Resumo:
Propomos uma leitura do conto Über das Marionettentheater (1810) a partir da ideia de que ele pode ser lido pela dimensão da ilustração, marcada pela comunicação entre texto e imagem. A dimensão visual do texto de Kleist mostra que, embora de existência verbal, a marionete se constitui como uma imagem ativa, ao redor da qual o texto se organiza e cria novas imagens para o exercício da reflexão. Para tanto, utilizamos Renée R. Hubert (1988) sobre a importância desse texto para os desenhistas do século XX com a ilustração surrealista e na leitura de Carina Z. Silva (2018; 2019) do paradoxo em Kleist. Buscamos contribuir com o entendimento de Kleist como um artista que dialoga com as artes plásticas a partir da própria natureza de sua obra.
Palavras-chave: marionete; Kleist e as artes visuais; ilustração
Abstract:
We propose reading the short story Über das Marionettentheater (1810) through the dimension of illustration, a dimension marked by the communication between text and image. The visual dimension of Kleist’s text shows that, although of verbal existence, the puppet is an active image around which the text organizes itself, creating new visualities for the exercise of reflection. To this end, we use Renée R. Hubert’s (1988) study on the importance of this text for 20th century surrealist illustrators and Carina Zanelato Silva’s (2018; 2019) reading of the paradox in Kleist. We seek to contribute to understanding Kleist as an artist whose work dialogues with the visual arts.
Keywords: marionette; Kleist and the visual arts; illustration
1 Introdução
O Über das Marionettentheater (1810) de Heinrich von Kleist (1777-1811) é talvez uma das histórias mais ilustradas da literatura oitocentista. Ao longo do século XX, principalmente na França, com o movimento surrealista, vários artistas visuais desenharam as marionetes: Hans Arp, André Masson, Hans Bellmer, dentre outros. Segundo críticos como Renée R. Hubert em seu estudo sobre a ilustração no surrealismo (1988: 151), isso se explicaria pelo fato de que o texto de Kleist “chama a ilustração” e “transforma-se sem resistência em visual”. Trata-se de um texto cujo gênero se situa entre o conto, o diálogo socrático, o ensaio filosófico, e que, hoje em dia, mostra-se marcado pela influência de sua tradição visual.
Über das Marionettentheater apresenta uma inclinação para a visualidade, supostamente instalada na própria escrita do texto. A partir desses pressupostos, propomos análise da escrita kleistiana a partir da sua dimensão visual. Isso é, temos como plano de fundo a comunicação entre a filologia do século XIX e as obras visuais da modernidade notada Renée R. Hubert (1988), propomos um retorno ao texto de Kleist, em busca de estar a par da conferida curiosidade das artes plásticas em torno das marionetes. Podemos já dizer, sem compromisso, que, por meio de palavras, as marionetes de Kleist constituem um espetáculo de natureza visual, o que teria inserido o escritor, portanto, na trilha da ilustração, gênero que se solidifica sobretudo no século XX com os surrealistas. Em Kleist, a ilustração significa reflexão pela imagem, de forma que o conteúdo escrito desperta a imaginação visual, o que joga com os diversos sentidos do significado de ilustrar. Como em uma tomada moderna do diálogo socrático, o escritor romântico parece aspirar à imagem como forma de se propor uma reflexão, o que concede uma fusão de sentidos da ideia de “ilustração”, isso é, tanto enquanto exercício de reflexão quanto transposição e empréstimo entre as linguagens, principalmente a verbal e a visual. Tal exercício acontece não somente na recriação da história de Kleist pelos seus leitores e ilustradores, mas, como veremos, nas próprias escolhas do escritor em seu texto.
Observamos que a imagem da marionete ganha visualidade em “Sobre o teatro das marionetes” por, em determinada leitura, funcionar como um centro gravitacional, a ser acompanhada de outras imagens do texto, das quais destacamos duas, a saber: a do mancebo no espelho (i) e a da fera e o esgrimista em duelo (ii). Essas imagens, ambas apresentadas no final do texto, fazem-se descritas em cenas ou relatos. Na literatura especializada sobre Kleist, observamos que há uma menor atenção a estes momentos do conto, que acreditamos de grande riqueza visual. Tais imagens (I e II), por serem periféricas, comunicam-se com a imagem da marionete, enriquecendo-a. Essa relação lembra a ilustração, em que um texto ganha em imaginação e reforça, pela imagem, o seu conteúdo. O conto de Kleist é feito para que um momento ilustre o outro, de forma que as imagens, juntas, ilustram o argumento central do diálogo. As cenas de Kleist não são estruturadas para contar uma história, mas para fascinar o leitor à reflexão. Essa filologia kleistiana, podemos dizer, faz-se notada ainda que indiretamente por alguns estudiosos. É o caso, por exemplo, de Michael Navratil ( 2010), ao trazer a fábula do conto da seguinte maneira:
Um Puppen geht es da, deren Tanz kein Mensch zu imitieren vermag, da sie ihren Schwerpunkt nicht in sich selber haben, es geht um einen Bären, der so eins mit sich ist, daß er jeden Fechter parieren kann, um einen schönen Jüngling schließlich, dem unversehens eine Bewegung vollendeter Anmut gelingt, der jedoch, darauf angesprochen, vor lauter Selbstbeobachtung verkommt und verfällt. Es geht um das Bewußtsein und dessen Abwesenheit, um die Selbsthemmung durch Zögern und Reflexion ( navratil 2010: 73).
O autor sublinha que todas as cenas ou fábulas do conto estão localizadas em torno da ideia de se expressar ou existir graciosamente. A Graça (com inicial maiúscula, para se referir ao conceito alemão die Anmut) é uma ideia que Kleist conjuga em torno de imagens operantes, dentre as quais a principal é a marionete. Navratil ( 2010) destaca essas cenas de tal maneira, como a descrever uma fábula, pois elas não consistem em histórias em si, mas em imagens que ilustram, em todos os sentidos, do plástico ao reflexivo. Essas imagens têm como função movimentar a ideia da Graça. Assim, desde a boneca que não imita a dança humana, até a fera, capaz de sobrepujar o esgrimista e o belo jovem que vê a sua graça decair, Kleist traz à tona uma síntese dialógica de uma maneira bastante única, mas ao mesmo tempo romântica 2. Em Über das Marionettentheater, a Graça, assim, não se encontra apenas na presença ou ausência da consciência, na reflexão ou na inibição, no movimento ou no pensamento, isso é, conteúdos da história, mas também na comunicação do texto, motivo de sua expressiva tradição. Enquanto um todo, vemos que a história de Kleist se constrói por uma série de visuais que, sem a necessidade da imagem em si, já funcionam como ilustrações. Na esteira de Hubert (1988), propomos que é isso o que se encontra por trás das inúmeras ocorrências de ilustração, desde o século XX e nos dias de hoje, em reimaginá-lo em verdadeiras imagens, para além daquelas já latentes no texto. A seguir, apresentamos, sem compromisso de análise, algumas ilustrações de Kleist, clássicas ou contemporâneas.
Assim, a partir do retorno ao texto de Kleist, buscamos contribuir diretamente para a literatura sobre o conto de 1810 e indiretamente para aquela comparativa, acerca da importância do escritor romântico para as artes visuais, conforme a tradição crítica de Erich Heller ( 1978) e Renée R. Hubert (1988). O entendimento da ilustração enquanto gênero é uma das pedras de toque do nosso estudo. Sobre isso, ressaltamos que a literatura no campo dos estudos literários a respeito da ilustração é escassa e carece de sistematização do que se trata essa linguagem. Nesse sentido, destacamos que, para o presente estudo, propomos pensar a ilustração como uma palavra de duplo significado, a significar tanto transmissão do conhecimento quanto a ilustração linguagem visual e escrita. O conto de 1810 claramente não configura um texto ilustrado propriamente dito, entretanto, desde a sua escrita, ele joga com as diversas possibilidades da literatura em criar imagens. Assim, utilizamos a ideia de ilustração para refletir acerca da problematização de Kleist dos limites da linguagem quando se descreve o paradoxo, forma de pensamento a qual acreditamos estar relacionada à imagem das marionetes. Essa imagem, como acreditamos, solicita antes uma exposição visual, pois sua ideia e descrição ultrapassa os limites da exposição filosófica tradicional, a lógica do diálogo, o que lança as personagens para o visual, para o mundo das fábulas, conforme a supracitada descrição de Navratil ( 2010). Em Kleist, ilustração é a própria reflexão, a qual se revela como um exercício plástico.
Sobre o paradoxo, Carina Zanelato Silva ( 2018) coloca que a constante alternação entre o ponto de vista do bailarino com o seu interlocutor receptivo faz do texto Über das Marionettentheater um ensaio sobre educação estética. Tal opinião é verificada por diversos estudos kleistianos, dentre eles Paul de Man ( 1984), para quem Kleist propõe uma volta paradoxal contra o projeto da época de estética e educação, dialogando com os seus contemporâneos e referências principais de maneira romântica (Friedrich Schiller, Kant e Rousseau). A ideia de Schiller de uma aprendizagem do sensível, exposta em suas Cartas sobre educação estética, soava a Kleist como uma tentativa de retorno a um paraíso perdido, no caso, a Antiguidade, fonte de conhecimento sobre a Graça, a qual não se aprende. Assim, o texto de Kleist é uma provocação das consequências dessa busca ( Silva 2019).
Sobre o paradoxo em Kleist, destaca-se o seguinte trecho do texto: “Ich sagte, daß, so geschickt er auch die Sache seiner Paradoxe führe, er mich doch nimmermehr glauben machen würde, daß in einem mechanischen Gliedermann mehr Anmut enthalten sein könne, als in dem Bau des menschlichen Körpers” ( kleist 2018: 560). Zanelato Silva ( 2019) analisa a crítica pré-kantiana e a busca da grandeza humana, que se refletia na estética. Na Crítica, que se estende também ao juízo estético, Kant acreditava na educação do homem para o Bem (“ das Gute”) racionalmente. Kleist resgata esse elemento teológico do Bem, mas para torná-lo nulo. Ao apontar para o horizonte, Kleist aponta, na verdade, para o caminho que o homem deu as costas, pois é para ele que seu corpo vai quando a sua alma quer seguir adiante. No caminho oposto do Bem, o homem não encontra o Mal (“ das Böse”), mas o seu eu primitivo, no qual Carina Zanelato Silva ( 2019) identifica um elemento rousseauniano.
É nesse sentido que se encontra o papel do paradoxo no texto, como um marcador da modernidade e individualidade do novo Lebensplan apresentado por Kleist, crítico ao projeto kantiano e ao mesmo tempo aquém do rousseauniano. Marca-se, assim, a modernidade de sua proposta, uma vez que o paradoxo é irônico, segundo Friedrich Schlegel: “Ironia é a forma do paradoxo. Paradoxo é tudo aquilo que é ao mesmo tempo bom e grande” ( Schlegel 2016: 28). Em Kleist, destaca-se também o fato de que o paradoxo é notado conscientemente dentro do texto. Diferentemente do diálogo socrático como se conhece, no qual se reconhece a verdade e ela desperta um paradoxo, Kleist coloca o paradoxo perante um espelho, para agir sobre ele e mesmo “jogar” com o paradoxo. Pode-se dizer que no texto Kleist faz com que as suas próprias imagens internas, isso é, a da marionete e as outras, a do mancebo no espelho e a da fera esgrimista, reflitam-se como em um espelho, o que resulta em uma reflexão completa, de dimensão paradoxal. A reflexão no conto, enquanto uma proposta filosófica, estética e filológica, constitui-se como jogo de imagens.
2 A marionete como expressão visual do paradoxo
Em “Sobre o teatro das marionetes”, temos uma mistura entre ficção e diálogo de escola socrática. O autor apresenta um percurso filosófico em torno das ideias sobre o conceito de Graça ( die Grazie/die Anmut), a partir da figura da marionete. Sobre esse conceito, a Graça designa um elemento estético, que pode ser traduzido e resumido pela beleza na amenidade, conforme a tradição de F. Schiller, F. Schlegel, J. G. von Goethe e J. G. von Herder. O debate sobre a Graça esteve no centro das preocupações do Classicismo e do Romantismo na Alemanha do fim do século XVIII. Conforme Carina Zanelato Silva em Sobre graça, dignidade e beleza (2018), Kleist participa desse debate tardiamente. Para a estudiosa (2018: 119), a marionete é sim uma “imagem”, no sentido de uma figura que “ganha vida” através dos fios do títere, a dar vida também ao texto híbrido em myse em abyme.
A personagem da marionete, ao mesmo tempo símbolo e metáfora de Kleist, ensina que a técnica, isso é, o conhecimento e a linguagem, estão em contramão da beleza. Com seus movimentos aéreos, a marionete faz dançar a alma do artista, que se transporta para o ponto de gravidade através da linha e dança livre da lei da consciência, como se pudesse retornar ao estado de suspensão da matéria e obedecer apenas à lei da gravidade. A marionete pode ser comparada ao caráter absoluto da onipotência de Deus – aquele que tudo sabe. Isso significa que o espírito do homem, ao buscar o ideal de Deus, almejaria um fim: preencher-se ou alcançar a completude positiva. A marionete, igualada a Deus em caráter de absoluto, é o esvaziamento do espírito levado ao absoluto, portanto, tão impossível quanto, o que permite chamá-la de uma negatividade absoluta. Esse problema no teatro das marionetes incorre na expressão, ou seja, na forma como o homem performa, sendo ele consciente de seu fim ou não. É sobre a expressão que Kleist pensa a questão da expressão, problema central da Graça. Ele apresenta com a marionete como capítulo derradeiro da história humana uma alternativa paradoxal à busca humana pela expressão perfeita, de forma que: “a marionete e o ser igual a Deus são, cada um à sua maneira, equivalentes em graça”, diz Erich Heller ( 1978: 422, tradução minha 3). A marionete se constitui, assim, enquanto uma imagem dessa reflexão. Nesse último, observamos como a marionete é uma expressão visual, ainda que descrita em palavras, de uma ideia de natureza paradoxal. Observamos como a plástica kleistiana guia-se pela visualidade, em busca de escapar dos próprios limites da palavra. Assim, propomos uma forma de leitura desse conto que o toma como um texto visual e estudamos a sua plástica construtiva através de suas imagens, sendo a principal delas, a imagem da marionete.
Kleist apresenta um diálogo entre o narrador e um dançarino experiente. Ambos alternam os papéis da enunciação da história, mas de forma que o texto gravita em torno da imagem de um teatro de marionetes, cenário do conto. Nesse sentido, o palco do cenário importa muito menos visualmente do que aquele descrito pelo diálogo, onde as marionetes podem representar quase qualquer coisa. A narrativa parte de uma curiosidade, não sem uma dose de provocação, por parte do narrador, que questiona ao dançarino o motivo de seu interesse em uma simples arte popular, dado a sua conhecida educação artística. Sobre isso, podemos lembrar das palavras de Walter Benjamin ( 1984: 148) sobre esse tipo de arte no período do Barroco e a importância da “excentricidade jocosa” do teatro de marionetes e o seu alinhamento com a arte alemã popular. Essa mistura de sério e jocoso é uma marca da resposta do bailarino de Kleist, que leva ao interesse e à desconfiança do sujeito narrador. Como dito, inicia-se por parte da curiosidade deste uma troca bastante rica, motivada pela opinião daquele. De uma simples visita ao teatro, o narrador se depara com um grande ensinamento e vai ouvir, não sem interpelar com suas próprias histórias, sobre o mundo da marionete, que é baseado no movimento e nada além, de forma que o texto se abre para a visualidade da descrição da dança das marionetes.
O leitor percebe que Kleist rapidamente se afasta do diálogo socrático ao revelar o argumento final, a síntese, logo no início do conto. No diálogo socrático, uma síntese faz-se apresentada por meio da dialética da tese e da antítese. Kleist não só parte da síntese para a antítese, bem como se guia a caminho do paradoxo. Isso porque a ideia da marionete como o outro lado de Deus coloca um limite na linguagem, de forma que o conhecimento se torna um problema, conforme coloca Carina Zanelato Silva em O problema do conhecimento e a dissolução da maldade em Kleist ( 2019: 21): “o paradoxo do conhecimento se estabelece, assim, neste ponto: vislumbramos uma parcela do Absoluto, mas nunca poderemos alcançá-lo sem deixar de sermos seres humanos. A completude está reservada apenas ao Deus ou à marionete”.
O paradoxo de Über das Marionettentheater se concentra em responder ao que toca o conflito entre corpo e espírito, cuja origem remete à perda do paraíso, que significou a separação entre corpo e espírito. O homem passou a obedecer a duas leis distintas, de forma que a consciência o priva de alcançar a Graça, mais próxima da matéria do que da reflexão. Como forma de recuperar o que lhe foi amputado, passou-se a buscar a Graça através da consciência, ligada ao aperfeiçoamento das habilidades, do conhecimento, o que gera a angústia fundadora da expressão artística desse homem dividido entre corpo ( Körper) e espírito ( Geist), conforme Silva ( 2018). O bailarino do conto, enunciador dessa provocação, demonstra como é possível enxergar quando, no palco, a alma do dançarino intervém em seus movimentos, o que gera desconforto, por menor que seja. Para ele, é como se houvesse um resquício de hesitação, a qual toda técnica não foi capaz de excluir. Naturalmente, a marionete não incorre nesse problema e sai em vantagem, como diz o bailarino, “vantagem negativa”, isso é, no sentido de ausência, uma vez que lhe falta a consciência.
O conto descreve esse fenômeno em sua materialidade na dança. Nesse tipo de descrição altamente visual, de uma linguagem que escapa à descrição, como a própria dança, segundo Bianca Theisen em Dancing with words (2016), vemos a plástica como a saída para os limites do paradoxo. Para a estudiosa, Kleist aspira à linguagem da dança, de forma a assimilar a ficção a um movimento, com fim em si mesmo, não subordinado ao pensamento.
Na descrição do narrador, na dança, a “alma” do dançarino se desloca de uma vértebra para o cotovelo, enquanto o ator curva todo o seu corpo, em uma recriação mítica do rapto de Dafne por Apolo. Entretanto, diferente do mito, ao invés de belo, o efeito do teatro é sempre grotesco aos olhos daquele que conhece tal angústia, de tal forma que toda a beleza da dança se revela sempre como portadora de algo de horror ou cômico, conforme notamos no trecho:
“Observe somente aquela dançarina P...”, continuou, “quando ela representa Dafne e, perseguida por Apolo, volta-se para fitá-lo; sua alma está sediada na vértebra da espinha; ela se curva como se quisesse quebrar, qual uma náiade da escola de Bernine. Observe o jovem F... quando, como Páris, ele se coloca entre as três deusas e entrega a maçã a Vênus: sua alma (é terrível olhar) está sediada no cotovelo ( Kleist 1993: 196) 4.
O bailarino, enunciador da imagem do texto, pede que o narrador veja o que está diante de seus olhos. Kleist nos faz imaginar que as próprias marionetes representam a história narrada, mas, na verdade, trata-se de uma alusão à bailarina humana. O enunciador expressa então que é “terrível” olhar a cena, de forma que o desconforto está na construção de uma imagem para convencer o narrador. Nesse momento do texto, o diálogo caminha da provocação, iniciada na resposta do bailarino à curiosidade do narrador, para a apresentação da síntese. A imagem da marionete se constrói sorrateiramente, de forma que os dançarinos humanos funcionam como a antítese. A perda da graça seria, portanto, a tese do diálogo. A marionete, que vai ser apresentada como a solução, ao mesmo tempo que a saída da reflexão para o paradoxo, constitui-se como a síntese – ao passo que ela é também a negação da síntese. Assim, vamos ver que a marionete só pode ser tomada como uma imagem – aquilo que está ao mesmo tempo fora e dentro da reflexão, quase como um desenho ilustrado participa e ao mesmo tempo se destaca do texto. Podemos comparar a marionete como uma imagem ilustrativa de Kleist, ainda que descrita em palavras, à medida que tanto nós leitores e o narrador somos ilustrados pelo enunciador do conto, a saber, o bailarino.
Kleist sempre coloca a reflexão como um exercício de “visão”, em que o bailarino visualiza a sua ideia, com os verbos “ver” e “aparecer” (no alemão, sehen / erscheinen), como no trecho crucial do diálogo a seguir:
Wir sehen, daß in dem Maße, als, in der organischen Welt, die Reflexion dunkler und schwächer wird, die Grazie darin immer strahlender und herrschender hervortritt. (...) so findet sich auch, wenn die Erkenntnis gleichsam durch ein Unendliches gegangen ist, die Grazie wieder ein; so, daß sie, zu gleicher Zeit, in demjenigen menschlichen Körperbau am reinsten erscheint, der entweder gar keins, oder ein unendliches Bewußtsein hat, d. h. in dem Gliedermann, oder in dem Gott 5 ( Kleist 2018: 563).
Aqui também o texto de Kleist joga com as diversas instâncias do ato de ver, não só na escolha das palavras, mas em toda a plástica da descrição. Todas as histórias, como veremos, apresentam esse elemento visual. O palco do teatro da marionete serve como um retrato do mundo, em que vemos, pelas descrições que o texto fornece, a história do conhecimento, a busca pela Graça, como ao assistir uma história ao mesmo tempo trágica e cômica, encenada pela marionete. Essa mistura com o cômico e o absurdo não é estranha à arte do teatro de marionetes, conforme já lembrava W. Benjamin em seu Trauerspiel (1984). Na descrição do teatro de marionetes pela literatura, o escritor se favorece dessa mistura de leveza e paradoxo, absoluto e negatividade, seriedade e cômico, estético e mecânico, etc. Assim, a marionete é a imagem perfeita do movimento, capaz de circundar o mundo e a história do homem em sua dança. Pelo conteúdo filosófico do texto, Kleist transforma a marionete em um símbolo.
Dagegen wäre diese Linie wieder, von einer andern Seite, etwas sehr Geheimnisvolles. Denn sie wäre nichts anders, als der Weg der Seele des Tänzers; und er zweifle daß sie anders gefunden werden könne, als dadurch, daß sich der Maschinist in den Schwerpunkt der Marionette versetzt, d. h. mit andern Worten, tanzt ( Kleist 2018: 557).
No trecho acima, o bailarino descreve o simples sistema da marionete e o titereiro, baseado apenas no jogo entre a linha e a gravidade, capaz de fazer com que a alma do artista se transporte em linha reta até o ponto gravitacional da marionete e ali se movimente livremente. A alma do títere percorre o caminho da linha da marionete, cujos movimentos são livres. Em certo nível, o títere se identifica com Deus, o que ironiza a busca pela técnica ao inverter a vontade de ascensão do homem na própria contradição entre descer, como a alma do títere, e ascender, o que se identifica com a ideia de iluminar, ilustrar, significados do esclarecimento do homem. Podemos destacar dessa imagem o fascínio da dança aérea da marionete sobre o palco, como um momento que é ao mesmo tempo simples e cheio de segredos.
O texto apresenta então a fatídica tese de que a marionete ( Gliedermann) e Deus ( Gott) são dois polos do absoluto, portanto, só um pode se comparar ao outro. A marionete representa a impossibilidade da formação humana, de forma que a busca por conhecimento, processo identificado no século XVIII como iluminação, significa o fim da Graça. Carina Zanelato Silva ( 2019) observa que tal crítica recai também sobre a educação estética do homem, o que na época se discutia como formação ( Bildung). Kleist oferece uma resposta paradoxal à crença clássica da formação completa do homem. Paradoxal, como vimos, pois a marionete se constitui como um estado de harmonia e impossibilidade. O paradoxo se completa quando, ao ser perguntado sobre o que isso representa para o futuro do homem, o bailarino responde que a marionete é o derradeiro capítulo da história humana, a partir de uma perspectiva escatológica. Enquanto o estado da marionete permanece impossível, ela significa para a Graça o retorno ao paraíso pelas portas dos fundos, o engano do querubim que, como na parábola de Kafka, Vor dem Gesetz, vigia a entrada 6.
A marionete possui sobre o homem a vantagem negativa de nunca estar em desacordo com o seu movimento. O espírito sensível está protegido da afetação da consciência. A linha que desce do maquinista conduz a alma do bailarino encontra o interior côncavo da marionete, que funciona como um espelho para a alma do títere A marionete é construída para ter em vista essa alma externa a ela, que “dança” no centro de gravidade, o que permite à liberdade aos seus membros. O maquinista dirige essa força que faz a sua marionete tocar o chão, mas o pêndulo de seus membros a coloca sempre em ascendência, a descrever as graciosas curvas aéreas de seu movimento.
3 Outras imagens do conto
Poder-se-ia dizer sobre o conto que ele apresenta, assim, uma única e potente imagem, a da marionete. Entretanto, há duas outras imagens que, ainda que ligadas ao centro gravitacional do conto, solicitam, principalmente por parte do leitor, um novo esforço de sua imaginação. São elas, repetimos, a do jovem gracioso frente ao espelho (i) e a fera e o esgrimista (ii). Essas imagens são apresentadas em uma interpelação do narrador, que, não sem ironia, demonstra-se provocado pela tese do bailarino. Sobre isso, podemos nos perguntar se não estaria o narrador, interlocutor do bailarino até então, suspeitando das palavras de seu interlocutor. Dessa forma, estaria o bailarino, responsável pela exposição, a exercitar a ironia, o que faria da história da marionete apenas uma imagem criada desse jogo de conversação. Afinal, o bailarino foi perturbado de sua contemplação solitária e levado a explicar o motivo de seu interesse. Essa ideia se fortalece com as provocações por parte do bailarino, como, por exemplo, em certo momento do diálogo, este acusa o narrador de não ter dado a devida atenção ao capítulo do Gênesis. Nesse cenário hipotético da leitura, nosso narrador não se intimida, pois vai responder à provocação com as suas próprias ideias. Ele traz novas imagens, a do jovem Spinario e a da fera esgrimista, que viria a acrescentar não só ao diálogo, mas à visão de mundo do bailarino. Quem ganha com esse jogo, no fim, é o leitor. Todo esse movimento do texto faz provocar a estrutura do diálogo filosófico como o conhecemos e, assim, expandir a possibilidade de se pensar a partir de imagens.
As imagens apresentadas pelo narrador, a do jovem Spinario e a da fera esgrimista, são de grande importância para a construção da plástica kleistiana. Na grande maioria da literatura, tais cenas são ignoradas ou ao menos não devidamente vistas. Elas se apresentam em duas anedotas proferidas pelo narrador, que provoca, de volta, o bailarino. Durante o diálogo entre o bailarino e o narrador, as personagens incorrem sempre na capacidade do imaginário de “dar conta” de um conteúdo, principalmente quando se exerce a arte da conversação, baseada em convencer a partir da criação de um vínculo argumentativo. Assim, no texto, há frases de função fática, como por exemplo “Você acredita em uma história como essa?” (“ Glauben Sie diese Geschichte?”), como no final do relato do duelo de esgrima. Uma pergunta que, como a função fática prevê, apenas testa a imaginação do interlocutor, tendo em vista também um efeito retórico. Nesses detalhes, Kleist busca trabalhar para fora da linguagem descritiva, permitindo-se à imaginação plástica que a história das marionetes exercita. Assim, é como se a imagem da marionete é o “centro gravitacional” do texto. Uma vez que algo como a marionete existe, as histórias inacreditáveis do narrador tornam-se possíveis.
Sobre a primeira imagem mencionada (i), a do gracioso jovem que perde sua graça ao mirar seu reflexo, temos a construção de um universo visual próprio, fora daquele da marionete. O narrador relata que esse jovem parecia uma figura de mármore, e compara-o ao Spinario, pequena escultura grega em que é retratado um rapaz que retira o espinho do pé. Essa comparação dá ao jovem do relato a vontade de imitar a estátua, no que incorre na tragédia: de gracioso, o jovem se torna jocoso, em forma de um desconforto que nunca mais o deixaria. O narrador conta essa espécie de anedota como um relato real, em resposta à provocação do bailarino, pois ela está problema da marionete, isso é, a anulação da graça pela reflexão. Eis o trecho:
Ich badete mich, erzählte ich, vor etwa drei Jahren, mit einem jungen Mann, über dessen Bildung damals eine wunderbare Anmut verbreitet war. Er mochte ohngefähr in seinem sechszehnten Jahre stehn, und nur ganz von fern ließen sich, von der Gunst der Frauen herbeigerufen, die ersten Spuren von Eitelkeit erblicken. Es traf sich, daß wir grade kurz zuvor in Paris den Jüngling gesehen hatten, der sich einen Splitter aus dem Fuße zieht; der Abguß der Statue ist bekannt und befindet sich in den meisten deutschen Sammlungen. Ein Blick, den er in dem Augenblick, da er den Fuß auf den Schemel setzte, um ihn abzutrocknen, in einen großen Spiegel warf, erinnerte ihn daran; er lächelte und sagte mir, welch eine Entdeckung er gemacht habe. In der Tat hatte ich, in eben diesem Augenblick, dieselbe gemacht; doch sei es, um die Sicherheit der Grazie, die ihm beiwohnte, zu prüfen, sei es, um seiner Eitelkeit ein wenig heilsam zu begegnen: ich lachte und erwiderte - er sähe wohl Geister! Er errötete, und hob den Fuß zum zweitenmal, um es mir zu zeigen; doch der Versuch, wie sich leicht hätte voraussehen lassen, mißglückte. Er hob verwirrt den Fuß zum dritten und vierten, er hob ihn wohl noch zehnmal: umsonst er war außerstande dieselbe Bewegung wieder hervorzubringen - was sag ich? die Bewegungen, die er machte, hatten ein so komisches Element daß ich Mühe hatte, das Gelächter zurückzuhalten ( Kleist 2018: 561).
A ironia da anedota se encontra na referência artística invocada, por se tratar de uma cópia, e não de um original. A reprodutibilidade da obra em questão, Spinario, dá algo de jocoso à figura do jovem (“ komisches Element”). O narrador alerta, em certo nível, para a duplicação que é o elogio, o que está ligado ao debate da técnica e da formação. Kleist relaciona a história à própria noção de cópia da marionete, como reflexo da matéria humana. Como o jovem com a obra de arte, o homem se engana ao se espelhar na imagem e semelhança divina. A marionete permanece como uma existência clandestina, pois está imune à vaidade. Nesse sentido, o conto nos sugere perigo da reprodução está em tomar a graça como passível de reprodução, e a imagem criada pela cena em questão, é a da tragédia da reprodutibilidade na vida estética do homem, o que se insere no debate da Anmut clássica. O belo jovem sofre a perda de sua graça, como se fosse um processo de impotência erótica, como bem observa Erich Heller ( 1978). Kleist é conhecido pela abertura de suas histórias ao erotismo. Na anedota, o narrador oferece elementos suficientes para essa leitura (“Er mochte ohngefähr in seinem sechszehnten Jahre stehn, und nur ganz von fern ließen sich, von der Gunst der Frauen herbeigerufen, die ersten Spuren von Eitelkeit erblicken”), como se a perda da graça significasse também a perda do prazer, o que está ligado à queda do paraíso.
O narrador aproveita a atenção do bailarino para introduzir então uma nova história. Diferente da anterior, cujo tom chistoso contribui para a atenção do bailarino, a história a seguir tem algo de inacreditável, como um conto de fadas. Dessa vez é o próprio narrador a personagem do causo, bem como aquele que vai se deparar com o problema da Anmut. No relato, o narrador relembra um duelo de esgrima com dois estudantes que saiu como mestre. Sob a moral de que todos deveriam encontrar o seu mestre, os estudantes o desafiam então a derrotar uma fera que se encontrava na fazenda do pai, cuja habilidade com as garras era capaz de parar qualquer ataque do florete. Conta o narrador:
Ich befand mich, auf meiner Reise nach Rußland, auf einem Landgut des Herrn v. G., eines livländischen Edelmanns, dessen Söhne sich eben damals stark im Fechten übten. Besonders der ältere, der eben von der Universität zurückgekommen war, machte den Virtuosen, und bot mir, da ich eines Morgens auf seinem Zimmer war, ein Rapier an. Wir fochten; doch es traf sich, daß ich ihm überlegen war; Leidenschaft kam dazu, ihn zu verwirren; fast jeder Stoß, den ich führte, traf, und sein Rapier flog zuletzt in den Winkel. Halb scherzend, halb empfindlich, sagte er, indem er das Rapier aufhob, daß er seinen Meister gefunden habe: doch alles auf der Welt finde den seinen, und fortan wolle er mich zu dem meinigen führen. Die Brüder lachten laut auf, und riefen: Fort! fort! In den Holzstall herab! und damit nahmen sie mich bei der Hand und führten mich zu einem Bären, den Herr v. G... ihr Vater, auf dem Hofe auferziehen ließ. Der Bär stand, als ich erstaunt vor ihn trat, auf den Hinterfüßen, mit dem Rücken an einem Pfahl gelehnt, an welchem er angeschlossen war, die rechte Tatze schlagfertig erhoben, und sah mir ins Auge: das war seine Fechterpositur. Ich wußte nicht, ob ich träumte, da ich mich einem solchen Gegner gegenüber sah; doch: stoßen Sie! stoßen Sie! sagte Herr v. G... und versuchen Sie, ob Sie ihm eins beibringen können! Ich fiel, da ich mich ein wenig von meinem Erstaunen erholt hatte, mit dem Rapier auf ihn aus; der Bär machte eine ganz kurze Bewegung mit der Tatze und parierte den Stoß. Ich versuchte ihn durch Finten zu verführen; der Bär rührte sich nicht. Ich fiel wieder, mit einer augenblicklichen Gewandtheit, auf ihn aus, eines Menschen Brust würde ich ohnfehlbar getroffen haben: der Bär machte eine ganz kurze Bewegung mit der Tatze und parierte den Stoß. Jetzt war ich fast in dem Fall des jungen Herrn v. G... Der Ernst des Bären kam hinzu, mir die Fassung zu rauben, Stöße und Finten wechselten sich, mir triefte der Schweiß: umsonst! Nicht bloß, daß der Bär, wie der erste Fechter der Welt, alle meine Stöße parierte; auf Finten (was ihm kein Fechter der Welt nachmacht) ging er gar nicht einmal ein: Aug in Auge, als ob er meine Seele darin lesen könnte, stand er, die Tatze schlagfertig erhoben, und wenn meine Stöße nicht ernsthaft gemeint waren, so rührte er sich nicht. Glauben Sie diese Geschichte? ( Kleist 2018: 562-563).
Se a história anterior se concentrava nos elementos jocosos, presentes na marionete, mas que, sob a tese do bailarino, apresentavam-se como na verdade reflexos do desconforto da dança humana, nessa Kleist utiliza da fábula. O duelo, que por si só é uma imagem repleta de apelo romântico, é comparável às descrições da dança da marionete do bailarino, ao que a graciosidade se concentra nos movimentos do urso, e não do esgrimista, ainda que seus movimentos não sejam ridículos como os dos dançarinos em carne e osso. Isso se deve, naturalmente, à voz narrativa, no caso, o enunciador da história é a personagem em ação, mas também ao fato de que o humano aqui não está em estado de negação. O esgrimista percebe que a sua técnica era insuficiente para vencer o duelo com a fera, “o primeiro esgrimista do mundo” (“der erste Fechter der Welt”), relação que recupera a escatologia da marionete, como o último capítulo do mundo.
A fera, cuja posição de esgrima consiste em permanecer em pé, com a pata pronta para o momento do ataque, encarando seu oponente, domina o seu adversário ao fazê-lo se enxergar nos seus próprios olhos. O narrador conta que a fera fitava a sua alma, olho no olho (“Auge in Auge”). O tema do reflexo, da visão e do mundo imagético, está presente em todo o conto, desde o reflexo do espelho ( Spiegel), o “piscar de olhos” (“Augenblick”), para pensarmos no relato anterior; agora, a fera encara o esgrimista nos olhos, sublinha o narrador (“Auge in Auge, als ob er meine Seele darin lesen könnte”), como se pudesse enxergar a sua própria impotência, sem com isso incorrer na tragédia do mancebo ao espelho, o que faz avançar as imaginações do mundo visual em Kleist. Como a esgrima é uma arte que depende da observação e do movimento – assim como a dança –, a fera supera o homem pelo mesmo motivo que a consciência gera a afetação do dançarino no palco. O narrador finaliza a história com uma confirmação de função fática, conforme mencionamos (“você acredita no que eu acabei de contar?”). Na dança ou duelo do convencimento, tematizado desde a opção pelo diálogo socrático, em Kleist, vemos uma recriação de um dos temas da história do esgrimista, proferido pela própria história: todos devem encontrar o seu mestre. Tendo sido “derrotado” pelo bailarino com a imagem da marionete, o narrador vai responder com a sua ficção. Não por acaso ele escolhe a fera, símbolo do mundo natural, para combater a marionete, não antes sem trazer o elemento jocoso que reside em toda reprodução com a anedota do jovem e a Anmut.
A visualidade do texto se intensifica com os jogos de linguagem sobre o olhar e a ideia do conhecimento como uma observação de segundo grau. Theisen ( 2006) fala do possível espelhamento do esgrimista humano na fera que o derrota, pois ela é a criação do “ponto cego”, diz a autora, de suas próximas observações de segundo grau.
Se o urso pudesse ler dessa forma, ele figuraria como um observador de segunda ordem que poderia observar como o dançarino, como um observador de primeira ordem, observa, ou seja, como ele opera com distinções como finge ou se move seriamente, como ele engana ou não engana em sua técnica de esgrima. Mas será que o urso pode realmente ser um leitor tão competente? Na verdade, está nos olhos do dançarino, como se o urso pudesse ler sua alma neles e, portanto, é na verdade o dançarino que observa as supostas observações do urso sobre como ele mesmo observa. O dançarino constrói o urso (sobre cujas observações não sabemos nada além do que o dançarino vê nelas) como aquele observador de segunda ordem de seus movimentos em falso que ele próprio é de fato. O que é apresentado como a graça do urso, a certeza inocente e infalível com a qual ele é capaz de distinguir entre o engano e o não engano em seu oponente, nada mais é do que o ponto cego das auto-observações do dançarino ( Theisen 2006: 529, tradução minha 7).
A história do esgrimista e a fera converge com a anedota anterior. Theisen ( 2006) mostra que, o causo do jovem que perdeu a sua graça ao olhar no espelho e o da fera e o esgrimista inserem no texto um debate da existência de um outro tipo de observação, uma observação em segundo grau, que nos ajuda a compreender a marionete. A história do urso segue esse mesmo caminho, apontando para a presença da Anmut em um ser destituído de consciência, ou seja, em um estado em que não se faz possível se observar. O ato de observar significa contemplar uma imagem diretamente, ao que a observação em segundo grau é quando o observador se faz observado, gerando a partir disso um conhecimento. A observação em segundo grau é a mais presente no texto de Kleist. A marionete é incapaz de se observar na dança, mas o homem sempre é observado pela sua consciência. No caso do jovem da anedota sobre Spinario, podemos dizer que a juventude o prevenia em tomar ciência da Anmut e, assim que esse estado de observação é alcançado, no momento que nasce no elogio do narrador e culmina no reflexo no espelho, a Anmut desaparece.
Nesse sentido, é também uma imagem, uma ilustração, pois se verifica sua relação com o argumento central das marionetes. O bailarino reconhece a convergência dessas ilustrações do seu interlocutor e, nesse contexto, aprendiz ou aluno: “nun, mein vortrefflicher Freund, sagte Herr C..., so sind Sie im Besitz von allem, was nötig ist, um mich zu begreifen” ( Kleist 2018: 563). O narrador está não abaixo do entendimento da marionete, mas capaz de entender o paradoxo, em posse ( im Besitz) da consciência que aqui se faz negada. O texto nos mostra, assim, que a educação se deu em uma troca de imagens. Na medida que aquele que formaliza um conhecimento e uma tese demonstra o movimento de reflexão entre ele e seu interlocutor, ambos enxergam algo, isso é, tanto uma imagem enquanto conhecimento quanto o reflexo de suas ideias oferecido pelas imagens do outro. O texto de Kleist, por se tratar de um texto altamente imagético, demonstra isso na escolha de suas palavras (“Wir sehen, daß in dem Maße, als, in der organischen Welt, die Reflexion dunkler und schwächer wird, die Grazie darin immer strahlender und herrschender hervortritt”). Assim, o escritor ironiza a transmissão do conhecimento. A ideia da incapacidade da transmissão do paradoxo, enquanto reflexão, por meio de palavras, está relacionada ao argumento por trás da marionete, em que a graça não está acessível ao conhecimento.
Assim, a imagem do esgrimista e da fera, trata-se de um reflexo da marionete, pois as imagens do texto se comunicam dentro do paradoxo da Anmut. A marionete, enquanto reflexão, devolve o seu reflexo para o texto, que, assim, produz imagens, como se pudesse se ilustrar. Nesse sentido, o narrador e o bailarino são reflexos no papel da interlocução, isso é, constituem-se como médiuns da linguagem, de forma que o paradoxo e a imagem se expressa por meio deles, em palavras. O narrador, interessado no conhecimento do bailarino, é como um espelho que reflete a imagem da marionete, proferida pelo bailarino, ao passo que esse último reflete o paradoxo, dando-lhe corpo, em palavras. Esses espelhos, podemos dizer, compõem a plástica do texto kleistiano. Para o leitor, resta permitir ser também o meio pelo qual se expressa a imagem da marionete. Para tanto, Kleist fornece imagens tanto do mundo da fábula, como a do urso, quanto da anedota, de forma que o conto se transforma em diversas linguagens, a expressar as metamorfoses da marionete no mundo sensível, em fera esgrimista ou jovem vaidoso, sempre a partir do movimento, como em uma dança.
4 Considerações finais
Buscou-se demonstrar como o texto de Kleist articula a ideia de “reflexão” e reflexo, em vários níveis de seu texto, o que acaba por extrapolar o campo do filosófico e se funde sem resistência ao mundo visual, conforme Erich Heller ( 1978). Viu-se que o teatro das marionetes é uma representação jocosa da tragédia humana. Seu valor de paradoxo está na consciência do limite da própria consciência, o que também permite dizer sobre o limite da linguagem. Assim, a reflexão, é como se a reflexão da Anmut, Graça, dependesse do fim da expressão para a sua adequada reflexão ou ilustração, no sentido de um conteúdo a ser refletido. Kleist, perante a consciência do paradoxo que a marionete, como Deus, impõe à narrativa, faz com que ela não tenha outra saída a não ser se querer imagem, no que consiste a acertada fábula do conto realizada por Navratil ( 2010). A escrita aspira, nesse sentido, à plástica, de forma que o resultado é menos um conto ou um exercício de pensamento ou narração do que uma série de ilustrações, de imagens que ilustram, como em um jogo em que o escritor se quer, também, ilustrador. Nesse sentido, pensamos que esses elementos estão ligados à fruição do texto “Sobre o teatro das marionetes”, cujo mistério fez com que ele permanecesse interessante mesmo duzentos anos após a sua publicação. Esse interesse do artigo partiu do fato de que a literatura de Kleist parece estar sempre alinhada às expressões imagéticas, a começar pelas ilustrações da vanguarda, como as analisadas pelo estudo de Renée R. Hubert (1988), por exemplo.
Para Renée Riese Hubert (1988), a ilustração é uma forma de “escrever sobre um outro texto e torná-lo legível em diferentes formas” ( Hubert 1988: 23, tradução nossa), diz que a obra de Kleist não pode ser considerada como uma incursão filosófica, primeiro pelo seu conteúdo especulativo, irônico, fragmentário. A visualidade do texto de Kleist como um elemento altamente moderno que supera a mistura de linguagens do romantismo e se relaciona com a linguagem da ilustração do século XX.
A marionete seria, assim, uma imagem, porque o seu conteúdo não autoriza o seu completo entendimento, sem recair na inibição do paradoxo, que faz a reflexão hesitar. Conectar-se com a imagem da marionete está ligado antes ao fascínio perante os seus movimentos, de forma que nos colocamos na posição do bailarino ou do narrador. Essa imagem estaria, portanto, no centro do conto, ou diálogo, pois ela vai atrair aquilo que tomamos como as outras imagens do texto, a saber, as histórias adjacentes, presentes no momento de exposição do narrador. Na leitura, tais sucessões de imagens funcionam como folhas de um livro ilustrado, sobre a qual o olhar se detém, sem escolher entre pensamento e fascínio, mas por ambos ao mesmo tempo. É conhecida a absorção de Kleist de outras plásticas na sua poética, como a da dança, por exemplo, notada por Theisen (2016), ou o próprio teatro dos títeres, elemento estudado por Benjamin ( 1984) no cerne da cultura barroca. Entretanto, a marionete é também uma imagem textual, utilizada como se pudesse simbolizar, à maneira de um fragmento, esse paradoxo que repousa sobre a Graça. Como as marionetes do teatro, origem dessa imagem kleistiana, a marionete enquanto espécie de ilustração textual está em constante movimento, a ponto de podermos dizer que é ela a fonte criativa do texto. Tal premissa estabelece, assim, que a marionete leva a essas outras imagens, a construir uma visualidade interna para a história, fantasiada, em todos os sentidos do fantasiar, de filosofia, ou vice-versa.
Ao tomá-las como imagens, nota-se que elas levam o leitor à conclusão de que a marionete enquanto síntese do negativo não é uma existência exclusiva, mas que a situação da marionete se encontra presente também em outras imagens, o que acrescenta para o conto como um todo, mas não somente. Destacam-se dessas imagens um giro kleistiano sobre a ideia de reflexão. Kleist nos mostra que é possível pensar através de imagens, o que se relaciona diretamente com o caráter do argumento do texto, baseado em provocar o conhecimento a pensar fora dele. Nesses elementos repousa o valor da leitura plástica desse conto, pois, ao tomá-lo pelas suas imagens, vemos que as cenas do conto se comunicam não apenas ao redor do argumento da Graça, orientando e formando as opiniões da(s) personagem(ns), mas também a fascinar, a elas e ao leitor, como imagens que só funcionam em conjunto e submetidas ao centro da imagem da marionete.
Nesse sentido, o texto de Kleist apresenta uma plástica visual, comparável não só ao teatro, como observou a literatura, mas também a outras imagens, como a do duelo, por exemplo. Podemos observar como essas duas histórias, aparentemente inofensivas, funcionam em camadas do diálogo de duas personagens vaidosas, o bailarino e o esgrimista, que dançam – ou duelam? – com ironia, ou ficção, para falar com Theisen ( 2006). O duelo é uma relação que pode ser aplicada, também, à literatura ilustrada, em que a expressão verbal e visual se submetem constantemente uma à outra, tradicionalmente mantendo a hierarquia do texto sobre a pintura ou ainda a trilhar novos caminhos e propostas de expressão, como foi o caso da ilustração surrealista, nota Hubert (1988), momento na história da arte em que Kleist mais recebeu atenção dos ilustradores. No século XX, além dos mencionados na introdução, temos Oskar Schlemmer, Picasso, dentre outros. Nos dias de hoje, para falar alguns, temos Felipe Süssekind (Brasil), Hannah Jung (Alemanha), dentre outros artistas visuais que fazem com que o retorno ao texto de Kleist permaneça sempre uma tarefa rica para o imaginário universal da produção e circulação das artes.
O que esses exemplos de comunicação entre literatura e artes visuais nos mostram é que a literatura de Kleist é criadora de imagens. No texto, elas ao mesmo tempo se alimentam e coexistem, em uma espécie de harmonia do paradoxo, da qual os sujeitos enunciadores estão cada vez mais excluídos pelas cópias, pela natureza, cercado pelo negativo e pelo positivo absoluto. Ilustrar, no texto de Kleist, toma o significado da transmissão de conhecimento, sobretudo, pela via do visual. Sob essa perspectiva, podemos justificar a conjuntura da recepção dessa obra que, dois séculos depois, continua a convocar a ilustração.
Referências bibliográficas
- BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
- HELLER, Erich. The Dismantling of a Marionette Theater; Or, Psychology and the Misinterpretation of Literature. Critical Inquiry, v. 4, n. 3, 1978, p. 417-432.
- HUBERT, Renée Riese. Surrealism & The Book. California: University of California, 1988.
- KAFKA, Franz. Der Prozess. Braunschweig: Damnick, 2015.
- KLEIST, Heinrich von. Sobre o teatro de marionetes. Trad. de J. Ginsburg. Revista USP, Brasil, n. 17, 1993, p. 196-201 .
- KLEIST, Heinrich von. Über das Marionettentheater. In: KLEIST, Heinrich von. Sämtliche Erzählungen. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker Verlag, 2018, p. 555-563.
- MAN, Paul de. Aesthetic Formalization: Kleist’s Über das Marionettentheater. In: MAN, Paul. The rhetoric of Romanticism. New York: Columbia University Press, 1984, p. 263-290.
- NAVRATIL, Michael. Kleist und die Sehnsucht, kein Selbst zu sein. In: NAVRATIL, Michael. Närrische Ordnungen: D. Kehlmanns neo-moderne Poetik. Hamburg: Rowohlt, 2010, p. 69-80.
- SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos e Conversa sobre poesia. Trad. de Marcio Suzuki. São Paulo: UNESP, 2016.
- SILVA, Carina Zanelato. Sobre graça, dignidade e beleza em Friedrich Schiller e Heinrich von Kleist. Belo Horizonte: Relicário, 2018.
- SILVA, Carina Zanelato. O problema do conhecimento e a dissolução do conceito de maldade em Heinrich von Kleist. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Literários, UNESP, Araraquara, 2019.
- THEISEN, Bianca. Dancing with words. Kleist ‘Marionette Theatre’. MLN, v. 121, n.3, 2006, p. 522-529.
Financiamento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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Financiamento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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2
Podemos pensar, por exemplo, na união da escrita e da plástica desde o título em Fantasiestücke in Callots Manier, livro de E. T. A. Hoffmann (“Fantasias à maneira de Callot”, 1814), em que o autor assume deliberadamente a missão de superar os limites da descrição verbal e apela, diretamente, à referência do pintor Jacques Callot, para dar conta de suas cenas absurdas, maravilhosas e horripilantes. Nesse sentido, consiste em marca do romantismo alemão, ao menos o romantismo tardio, cosmopolita, de Hoffmann e Kleist, a relação com a imagem, que no caso de Kleist se dá, como buscamos analisar nesse artigo, de uma maneira bastante particular, em que a ideia de “ilustração” está menos na escolha da linguagem que materializa a obra do que na comunicação empregada.
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3
“The marionete and the god-like being are, each in ist own way, equals in gracefulness”.
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Para a análise, utilizou-se tanto do original alemão quanto a tradução de J. Ginsburg, 1993, publicada na Revista USP. O trecho a seguir no original: “sehen Sie nur die P... an, fuhr er fort, wenn sie die Daphne spielt, und sich, verfolgt vom Apoll, nach ihm umsieht; die Seele sitzt ihr in den Wirbeln des Kreuzes; sie beugt sich, als ob sie brechen wollte, wie eine Najade aus der Schule Bernins. Sehen Sie den jungen F... an, wenn er, als Paris, unter den drei Göttinnen steht, und der Venus den Apfel überreicht; die Seele sitzt ihm gar (es ist ein Schrecken, es zu sehen) im Ellenbogen”. A seguir, priorizamos o original em alemão, uma vez que nos parece mais relevante destacar as minucias do texto de Kleist do que necessariamente uma análise em forma de fábula do conto ou ensaio.
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5
Em português: “à medida que a reflexão se torna mais obscura e fraca no mundo orgânico, (...) assim reaparece novamente a graça, depois que o conhecimento tenha passado como que por um infinito, de tal modo que, ao mesmo tempo, surge no grau mais puro naquela estrutura corporal humana que ou não tem consciência nenhuma ou tem uma consciência infinita, isto é, no manequim, ou no Deus”.
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6
Em 1915, Franz Kafka escreveu uma história em que um homem tenta entrar por uma porta que foi designada como sua, mas que está impedida por um guardião que estava ali para assegurar o seu direito de entrada: “ Hier konnte niemand sonst Einlaß erhalten, denn dieser Eingang war nur für dich bestimmt. Ich gehe jetzt und schließe ihn” ( Kafka 2015: 207). O texto é um exemplo do paradoxo, pois coloca um limite no entendimento, de forma permite menos à reflexão dominar e simbolizar todo o conteúdo reflexivo do que aceitá-lo.
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7
“If the bear could read in this way, he would figure as a second-order observer who could observe how the dancer, as a first-order observer, observes-that is, how he operates with such distinctions as feint/serious thrust or deception/non-deception in his fencing technique. But could the bear really be such a competent reader? In fact, it is in the eyes of the dancer as if the bear could read his soul in them, and thus it is actually the dancer who observes the bear's alleged observations on how he himself observes. The dancer constructs the bear (about whose observations we know nothing but what the dancer sees in them) as that second-order-observer of his feints which he is in fact himself. What is presented as the bear's grace, the innocent and infallible certainty with which he is able to distinguish between deception and non-deception in his opponent, is nothing but the blind-spot of the dancer's self-observations”.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Out 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
06 Mar 2023 -
Aceito
19 Jun 2023