Acessibilidade / Reportar erro

Desafios e potencialidades do Programa Saúde na Escola no município do Rio de Janeiro

Challenges and Potentialities of the School Health Program in the Municipality of Rio de Janeiro

Resumo

O objetivo do estudo foi analisar a implementação do Programa Saúde na Escola, identificando as ações desenvolvidas, bem como fatores que influenciam a prática profissional no cotidiano e estratégias adotadas pelos profissionais de saúde frente às limitações encontradas. Foi utilizado o método de estudo de caso do tipo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa. O estudo foi realizado com 20 profissionais de saúde, dirigentes do programa, em uma clínica da família no município do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, contendo perguntas específicas e perguntas abertas sobre o tema. Os dados foram analisados pela técnica de Bardin. Os resultados foram agrupados em categorias e constataram a predominância de ações com enfoque direcionado aos determinantes biológicos e higienistas, confirmando o distanciamento do conceito ampliado de saúde nas práticas de promoção da saúde. As problemáticas encontradas referem-se a escassez de recursos materiais e humanos, carência de capacitação e educação continuada, falta de planejamento e infraestrutura organizacional, violência no território, além do período pandêmico vivenciado durante o estudo. Por outro lado, emergiu a consolidação do relacionamento entre saúde e escola, demonstrando a presença do diálogo intersetorial e incorporação das ações de saúde no cotidiano escolar.

Palavras-Chave:
Programa Saúde na Escola; Promoção da Saúde; Estratégia de Saúde da Família

Abstract

The study aimed to analyze the implementation of the School Health Program, identifying the actions developed, as well as factors that influence professional practice in daily life and strategies adopted by health professionals in view of the limitations found. The exploratory-descriptive case study method was used, with a qualitative approach. The study was carried out with 20 health professionals, program directors, in a family clinic in the city of Rio de Janeiro. Data were collected through semi-structured interviews, containing specific questions and open questions that discussed the topic. Data were analyzed using the Bardin technique. The results were grouped into categories and found the predominance of actions focused on biological and hygienist determinants, confirming the distance from the expanded concept of health in health promotion practices. The problems encountered refer to the scarcity of material and human resources, lack of training and continuing education, lack of planning and organizational infrastructure, violence in the territory, in addition to the pandemic period experienced during the study. On the other hand, the consolidation of the relationship between health and school emerged, demonstrating the presence of intersectoral dialogue and the incorporation of health actions in the school routine.

Keywords:
School Health Program; Health Promotion; Family Health Strategy

Introdução

O Programa Saúde na Escola (PSE) foi instituído por meio do Decreto n° 6.286, de 5 de dezembro de 2007 (Brasil, 2007aBRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Escolas Promotoras de Saúde: experiências no Brasil. Brasília. 2007b.), e tem como finalidade contribuir para a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica.

Segundo preconizam os parâmetros curriculares nacionais, os educandos do nosso país – dentre muitas outras habilidades – deveriam ser capazes de situar-se no mundo como cidadãos conscientes de seus direitos e deveres políticos, civis e sociais, capazes de adotar, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças e que, especificamente em relação à saúde, estejam aptos a “conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e adotando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva” (Brasil, 1998BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.). No entanto, a mera existência do programa não significa necessariamente o alcance de suas metas e objetivos, nem a efetividade das práticas de suas ações. É necessário o conhecimento aprofundado da realidade vivenciada por todos os envolvidos, além de pesquisas que evidenciem suas fragilidades e proponham possíveis estratégias a serem adotadas para superar os desafios impostos pelo cotidiano da prática profissional.

As lutas sociais no Brasil e os movimentos de proteção à criança e adolescente, fomentou o Poder Público, em 5 de outubro de 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988., a promulgação da Constituição Federal, que declara em seu artigo 227, que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Na 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986BRASIL. Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde - CNS, 1986, Brasília. Relatório final. Brasília, 1986., a ampliação do conceito da saúde, representado como resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde (CNS, 1986, p. 12), promoveu uma grande transformação no processo de cuidado em saúde. Para se operar a política de saúde, houve a necessidade da consolidação de práticas de Promoção da Saúde voltadas para indivíduos e coletividades, em uma perspectiva de trabalho multidisciplinar, integrado e em redes, de forma que considere as necessidades em saúde da população, em uma ação articulada entre os diversos atores (Brasil, 2018).

Nesse contexto, o ambiente escolar emergiu como um espaço de relações privilegiado para o desenvolvimento crítico e político, contribuindo na construção de valores pessoais, crenças, conceitos e maneiras de conhecer o mundo. A Estratégia de Saúde da Família, por meio das equipes de saúde da família, deve dedicar-se a ações coletivas e à reconstrução das práticas de saúde a partir da interdisciplinaridade e da gestão intersetorial em um dado território. Ademais, convém destacar a importância da intersetorialidade para a potencialização do ambiente escolar com os demais equipamentos sociais existentes no território, a saber, a associação dos moradores, igreja, as organizações sociais, os espaços de lazer e a própria unidade de saúde (Brasil, 2007a).

A criação do PSE estabelece ações em saúde que devem ocorrer em conformidade com os princípios e diretrizes do SUS, considerando a atenção, promoção, prevenção e assistência (Brasil, 2007a). As ações de promoção da saúde devem combinar três vertentes de atuação: incentivo, proteção e apoio, no qual as medidas de incentivo, que difundem informações, promovem práticas educativas e motivam os indivíduos para a adoção de práticas saudáveis devem ser desenvolvidas pelas unidades de saúde no cotidiano das escolas (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica : obesidade / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – Brasília : Ministério da Saúde, 2014 – Cadernos de Atenção Básica, n. 38.).

Apesar da robustez do arcabouço legal das políticas públicas que envolvem as crianças e os adolescentes, o acesso e a garantia da atenção integral ainda estão muito aquém do desejado. Assim, é possível verificar as problemáticas e as limitações relacionadas à aplicabilidade das políticas públicas, em nosso caso específico, da implementação do PSE, influenciado por diversos fatores que contribuem para a realidade dos serviços de educação em saúde, como os fatores, políticos ou governamentais, socioeconômicos e humanos ou culturais.

O objetivo deste trabalho foi analisar a implementação do Programa Saúde na Escola, identificando as ações desenvolvidas, bem como fatores que influenciam a prática profissional no cotidiano e estratégias adotadas pelos profissionais de saúde frente às limitações encontradas.

Cabe ressaltar, aqui, o mais grave problema de saúde pública enfrentado por esta geração, a pandemia de Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020. Diversas medidas de isolamento social foram instituídas, o fechamento das escolas, universidades, clubes, praças, parques e locais de atividade física que enclausurou adultos e crianças, trazendo efeitos indiretos piores que o número de mortes causadas pelo vírus de forma direta (Fiocruz, 2020). Assim, este estudo se mostra relevante por buscar a compreensão das ações voltadas ao cuidado em saúde das crianças e adolescentes, tendo em vista a dicotomia existente entre o plano da teoria e da prática, que envolve as políticas públicas e sociais no contexto da saúde escolar.

Método

A presente pesquisa possui característica descritiva, exploratória e abordagem qualitativa, apoiada nos pressupostos de Minayo (2014MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª edição. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.), os quais declaram que o método qualitativo se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e opiniões. Nesse contexto, a abordagem qualitativa se mostrou o caminho mais adequado para descrever a relação existente no Programa Saúde na Escola, entre os profissionais de saúde e educação, e as multifaces temporais e situacionais que influenciam na construção dessa interação.

O cenário do estudo compreendeu uma clínica da família, situada na zona norte do Município do Rio de Janeiro, que apresenta 16.122 cidadãos ativos cadastrados e um efetivo de 72 profissionais. Os participantes da pesquisa compreendem 20 profissionais que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Foram incluídos na pesquisa os profissionais de saúde, de ambos os sexos, que atuam na estratégia de saúde da família há pelo menos um ano e foram excluídos os profissionais que não estão envolvidos nas ações do PSE. O critério para o encerramento da coleta de dados se deu a partir da saturação das respostas obtidas, ou seja, quando as informações começaram a apresentar certa repetição dos temas encontrados. A coleta de dados teve início após aprovação do protocolo de pesquisa pelo Comitê de Ética, conforme Parecer número 3.711.110 e CAAE 23422919.0.0000.5238.

O estudo foi realizado por meio de entrevistas semiestruturadas, contendo perguntas específicas e abertas que discorressem sobre o tema. As entrevistas foram gravadas em formato mp3 e posteriormente transcritas na íntegra a fim de que se mantivesse a fidelidade aos relatos obtidos. Para manter o anonimato dos entrevistados foram utilizados codinomes aos relatos.

A análise de conteúdo seguiu os pressupostos de Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), que prevê a utilização de três fases fundamentais: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. A primeira fase realizada na pesquisa, a pré-análise, consistiu na leitura flutuante dos documentos transcritos, dos quais foram recortados os núcleos de significação, contendo as unidades temáticas que se repetiam com frequência e que, posteriormente, foram reunidos em categorias. Na segunda etapa, de exploração do material, realizou-se a organização dos temas escolhidos em categorias de forma a exprimir o objetivo do estudo. Finalmente, na terceira fase do processo, foi realizado o tratamento e a interpretação dos resultados.

Resultados e Discussão

Para discussão dos resultados, foram elaboradas três categorias, mediante análise temática dos dados oriundos das entrevistas. Em cada categoria, são expostas as descrições que melhor apresentam o conteúdo retratado e as falas dos entrevistados, seguidas de uma análise crítica baseada em inferências à luz do referencial teórico.

Categoria 1: “Caracterização das ações do PSE desenvolvidas pelos profissionais de saúde”

Esta categoria trata da análise das ações de promoção da saúde desenvolvidas por profissionais de saúde na comunidade escolar, permitindo extrair elementos significativos, disponibilizados com base na frequência das palavras narradas. Com isso, construiu-se um gráfico em forma de nuvem (Gráfico 1), para destacar os temas emergentes que foram analisados à luz das bases documentais do PSE, bem como leis, portarias e decretos relacionados a saúde escolar.

Gráfico 1
Elementos significativos acerca das ações realizadas no PSE

Também foi realizada a caracterização empírica dessas atividades, com o objetivo de melhor compreender as atividades de promoção da saúde, tomando como base os pressupostos de Lucas (2001), conforme o Quadro 1. De tal caracterização, iremos nos apropriar dos seguintes aspectos: quanto à natureza da ação e quanto ao foco da ação.

Quadro 1
Caracterização das ações realizada no PSE

Em relação à natureza da ação, cada atividade foi elencada como educativa ou assistencial. A primeira apresenta foco na educação em saúde, mediante a ministração de conteúdos teóricos ou teórico-práticos, como ações de higiene. Já a atividade de natureza assistencial é desenvolvida na forma de uma intervenção clínico-ambulatorial na comunidade escolar, como aplicação de vacinas nas campanhas de imunização. Cabe ressaltar que considerando a amplitude e particularidade da estruturação de cada ação, uma atividade pode ser caracterizada simultaneamente em mais de um tipo de natureza.

Outro aspecto abordado foi quanto ao foco de cada atividade, sendo caracterizada como centrada no indivíduo ou centrada na coletividade. Na atividade centrada no indivíduo, o conteúdo deve estar voltado para aspectos pessoais da saúde, como as avaliações antropométricas. Já a atividade centrada na coletividade, o conteúdo deve estar voltado para aspectos coletivos da saúde, como as campanhas de prevenção da dengue.

Nas narrativas, pode-se verificar uma concordância dos entrevistados relacionada ao grande envolvimento dos profissionais de saúde bucal nas ações do PSE, o que é contextualizado por fatores históricos. Em relação à natureza dessas ações, verificam-se ações assistenciais, como aplicação tópica de flúor e ações educativas, como orientação de escovação.

Sim, tenho (turno de PSE) […] normalmente organizo ele junto com a equipe de saúde bucal que é super parceira e bem presente nessas ações na escola. (Informação verbal fornecida por Ana Néri).

Outro aspecto relevante que emergiu dos discursos foi a realização de ações voltadas à orientação dos educadores e responsáveis e/ou cuidadores. Estabelecer um plano de ação, especificando seus objetivos, metas e estratégias de operacionalização, de forma compartilhada e em comum acordo com a direção da escola, professores, alunos e pais/responsáveis, é de fundamental importância para adesão e comprometimento de todos na realização das atividades, o alcance dos objetivos e o sucesso das iniciativas (Brasil, 2009aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde nas Escolas. Brasília, 2009a. (Série Cadernos de Atenção Básica; n. 24).).

Também é possível evidenciar a realização de ações que ocorrem por demanda escolar, o que demonstra que os temas selecionados não são somente identificados e estabelecidos pela lógica e compreensão dos profissionais de saúde envolvidos. Nesse sentido, é considerado as necessidades e expectativas dos membros da comunidade escolar acerca de quais temas são por eles considerados como importantes ou prioritários, tendo em vista o contexto de vida das pessoas daquela localidade.

Às vezes é uma demanda da própria escola, às vezes é uma demanda dos próprios alunos daquela escola […] já cansei de ir com uma proposta e chegar lá e os alunos trazerem uma outra demanda, e aí a gente reformula e caminha naquilo ali que eles entendem como importante a ser discutido, enfim construído e aprendido […]. (Informação verbal fornecida por Alice Ball).

Outra ação consolidada entre os profissionais consiste no combate a obesidade infantil e alimentação saudável. Tais ações são de extrema importância no contexto da comunidade escolar em que pese a importância na prevenção e controle das doenças crônicas não transmissíveis, conforme depoimento de Ana Néri: “A gente faz muito sobre autocuidado, higiene, alimentação saudável...”.

Atualmente, a política adotada pelo governo é o Programa Crescer Saudável que abrange ações de vigilância nutricional, a promoção da alimentação adequada e saudável, o incentivo às práticas corporais e de atividade física e oferta de cuidados para as crianças que apresentam obesidade (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Programa crescer saudável 2019/2020, Instrutivo. Brasília, 2019.).

Assim, verificamos o estabelecimento das ações que tem sua finalidade incluída também em outros programas, como ações de alimentação saudável, atualização da caderneta vacinal e avaliação antropométrica. Essas ações são utilizadas como indicadores para os programas PSE, Crescer Saudável e Programa Bolsa Família. Esta afirmativa pode ser exemplificada pelo relato de Marie Curie: “Eu fiz ações de pesagem do bolsa-família, vacinação eu fiz muitas vezes nas creches e nas escolas também, avaliação antropométrica...”.

Mediante a presença de políticas públicas que integram diversos setores como, a saúde, educação e assistência social, verificamos a importância das intervenções intersetoriais na expectativa de reduzir vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes – modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais (Brasil, 2009b).

Em relação à caracterização das ações do PSE, a natureza das atividades de promoção da saúde são majoritariamente de cunho educativo em comparação às atividades assistenciais. Já no que tange aos enfoques dos discursos, observamos a presença de temas clássicos, como combate e/ou controle de doenças infectocontagiosas, parasitoses e arboviroses; além das ações de cuidados com o corpo, como higiene corporal e oral. O depoimento a seguir demonstra de forma nítida o caráter higienista das ações desenvolvidas: “Eu realizei [...] educação em saúde referente a higienização as mãos, higienização da cabeça por causa do piolho, falamos sobre dengue...” (Charles Darwin).

Nesse sentido, as ações se caracterizam por uma visão biologicista, que pressupõe o reconhecimento da natureza biológica das doenças; se justifica na compreensão que a doença é causada por agentes biológicos (químicos e físicos estão incluídos), em corpos biológicos, com repercussões biológicas. No primeiro caso, associa-se à unicausalidade; no segundo, confere dimensão estritamente biológica ao ser humano, descontextualizando sua posição biográfica, familiar e social; e por último, ocupa-se da valorização da entidade estrutural patológica (Cutolo, 2006CUTOLO, L. R. A. Modelo Biomédico, reforma sanitária e a educação pediátrica. Arquivos Catarinenses de Medicina, Paraná, v. 35, n.4, p. 16-24, 2006.).

Foram relatados com menos frequência nos discursos dos profissionais, outros temas relacionados à educação em saúde, com enfoque na saúde do homem, saúde da mulher, saúde do adolescente, saúde mental, cultura da paz, entre outros. Isso caracteriza um distanciamento nos temas de aspectos humanísticos – abordando conteúdos de cunho social relacionados às temáticas emergentes da agenda de saúde da população, tais como: cidadania, violência, lazer, inclusão social, entre outros; e aspectos ambientais – promovendo práticas relativas à prevenção e proteção do meio ambiente e sustentabilidade.

Desta forma, podemos identificar lacunas significativas nas ações realizadas pelo PSE.Temas importantes que deveriam ser discutidos em diversos momentos na comunidade escolar como: as questões sobre sexualidade na adolescência, direitos reprodutivos e prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis; as questões de violência familiar, homofobia, Bullying e promoção da cultura da paz; as questões raciais/racismo estrutural e do preconceito que incidem na saúde mental; as questões sobre consumo de álcool, tabaco e outras drogas; e as questões de ordem psicossocial, autismo e inclusão social; consistem em problemáticas encontradas que poderiam apresentar redução de danos por meio de processos educativos.

Considerando as atividades assistenciais, cabe destaque a avaliação oftalmológica baseada no teste de acuidade visual pela escala optométrica de Snellen, realizado por Rosalind Franklin, conforme depoimento: “[...] a gente fez ação de triagem visual com a escala de Snellen [...]”

A realização do teste de Snellen nas escolas, por um profissional capacitado, pode identificar precocemente distúrbios visuais nesta faixa etária e alertar quanto à necessidade de uma consulta especializada em oftalmologia para correção dos vícios de refração que prejudicam o rendimento da criança. É recomendado a realização do teste para avaliação da saúde ocular pelo menos uma vez por ano para os estudantes do ensino fundamental e do ensino médio (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde, Ministério da Educação. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Cadernos temáticos do PSE – Saúde Ocular. Brasília, 2016.).

Em relação ao foco das ações de promoção da saúde verificou-se que as práticas são eminentemente centradas no indivíduo. Essa lógica é contextualizada por um discurso de autocuidado, infligido aos indivíduos ao longo de anos, em detrimento a responsabilização do Estado em garantir condições mínimas necessárias para promover o bem-estar e a qualidade de vida da população brasileira como um todo, e nesse particular, a comunidade escolar. As ações do PSE desenvolvidas, centradas no indivíduo, podem ser verificadas nesta narrativa: “[…] então as principais ações são essas, com a odonto, bolsa-família, peso e altura para acompanhar o desenvolvimento da criança...” (Alexander Fleming).

As ações com enfoque no indivíduo, não são capazes de abranger todas as necessidades da população, se considerarmos os demais aspectos voltados para as questões sociais e econômicas da comunidade envolvida. Desta forma, se faz necessário o diagnóstico local para melhor compreensão das necessidades do território e ampliação das ações que promovam melhores condições de vida e favoreçam a realização de escolhas saudáveis.

Convém destacar que as práticas educativas encontradas na presente categoria se baseiam, predominantemente, no ato “depositário” de informações e conhecimento pelos profissionais de saúde aos estudantes, o que se distancia do diálogo, do respeito e do desenvolvimento da criticidade para transformação da realidade dos educandos (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.).

Ademais, o predomínio das ações centradas no atendimento clínico, ficam evidenciadas nas temáticas abordadas pela equipe da atenção primária e reflete a formação de profissionais baseada no modelo flexneriano. Esse modelo aborda o estudo centrado na doença, de forma individual e concreta, desconsiderando as implicações do social, do coletivo, do público e da comunidade no processo de saúde-doença (Pagliosa; Ros, 2008PAGLIOSA, F. L; ROS, M. A. O Relatório Flexner: para o Bem e para o Mal. Revista Brasileira de Educação Médica, p. 492-499. 2008.).

Diante das transformações sociais e políticas acerca do conceito ampliado de saúde, e a incapacidade do seguinte modelo em atender a complexidade e a dimensão do cuidado, ficou evidenciado a necessidade de ampliar a visão dos estudantes de forma a abarcar o paradigma da integralidade. Neste sentido, realizou-se alterações nas diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em saúde, introduzindo a formação do profissional de saúde de modo a contemplar o sistema de saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção integral à saúde (Ceccim; Feuerwerker, 2004CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cadernos e Saúde Pública, v. 20, n. 5, p. 1400–1410, 2004.).

Atualmente, na realidade da prática profissional, é possível verificar a coexistência de ambos os paradigmas, biomédico e da integralidade, no mesmo espaço de trabalho, conforme o relato do depoente Oswaldo Cruz:

[…] se pensar no rio de janeiro, em todas as clínicas que existem, o percentual de médicos de família e comunidade ainda é muito menor do que o percentual dos médicos sem formação para isso... e as faculdades em si não trazem esse conceito de saúde, ainda é muito a questão de ausência de doença fisicamente pensando...[...] então eu acho que tem esses dois perfis no rio de janeiro bem destacado, tanto que tem paciente que vem, que você vai conversar sobre como está em casa, sobre o que está acontecendo, como estão as relações pessoais, como está saneamento, se tem água, se tem esgoto correndo a céu aberto, várias questões que vão determinar...[...] e tem pessoas que vai ser só simplesmente, você está bem? Você está sentindo alguma dor? Sua pressão está boa, você está saudável, pode ir!

Categoria 2: “Fatores que influenciam na implementação do PSE”

A presente categoria compreende a análise dos fatores que influenciam nas práticas de promoção da saúde realizadas nas escolas pelos profissionais de saúde. Para esse efeito, os profissionais foram questionados quanto às potencialidades e dificuldades encontradas para realização das ações do PSE.

Foram extraídos dos discursos elementos significativos e disponibilizados com base na frequência das palavras narradas, construindo um gráfico em fora de nuvem (Gráfico 2); também foram analisadas as narrativas, no intuito de elucidar a prática profissional e os intervenientes vivenciados pelos profissionais na implementação das ações do PSE.

Gráfico 2
Elementos significativos acerca dos fatores que inf luenciam na implementação do PSE

Para melhor compreensão do estudo, é necessário imergir nas políticas públicas voltadas ao cuidado da criança e do adolescente. A carteira de serviço, da prefeitura do Rio de Janeiro, recomenda o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança, com mínimo de sete consultas no 1º ano de vida, duas consultas no 2º ano e anuais a partir do 3º ano, idealmente intercaladas com a enfermagem (SMSDC, 2011).

Desta forma, fica evidenciado um acompanhamento mais cuidadoso do crescimento e desenvolvimento da criança até dois anos de idade, corroborada por meio de indicadores de consultas, metas e cobranças feitas pela coordenação do cuidado. É relatado em diversos discursos o distanciamento do cuidado da criança e do adolescente com o passar dos anos, tornando-se a unidade básica de saúde um suporte para atendimentos clínicos pontuais e específicos, conforme depoimento a seguir:

A gente atende crianças bem pequenininhas, até um ano a gente vê bastante, de um a dois a gente começa a ver pouco, depois meio que some... [...]depois não aparece tanto, a não ser por problemas específicos, vai ter a criança com asma, com bronquite, com doença de pele, que vai aparecer para a gente, mas sempre dessa forma... (Vital Brasil).

Esse distanciamento do cuidado fica ainda mais evidenciado quando relacionado aos adolescentes. A adolescência é uma fase dinâmica e complexa merecedora de atenção especial no sistema de saúde, uma vez que esta etapa do desenvolvimento define padrões biológicos e comportamentais que irão se manifestar durante o resto da vida, consolidando a personalidade do indivíduo (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde do adolescente: competências e habilidades. Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2008.). Verificou-se, nas narrativas, a dificuldade da cobertura assistencial dessa população, que é caracterizada muitas vezes por comportamentos negligentes de cuidado da própria saúde:

Adolescente não é fácil... pegar um adolescente em casa, pegar ele na esquina para bater um papo, explicar sobre a saúde dele, explicar que ele precisa ser cuidado... a gente não consegue falar com os pais, quando a gente tem contato com os pais, os pais dizem que ele já é grande, que ele se vira e que ele já responde por si... aí fica complicado... e o prejudicado é sempre o adolescente. (Galileu Galilei)

Assim, mediante ao enfraquecimento da integralidade do cuidado e a redução do acesso à criança e ao adolescente, à escola, juntamente com outros espaços sociais, torna-se lócus relevante para ações de promoção da saúde da criança e do adolescente. É encontrado nos relatos dos profissionais, a importância das escolas para implementação das práticas educativas e assistenciais que contribuam para a longitudinalidade do cuidado nas suas diferentes fases da vida:

[…] acaba que na escola é o momento que você se aproxima novamente dessa criança que já não está tão presente da unidade, aquela criança de 5, 6, 7, 8, 10 anos... não é uma criança tão frequente aqui […] (Nise da Silveira).

Nesse contexto, o PSE visa à integração e articulação permanente da educação e da saúde de forma a ampliar o alcance e o impacto de suas ações relativas aos estudantes e as suas famílias, otimizando a utilização dos espaços, equipamentos e recursos disponíveis. As equipes de saúde da atenção básica são vinculadas ao PSE, por meio de adesão ao programa, atendendo a pactuação de ações nas escolas do território. A recomendação do Ministério da Saúde é que as ações nas escolas sejam realizadas mensalmente.

Nas narrativas, em alguns momentos, a equipe não é capaz de cumprir essa demanda, seja por sobrecarga de trabalho, incompatibilidade de horário da agenda da escola, falta de planejamento, de profissionais envolvidos ou de uma rede de apoio; mas em alguns meses não há realização das atividades nas escolas.

Outra consideração relevante consiste no fato das clínicas da família possuírem territórios heterogêneos, ou seja, a mesma área programática possui unidades básicas de saúde que atendem mais escolas que outras. Nestes casos, as escolas são distribuídas uniformemente entre as equipes, no entanto, os profissionais da odontologia e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família ficam com uma maior demanda em sua agenda para acompanhamento integral dos estudantes:

[…] temos território que tem unidade com 3 ou 4 escolas... mas a mangueira tem 10 escolas, então assim são 10 dias, 10 turnos pelo menos por mês que você tem que está disponível […] (Alice Ball).

Também foi relatado que o método de monitoramento e avaliação das ações de promoção da saúde nas escolas ocorre meramente de forma quantitativa. Ou seja, há somente o registro da ação realizada, sem nenhuma preocupação quanto a abordagem utilizada,se de fato a ação foi compreendida pelos estudantes e se a mesma gerou uma resposta efetiva aos problemas apresentados. A narrativa a seguir evidencia a preocupação dos profissionais de saúde em realizar as ações para ter o registro, não havendo clareza sobre a adequação dessas ações às reais necessidades da comunidade escolar: “[…] ali tem uma parte que a gente vai lançando porque a prefeitura acompanha aquilo ali... porque é através de números que é representado nosso trabalho...” (Carlos Chagas).

Alguns fatores foram considerados, pelos entrevistados, como facilitadores para implementação das ações de promoção da saúde. Destes, ressaltamos os seguintes pontos: uma agenda programada, o calendário ministerial da saúde, a relação da saúde com a escola, a presença de redes de apoio e a participação familiar.

A programação da agenda e o planejamento das ações são estratégias fundamentais na implementação do PSE. Neste momento, há articulação entre a comunidade escolar e equipe da estratégia de saúde da família, para organização dos horários, necessidades sociais e perfil dos estudantes. Verificamos essa programação nos discursos dos profissionais que possuem um turno pré-estabelecido para ações do PSE, como a odontologia:

A gente liga no início do ano para as escolas e agenda, pelo menos eu na minha área já tento deixar agendado para o ano inteiro, para não ficar batendo uma com a outra, porque eu só tenho um dia para fazer ação e são 3 escolas. (Nise da Silveira).

Já outros profissionais da equipe, que representam a maioria, realizam a programação mensal, o que impacta muitas vezes na incompatibilidade dos horários para a realização das ações, principalmente quando há necessidade do profissional médico, já que este profissional apresenta uma agenda mais limitada por conta da grande demanda e da especificidade de sua atribuição.

Outro fator considerado foi o calendário da saúde disponibilizado pelo Ministério da Saúde (Brasil/MS, 2022), no qual os meses são definidos por cores e apresenta datas que servem para alertar sobre doenças e transtornos, incentivar a doação de sangue e prevenir o suicídio, entre outros temas; é amplamente utilizado pelos profissionais de saúde para direcionar as atividades a serem realizadas nas escolas.

No que concerne à relação da saúde com a escola ficou evidenciado por meio dos discursos que a interação interpessoal ocasionada pela responsabilidade compartilhada do território e a visita mensal preconizada pelo programa promovem uma relação de amizade, confiança, empatia e solidariedade, entre ambos. Esse vínculo é crucial para efetiva implementação de práticas de promoção da saúde, na qual é realizada a troca de informações e saberes entre os profissionais, direcionando as ações para as reais necessidades da população escolar.

Foram explicitadas nas narrativas a participação e demonstração de interesse pelos profissionais da educação nas atividades realizadas no espaço escolar. Além da contribuição desses profissionais nas atividades, tendo em vista a facilitação da compreensão dos estudantes e a provisão das reais necessidades de saúde das crianças, percebidas no cotidiano da prática do ensino:

Sempre tem 1 ou 2 professores... eles participam ativamente, às vezes acrescentam alguma coisa no nosso material, ou dá alguma opinião ou falam inclusive que coisas que poderíamos falar da próxima vez, assuntos que são de interesse deles... (Florence Sabin).

É importante ressaltar que tal característica de fraternidade no relacionamento da equipe de saúde com a educação não é abrangente a todas as escolas e profissionais envolvidos nas ações, havendo relatos de dificuldades de relacionamentos em algumas escolas: “Há um entrosamento entre a saúde e educação, porém isso varia muito de território para território e varia de escola para escola...” (Alice Ball).

Foi referenciada também a importância de redes de apoio para as práticas das ações de promoção da saúde. Embora não haja nenhuma relação consolidada de fato para realização das atividades do PSE, houve inúmeros relatos da parceria com os profissionais da UFRJ do curso de fonoaudiologia:

A gente tem a fonoaudióloga da UFRJ, e ela tem os alunos da UFRJ, que é da cadeira de saúde coletiva e eles são muito criativos eles também dão sempre um apoio a gente... (Florence Sabin).

Outro fator visto como positivo para o sucesso das ações de promoção da saúde nas escolas é a inserção e participação familiar. O envolvimento da família, pais e responsáveis na agenda do PSE amplia o universo de cuidado ao qual se necessita envolver o educando. No entanto, muitos relatos dos profissionais da saúde ainda apontaram a ausência e a falta de envolvimento dos familiares na integralização do cuidado, seja pela falta de tempo do responsável, pela pouca idade e até pela falta de interesse:

Muitos responsáveis não podem por conta do trabalho, não vai, a gente pede para levar a caderneta de vacina e eles não mandam, a gente pede autorização para a gente vacinar a criança e eles não mandam. Assim, as maiores dificuldades são com os responsáveis. (Charles Darwin).

Algumas fragilidades identificadas nas narrativas que produzem impactos na implantação do programa foram referentes aos recursos materiais disponibilizados, capacitação e educação permanente para a prática profissional, a violência no território e o período de pandemia vivenciado.

Os recursos materiais elaborados pelo governo federal e disponibilizados para as atividades educativas no PSE, consistem em fôlderes e panfletos educativos acerca de temas sobre alimentação saudável, prevenção sexual, prevenção da dengue, entre outros. Foi relatado nos discursos que os materiais disponibilizados não são efetivos nas ações com crianças pois são considerados inadequados à faixa etária por apresentarem forma escrita e não lúdica:

Eu acho que para crianças o material não é adequado até porque criança gosta de coisas interessantes, mais lúdico... não são muito lúdicos, tem mais coisas escritas, muitos não sabem ler ainda... (Ana Néri).

Em relação a capacitação e educação permanente, embora seja um dos componentes estabelecidos pelo programa, ficou evidenciado sua ausência, tanto pelo governo quanto pela coordenação do cuidado, para o exercício das atribuições profissionais referentes ao programa: “Capacitação mesmo em PSE, em trabalhar com educação, ação nas escolas, eu não me recordo...” (Ana Néri).

Outra questão importante diz respeito a violência urbana, manifestada pelo conflito armado entre agentes policiais e criminosos pertencentes ao narcotráfico local, que são vivenciadas pelos profissionais de saúde na prática do cotidiano das ações do PSE. Esse convívio com a criminalidade expõe os profissionais a um risco pessoal, que produz medo e absenteísmo. Além disso, gera perda de conteúdo e frustração aos estudantes, pela não realização das atividades; e necessidade de reorganização da agenda dos profissionais: “A gente já teve que cancelar várias ações ou ficamos presos em território por causa do conflito...” (Ana Néri).

Por fim, o período pandêmico vivenciado durante a pesquisa, por conta do coronavírus promoveu a suspensão de algumas atividades, incluindo consultas eletivas não prioritárias e atividades coletivas, entre elas as ações do PSE, o que consequentemente afetou os pacientes em cuidados crônicos e os estudantes.

As medidas restritivas ocasionaram o fechamento das escolas, as aulas passaram a ser remotas e as escolas funcionaram apenas para atividades administrativas, como a retirada de material pedagógico e do kit alimentação. Por meio das narrativas dos profissionais de saúde ficou evidenciado que durante esse período houve a paralisação das ações do PSE, o rompimento da relação da saúde com a escola e a ausência de informações sobre os estudantes:

Ficamos completamente afastados, a gente não tinha contato com ninguém, pelo menos foi o que eu percebi, no período de isolamento eu não tive contato nenhuma vez com ninguém da escola, com diretor nem secretaria, ficou todo mundo recolhido e afastado... (Marie Curie)

Categoria 3: “Estratégias adotadas pelos profissionais de saúde na implementação do PSE”

A presente categoria versa sobre as habilidades profissionais concernentes ao planejamento das ações programáticas do PSE e a utilização dos meios disponíveis para superação das limitações impostas pelo cotidiano da prática profissional. Para este efeito, nos apropriamos do termo “estratégia” referentes às ações de cunho profissional para dar relevo às questões que envolvem o componente humano como determinante essencial para implementação das ações de promoção da saúde nas escolas.

Os profissionais foram questionados quanto às estratégias utilizadas para superar os desafios do cotidiano na prática profissional, então, foram extraídos dos discursos os elementos significativos e associados às fragilidades encontradas, conforme disponibilizado no Gráfico 3. Também foi realizado a análise das narrativas, representada na forma de trechos, no intuito de elucidar as estratégias profissionais para implementação do PSE.

Gráfico 3
Elementos significativos acerca das estratégias adotadas conforme as fragilidades

Inicialmente, procuramos compreender o planejamento e a pactuação das ações do PSE. Por meio das narrativas podemos identificar que o planejamento e pactuação das ações ocorrem de duas formas, por escolha da coordenação do cuidado ou intersetorialmente por acordo entre escola e unidade básica de saúde. No primeiro caso, a equipe de saúde da família, fundamentada em seu conhecimento prévio do território, estudantes e dados epidemiológico, decide em reunião de equipe as ações a serem realizadas, buscando conciliar também as necessidades do PSE e outras políticas públicas:

Primeiro a gente faz em reunião de equipe, bola alguma coisa que vai ser feita... vamos supor, a minha área tem muitas crianças e a maioria é evadida das consultas, estão muito faltosas, então a gente combina na reunião de equipe, de fazer uma ação de bolsa família, porque ali além de pesar a gente também houve as queixas e vê cartão de vacina, se está em dia... (Alexandrer Fleming).

A segunda forma de planejamento e pactuação das ações ocorre por meio da solicitação da unidade escolar quando identificadas as necessidades dos estudantes ou para participação de temas abordados pela escola. Esta solicitação ocorre quando há contato com a equipe, por meio telefônico ou durante alguma ação realizada:

Tem direções de escola que já fala, olha estamos notando isso aqui, algum comportamento específico, alguma fragilidade, ou algum tema mesmo que surge nas aulas aí pede, solicita essa parceria, essas ações... (Alice Ball).

Em relação à prática das ações, os profissionais de saúde buscam utilizar estratégias pedagógicas adequadas aos estudantes envolvidos. A secretaria municipalSECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE E DEFESA CIVIL (Rio de Janeiro). Superintendência de Atenção Primária. Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde. Rio de Janeiro: SMSDC, 2011. cuida das crianças e jovens da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos, abordando estudantes de diversas faixas etárias e necessitando de adaptação na comunicação em cada ação:

Para trabalhar com criança, você tem que interagir mais, tem que ter material e tempo para que você possa sentar fazer roda, ensinar com mais calma, é completamente diferente do adolescente que você trabalha fôlderes, você coloca uma peça para mostrar... (Marie Curie).

Uma relevante ação realizada pelos profissionais para manter o acompanhamento integral das crianças consiste na busca ativa em seu território e domicílio. Ao detectar a ausência da criança na unidade básica de saúde ou na escola, e a necessidade de cuidados, os profissionais da clínica da família realizam busca ativa fortalecendo, dessa forma, a rede de proteção:

Quando a gente não consegue realizar as ações, vacinação com a criança no colégio, não consegue ver essa criança porque essa criança não está vindo à clínica nem no colégio, a gente faz busca ativa. (Charles Darwin).

É possível verificar que a presença do serviço de saúde no ambiente escolar permite uma avaliação mais próxima das necessidades de saúde dos estudantes e assim, quando realizado um diagnóstico que demande uma maior intervenção é realizado o agendamento de consulta na unidade básica de saúde ou, em alguns casos, o encaminhamento a profissionais especialistas.

Além disso, a relação intersetorial de apoio, entre a saúde e educação, é fundamental para o cuidado e acompanhamento dos estudantes: “Têm crianças que a diretora orienta os pais que se eles não vierem na consulta eles não vão assistir aula... isso faz com que os pais tragam as crianças...” (Nise da Silveira).

A relação entre os profissionais de saúde e educação é consolidada por meio do planejamento das ações de forma antecipada que possibilita uma melhor adequação dos horários e agendas, satisfazendo ambos os setores. Além da utilização de ferramentas de comunicação que favoreçam o entendimento entre os setores, como telefone e e-mail, sendo referido como o meio mais rápido e eficaz de contato utilizado, o WhatsApp: “Como a gente tem um grupo no WhatsApp com todas as escolas do território a gente tem uma facilidade maior de estar conversando...” (Bertha Becker).

Outras estratégias importantes abordadas referem-se à participação dos familiares nas ações do PSE. Foi relatado pelos profissionais entrevistados a utilização de um espaço de escuta, compartilhamento de saberes e troca de experiências que promovem mudanças eficazes no estilo de vida da comunidade, favorecendo as ações necessárias de promoção e prevenção da saúde, além de fortalecer o vínculo entre a equipe e os usuários:

A nossa fala é uma fala que agride, quando a gente explica que a criança não pode ficar sentada no chão, que a criança precisa estar calçada, que não pode pisar no esgoto, eles acham que a gente está se achando superior e dando uma ordem, mas quando tem uma mãe que passou pela mesma questão e entendeu que realmente deixar o filho sentado na terra, deixar descalço o dia todo realmente faz mal, e que ela resolveu da forma x, aquelas outras mães ouvem mais, então a gente consegue também trazer para esse espaço essa mãe, e dar para essa mãe um espaço de fala e oportunidade delas se ouvirem, porque é bem mais fácil elas se ouvirem do que ouvirem a gente... (Galileu Galilei).

Dada a relevância da participação familiar nas ações de promoção da saúde, a equipe de saúde da família empenha-se nessa proximidade, de forma a promover encontros para orientação dos responsáveis por meio de ajuste da agenda que permite a convergência de seus horários com os da escola e dos responsáveis.

Em relação aos recursos materiais, observou-se que a escassez dos insumos utilizados nas ações de promoção da saúde na escola é suprida pela produção e aquisição própria dos materiais necessários para execução das atividades, conforme abordagem pedagógica realizada. Também relataram a contribuição das escolas com materiais para as ações.

A construção de um relacionamento de cooperação e apoio entre os segmentos da comunidade escolar favorece a concretização e o alcance dos objetivos das atividades propostas. Nesse sentido, um vínculo forte educação-saúde pode traçar, definitivamente, uma trajetória educacional bem-sucedida para os alunos.

No que se refere ao processo de capacitação e educação permanente, a ausência de qualificação dos profissionais pelo programa é suprida pela assistência prestada entre a própria equipe de saúde, que se organiza no propósito de emergir soluções inovadoras, considerando a estrutura, condições, coerência pedagógica e necessidades da escola e dos educandos:

Não tive capacitação... eu lido com crianças... eu não sou odonto pediatra, mas minha colega que trabalha comigo é odonto pediatra e me orientou... aqui um vai ajudando o outro... ela me orientou como ver, avaliar, limpar e orientar as professoras a limpar a cavidade oral... (Nise da Silveira).

Muito dos conhecimentos adquiridos para realização das ações do programa são baseados nas experiências e nas observações das atividades bem-sucedidas realizadas anteriormente ou encontradas na internet, de forma empírica, são utilizadas e aplicadas no cotidiano da prática profissional.

Em relação ao convívio com a violência no território foi relatado pelos profissionais de saúde que nos casos de conflitos é necessário realizar o reagendamento, por meio de um novo contato com a escola e marcação de outra data e horário, adequado a ambos. Nestes casos, verifica-se que o reagendamento causa impactos negativos tanto a rotina da UBS quando para escola e alunos.

Enfim, o período pandêmico no qual houve a suspensão das aulas e o fechamento das escolas, foi resistido estrategicamente pelo vínculo existente entre os profissionais da saúde e os usuários adstritos ao território. A boa relação entre os profissionais de saúde, educação e usuários promove efeitos positivos no estado de saúde dos estudantes, na obtenção de serviços e a satisfação de todos o envolvido.

Considerações finais

A presente pesquisa buscou apreender o processo de implementação do PSE, sob a ótica dos profissionais de saúde, realizado em uma clínica da família, no município do Rio de Janeiro. Verificou-se que as ações desenvolvidas pelos profissionais são, principalmente, referentes a prevenções específicas, centralizadas nas doenças e a disseminação de práticas de higiene e autocuidado, conforme confirmado nos depoimentos. Essas ações de saúde retratam um modelo biomédico-higienista que propicia a desumanização do cuidado à saúde, não considerando aspectos essenciais dos indivíduos, tais como singularidade e subjetividade.

Vista a intenção do programa em ampliar a conexão entre saúde e educação, como um plano para capacitar crianças, jovens e adolescentes quanto ao empoderamento e autonomia dos seus cuidados em saúde, nota-se que o resultado desejado foi o revés do que se esperava. Isso acontece devido à presença de lacunas operacionais, representadas pela ausência de discussões voltadas aos aspectos humanísticos, relacionados às questões de sexualidade na adolescência, gênero, bullying, violência, problemática da homofobia e outras formas de preconceitos, orientação sobre cidadania, entre outros assuntos. Nesse contexto percebe-se, entre os profissionais de saúde, certo desconhecimento dos objetivos e instrumentos normativos relacionado ao PSE, e com isso, as ações que poderiam efetivamente contribuir para o desenvolvimento do indivíduo e da comunidade.

Quanto ao planejamento das ações, embora houvesse uma tentativa de definir essa temática de forma conjunta, quando acontece, não configura ações intersetoriais, mas de parceria, divisão de tarefas e planejamento fragmentado. No entanto, foram observadas crescente receptividade e aproximação da comunidade escolar com a equipe de saúde, algumas vezes, aproximando também os familiares dessas ações.

Em relação às fragilidades relatadas pelos profissionais, encontramos a falta e não adequação dos recursos materiais, falta de capacitação ou educação permanente para as ações do programa e a violência no território. Esses fatores estão vinculados ao atual momento político-econômico que vivemos, sob a política de globalização neoliberal. Com isto temos, por meio da teoria do Estado mínimo, o subfinanciamento dos serviços, sucateamento das instalações, vínculos precários de trabalho, sobrecarga de trabalho e, consequentemente, diminuição da qualidade da atenção prestada.

Em relação ao período pandêmico, a estratégia abordada pelo município do Rio de Janeiro para garantir o conteúdo disciplinar foi o desenvolvimento do aplicativo Rioeduca em Casa, possibilitando a realização de aulas on-line e chats, e disponibilizando aulas gravadas e materiais pedagógicos digitais para todos os alunos e professores da rede municipal. No entanto, verificou-se que não houve conhecimento nem utilização dessas ferramentas pelo setor da saúde, que não dialogou nem promoveu qualquer ação de promoção da saúde, seja relacionada à prevenção ao novo coronavírus ou aos cuidados em saúde, principalmente em um momento tão oportuno. Isto evidenciou uma fragilidade na relação de cuidado das crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde, comprovada por meio da ruptura da relação da saúde e educação.

Isto posto, podemos inferir, por meio deste estudo, possíveis caminhos para a melhoria da implantação do PSE. Em algumas propostas, a intervenção estaria mais ligada ao papel do Estado, que deve dialogar com a prática das ações de promoção da saúde; em outras, a atuação dos profissionais de saúde, que deve ser transformada para que as reais necessidades da população sejam alcançadas.

Referências

  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
  • BRASIL. Decreto n° 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa de Saúde nas Escolas. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. (2007a).
  • BRASIL. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
  • BRASIL. Ministério da Saúde, Ministério da Educação. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Cadernos temáticos do PSE – Saúde Ocular. Brasília, 2016.
  • BRASIL. Ministério da Saúde, Ministério da Educação. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Caderno do gestor do PSE. Brasília, 2015.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Calendário da Saúde, 2022. Página inicial. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/c/calendario-da-saude/calendario-da-saude>. Acesso em: 9 fev. 2023.
    » https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/c/calendario-da-saude/calendario-da-saude
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde - CNS, 1986, Brasília. Relatório final. Brasília, 1986.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Escolas Promotoras de Saúde: experiências no Brasil. Brasília. 2007b.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Escolas Promotoras de Saúde: experiências do Brasil. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde nas Escolas. Brasília, 2009a. (Série Cadernos de Atenção Básica; n. 24).
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica : obesidade / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – Brasília : Ministério da Saúde, 2014 – Cadernos de Atenção Básica, n. 38.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde do adolescente: competências e habilidades. Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2008.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Programa crescer saudável 2019/2020, Instrutivo. Brasília, 2019.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): Anexo I da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017, que consolida as normas sobre as políticas nacionais de saúde do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2018. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_promocao_saude.pdf.
    » https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_promocao_saude.pdf.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Temático Promoção da Saúde IV. Brasília: OPAS, 2009b.
  • BRASIL. Portaria Interministerial nº 1.055, de 25 de abril de 2017. Redefine as regras e os critérios para adesão ao Programa Saúde na Escola - PSE por estados, Distrito Federal e municípios e dispõe sobre o respectivo incentivo financeiro para custeio de ações. Brasílila, 2017.
  • BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
  • BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
  • CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cadernos e Saúde Pública, v. 20, n. 5, p. 1400–1410, 2004.
  • CUTOLO, L. R. A. Modelo Biomédico, reforma sanitária e a educação pediátrica. Arquivos Catarinenses de Medicina, Paraná, v. 35, n.4, p. 16-24, 2006.
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª edição. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.
  • PAGLIOSA, F. L; ROS, M. A. O Relatório Flexner: para o Bem e para o Mal. Revista Brasileira de Educação Médica, p. 492-499. 2008.
  • SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE E DEFESA CIVIL (Rio de Janeiro). Superintendência de Atenção Primária. Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde. Rio de Janeiro: SMSDC, 2011.
Editora responsável: Tatiana Wargas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    29 Ago 2023
  • Revisado
    22 Ago 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br