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Franz Kafka, animal autobiográfico: colonização e subjetividade em "Um relatório para uma Academia"1 1 Agradeço às professoras Aline Leal, Ana Kiffer, Helena Martins e Rosana Kohl, além do professor Fred Coelho, pelas leituras deste ensaio em suas diferentes versões, pelas conversas em torno da obra de Kafka e pelos comentários durante a redação. Muitas dessas discussões nasceram em cursos ministrados entre 2021 e 2022, no âmbito da pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Franz Kafka, autobiographical animal: colonization and subjectivity in "A report to an Academy"

Resumo

A partir do vínculo entre autobiografia e animalidade, a narrativa Um relatório para uma Academia, de Franz Kafka, será analisada com objetivo de pensar as reverberações entre a experiência animal e as espoliações coloniais, além de atentar aos diversos efeitos subjetivos que resultam no silenciamento e nos constrangimentos gerados a reboque desse processo. Assim, a partir dos abalos criados por Kafka ao dar voz a um macaco em seu empenho ficcional, observa-se como a subjetividade colonial se expressa, especulando ainda as possíveis fissuras ensaiadas no gesto de descentramento da fala antropocêntrica.

Palavras-chave:
Franz Kafka; animalidade; autobiografia; colonização; subjetividade

Abstract

Taking as a starting point the connection between autobiography and animality, Franz Kafka's narrative A Report to an Academy will be analyzed in order to explore the reverberations between the animal experience and colonial exploitations, while also paying attention to the various subjective effects that result in the silencing and constraints generated in the wake of this process. Thus, from the disruptions created by Kafka through giving voice to a monkey in his fictional endeavor, we observe how colonial subjectivity is expressed, speculating on the possible cracks attempted in the gesture of decentering anthropocentric speech.

Keywords:
Franz Kafka; animality; autobiography; colonization; subjectivity

Céu em pele de lebre. Uma asa
inequívoca ainda escreve.
A rosa de ninguém,
Paul Celan.

Franz Kafka explorou diversas formas e gêneros literários ao longo da sua vasta produção como escritor: romances, novelas, contos, aforismos, poemas, cartas, diários, relatos de viagem. Dentro dessa variedade, existe uma em cujos desdobramentos gostaríamos de nos demorar no presente artigo: as histórias narradas em primeira pessoa por animais.

É sabido também que a presença do animal na literatura de Kafka é incontornável para uma compreensão mais ampla de sua escrita e seus impasses. Os animais em sua poética cantam, falam, escavam, observam, investigam, relatam, gritam, caçam, matam, compondo a rede complexa de relações que engendra a ficção de Kafka. Trata-se de uma escrita sem origem e sem fim, quer dizer, de uma tarefa interminável da escrita, algo que se aproxima da escavação paranoica da toca do narrador-toupeira de A construção, “escavação sem origem e sem fim”, como escreve Flávia Trocoli (2015TROCOLI, Flávia. Kafka sem abrigo. In: PUCHEU, Alberto. Kafka poeta. Rio de Janeiro: Azougue , 2015, 9-17.: 11) no prefácio do livro Kafka poeta, de Alberto Pucheu.

São textos miúdos, pequenos, prosa menor, que descrevem as formas híbridas de animais e humanos, criaturas que, no texto kafkiano, habitam o limiar da humanidade, ou seja, aqueles que não conseguimos nomear, que não identificamos como pertencentes a nenhuma espécie ou que constantemente vão titubear diante dessa identificação. Na introdução da coletânea Kafka’s creatures: animals, hybrids, and other fantastic beings, Marc Lucht e Donna Yarri escrevem acerca da variedade de animais encontrados nos diversos textos kafkianos, apresentando tanto sua amplitude como sua quase onipresença ao longo da obra de Kafka:

Existem poucos autores literários em cujas obras os animais e outras criaturas desempenham um papel tão proeminente quanto nas escritas de Franz Kafka. A presença em suas histórias de animais de floresta que cavam, insetos, ratos, cães, cavalos, macacos, chacais, leopardos, abutres, gralhas, lebres, ratos, cotovias, e até mesmo criaturas misteriosas como Odradek, o cordeiro-gato, e estranhas bolas saltitantes atesta a contínua preocupação de Kafka com seres não humanos3 3 Como escreve Walter Benjamin (1987: 147) sobre essa difícil separação nos textos kafkianos: “Podemos ler durante muito tempo as histórias de animais de Kafka sem percebermos que elas não tratam de seres humanos”. . (LUCHT; YARRI 2010LUCHT, Marc; YARRI, Donna. Kafka’s creatures: animals, hybrids, and other fantastic beings / edited by Marc Lucht and Donna Yarri. Plymouth: Lexington Books, 2010.: 3)4 4 Todas as traduções, salvo quando indicadas, são de nossa autoria e responsabilidade.

A partir desse vasto bestiário e da diversidade de formas e gêneros literários, pinçamos aquela cujos desdobramentos nos interessam para pensar os limites do humano, do não-humano e da escrita5 5 Tradução de Modesto Carone para o original alemão Rotpeter. . Existem pelo menos quatro textos que se encaixam, num primeiro momento, na rubrica das histórias narradas por animais, são eles: Um relatório para uma Academia, A construção, Investigações de um cão e Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos. São textos empenhados na rememoração, na escavação da memória, na difícil tarefa da escrita, da comunicação e na investigação das formas de vida. Aqui, neste artigo, gostaríamos de nos deter na narrativa Um relatório para uma Academia, publicada pela primeira vez em 1917, na revista mensal Der Jude, de Martin Buber, e coligido no livro Um médico rural (1918).

1 O zoológico e a captura

Carl Hagenbeck, fundador do zoológico de Hamburgo, foi um importante comerciante de animais selvagens, criador da ideia moderna de zoológico sem barras de ferro, com ambientes mais próximos aos habitats naturais dos animais, além de ter sido o primeiro a conciliar a experiência do zoológico a do circo no mesmo ambiente. Essas inovações ficaram conhecidas como Hagenbeck revolution, como descrito pelo historiador Matthew Chrulew (2011CHRULEW, Matthew. “Managing Love and Death at the Zoo: The Biopolitics of Endangered Species Preservation”. Australian Humanities Review, n. 50, 137-157, 2011.: n.p):

As histórias de zoológicos costumam descrever a “revolução Hagenbeck” que transformou o design arquitetônico dos zoológicos de fossos e cercas para colinas e fossos, fabricando exposições como paisagem e habitat, possibilitando assim seu naturalismo edênico agora habitual.

Por outro lado, o nome de Hagenbeck figura também como um representante das expedições colonialistas, do contato mórbido entre o comércio internacional de animais e a gestão do zoológico, na mediação entre a exploração violenta de seres em outro continente, a invasão do território colonizado e a administração das instituições de lazer e entretenimento nos centros do capitalismo. De maneira indireta, o fundador do zoológico de Hamburgo parece ter sido retratado em Um relatório para uma Academia, de Franz Kafka, metaforizado no nome da empresa, a firma Hagenbeck, que realiza expedições de captura de animais em países colonizados - no caso da narrativa, a Costa do Ouro, costa oeste do Golfo da Guiné, território que pertence atualmente a Gana. A região descrita no texto kafkiano é um exemplo interessante de colônia, uma vez que, ao longo de sua história, “pertenceu” a diversos países europeus como Portugal no século XV, Holanda no século XVII e Inglaterra no século XIX, podendo ser lida como uma espécie de síntese das diversas dinâmicas de espoliação, além de conter, no próprio nome (Costa do Ouro), a sua finalidade comercial na divisão internacional do trabalho colonial (a exploração de minérios), inscrevendo o seu papel econômico em seu próprio nome.

O conto inicia com a fala do “ex-macaco” Pedro Vermelho6 6 Escreve Boulbina (2019: 22) sobre esse ascetismo: “Pedro Vermelho, o macaco humanizado, é um monstro de ascetismo, uma obra-prima de humanidade e moralidade”. dirigida a uma plateia de eminentes, cujo intuito é relatar sua gradativa transformação em ex-macaco: “Conferem-me a honra de me convidar a oferecer à Academia um relatório sobre a minha pregressa vida de macaco” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 59, grifo próprio). A fala é marcada por um tom polido, bem articulado e reforça a necessidade de se afastar de suas origens animais e de sua memória da juventude para integrar-se à comunidade humana. O relatório pretende dar conta dessa passagem do símio a um estado de animalidade consciente, mais próximo da humanidade - visto que essa transformação não se completa nunca, por mais que diversas características humanas sejam adquiridas pelo macaco, inclusive a faculdade da memória e da linguagem. O intuito do narrador é o de “[...] mostrar a linha de orientação pela qual um ex-macaco entrou no mundo dos homens e aí se estabeleceu” (Ibidem: 60).

Pedro Vermelho abre seu relato lembrando o momento de sua captura. Natural da Costa do Ouro, como já foi dito, o narrador relata que, no primeiro contato com a firma Hagenbeck, foi recebido de supetão com dois tiros: um que atinge a maçã do rosto, fato que, mais tarde, render-lhe-á o apelido de Pedro Vermelho; e um tiro embaixo da anca, cuja cicatriz Pedro eventualmente mostra, por força do instinto, às suas visitas, fazendo emergir sua animalidade residual: “[...] minha natureza de símio ainda não está totalmente reprimida; a prova disso é que, quando chegam visitas, eu tenho predileção em despir as calças para mostrar o lugar onde aquele tiro entrou” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 61). Pedro Vermelho conta também de sua viagem de barco a vapor até a Alemanha, onde se tornou expatriado. Assim descreve os métodos de confinamento dos colonizadores: “Depois daqueles tiros eu acordei [...] numa jaula na coberta do navio a vapor da firma Hagenbeck” (Ibidem: 62), e continua depois detalhando as condições de sua jaula: “O conjunto era baixo demais para que eu me levantasse e estreito demais para que eu me sentasse. Por isso fiquei agachado, com os joelhos dobrados que tremiam sem parar” (Ibidem: 62). Esses são alguns dos procedimentos descritivos que Pedro Vermelho endereça à plateia de eminentes, tanto para sensibilizá-los diante da ambiguidade de sua forma (entre macaco e humano), quanto para se legitimar enquanto interlocutor à altura dos notáveis.

2 Animalidade e racismo

Guardadas as devidas proporções, existe uma certa afinidade entre o relato autobiográfico de Pedro Vermelho, seu deslocamento forçado e sua assimilação à sociedade humana com o longo processo de colonização do continente africano. É essa, inclusive, uma das modulações do racismo cotidiano exposto por Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.: 79), o da “Animalização: O sujeito negro torna-se a personificação do animal [...], outra forma de humanidade”. Em chave diversa, também Paul B. Preciado (2014PRECIADO, Paul B. “Le féminisme n’est pas un humanisme”. Libération, 26/09, 2014. <http://www.liberation.fr/chroniques/2014/09/26/lefeminisme-n-est-pas-un-humanisme_1109309> (13.03.2023).
http://www.liberation.fr/chroniques/2014...
: n.p), em crônica publicada no jornal Libération, discute justamente a posição dos animais, das mulheres e dos escravizados na constituição da modernidade, do complexo industrial e da empresa neocolonial:

As primeiras máquinas da Revolução Industrial não foram a máquina a vapor, a imprensa ou a guilhotina... mas o trabalhador escravo da plantação, a trabalhadora sexual e reprodutora, e o animal. As primeiras máquinas da Revolução Industrial foram máquinas vivas. [...] O regime da escravidão, seguido pelo assalariamento, emerge como o fundamento da liberdade dos “homens” modernos; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como reverso da igualdade; a guerra, a competição e a rivalidade como operadores da fraternidade. A Renascença, as Luzes, o milagre da Revolução Industrial, portanto, repousam na redução de escravizados e mulheres ao status de animais e na redução dos três (escravizados, mulheres e animais) ao de máquina (re)produtora.

Preciado identifica, no desenvolvimento do capitalismo, a captura de viventes marginalizados como a força motriz da transformação social, produtiva e urbana. Dentre os corpos matáveis e assimiláveis ao sistema de produção, destaca-se o não-humano, nesse movimento que poderíamos associar ao que Achille Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições , 2018.: 67) define, em Crítica da razão negra, como o de “submeter a animalidade ao cálculo, [...] inscrever o animal no ciclo da extração”. Esse dado colonial estaria ligado, segundo Mbembe, às tecnologias de dominação, sujeição e (re)produção - lembrando sempre que esta última pode estar ligada à esfera do entretenimento, na qual se inscrevem os zoológicos e os circos, sobretudo após a façanha de Hagenbeck, sua chamada “revolução”, que uniu, pela primeira vez, o encarceramento de animais e os dispositivos de lazer da sociedade ocidental. É nesse sentido que tanto o corpo animal quanto o corpo negro serviram como matéria bruta para a edificação da empresa colonial e para as transformações sistêmicas das sociedades europeias; graças à identificação entre raça e animalidade, apontada por Mbembe (Ibidem: 67, grifo original) na seguinte relação:

Se o homem se opõe à animalidade, não é o caso do negro, que preservava em si, ainda que de forma ambígua, a possibilidade animal. Corpo estrangeiro em nosso mundo, é habitado veladamente pelo animal. Debater a razão negra é, pois, retomar o conjunto de disputas acerca das regras de definição do negro; aquilo que permite reconhecê-lo; aquilo que nos leva a identificar o espírito animal que o possui; as condições nas quais pode a ratio penetrar e controlar essa animalitas.

Esse elo ético que se insinua entre a escrita e o sofrimento animal, num vínculo entre a colonialidade e a cisão entre humanidade e não-humanidade, que a constatação de Márcio Seligmann-Silva (2010SELIGMANN-SILVA, Marcio. Mal-estar na cultura: corpo e animalidade em Kafka, Freud e Coetzee. Alea: Estudos Neolatinos [online], v. 12, n. 2, 205-222, 2010.: 207) acerca de Kafka emerge: “Ao tratar da vida animal, Kafka toca na crise da soberania e da nossa autoimagem”. Quer dizer, o duplo movimento entre a experiência colonial e a experiência da captura e do subjugamento dos animais não-humanos parece estar no centro do debate que aqui propomos. Ou seja, habitar literariamente esse tipo de problema é questionar a experiência colonial e a cisão ontológica entre humanos e animais. Não só do ponto de vista assunto, na escolha do conteúdo, mas da forma.

3 Gênero autobiográfico

Presente já no título, Um relatório para uma Academia (Ein Bericht für eine Akademie, no original alemão), o “tipo de texto” aludido não é trivial. Apesar das descrições da violência colonial, do especismo e das técnicas de aprisionamento, a forma escolhida não foi a do testemunho em tom de denúncia. Por mais que possamos ler a contrapelo o relato como testemunho ou autobiografia, o relatório (Bericht) foi a forma escolhida por Pedro Vermelho. Como destaca Seloua Boulbina (2019BOULBINA, Seloua. Kafka's Monkey and Other Phantoms of Africa. Indiana University Press, 2019.: 29), em seu livro sobre Kafka e a colonização, Kafka's Monkey and Other Phantoms of Africa: “Sem denúncia nas observações, nenhuma acusação, nem defesa nem acusação: um simples ‘relatório’”. O relatório é a forma científica por excelência, a pura descrição dos acontecimentos, a expressão máxima da objetividade e da neutralidade. Ao fim do conto, Pedro Vermelho diz: “faço tão-somente um relatório; também aos senhores, eminentes membros da Academia, apresentei um relatório” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 72, grifos próprios). A escolha espelha dois aspectos centrais da história: 1) a postura ascética do narrador que, ao deixar de ser macaco, assume - pelo menos de maneira parcial - a objetividade, a disciplina e o autocontrole dos homens brancos da “Academia”; 2) incorpora as práticas seculares que garantiram a formação da ciência moderna, marcadas ideologicamente pela neutralidade e a objetividade de suas investigações7 7 Acerca da diferença entre liberdade e saída, conferir Boulbina (2019: 30) e Deleuze; Guattari (2017: 28-29). .

Em ensaio sobre a relação entre autobiografia e filosofia, Katia Muricy (2020MURICY, Katia. Ecce homo: a autobiografia como gênero filosófico. In: MURICY, Katia. Figuras da verdade: Nietzsche, Benjamin e Foucault. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Belo Horizonte: Relicário, 2020, p. 11-35.: 16) parte da constatação básica que a priori parece nortear a construção de uma tal escrita: “Um eu consciente de sua unicidade parece ser a exigência lógica da autobiografia”. Esse elemento distintivo, o eu consciente, foi essencial para separar, na história da filosofia, o humano do animal, no sentido de uma máquina antropológica como descreve Giorgio Agamben (2013AGAMBEN, Giorgio. O aberto: O homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes; Revisão técnica de Joel Birman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.: 61), ou seja, “a produção do humano [...] por meio da oposição homem/animal, humano/inumano, a máquina funciona necessariamente por meio de uma exclusão (que é já [...] uma captura) e uma inclusão (que é também uma exclusão)”.

Se especulativamente pudéssemos imaginar os motivos de uma opção pela autobiografia como a forma literária do relato, a seguinte formulação poderia ajudar a traçar, em linhas gerais, os caminhos para possíveis respostas. Em entrevista para La Quinzaine littéraire, o filósofo Gilles Deleuze é perguntado por uma jornalista acerca da publicação de Lógica do sentido, Diferença e repetição e Espinosa e o problema da expressão: “quem fala nesses livros[?]”, e Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos; edição preparada por David Lapoujade. Tradução de Luiz Orlandi et al. São Paulo: Iluminuras, 2006.: 185, grifo prório) responde: “Toda vez que se escreve, a gente faz com que algum outro fale. E em primeiro lugar, a gente faz com que fale uma certa forma”. Existem aqui duas correlações importantes. Primeiramente, a escrita pressupõe a fala de um outro, como se houvesse um deslocamento entre o sujeito da escrita e o próprio texto escrito. No caso da autobiografia animal, a escrita só acontece porque está envolvida na possibilidade da fala de um outro animal, ou simplesmente da narração de um outro não-humano. Em segundo lugar, essa fala do outro como consequência direta da escrita não é feita de uma maneira qualquer, mas implica a escolha de um gênero literário: a autobiográfica, no caso do texto em questão. Ora, se a linguagem, a fala articulada, a memória e a escrita são os pressupostos que, por excelência, nortearam a separação entre humanidade e animalidade, logo a autobiografia - autós bio graphein -, a “escrita da vida do eu”, consolidou-se enquanto gênero literário que se aloja no centro desse debate, no entrecruzamento da consciência e da escrita de si.

Diante da necessidade de afirmação da escrita animal, um horizonte especulativo se abre, na medida em que a vida precária, marcada pela espoliação, exige o ato de escrever. Para melhor refletir sobre essa questão, encontramos um pequeno poema da escritora portuguesa Adília Lopes (2019LOPES, Adília. Aqui estão as minhas contas: antologia poética de Adília Lopes; prefácio e seleção Sofia de Sousa Silva. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.: 142): “Porque somos apenas / animais acossados / na luta pela sobrevivência / escrevemos as cavernas e os cadernos”. Nesse caso, a escrita está intimamente associada à experiência-limite da violência e da sobrevivência. Não apenas isso, mas a própria ligação entre a caverna, esse lugar da habitação precária - porque não pensar na toca d’A construção de Kafka? -, e o caderno, objeto que marca o processo da escrita inacabada e do rascunho, apontam para o lugar comum da escrita desses animais acossados. O poema de Adília empreende uma associação entre o ato da escrita e a posição do sujeito da escrita no mundo. O animal humano escreve uma vez que é simplesmente um animal acossado. A condição de possibilidade de sua escrita é a sua própria espoliação. É assim que aparecem também os animais autobiográficos de Kafka. Sua toupeira, alertada pelos ruídos estranhos, incessantemente aprimora a segurança de sua toca contra os invasores, na iminência constante do ataque, da morte e da perda da morada. Assim como o narrador/personagem de A construção, escrever, para Kafka, acontece em estado de exaustão: “[...] já incapaz de pensar de tanta fadiga, com a cabeça pendente, pernas inseguras, meio dormindo, mais tateando que andando” (KAFKA 1998KAFKA, Franz. Um artista da fome/Construção. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.: 84), como se o que restasse fosse apenas a escrita diante do horror, do vazio e do “sussurro do silêncio” (Ibidem: 91), como narra a toupeira. E também como os sete cães-músicos observados pelo cão-narrador em “Investigações de um cão”, quando sua música/ruído é descrita como algo doloroso que os coloca no limiar do “aniquilamento” (KAFKA 2002: 152), “uivando como se fosse de dor” (Ibidem: 151). Ou ainda no texto sobre a cantora Josefina, cujo narrador-camundongo define seu povo como “acostumado ao sofrimento, [...] que conhece a morte” (KAFKA 1998KAFKA, Franz. Um artista da fome/Construção. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.: 46).

Em Fragments pour une lecture destituante de Kafka, Luca Salza (2018SALZA, Luca. Fragments pour une lecture destituante de Kafka. K. Revue transeuropéenne de philosophie et arts, v.1, n. 2, 12-24, 2018.: 16) descreve esses personagens-animais degradados - os camundongos que não têm infância, o macaco com suas cicatrizes e o cão magro e desnutrido - como aqueles que procuram incessantemente os restos em um mundo destruído: “Eles atravessam as terras devastadas como se estivessem atordoados pelos danos causados pelas explosões e por toda a violência do mundo, em busca de alguns restos”. Relembramos, diante desta citação, as cicatrizes à mostra de Pedro Vermelho que, por sua vez, ecoam as marcas da espoliação do mundo colonial, dado que remonta à sua captura em território africano, ferida originária que o personagem carrega para o resto da vida, inclusive após “deixar” de ser macaco, quando se endereça à plateia de doutos.

4 O curto-circuito da autobiografia

O texto em primeira pessoa em Um relatório para uma Academia de Kafka opera um curto-circuito no pressuposto contido na separação entre humanidade e animalidade, uma vez que seu narrador-animal figura como dotado propriamente de linguagem e narratividade. Portanto, o animal abala a operação de exclusão entre humanidade e não-humanidade e, enfim, torna-se sujeito. A posição de quem fala e quem escuta muda ao longo da narrativa, “[...] vira a posição do colonizador do avesso como uma luva”, afirma Boulbina (2019BOULBINA, Seloua. Kafka's Monkey and Other Phantoms of Africa. Indiana University Press, 2019.: 29) sobre a particularidade narrativa do texto de Kafka. A tomada de fala de Pedro Vermelho, a partir da organização das suas memórias, da transformação desse real fraturado em fala pública e da ocupação do ambiente consagrado da Academia, ecoa a potência da escrita e do relato em primeira pessoa de Pedro Vermelho diante da lógica colonial.

Em outro contexto, Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.: 28) defende que a posição textual da primeira pessoa não é simplesmente uma opção estilística, mas implica um posicionamento político, uma tomada de consciência da experiência vivida e a embocadura de um discurso próprio sobre a violência cotidiana e colonial, como descreve a filósofa: “Eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. [...] Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou”. Assim, Kilomba demonstra certa sintonia com a constatação de Boulbina sobre a condição narrativa do texto de Kafka, que inverte a posição do colonizador de dentro para fora como quando se vira uma luva do avesso, isso tudo através da narração em primeira pessoa. Acerca dessa inversão, o assumir da própria voz por parte daqueles outrora mudos, Boulbina (2019BOULBINA, Seloua. Kafka's Monkey and Other Phantoms of Africa. Indiana University Press, 2019.: 29) escreve em seu livro:

Kafka lhe dá a palavra e, assim, transforma em sujeito alguém geralmente condenado ao silêncio - alguém que, ordinariamente, não passa de um objeto de discurso, o qual é a marca discursiva de sua desvalorização social, política e antropológica. Na verdade, trata-se do discurso de alguém integrado, ou assimilado, proferido em primeira pessoa [...]. Um discurso emerge, portanto, de alguém que - finalmente? - pode se expressar em seu próprio nome, ou melhor, quase em seu próprio nome, pois o faz sob um sobrenome e em primeira pessoa.

É diante dessa mudez que Kafka escreve seu animal poético. Pedro Vermelho, ao realizar sua descrição aporética da jaula, faz uma pequena, porém densa, observação acerca da natureza da escrita e da memória enquanto “ex-macaco”: “Naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções; mas embora não possa mais alcançar a velha verdade do símio, pelo menos no sentido da minha descrição ela existe” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 63). Ora, podemos apontar dois caminhos interpretativos possíveis para essa passagem: em primeiro lugar, a narratividade do conto se coloca axiomaticamente como impossibilidade de narrar a verdade da história - no caso, sublinhada como “velha verdade do símio”. Ou seja, a condição de possibilidade do relato ou da memória é a ficcionalização - “no sentido da minha descrição ela existe”. A existência do relato está condicionada à descrição feita pelo ex-macaco, e ela só existe nesta descrição, quando ganha estatuto de verdade. O segundo caminho aponta para uma irredutibilidade da comunicação entre humano e animal. A literatura se configura como terreno privilegiado de especulação acerca da condição animal, palco da imaginação e da ficcionalização como espaço de fricção entre o mundo humano (da linguagem e do texto) e o mundo inacessível do animal (“a velha verdade do símio”). Se a vida animal, narrada em texto, só pode existir a partir da palavra humana - “Naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções” (Ibidem) -, logo, a experiência literária é aquela que torna possível o impossível.

O narrador Pedro Vermelho sublinha a diferença entre as palavras humanas e o sentido macaco, opondo esses dois polos de sua passagem. Não é trivial que os textos de Kafka sejam, por vezes, marcados pela fragmentação do relato, pela dificuldade de rememorar e de reorganizar a vida na escrita. Essa dificuldade, traduzida em estilo singular na obra de Kafka, produz a marca de uma escrita animal, fragmentária, descontínua e radicalmente violenta, como o arranhão de um animal. Aqui se sublinha a dificuldade de o animal rememorar sua própria vida, já que a memória é atributo humano. Dessa forma, é como se a escrita da narrativa de Kafka acontecesse no intervalo entre a memória e o esquecimento.

Esse terreno do impossível contato com a verdade animal, do relato parcial e da tentativa sempre fracassada da descrição de uma imaginada consciência selvagem materializa-se na especulação acerca desse pensamento completamente outro, articulado numa linguagem inacessível ao escritor, mas que, justamente por isso, deve ser a matéria-prima da escrita. Em texto sobre a relação entre literatura e subjetividade animal, Maria Esther Maciel faz uma observação acerca do conto “Conversa de bois” de Guimarães Rosa, que poderia facilmente ser estendida à narrativa de Kafka:

Ainda que a linguagem atribuída a eles [os animais] seja a humana - e não haveria como ser diferente, já que todo animal literário o é, graças aos artifícios verbais próprios da nossa espécie -, percebe-se que o autor [Guimarães Rosa] adota uma maneira particular, não submissa às convenções seculares em torno da figura animal, de lidar com os bichos. Se as palavras são próprias do humano, isso não quer dizer que [...] a capacidade de pensar, sentir, ter uma linguagem distinta e uma visão de mundo seja inerente a nós [humanos] (MACIEL 2021MACIEL, Maria Esther. Literatura e subjetividade animal. Revista Dobra - Literatura, Artes, Design, n. 7, 1-11, 2021.: 2).

O tratamento especial dado aos animais por Rosa é justamente o de lhes atribuir uma subjetividade, um ponto de vista. No caso do texto kafkiano, o autor atribui ao macaco a fala, a memória e a faculdade de narrar sua própria história. Poderíamos destacar que o ponto de inflexão do conto de Rosa obedece aos mesmos critérios estabelecidos por Kafka, ou seja, garantir aos animais (bois ou macacos), dentro do território literário (e, portanto, ficcional), faculdades a eles tradicionalmente negadas. Os atributos que demarcam a fronteira entre humano e animal, tais como a memória, a escrita e a fala articulada, entram em suspensão, constituindo-se como um desafio à nossa própria imaginação, experiência que se aloja nos limites da linguagem literária numa aproximação entre a humanidade e não-humanidade (MACIEL 2016MACIEL, Maria Esther. Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016.: 129).

5 A fuga do animal

“Pela primeira vez na vida estava sem saída” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 62), explica Pedro Vermelho ao se ver capturado e encaixotado no navio da firma Hagenbeck, traficado para outro continente, e continua mais à frente no texto: “Em tudo porém apenas um sentimento: nenhuma saída [...]. Até então eu tivera tantas vias de saída e agora nenhuma! [...] Eu não tinha saída mas precisava arranjar uma, pois sem ela não podia viver” (Ibidem: 63). Diante da clausura, Pedro Vermelho precisa traçar rotas de escape, achar uma saída, uma “ fuga no mesmo lugar, fuga em intensidade”, como ressaltaram Deleuze e Guattari (2017DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.: 28), fuga que não pode se confundir com liberdade8 8 Deleuze e Guattari analisam, por exemplo, a fuga em A metamorfose: “Gregor torna-se barata, não apenas para fugir a seu pai, mas antes, para encontrar uma saída lá onde seu pai não soube encontrá-la, para fugir ao gerente, ao comércio e aos burocratas, para atingir esta região onde a voz apenas zumbe [...] todo o devir-animal de Gregor, seu devir coleóptero, escaravelho, besouro, barata, que traça a linha de fuga intensa com relação ao triângulo familiar, mas, sobretudo, com relação ao triângulo burocrático e comercial” (Deleuze; Guattari 2017: 28-30). - “Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída” (Op. cit.: 64). A fuga, apesar de difícil, era possível, já que “[...] a um macaco a fuga deveria ser sempre possível” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 66), e, no caso de Pedro Vermelho, ela ocorreu a partir de uma aparente imitação dos humanos, um devir-humano do macaco - “[...] não me atraía imitar os homens; eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum outro motivo” (KAFKA 1999KAFKA, Franz. Um relatório para uma Academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras , 1999, p. 59-72.: 70). O tema da saída9 9 Para uma análise detalhada do tema da saída e da fuga em Um relatório para uma Academia, ver Fausto (2020: 186-192). é frequente nos textos de Kafka e abundante em sua fortuna crítica, sintetizado em passagem de Alberto Pucheu (2015PUCHEU, Alberto. Kafka poeta. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.: 87) no seu livro Kafka poeta:

Ter à disposição uma saída do que o prende (do trabalho burocrático, da família, do casamento...), tendo uma entrada (a escrita), ainda que mínima, disponível para uma vida possível, para uma vida suportável, para uma vida, quem sabe, com momentos um pouco mais do que suportáveis

Interessante notar como Pucheu articula as circunstâncias em que a personagem se encontra com a própria escrita de Kafka, numa relação de conflito - o ofício de escritor (seu desejo) e seu trabalho de burocrata (sua necessidade material). Se, por um lado, para a personagem do texto, a fuga se apresenta como uma maneira de escapar dos mecanismos de captura, uma fuga sempre intensiva; por outro lado, surge para Kafka, na escrita, uma outra forma de fugir. Em Um relatório para uma Academia, podemos assumir que essa fuga se dá através da articulação com o pensamento animal, na tentativa de comunicação impossível com o mundo animal, ou ainda, na insistência em se alojar nos limites da autobiografia (na condição de animal não-humano).

Em seu livro sobre o problema do animal na filosofia moderna e contemporânea, Derrida (2002DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: UNIFESP, 2002.: 89) aprofunda a relação entre autobiografia e animalidade, destacando a presença incontornável dos discursos autobiográficos na tradição do pensamento ocidental: “[...] na história da literatura ou da filosofia, para sugerir de maneira sumária, há ‘animais autobiográficos’, mais autobiográficos que outros, os animais de autobiografia”. Ao realizar um jogo de palavras com o título do último texto escrito em vida por Nietzsche, Ecce homo, uma autobiografia intelectual, Derrida cria Ecce animot, expressão francesa homófona ao título de Nietzsche: a palavra animot (mot, do francês, “palavra”) e animaux (plural de animal), fazendo com que a inscrição gráfica ou escritural do animal só possa se dar no plural, numa afirmação de um sujeito coletivo.

Para Derrida, a relação entre autobiografia e animalidade aponta para uma série de direções diferentes: em primeiro lugar, ela marca uma disposição do humano enquanto animal para o autobiográfico, numa espécie de paixão irresistível - assim como temos o homem como animal político, irresistível à vida em sociedade, existe também o animal autobiográfico, interessado pela confidência autobiográfica -, de gosto pela narração da própria vida. Não obstante, o animal é a denominação fortemente carregada pela história do pensamento, como já apontado, aquilo segundo o qual o humano foi distinguido do não-humano a partir, entre outros atributos, da ideia de consciência, sua distinção máxima. Essa capacidade do eu de dizer “eu” que “se concede à essência do vivente, ao animal em geral, essa aptidão que ele é ele-mesmo, essa aptidão a ser si-mesmo, e então essa aptidão a ser capaz de afetar-se a si-mesmo, de seu próprio movimento, de afetar-se de traços de si vivente, e pois de se autobiografar de alguma maneira”, escreve Derrida (Ibidem: 91). Essa seria a tarefa, em princípio impossível, de nomear, de se nomear e de endereçar-se ao signatário do texto autobiográfico.

6 A espoliação

Em vários textos de Kafka, sobretudo em Um relatório para uma Academia, há uma proximidade entre a escrita animal e a espoliação, a degradação e os restos. Nessa direção, Ana Kiffer (2019KIFFER, Ana. Vidas de borda. Bordas da vida. Medium [recurso online], 2019. <https://medium.com/@antofagica/vidas-de-borda-bordas-da-vida-8a6ca9065cc0> (13.03.2023).
https://medium.com/@antofagica/vidas-de-...
: n.p), em texto intitulado Vidas de borda. Bordas da vida, acerca d’A metamorfose, de Kafka, escreve sobre o estatuto da memória monstruosa animal diante da espécie humana, do horror da morte e do sepultamento dos corpos destituídos de memória e história:

Corpos metamórficos passam entre os corpos mortos e vivos. Homens e animais. Gérmen e ovo. Putrefação e embrião. A atividade da memória dos corpos nunca foi igual à verdade que se contou e se conta. A espécie humana se ocupou de enterrar essa verdade.

Assim, a tarefa de rememoração do animal não é simplesmente uma tarefa poética no sentido de uma produção literária formalmente interessada, mas de um compromisso ético com a morte daqueles animais que já não podem mais contar suas histórias, que foram apagados e silenciados pela espécie humana, em especial pela empresa colonial. Compromisso que não eclipsa sua dimensão especulativa e fabulatória, mas que, justamente por se alojar nos limites do corpo, põe-se a narrar essas outras histórias. Esse gesto é ligado, nos textos de Kafka, ao ato de tomar a palavra desses animais a priori destituídos de fala, não com uma voz poderosa e imponente, mas como uma voz miúda, sussurrante, que se desprende de suas últimas forças para “buscar falar quando já estamos afásicos” (Ibidem 2019).

Se este problema se apresenta nas autobiografias animais, esse mesmo movimento parece presente também nos diários de Kafka, gênero que tradicionalmente abriga as escritas de si, das confissões íntimas do escritor, do trabalho escritural cotidiano, penoso e revelador da angústia e do vazio: “Estou mais inseguro do que jamais estive, sinto apenas a violência da vida. E estou absurdamente vazio. Sou, na verdade, como uma ovelha perdida na noite nas montanhas, ou como uma ovelha que corre atrás dessa ovelha perdida. Estar perdido assim e não ter força nem para lastimar” (KAFKA 2021KAFKA, Franz. Diários: 1909-1923. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Todavia, 2021.: 315). Importante notar como o problema da violência da vida se conecta imediatamente, na escrita íntima e precária de Kafka, em primeiro lugar, ao problema do vazio e em seguida ao problema do animal, numa relação curiosa que também está presente em sua obra ficcional.

7 Coda

Se existe, no texto de Kafka, correlações entre a humanidade, a colonização, o homem branco ocidental e o masculino, é porque, não à toa, essas são as coordenadas que, junto com a ideia de Norte, formaram e informaram o Ocidente (BOULBINA 2018BOULBINA, Seloua. “Perdre le nord: un éloge de la désorientation”. In: Les miroirs vagabonds ou la décolonisation des savoirs (arts, littérature, philosophie). Paris: Les Presses du Réel, 2018, 17-27.: 18-19). Como mecanismo primordial da descolonização, Seloua Boulbina (Ibidem: 18) insiste no “método” da desorientação, em oposição à orientação, como forma de se aproximar das zonas marcadas pelo símbolo do atraso: “Acredito, de fato, que é necessário aprender a se desorientar e, com isso, descentrar a si mesmo e de si mesmo, a fim de conseguir alcançar adequadamente ou corretamente as regiões da humanidade consideradas por muito tempo pelos europeus como ‘atrasadas’”. Experimentar os limites da autobiografia, como o fez Kafka, é um procedimento de desorientação. Retirar do centro da narrativa o humano, consciente de si, e, no seu lugar, criar um não-humano-poético é desafiar, a partir da experimentação literária, os limites e fronteiras do animal e da escrita. Compor com essas forças menores, animais e colonizadas, não é apenas perder o Norte, mas perder o mundo, perder um mundo. Desorientar-se é “[...] uma maneira de perder o mundo e encontrar seu próprio mundo” (Ibidem: 27). Perder o seu próprio mundo, desassociar-se de si mesmo (humano), para se reterritorializar em outro lugar, em outros mundos nos quais toda uma outra humanidade é possível. Essa é a potência da escrita (não-humano), o impulso que move alguns escritores, como Kafka, infinitamente interessados nos mundos animais.

Referências Bibliográficas

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  • TROCOLI, Flávia. Kafka sem abrigo. In: PUCHEU, Alberto. Kafka poeta. Rio de Janeiro: Azougue , 2015, 9-17.
  • 1
    Agradeço às professoras Aline Leal, Ana Kiffer, Helena Martins e Rosana Kohl, além do professor Fred Coelho, pelas leituras deste ensaio em suas diferentes versões, pelas conversas em torno da obra de Kafka e pelos comentários durante a redação. Muitas dessas discussões nasceram em cursos ministrados entre 2021 e 2022, no âmbito da pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
  • 3
    Como escreve Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.: 147) sobre essa difícil separação nos textos kafkianos: “Podemos ler durante muito tempo as histórias de animais de Kafka sem percebermos que elas não tratam de seres humanos”.
  • 4
    Todas as traduções, salvo quando indicadas, são de nossa autoria e responsabilidade.
  • 5
    Tradução de Modesto Carone para o original alemão Rotpeter.
  • 6
    Escreve Boulbina (2019BOULBINA, Seloua. Kafka's Monkey and Other Phantoms of Africa. Indiana University Press, 2019.: 22) sobre esse ascetismo: “Pedro Vermelho, o macaco humanizado, é um monstro de ascetismo, uma obra-prima de humanidade e moralidade”.
  • 7
    Acerca da diferença entre liberdade e saída, conferir Boulbina (2019BOULBINA, Seloua. Kafka's Monkey and Other Phantoms of Africa. Indiana University Press, 2019.: 30) e Deleuze; Guattari (2017DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.: 28-29).
  • 8
    Deleuze e Guattari analisam, por exemplo, a fuga em A metamorfose: “Gregor torna-se barata, não apenas para fugir a seu pai, mas antes, para encontrar uma saída lá onde seu pai não soube encontrá-la, para fugir ao gerente, ao comércio e aos burocratas, para atingir esta região onde a voz apenas zumbe [...] todo o devir-animal de Gregor, seu devir coleóptero, escaravelho, besouro, barata, que traça a linha de fuga intensa com relação ao triângulo familiar, mas, sobretudo, com relação ao triângulo burocrático e comercial” (Deleuze; Guattari 2017DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.: 28-30).
  • 9
    Para uma análise detalhada do tema da saída e da fuga em Um relatório para uma Academia, ver Fausto (2020FAUSTO, Juliana. A cosmopolítica dos animais. São Paulo: n-1 edições, 2020.: 186-192).
  • 2
    Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
Editor: Helmut Galle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2024
  • Aceito
    26 Abr 2024
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