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Brincadeiras-espetáculo: modos de brincar compartilhados no YouTube

Spectacle-playing: ways of playing shared on YouTube

Resumo

O brincar é fundamental à saúde da criança, e nas últimas décadas ele foi atravessado pelas novas tecnologias digitais, conformando novos modos de subjetivação. O objetivo deste trabalho foi investigar os modos de brincar compartilhados através de vídeos on-line. A partir de busca com o termo “brincando” no YouTube, selecionamos 100 vídeos submetidos a uma análise de conteúdo categorial. A homogeneização, a mercadorização e a monetização atravessam os modos de brincar no contexto dos vídeos. Utilizamos as categorias: tela-brinquedo, brincadeiras de ter e brincadeira espetáculo, sendo este último o corolário dos anteriores. Analisamos que o brincar, neste contexto, é produzido para um outro, moldado e editado para ser legitimado, além de estar colonizado por valores individualistas, estando praticamente ausentes a criatividade e a espontaneidade do brincar.

Palavras-chave:
Jogos e Brinquedos; Criança; Internet

Abstract

Playing is fundamental to children's health and in the last decades it has been crossed by the new digital technologies, shaping new manners of subjectivation. This paper aims to investigate the manner of play shared through online videos. Using "play" as a keyword in YouTube, we selected the top hundred videos which were the submitted to a categorical content analysis. Homogenization, commodification, and monetization cross the ways of playing in the context of the videos. We utilize the categories of screen-toy, playing of having possessions and spectacle-playing, the latter being the corollary of the former two. We analyzed that playing, within this context, is performed for another, shaped and edited to be legitimated, in addition to being colonized by individualistic values, with creativity and spontaneity in play being practically absent.

Keywords:
Play and Playthings; Child; Internet

Introdução

Este trabalho analisa o brincar das crianças em sua relação com as mídias digitais, tema complexo e com muitas nuances. Elegemos os trabalhos do psicanalista Donald Winnicott e do filósofo Walter Benjamin para nos guiar sobre o entendimento do que é brincar. Os dois autores apontam que a brincadeira tem um papel central na construção das culturas infantis (Sekkel, 2016SEKKEL, M. C. O brincar e a invenção do mundo em Walter Benjamin e Donald Winnicott. Psicologia USP, v. 27, n. 1, p. 86-95, 2016.). Para Winnicott (1975), o brincar e a criatividade andam juntos na constituição subjetiva e desenvolvimento da criança, pois é através do brincar que as crianças elaboram suas experiências, constituem sua identidade e compreendem o mundo o qual pertencem. Já para Benjamin (1984), o brincar tem a marca da criatividade e da liberdade, devendo ser experimentado com tempo e dedicação. A infância, para o autor, é uma categoria social, histórica e cultural e, por isso, é composta pela forma como é experimentada pelo sujeito criança, não podendo, portanto, ser entendida como uma categoria universal e unicamente biológica.

Os dispositivos móveis (tablets, smartphones etc.) facilitaram a capilarização da Internet no universo lúdico infantil. Dados mais recentes da Pesquisa TIC Kids Online Brasil informam que temos aproximadamente 25 milhões de crianças e adolescentes (entre 9 e 17 anos) usuárias de internet, as quais 96% fazem uso diário (NIC.br, 2023). Em 2020, 55% dessa população acessou vídeos produzidos por influenciadores digitais (NIC.br, 2021) e em 2022, 82% utilizaram a internet para assistir vídeos, programas, filmes ou séries on-line. Dessa forma, olhar para o modo como o brincar é mostrado nas mídias digitais se torna relevante na medida em que há uma forte presença da Internet no cotidiano das crianças brasileiras.

Dentre os mais diversos conteúdos on-line que as crianças assistem, o YouTube se destaca (Lange, 2014LANGE, P. Kids on YouTube Technical Identities and Digital Literacies. Walnut Creek: Left Coast Press, 2014.), aparecendo como o site favorito entre as crianças para ver vídeos on-line (Marsh, 2014MARSH, J. The Relationship between Online and Offline Play. In: RICHARDS, C.; BURN, A. (Org.). Children 's Games in the New Media Age: Childlore, Media and the Playground. Burlington: Ashgate, 2014. p. 109-131.). Em 2021, 72% das crianças entre 0 e 12 anos acessavam essa mídia (Mobile Time; Opinion Box, 2021). Os vídeos protagonizados por crianças, os chamados youtubers mirins, destacam-se entre os conteúdos voltados para o público infantil. São horas e horas disponíveis na plataforma de crianças brincando de casinha, fazendo corridas de carros, “lutinhas” entre seus super-heróis de plástico, massinha e contando histórias. Os youtubers crianças, ao compartilharem seus cotidianos, suas opiniões, os lugares que frequentam e seus bens materiais, constroem narrativas sobre os modos de ser criança e trazem as marcas de seu contexto sociocultural (Tomaz, 2019TOMAZ, R. O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade. Salvador: Editora da UFBA, 2019.).

Várias pesquisas apontam que os conteúdos disseminados pelo YouTube fazem parte da constituição da cultura lúdica na contemporaneidade, seja pelas crianças que, ao assistirem aos vídeos, reproduzem o que assistem em suas brincadeiras, seja pelos youtubers que integram elementos de sua cultura lúdica local aos seus conteúdos (Araújo, 2021ARAÚJO, C. O YouTube como um lugar possível para se pensar as infâncias. Dissertação (Mestrado em Educação) -Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2021.; Dalethese, 2017DALETHESE, T. Faz de conta que todos nós somos youtubers: crianças e narrativas contemporâneas. Dissertação (Mestrado em Educação) -Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2017.; Denucci, 2020DENUCCI, M. Infância, YouTube e Subjetividade: análise de publicações do youtuber Luccas Neto sob a ótica das teorias de aprendizagem voltadas ao desenvolvimento infantil. Dissertação (Mestrado em Cognição e Linguagem) -Campos dos Goytacazes: Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, 2020.; Meira, 2021MEIRA, K. “Clica aqui no meu canal!”: mediações e produções de sentidos do consumo para meninas no YouTube. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) -São Paulo: Universidade de São Paulo, 2021.; Ribeiro, 2020RIBEIRO, A. L. Quem não conhece o YouTube? Uma perspectiva participativa das práticas de crianças em plataforma de vídeos online. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2020.; Tomaz, 2019TOMAZ, R. O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade. Salvador: Editora da UFBA, 2019.). Por exemplo, Fantin e Muller (2017FANTIN, M.; MULLER, J. As crianças, o brincar e as tecnologias. In: SCHLINDWEIN, L. M.; LATERMAN, I.; PETERS, L. (Org.). A criança e o brincar nos tempos e espaços da escola. Florianópolis: NUP, 2017. p. 175-200.) perceberam a presença de elementos originários da cultura digital no repertório lúdico de crianças no contexto da Educação Infantil. Deste modo, podemos pensar que a Internet é um lócus de produção de subjetividade que atravessa os modos de brincar das crianças que as assistem (Cairoli, 2010CAIROLI, P. A Criança e o Brincar na Contemporaneidade. Revista de Psicologia da IMED, v. 2, n. 1, p. 340-348, 2010.). Entendemos aqui produção de subjetividade, nos moldes da perspectiva foucaultiana (Foucault, 1996FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996.), como a constituição do sujeito a partir das forças que o atravessam. Em outros termos, trata-se de uma construção advinda das relações de poder presentes em dado momento histórico imbricadas com as diversas tecnologias que operam em cada período.

Ainda que haja investigações sobre o atravessamento do YouTube na subjetividade das crianças e sobre os discursos produzidos pelos youtubers crianças (Almeida, 2016ALMEIDA, C. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. 6, n. 23, p. 155-184, 2016.; Alves; Naka; Freitas, 2017ALVES, L.; NAKA, A.; FREITAS, A. J. Mídia, consumo e infância: Um estudo sobre a influência da youtuber mirim brasileira Juliana Baltar para o consumo infantil. Anais do III Seminário Regional Comércio, Consumo e Cultura nas Cidades. Anais... Editora Poisson, 2017.; Brayer, 2019BRAYER, J. Construindo identidades infantis em uma “nação corderosadora”: gênero, classe social e raça em vídeos do Youtube. Dissertação (Mestrado em Educação) -Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande, 2019.; Dalethese, 2017DALETHESE, T. Faz de conta que todos nós somos youtubers: crianças e narrativas contemporâneas. Dissertação (Mestrado em Educação) -Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2017.; Tomaz, 2019TOMAZ, R. O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade. Salvador: Editora da UFBA, 2019.), há poucas publicações sobre o tema no campo da Saúde Coletiva. Sarmento (2004SARMENTO, M. J. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. (Org). Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Asa, 2004. p. 9-34., p. 9) nos fala que atualmente há uma "pluralização dos modos de ser criança", e entende que se debruçar sobre as novas gramáticas da cultura infantil é um terreno fértil para compreender as mudanças complexas da contemporaneidade que tem impacto indiscutível na subjetividade das crianças. Tal contexto motivou a construção da pesquisa de doutoramento na qual as análises deste artigo são parte.

Portanto, considerando (1) a presença do YouTube no cotidiano de muitas crianças; (2) que as brincadeiras publicadas em vídeos são constituintes das culturas lúdicas na atualidade e (3) a importância do brincar para a subjetividade das crianças, temos como objetivo investigar os modos de brincar compartilhados através de vídeos on-line.

Metodologia

Trata-se de um estudo documental constituído por um acervo digital. Entre tantos recortes possíveis, elegemos os vídeos protagonizados por crianças e compartilhados no YouTube, nos quais meninas e meninos brincam diante das câmeras. Consideramos as mídias digitais como fontes documentais de pesquisa, pois se destacam como um lócus de expressão/construção de manifestações sociais, auxiliando no entendimento e contextualização das mudanças que testemunhamos na contemporaneidade (Carvalho, 2014CARVALHO, B. Faça aqui o seu login: os historiadores, os computadores e as redes sociais online. Revista História Hoje, v. 3, n. 5, p. 165-188, 2014.).

No dia 24 de abril de 2022, realizamos a busca utilizando a palavra-chave “Brincando” no mecanismo de busca do YouTube. Destacamos que, no momento da pesquisa, o YouTube não mais disponibilizou quantidade de resultados, apresentando-os através de uma “rolagem infinita”. Tal situação impôs a necessidade de definir critérios de amostra deste acervo. Nesse sentido, verificamos que sites como Google e outros (ONG; AHREFS, 2022; SocialBlade, 2022) costumam dar destaque para informações em torno dos 100 primeiros resultados. Murugiah et al. (2011MURUGIAH, K. et al. YouTube as a source of information on cardiopulmonary resuscitation. Resuscitation, v. 82, n. 3, p. 332-334, 2011.) apontam que os usuários do YouTube não costumam ver mais de 100 resultados. Assim, entendendo que “top 100” é uma estratégia de recorte utilizada pelo campo digital diante da enormidade de dados e que tais conteúdos possuem maior possibilidade de serem assistidos, decidimos construir um “top 100 vídeos de crianças brincando”.

A busca foi realizada em um navegador anônimo do Google Chrome na tentativa de minimizar os efeitos dos algoritmos no resultado. Nessa direção, aplicamos o filtro “classificar por” na opção “contagem de visualizações” pois trata-se de critérios conhecidos da plataforma para dar visibilidade e valorar o conteúdo. Selecionamos como critérios de inclusão: a brincadeira ser o tema principal do vídeo, a presença de pelo menos uma criança envolvida diretamente na brincadeira e que esta fosse brasileira.

Assim, assistimos aos vídeos na ordem apresentada e conforme se adequassem aos critérios foram incluídos em uma planilha no Microsoft® Office Excel contendo as seguintes informações: link do vídeo, título, data de publicação e quantidade de visualizações, “gostei” e “não gostei”, ao todo foram assistidos 157 vídeos para serem selecionados 100. Destacamos que a seção de comentários não foi analisada pois, embora haja menção em alguns vídeos para que os usuários interajam por lá, em 2019, houve um acordo com a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) que desativou a possibilidade de comentar em vídeos classificados como “conteúdos para crianças”.

Os vídeos foram assistidos na íntegra e as informações foram inseridas de acordo com as unidades de codificação, divididas em subgrupos de análise: atuação e caracterização das crianças e dos adultos, caracterização das brincadeiras e as lógicas da plataforma. Abordaremos, neste artigo, os achados das últimas duas, de acordo com as unidades de codificação apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1
Codificação

Os vídeos foram submetidos a uma análise de conteúdo categorial, baseada principalmente na metodologia apresentada por Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Levamos em consideração as informações audiovisuais e linguagens verbais e não-verbais. Para esta etapa, nos guiamos pela seguinte pergunta de pesquisa: Como os modos de brincar são compartilhados através dos vídeos de brincadeiras protagonizados por crianças no YouTube?

Não houve necessidade de submeter a pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa, pois trata-se de uma pesquisa documental de dados de acesso público e irrestrito (Brasil/MS/CNS, 2016; CEP/ENSP/Fiocruz, 2020). Apesar do conteúdo dos vídeos ser um dado público, protegemos a identidade dos usuários que foram analisados, pois, além de ser uma postura ética e que dialoga com uma lógica de proteção da privacidade e sigilo das informações, responde aos “Termos de serviço” da plataforma (YouTube, 2022). Para tanto, não foram mencionados os canais, os títulos dos vídeos ou nome dos youtubers. Ademais, quando os trechos transcritos ou textuais citaram tais informações, estas foram substituídas pela sua descrição em colchetes.

Figura 1
Fluxograma dos caminhos metodológicos utilizados

Resultados e Discussão

No total, foram visualizadas 16h54min de vídeos. Os vídeos possuem duração mínima de 2:52 e máxima de 1 hora. Foram publicados entre os anos de 2016 e 2021 e, em 24 de abril de 2022, tinham entre 7 milhões e 236 milhões de visualizações. Os vídeos foram publicados por 29 canais diferentes. Em 49% dos vídeos, há apenas uma criança protagonista, 45% duas crianças (em geral, irmãos) e 6% com mais crianças. As crianças que protagonizaram os vídeos tinham em média 7 anos de idade, sendo a mais nova 2 anos e a mais velha 12 anos. As idades foram estabelecidas a partir de algumas estratégias: data de nascimento dos protagonistas encontrada em entrevistas e reportagens e ano e idade informados em algum vídeo do canal de comemoração de aniversário. Sobre os temas das brincadeiras, foram divididos em 10 categorias, descritas no Quadro 2. Os modos de brincar foram divididos, por sua vez, em três categorias: a tela-brinquedo, as brincadeiras de ter e a brincadeira espetáculo, sendo esta última o corolário das anteriores.

Quadro 2
Temáticas das brincadeiras

A tela-brinquedo: a homogeneização do brincar

As infâncias na atualidade estão imersas em um universo de imagens, fortemente influenciadas pelos conteúdos digitais (Levin, 2007LEVIN, E. Rumo a uma infância virtual? A imagem corporal sem corpo. Petrópolis: Vozes, 2007.). A começar pelo “tempo” da brincadeira, que fica circunscrita ao espaço destinado pela plataforma em disseminar conteúdos, 70% foram vídeos de até 10 minutos, um tempo muito breve quando se trata do brincar de crianças entre 6 e 9 anos, que foram a maioria das protagonistas. Outra expressão disto, é a maneira como é feita a edição. As cenas são passadas rapidamente, principalmente naqueles em que as crianças exploram um lugar, podemos ver brevemente as crianças interagindo com brinquedos, ou realizando atividades. Aqui também incluímos o uso constante de uma ferramenta que acelera os vídeos, usada quando as crianças estão montando algo ou fazendo uma atividade que é mais demorada. Entendemos que tais edições provavelmente são realizadas por adultos. Em alguns casos, a edição é tão frenética que foi preciso assistir várias vezes para realizar a descrição das atividades apresentadas. Como, por exemplo, no vídeo 1, no qual acompanhamos duas crianças e seus pais em uma loja de brinquedos, neles são mostrados a breve exploração de vários brinquedos como cama elástica, carrinho elétrico, casinha de plástico, mesa de totó, patinete, cesta de basquete, arcade em miniatura. Por fim, o adulto finaliza o vídeo convidando os usuários a interagirem pelas ferramentas da plataforma (like, inscrição, ativar o sininho e comentários).

Ademais, se trata de narrativas descontinuadas com textos curtíssimos, sendo um reflexo das mudanças de narrativas da contemporaneidade cada vez mais rápidas e com uma capacidade reduzida de elaboração do vivido (Meira, 2003MEIRA, A. M. Benjamin, os brinquedos e a infância contemporânea. Psicologia & Sociedade, v. 15, n. 2, p. 74-87, 2003.). São vídeos que refletem como a relação espaço-tempo foi modificada e os efeitos subjetivos recolhidos disso não são poucos, pois para brincar é necessário um tempo para a elaboração psíquica e imaginação.

Para Birman (2014BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.), testemunhamos uma fragilização do registro do tempo, comprometendo a simbolização e a capacidade de afetação, evidenciando uma anulação do campo do pensamento e das reflexões. Deste modo, a experiência passa a restringir o aqui e agora, perdendo seu poder simbólico. Assim o “bombardeio sensorial” - imagens e sons fragmentados e frenéticos -, ao qual as crianças são expostas cotidianamente no uso de telas e Internet deixa pouco espaço para que os elementos lúdicos sejam apropriados pela criança, não sendo acompanhados por recursos simbólicos (Jerusalinsky, 2017JERUSALINSKY, J. Que rede nos sustenta no balanço da web? - O sujeito na era das relações virtuais. In: JERUSALINSKY, J.; BAPTISTA, A. (Org.) Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017. p. 13-38.). Para Levin (2007LEVIN, E. Rumo a uma infância virtual? A imagem corporal sem corpo. Petrópolis: Vozes, 2007.), a tela-brinquedo é um objeto que não convoca a potência do brincar por não operar como uma “experiência de ausência”, tendo em vista que, ao oferecer todos os elementos para a brincadeira, não proporciona o vazio a partir do qual a criança pode construir seus próprios recursos anímicos para lidar com as novidades, conflitos e angústias da vida (Gueller, 2017GUELLER, A. Droga de celular! Reflexões psicanalíticas sobre os usos de eletrônicos. In: BAPTISTA, A.; JERUSALINSKY, J. (Org.) Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017. p. 63-77.).

Nos vídeos, há um uso recorrente de intervenções gráficas digitais ao longo das brincadeiras. Um dos recursos principais é a inserção de elementos ilustrativos do humor ou pensamento das pessoas em cena, tais como lâmpadas para indicar que a criança teve uma ideia ou corações para indicar que pessoa gostou de uma determinada situação. Há também a inserção de elementos relacionados às falas, quando, por exemplo, estão sendo enumerados os itens de um cardápio em uma encenação de restaurante ou uma criança que diz em seu vídeo que irá comer muito chocolate. Também vemos os elementos gráficos serem usados como apoio para a narrativa da brincadeira, como, por exemplo, no vídeo 2, em que mãe e filha estão brincando em um castelo de plástico e passa um "tornado" digital derrubando este. A mãe que está dentro do castelo aparece se sacudindo. Destacamos que os efeitos são muito parecidos, deixando os vídeos com um visual muito semelhante entre si.

Podemos observar, principalmente nos vídeos que fazem parte de canais que contribuíram com mais de um conteúdo para o nosso corpus de análise, a tentativa da criação de bordões. Vemos a utilização de vocativos relacionados a audiência como: “oi, galerinha do YouTube” ou “Tchau, pessoal” e na despedida de vídeos com textos que se repetem literalmente, por exemplo “dá joinha pra valer" e “beijinhos no coração, tchau, tchau e até o próximo vídeo”. Na maioria dos vídeos, as crianças youtubers fazem apelos à audiência para interagir com as ferramentas da plataforma, seja através da fala “Gente se inscreve no canal, aperte o sininho e dê um like!”, seja pelo uso de animações gráficas com botões de “inscreva-se” ou “deixa o joinha”. A interação com a audiência se restringe a explorar essas ferramentas em quase todos os vídeos, alguns questionam se os interlocutores estão gostando do conteúdo ou a votarem por meio dos comentários.

Miranda (2017MIRANDA, N. “Beijos Monstruosos e Eletrizantes”: os direitos à Provisão, à Proteção e à Participação no canal de Julia Silva no YouTube. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2017.), ao analisar as temáticas abordadas pelos canais de crianças com mais inscritos, encontrou também uma homogeneidade. A forma de edição, os elementos gráficos, os bordões, as temáticas, entre outros, partem da construção de um visual dos "conteúdos para crianças" veiculados no YouTube, pois não há uma preocupação em apresentar uma linguagem original ou artística com tal uso. São vídeos coloridos, autoexplicativos, com imagens reiterativas e cenas breves. Entendemos que tais características correspondem à linguagem do “gênero YouTube” (Maingueneau, 2016MAINGUENEAU, D. Gêneros do discurso e web: existem os gêneros web? Revista da ABRALIN, v. 15, n. 3, p. 135-160, 2016.).

Na pós-produção também são inseridos sonoplastias e trilhas sonoras. Ambas também são muito homogêneas entre os vídeos que utilizam tais recursos. Em alguns vídeos, encontramos a referência do aplicativo utilizado para os efeitos visuais e as músicas das trilhas sonoras na descrição. Apostamos que a utilização em larga escala dos recursos aqui mencionados é fruto da popularização de certos softwares e aplicativos de edição, pois é evidente que se trata de uma aplicação amadora dos efeitos visuais e sonoros, assim como dos cortes realizados na edição. Todavia, tais recursos são, provavelmente, manejados por adultos, indicando um investimento dos pais na adequação do conteúdo a linguagem própria da plataforma.

A homogeneidade aqui descrita indica que a criatividade, a singularidade e a potência simbólica próprias do brincar parecem ser plasmadas pelo “gênero YouTube”, tanto das crianças que assistem quanto das youtubers, restringindo ainda mais os modos de brincar compartilhados na plataforma. Podemos entender que os vídeos de brincadeiras compartilhados no YouTube funcionariam como “brinquedos prontos” (Sekkel, 2016SEKKEL, M. C. O brincar e a invenção do mundo em Walter Benjamin e Donald Winnicott. Psicologia USP, v. 27, n. 1, p. 86-95, 2016.). Aqui, realizamos um paralelo com a crítica feita por Benjamin (1984BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.) à industrialização dos brinquedos, pois ofertar objetos já "prontos", sem memória e homogêneos retira a grande potência do brincar, que é a criação. Como no vídeo em que uma menina apresenta seu boneco de uma marca bem popular entre as crianças e seus itens na caixa.

Neste artigo, apostamos que o valor de um brinquedo está na sua capacidade simbólica, que dialoga com as dimensões da liberdade e criatividade, que são as marcas da experiência do brincar (Benjamin, 1984BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.; Winnicott, 1975WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.). Porém, nestes vídeos centrados no objeto o brinquedo passa a responder às lógicas de mercado e não às lógicas do brincar. Essa visão se articula com as ideias de Levin (2007LEVIN, E. Rumo a uma infância virtual? A imagem corporal sem corpo. Petrópolis: Vozes, 2007.), de que as crianças diante das mídias eletrônicas não brincam e sim inter-agem. O autor escolhe essa grafia para destacar que não é uma interação, na qual há uma reciprocidade, e sim que a criança age em relação ao dispositivo, desempenhando um papel pré-definido. Ou seja, as brincadeiras que passam pela Internet são constrangidas às possibilidades pré-determinadas pelos desenvolvedores de jogos e produtores de conteúdo (Cairoli, 2010CAIROLI, P. A Criança e o Brincar na Contemporaneidade. Revista de Psicologia da IMED, v. 2, n. 1, p. 340-348, 2010.).

Refletindo sobre como pessoas "comuns" e seus cotidianos vem ganhando os holofotes na sociedade contemporânea, Sibilia (2008SIBILIA, P. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.) aponta que: "mediante uma incitação permanente à criatividade pessoal, à excentricidade e à procura constante da diferença, não cessa de produzir cópias e mais cópias descartáveis do mesmo” (p. 9). Podemos relacionar tal percepção com a obra de Benjamin (2018BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM Editores, 2018.) sobre a era reprodutibilidade técnica, na qual testemunhamos a substituição da essência única pela existência serial.

No entanto, é preciso considerar, como nos lembra Jerusalinsky (2017JERUSALINSKY, J. Que rede nos sustenta no balanço da web? - O sujeito na era das relações virtuais. In: JERUSALINSKY, J.; BAPTISTA, A. (Org.) Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017. p. 13-38.), que as inovações tecnológicas sempre foram recebidas com ambiguidade pela humanidade: se de um lado provocam fascínio, do outro lado amedrontam pela imprevisibilidade de seus efeitos no cotidiano. As novas tecnologias digitais, que não são mais tão novas assim, não se furtam desse dilema. Quando falamos sobre os efeitos dessas em crianças, essas questões se aprofundam e geram posicionamentos dos mais diversos, estimulando estudos sobre os riscos e benefícios para o uso nesta faixa etária.

As brincadeiras de ter: a mercadorização do brincar

Em 31% dos vídeos analisados, os temas principais giravam em torno de objetos-brinquedo, variando de bonecas, peças de montar, piscina de plástico, até a placa de um milhão de inscritos entregue pelo YouTube. Em vários momentos, as crianças mostram e dizem a marca do brinquedo e detalhes dos modelos. Em alguns vídeos é possível verificar a indicação sobre onde comprar um brinquedo "igual". O vídeo 3 mostra um menino apresentando um Lego® temático, explica as peças exclusivas, monta um cenário como indicado na caixa e finaliza com uma breve narrativa utilizando os personagens em conjunto com o pai. Também podemos encontrar aqui os polêmicos vídeos de unboxing (Andrade, 2019ANDRADE, M. Comunicação, consumo e diversão nos vídeos unboxing: a publicidade e a criança conectada. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo) -São Paulo: Escola Superior de Propaganda e Marketing, 2019.; Miranda, 2017MIRANDA, N. “Beijos Monstruosos e Eletrizantes”: os direitos à Provisão, à Proteção e à Participação no canal de Julia Silva no YouTube. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2017.; Papini, 2016PAPINI, A. B. A publicidade infantil em canais de Youtubers mirins. Dissertação (Mestrado em Comunicação) -São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2016.; Silva; Santos, 2019SILVA, M. C.; SANTOS, L. Aprendendo a ser menina: publicidade infantil, gênero, e identidade em Youtuber mirim. Educação, Psicologia e Interfaces, v. 3, n. 4, p. 52-66, 2019.), nos quais as crianças apenas abrem as caixas de brinquedos comprados ou enviados por empresas.

Oliveira (2008OLIVEIRA, M. R. O brincar na sociedade de consumo: em busca da superação da lógica de padronização e propriedade do brinquedo. Revista Eletrônica de Educação, v. 1, n. 1, p. 1-14, 2008. Disponível em: https://web.unifil.br/docs/revista_eletronica/educacao2/4-O%20BRINCAR%20NA%20SOCIEDADE%20DE%20CONSUMO.pdf. Acesso em: 3 maio 2024.
https://web.unifil.br/docs/revista_eletr...
, p. 1) coloca que vivenciamos mudanças sociais e econômicas que afetaram a concepção de infância, o tipo de brinquedo e o próprio conceito de brincar, entre elas: "[...] a busca incansável pelo consumo, a valorização do TER em detrimento do SER". Nesses vídeos, observamos o que chamamos de “brincadeiras de ter”. Assim, pouco a pouco a ideia de ter um brinquedo ou até mesmo de pagar para ir a determinado “lugar divertido” são associados a alegria e satisfação (Silva; Santos, 2019SILVA, M. C.; SANTOS, L. Aprendendo a ser menina: publicidade infantil, gênero, e identidade em Youtuber mirim. Educação, Psicologia e Interfaces, v. 3, n. 4, p. 52-66, 2019.), confundindo o ato de consumir/comprar com o brincar (Papini, 2016PAPINI, A. B. A publicidade infantil em canais de Youtubers mirins. Dissertação (Mestrado em Comunicação) -São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2016.). Almeida (2016ALMEIDA, C. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. 6, n. 23, p. 155-184, 2016.) aponta que a perversidade de tal contexto, no caso dos vídeos de youtubers mirins, reside no fato de que as crianças tendem a confiar nas informações compartilhadas por seus pares, intensificado a partir da construção de uma proximidade entre produtores de conteúdos e audiência típica do “gênero YouTube”.

A interação com o público é uma linguagem comum nos vídeos compartilhados no YouTube (Silva; Santos, 2019SILVA, M. C.; SANTOS, L. Aprendendo a ser menina: publicidade infantil, gênero, e identidade em Youtuber mirim. Educação, Psicologia e Interfaces, v. 3, n. 4, p. 52-66, 2019.), as crianças protagonistas dos vídeos convidam a audiência a opinar sobre os objetos mostrados em tela, inscreverem-se no canal, apertar o botão gostei etc. Também utilizam os bordões próprios de cada canal, chamando os usuários como “galerinha do YouTube”; “pessoal”. Entendemos que se trata de uma estratégia para construir um sentimento de proximidade e intimidade.

A interação explícita entre as crianças dos vídeos e as crianças-audiência, não é para um brincar junto ou aprender a brincar. São, majoritariamente, brincadeiras para serem "gostadas", "curtidas" e que incentivem a inscrição no canal. Sabemos que esta é uma das facetas das mudanças nas subjetividades testemunhadas na virada do século XXI nas sociedades ocidentais, que transformaram os modos de ser, incitando a construção de si a partir de olhares alheios (anônimos e potencialmente infinitos).

Assim, podemos inferir que os modos de brincar ali representados estão altamente imbricados com a publicização de si e com o retorno financeiro, tendo um importante caráter comercial e, neste sentido, a atividade lúdica, própria do brincar espontâneo se perde.

A brincadeira-espetáculo: a monetização do brincar

Todos os vídeos que compõem nosso corpus de análise foram monetizados, o que significa que fazem parte do Programa de Parcerias do YouTube (YPP), participando da receita dos anúncios que são exibidos ao longo dos vídeos. Apesar de serem vídeos de “brincadeiras”, estes apresentam uma certa profissionalização e uma ausência de espontaneidade, além da presença de logos, edição e referências comerciais. Dito isto, as crianças demonstram, em todos os vídeos, terem consciência de que estão sendo gravadas seja por olhares que cruzam a lente, falas direcionadas à audiência ou objetos mostrados para câmera. Assim, em vez de brincadeiras espontâneas registradas casualmente, o que assistimos nos vídeos são fruto de uma rotina de gravações e permeadas pelo interesse de engajamento do vídeo (aumentar as visualizações, likes etc.), na expectativa de geração de renda.

Há também uma constante referência aos perfis/páginas das crianças no Instagram, principalmente, mas também no Facebook, Spotify etc. Além de referências aos canais que fazem parte da mesma “família”, podendo ser subdivisões de um núcleo familiar ou canais com outros temas. Ademais, a rede de influências das crianças produtoras de conteúdo se espalha para experiências fora das telas, pois vemos convites para encontros presenciais e divulgação de produtos cuja marca é o canal em questão (ex: livros, roupas, bonecos etc.).

Segundo Tomaz (2017TOMAZ, R. A sociabilidade automatizada das crianças brasileiras nas redes sociais [Entrevista concedida a] Amanda Antunes. Desidades, v. 5, n. 17, p. 35-46, 2017., p. 36-7), o brincar compartilhado no YouTube se distingue das brincadeiras tradicionais “porque elas vão ser feitas para alguém ver. Nessa infância familiarizada com as redes sociais, as crianças estão o tempo todo brincando com a câmera ligada”. O que se articula com a fabricação de subjetividade visíveis e conectadas, como nos fala Sibilia (2015aSIBILIA, P. O universo doméstico na era da extimidade: Nas artes, nas mídias e na internet. Revista Eco-pós, v. 18, n. 1, p. 133-147, 2015a.). Podemos dizer que as brincadeiras exibidas nos vídeos por nós analisados - usamos exibir justamente para trazer a dimensão da plateia pressuposta e valorizada nesse tipo de conteúdo - estão colonizadas pela lógica da plataforma YouTube.

Miranda (2017MIRANDA, N. “Beijos Monstruosos e Eletrizantes”: os direitos à Provisão, à Proteção e à Participação no canal de Julia Silva no YouTube. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2017., p. 119) considera as brincadeiras no YouTube como uma performance para as câmeras, na qual a relação entre brincar e trabalho ficam imiscuídos: a expressão do mundo interno da criança dá lugar a “[...] um tipo de gerenciamento de imagem que busca agradar e firmar laços com uma vasta audiência".

Talvez estejamos testemunhando uma radicalização do que Guy Debord (2005DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.) descreveu como a sociedade do espetáculo, agora expressa de forma muito precoce em um aspecto tão caro, a subjetividade das crianças. Nessa direção, apostamos tratar-se de "brincadeiras-espetáculo" que se diferem ontologicamente do que consideramos uma brincadeira. Trazemos esse termo inspirados no trabalho de Miranda e Miranda (2020MIRANDA, L. M.; MIRANDA, L. Risco-espetáculo: novas modalidades do risco na era digital. Revista de Psicologia, v. 12, n. 1, p. 141-155, 2020.) sobre o conceito de risco-espetáculo em vídeos de crianças e adolescentes que fazem desafios diante das câmeras e compartilham na plataforma YouTube. Entendem, as autoras, que na esteira do surgimento das mídias sociais digitais, a relação com o olhar do outro se modifica, instaurando uma “[...] lógica de hiperexposição e de hipervisibilidade de si, que reivindica novos modos de governamentalidade e que convoca, a todo instante, o olhar de uma plateia infinita que se encontra do outro lado da tela" (p. 142).

Um analisador desta condição é a utilização da expressão “pretend to play” (alguns vídeos também usam a expressão traduzida como “finge brincar”) nos títulos, nas descrições ou no uso de hashtag. O que nos provoca a uma reflexão de que seriam, então, brincadeiras produzidas para que outro aprecie, como podemos inferir junto de falas como "espero que vocês tenham gostado!", "se gostou desse vídeo, deixa um joinha!". Apostamos que tais vídeos de brincadeiras, para além de informar modos de brincar, informam o que é necessário para se ter uma boa performance existencial. Contudo, trata-se de um modo de viver que possui certos atributos visíveis, que são legitimados por vários olhares, pelos seguidores. Sibilia (2015bSIBILIA, P. Autenticidade e performance: a construção de si como personagem visível. Fronteiras - estudos midiáticos, v. 17, n. 3, p. 353-364, 2015b.) compreende que, na sociedade atual, há uma exigência pelo que denomina de "gozo performático".

A produção de imagens na atualidade é direcionada sempre a um público muito amplo e se volta para a publicação nas redes sociais, o que modela os modos de brincar a partir do formato demandado pela plataforma. Compreendemos que os vídeos aqui analisados estão a serviço da lógica da exibição de si, própria do YouTube, atravessados pelo imperativo de disponibilizar a vida cotidiana, aqui representado pela dimensão das brincadeiras, para um outro. Não se trata, contudo, de um outro familiar e conhecido, é um outro amorfo construído em conjunto com os algoritmos das redes sociais, o que se articula com a ideia de brincadeiras-espetáculo trabalhadas por nós até aqui.

Considerações finais

Conforme abordamos ao longo do artigo, a cultura lúdica está intimamente ligada às interações sociais e ao contexto no qual a criança está inserida. No entanto, os efeitos subjetivos da infância em relação às mídias digitais ainda são pouco explorados pelo campo da Saúde Coletiva. Lima e Gaudenzi (2023LIMA, F.; GAUDENZI, P. Racismo, iniquidades raciais e subjetividade - ver, dizer e fazer. Saúde e Sociedade, v. 32, n. 2, p. e230313pt, 2023., p. 3) apontam que "dimensões individuais e coletivas se entrelaçam de forma complexa no sujeito humano, fazendo com que seja imperioso o deslocamento contínuo do campo de ação da saúde coletiva por processos singulares e coletivos".

Propusemos uma reflexão sobre o brincar e as mídias digitais que tensiona o campo da Saúde Coletiva em diálogo com teorias críticas e do campo psi. Ademais, partimos da compreensão de que a Saúde Coletiva deve se haver com a temática da subjetividade entendendo, como Teixeira (2001TEIXEIRA, R. Agenciamentos tecno-semiológicos e produção de subjetividade: contribuição para o debate sobre a trans-formação do sujeito na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 6, n.1, p. 49-61, 2001.) aponta em consonância com o pensamento foucaultiano, que ela não está centrada no indivíduo, mas, ao contrário, há uma multiplicidade de processos coletivos e sociais que fabricam subjetividades. Desta perspectiva, a subjetividade é referida ao sujeito e não ao indivíduo, sendo produzida tanto por instâncias individuais quanto coletivas.

Ao inter-agirem com os vídeos, as crianças “aprendem” brincadeiras, “desejam” brinquedos e expressam valores e sentidos da contemporaneidade. Esta investigação parte de um esforço de explorar os modos de brincar nos vídeos no YouTube, entendendo que se trata de uma reflexão sobre como as relações de poder atravessam as brincadeiras.

Neste manuscrito, exploramos os modos de brincar compartilhados apostando que estes vídeos a um só tempo são uma janela para a cultura lúdica contemporânea e fazem parte de sua construção. Ainda que alguns autores, como Oliveira, Perani e Maia (2020OLIVEIRA, F.; PERANI, L.; MAIA, A. Games, experiência lúdica e cognição inventiva: complexidade e transdisciplinaridade na cultura digital. E-Compós, v. 23, 2020.) reconheçam em atividades digitais possibilidades de práticas lúdicas, de sociabilidade e interação, identificamos que os modos de brincar nos vídeos analisados evidenciam com maior expressividade os caminhos trilhados pela homogeneização e a mercadorização que desembocam na monetização do brincar. Em outros termos, nos vídeos analisados, o brincar criativo, do qual nos fala Winnicott (1975WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.) através do uso livre de símbolos, encontra-se subsumido pela repetição não produtiva de sentidos no mundo. Neste sentido, entendemos que assistir vídeos de crianças brincando pode se tornar um desafio para o brincar, caso ocupem um dos principais lócus de construção do repertório lúdico da criança.1 1 B. M. S. Freitas: análise e interpretação dos dados; redação do artigo; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. P. Gaudenzi e B. F. da C. C. de Andrada: análise e interpretação dos dados; aprovação final da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) nos anos iniciais do doutoramento da primeira autora e da FAPERJ nos anos subsequentes. Expressamos também nosso agradecimento ao Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher, pelo suporte financeiro à publicação deste artigo, bem como à Profª Drª Suely Deslandes, que contribuiu para a elaboração inicial deste texto durante a oficina de artigos.

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    B. M. S. Freitas: análise e interpretação dos dados; redação do artigo; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. P. Gaudenzi e B. F. da C. C. de Andrada: análise e interpretação dos dados; aprovação final da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.

Editor responsável:

Rossano Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2023
  • Revisado
    02 Out 2023
  • Aceito
    16 Nov 2023
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