e os outros ainda poderíamos encontrar uma defesa contra esses poderes que agora podem me matar e a meus filhos. Ela conclui que talvez em 1928 poderia ter existido uma possibilidade de proteger os próprios filhos nesse momento (estamos em 1945 no conto, e agora é 1990), se ela, junto com muitos outros tivesse dado passos diferentes daqueles que foram dados (NEGT; KLUGE 1999NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. O que há de político na política: 15 propostas sobre a capacidade de discernimento. São Paulo: UNESP, 1999.: 298).

Enfatiza-se assim a contraposição e afinidades entre dinâmicas estabelecidas em torno de um mesmo evento, porém separadas por grandes intervalos de tempo (o momento em que acontece o bombardeio e o momento no qual algo poderia ser feito para evitá-lo) e de escala (o maquinário sistemático dos aviões e os indivíduos atomizados no solo). Este procedimento parece nos remeter novamente ao caminho de “desvio” que a experiência tem que fazer, tal qual destacado por Sebald, quando confrontada com imperativos como a destruição em massa que se colocam como impedimentos absolutos para sua realização. Este procedimento de interrupções e retomadas inesperadas aparece assim tanto no interior de uma mesma obra de Kluge como no diálogo entre obras diversas e muitas vezes construídas em mídias e regimes de composição diferentes.

Na cena dos bombardeios que aparece logo no início do filme (14 min 06 segundos) por exemplo, a referência a Gerda Baethe é bastante rápida, uma vez que o plano da mãe protegendo os filhos funciona quase como um insert entre o plano dos aviões realizando os bombardeios e as ruínas das cidades. Porém, em 1h25min de filme, a história da professora será retomada e desenvolvida a partir de uma cena na qual vemos Gabi Teichert junto com seus alunos em roda se revezando na leitura do capítulo “Estratégia desde baixo”. Parece assim que existe um pareamento entre os episódios de “Ataque Aéreo a Halberstadt em 8 de Abril de 1945” com a cena do bombardeio que aparece no início do filme, talvez buscando uma expressão de maior sincronia entre o livro e o filme, e depois uma recuperação do episódio através de um recurso à intertextualidade visando explorar possíveis ecos mas também dificuldades e assincronias nos significados da narrativa literária quando recebida nos anos 70. Nos parece interessante assim nos atermos a como a história de Gerda Baethe é desenvolvida neste ponto mais avançado do filme. No início da cena é lida abertura do capítulo (que citamos acima no início deste tópico) pelos alunos (Figura 5).

Figura 5
Alunos de Gabi Teichert leem a história de Gerda Baethe

A locução em off irá contextualizar a leitura nos seguintes termos:

Outra segunda feira. Tema de estudos. Gerda Baethe. Em 1944 esta mulher é bombardeada e quer se defender. A última oportunidade de lutar contra a miséria de 1944 havia sido em 1928. Em 1928 Gerda Baethe poderia ter se organizado com outras mulheres (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [01h:25m:43s- 01h:25m:58s]).

Esta locução em off também é uma alusão ao livro, remetendo a um anexo presente no final do capítulo em questão, no qual, durante a noite, quando a temperatura da cidade após o bombardeio se torna insuportável, a professora reflete sobre a possibilidade de evitar o acontecimento, imaginando que, desde 1928, 70 mil professores deveriam dar aulas em todos os países ligados ao conflito buscando alertar sobre as consequências do mesmo. Em seguida, os alunos começam a debater o tema. O primeiro aluno a tomar a palavra aparece em uma cena anterior fazendo um comunicado em nome da turma, no qual são feitas reclamações acerca dos métodos que Gabi Teichert utiliza em suas aulas. Ele também aparece em uma violenta discussão com seu pai (interpretado por Alfred Edel mais uma vez) com uma acentuada característica de conflito geracional. Este se mostra como alguém obcecado por organização e ressentido pelo pouco valor que aparentemente o filho lhe confere. Então, quando o debate se inicia, o aluno irá opinar: “Não se pode organizar gente e logo usá-las como se fossem marionetes sem vida. É questão de organização. Deve-se organizar vinte mil pessoas. Posso fazê-lo se consigo transmitir a eles que há que se lutar contra algo” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [01h:25m:59s-01h:26m:19s]). Então, um segundo aluno, que aparece pela primeira vez neste momento no filme, diz: “Me referia ao texto. Para levar a cabo a estratégia que Gerda Baethe desejava em 8 de abril, 70 mil professores deveriam preparar-se durante vinte anos. Está claro, a isto se soma a organização. E também a consciência por que [...]” (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [01h:26m:21s-01h:26:35]).

Neste momento uma voz fora de quadro irrompe, nos dando a impressão de que o aluno que fala é interrompido e as falas se sobrepõem:

Voz 1: Gerda tinha essa consciência.

Voz 2: Mas tarde demais!

Aluno 2: Mas havia se desenvolvido (A PATRIOTA 1979A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color. [1h:26m:38s]-1h:26m:43s]).

A inserção de um trecho literário do próprio Kluge no filme remete assim não só a uma intertextualidade, mas também a uma tentativa de expansão e de uma nova problematização dos significados presentes no livro. A leitura do livro parece expressar as dificuldades enfrentadas por Gabi Teichert ao buscar mudar a forma de se pensar e se ensinar história. A recepção do mesmo pelos alunos parece colocar em destaque um movimento de sincronias e assincronias entre o Estado de Exceção de 1945 e a sociedade administrada característico do capitalismo tardio da Alemanha do final dos anos 1970. A recusa do primeiro aluno em concordar com a hipótese de Gerda Baethe parece expressar uma rejeição aos modelos de identificação coletivos, tão características do capitalismo tardio, expressando um esforço de individuação que parece nunca se realizar. Porém a forma fragmentada através da qual a discussão é apresentada faz com que o argumento do aluno soe um pouco desconexo. Aparentemente, ele está rejeitando a ideia de manipular indivíduos em prol de determinadas causas ou objetivos políticos. Porém, o estranhamento parece residir no fato de que a história de Gerda não promulga nenhum tipo de ideário político acabado ou sistemático. Talvez então seja justamente a dissintonia entre o argumento da história de Gerda Baethe e a contra-argumentação do aluno que esteja sendo explorada. Como se a necessidade de fazer sentido fosse mais uma vez interceptada, desta vez por conta da relação tensa entre os dispositivos de subjetivação dos indivíduos (família, escola, aprendizados etc.) e seus desejos e necessidades, na qual a racionalidade e a sensibilidade ainda não tenham encontrado uma possível sincronia. Por outro lado, a recepção da história por parte do segundo aluno parece ver de maneira positiva o fato de que a consciência de Gerda se desenvolveu, mesmo que não tenha podido se efetivar antes que o bombardeio acontecesse. Assim, aquilo que é visto pelo primeiro aluno como “ausência de lógica e de organização” aparece para o segundo como uma possibilidade de identificação entre seu momento de vida e a narrativa daquilo que ocorreu num momento histórico anterior, talvez justamente por conta desta disjunção entre o fato e a conscientização do fato, de suas implicações e da possibilidade de impedi-lo.

Referências bibliográficas

  • A PATRIOTA (Die Patriotin). Produção de Alexander Kluge. Alemanha: Kairos Filme, 1979. 1 fita de vídeo (118 min), VSH, son., color.
  • AMARAL, Leonardo Guimarães Rabelo. O cinema ensaístico de Alexandre Kluge: alegorias e contra escrita da história em A Patriota. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
  • CAMPATO, Roger Fernandes. Esfera pública burguesa e esfera pública proletária: as perspectivas de Habermas e de Negt e Kluge. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007.
  • KAES, Anton. In Search of Germany: Alexander Kluge’s The Patriot. In: FORREST, Tara (org.). Raw materials of imagination. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012, 95-126.
  • KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros, 2014.
  • NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. O que há de político na política: 15 propostas sobre a capacidade de discernimento. São Paulo: UNESP, 1999.
  • SEBALD, Winfried Georg. Posfácio. In: KLUGE, Alexander. Ataque aéreo a Halberstadt, el 8 de abril de 1945. Cidade do México: Antonio Machado Libros , 2014, 157-164 .
  • 2
    Filme que retrata os acontecimentos do outono de 1977 que culminam com o sequestro e execução de Hanns-Martin Schleyer, presidente da Confederação de Associações de Empregadores da Alemanha, ex-integrante das SS e do exército nazista, pela Facção do Exército Vermelho, a RAF, também conhecida como grupo Baader-Meinhoff. O filme foi realizado em colaboração por diversos expoentes do Novo Cinema Alemão (Rainer Werner Fassbinder, Alf Brustellin, Hans Peter Cloos, Maximiliane Mainka, Edgar Reitz, Katja Rupé, Volker Schölondorff, Peter Schubert e Bernhard Sinkel), tendo sido coordenado por Kluge, que também dirigiu e roteirizou o episódio Gabi Teichert e codirigiu os episódios de “Hanns-Martin Schleyer e Funeral”.
  • 3
    Öffentlichkeit und Erfahrung: zur Organisations analyse von bürgerlicher und proletarischer Öffentlichkeit - sem tradução para o português (CAMPATO, 2007CAMPATO, Roger Fernandes. Esfera pública burguesa e esfera pública proletária: as perspectivas de Habermas e de Negt e Kluge. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007.), escrito em 1972 em parceria com Oskar Negt, o livro busca desenvolver um exame crítico da categoria Habermasiana a luz dos acontecimentos do final dos anos 60 e de algumas premissas da primeira geração da Teoria Crítica.
  • 4
    Has Eric Nossack, autor de Der Untergang, escrito três meses depois do bombardeio de Hamburgo pelas forças aliadas, considerado o relato pioneiro dos bombardeios sofridos pela Alemanha durante a Segunda Guerra.
Editor: Daniel Bonomo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2024
  • Aceito
    09 Maio 2024
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