Resumo
Realizou-se pesquisa qualitativa com o objetivo de compreender as repercussões psicossociais da pandemia do SARS-CoV-2 na população atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão, em 2015, pertencente à mineradora Samarco e suas mantenedoras - VALE e BHP Billiton - em Mariana (MG). Foram utilizadas as técnicas de observação participante e grupos focais. As narrativas de profissionais de saúde e pessoas atingidas foram analisadas através da Análise de Conteúdo, a partir dos fatores socioculturais, simbólicos e políticos encontrados nesse contexto de sobreposição de desastre da mineração e pandemia. Os resultados mostram que a vivência dos atingidos durante a pandemia apresenta singularidades, tais como a intensificação da ruptura de laços sociais e comunitários, que já era identificada desde o rompimento. O luto durante a pandemia também é potencializado pelo luto coletivo já vivenciado desde a tragédia. Há uma intensificação do sofrimento diante da falta de informação e da prorrogação da entrega do reassentamento. É possível identificar a pandemia como mais um ponto de sofrimento para essa população vulnerabilizada.
Palavras-chave: Pandemias; SARS-CoV-2; Desastres; Saúde Mental; Impacto Psicossocial
Abstract
Qualitative research was developed with the aim of understanding the psychosocial repercussions of the SARS-CoV-2 pandemic on the population affected by the collapse of the Fundão Dam in Mariana (MG), in 2015, belonging to the Samarco mining company and its maintainers VALE and BHP Billiton. Participant observation techniques and focus groups were used. The narratives of health professionals and affected people were analyzed through Content Analysis, from the sociocultural, symbolic and political factors found in this context of overlapping mining disaster and pandemic. The results show that the experience of those affected during the pandemic presents singularities such as the intensification of the rupture of social and community ties that had already been identified since the disaster. Grief during the pandemic is also enhanced by the collective grief already experienced since the tragedy. There is an intensification of suffering due to the lack of information and the postponement of the resettlement delivery. It is possible to identify the pandemic as another point of suffering for this vulnerable population.
Keywords: Pandemics; SARS-CoV-2; Disasters; Mental Health; Psychosocial Impact
Introdução
Com a pandemia do SARS-CoV-2, as repercussões para a saúde mental da população em geral e as estratégias de cuidado psicossocial têm sido estudadas e divulgadas (OMS, 2020; IASC, 2020; FIOCRUZ, 2020; SCHMIDT et al., 2020; DUARTE et al, 2020; KABAD et al.,2021; PAVANI et al., 2021; ROCHA et al., 2021). Rente e Merhy (2020) caracterizam a pandemia como o evento mais relevante da atualidade, marcado por graves impactos planetários. Também apontam que cada território lida com as consequências de acordo com “as condições que dispõe, de acordo com sua historicidade e com as redes vivas de relações que nele coexistem” (p. 6).
Diante desse cenário, é necessário o reconhecimento da situação de populações vulnerabilizadas e a identificação das diferentes demandas relacionadas ao cuidado e proteção social desses grupos (SCHMIDT et al., 2021). Como apontado por Lima (2020), é preciso compreender como diferentes territórios, grupos e classes sociais são afetados nesse momento. As populações atingidas pela mineração estão entre grupos que já se apresentavam em condição de sofrimento antes da pandemia.
O rompimento da Barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco e suas mantenedoras VALE S.A. e BHP Billiton, aconteceu no ano de 2015 em Mariana (MG). No desastre, 19 pessoas morreram e cerca de 300 famílias foram deslocadas de sua residência de maneira forçada, após os distritos rurais terem sido destruídos, e foram levadas para área urbana do município (SANTOS; ROSSI, 2017). Essas famílias ainda sofrem com a perda de memórias, de vínculos sociais e comunitários e da referência de moradia e lar após o processo de desterritorialização ocorrido junto ao rompimento (SANTOS; SOL; MODENA, 2020). Desde então, as pessoas atingidas lutam pela reparação e pela garantia de direitos, enquanto vivenciam as angústias da espera por um reassentamento que ainda não se concluiu.
Dessa forma, é objetivo deste artigo compreender as repercussões psicossociais da pandemia para a população atingida pelo rompimento da barragem de Fundão, considerando a sobreposição de eventos críticos em um curto período. Tal compreensão permitirá dar visibilidade e subsidiar a construção de políticas públicas voltadas para comunidades atingidas pela mineração.
Metodologia
Trata-se de pesquisa qualitativa, que busca estudar a história, as relações e as percepções a partir das interpretações que os humanos fazem de suas vivências, sentimentos e opiniões (MINAYO, 2014). Foi realizada em Mariana, cidade localizada na região centro-sul de Minas Gerais (MG), com população estimada de 61.288 habitantes no ano 2020 (IBGE, 2021). Além das mortes, o rompimento da barragem causou perdas materiais, simbólicas e danos ambientais ao longo de toda a Bacia do Rio Doce. Em Mariana, os distritos mais atingidos foram Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, nos quais a população precisou ser removida de forma abrupta e levada para a sede do município. Desde então, encontram-se em casas alugadas na área urbana pelas empresas causadoras do desastre.
Essa população tem sido acompanhada, desde 2015, pela Rede de Atenção Psicossocial e pela Atenção Primária em Saúde, através do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as estratégias assistenciais de saúde pública criadas pós-desastre estão a criação de uma equipe de saúde da família, a Unidade Básica de Saúde Bento/Paracatu, e de uma equipe de saúde mental, o Conviver, ambas orientadas para as especificidades desse público. O Conviver, atualmente, é composto por 10 profissionais de nível superior, sendo psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistente social, psiquiatra e arteterapeutas. A Unidade Básica de Saúde Bento/Paracatu foi construída para o acompanhamento das pessoas atingidas que foram deslocadas para a área urbana. Essa unidade conta com médico de saúde da família, enfermeira, técnica de enfermagem, agentes comunitárias de saúde, auxiliares administrativos e profissionais de apoio, como nutricionista, fisioterapeuta e odontóloga.
A pesquisa foi realizada no período de junho de 2020 a abril de 2021, sendo que a primeira autora já estava inserida no campo e acompanhando essa população desde 2015. As técnicas utilizadas foram a observação participante (FLICK, 2009) e dois grupos focais (GATTI, 2012). A observação participante ocorreu através da vivência da primeira autora no município de Mariana enquanto pesquisadora e trabalhadora da rede de saúde mental, atuando na construção de estratégias de cuidado junto à população atingida e em diálogo e articulação com os serviços de saúde, que foram locais da pesquisa.
Um grupo focal teve a participação de oito profissionais da saúde mental com formação nas áreas de serviço social, psicologia, terapia ocupacional, arteterapia e psiquiatria. O outro grupo foi feito com profissionais com atenção primária e teve a participação de uma enfermeira e de três agentes comunitárias de saúde (ACS). As agentes comunitárias são pessoas das comunidades atingidas e apresentam dupla experiência frente ao tema: enquanto profissional de saúde e como pessoa atingida. As falas dos profissionais de saúde mental foram identificadas como SM e as da atenção primária como AP.
Foi utilizada a Análise de Conteúdo (BARDIN, 2008) para explorar as narrativas e registros da observação participante, dos grupos focais e para a construção das categorias temáticas. Os resultados foram discutidos a partir dos fatores socioculturais, simbólicos e políticos encontrados nesse contexto de sobreposição de efeitos psicossociais do desastre da mineração e da pandemia.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou (CAAE 40720220.1.0000.5091), não havendo conflitos de interesses e nem financiamento externo.
Resultados e Discussão
Foram construídas quatro categorias: “E aí, veio mais essa!”, “E se eu estivesse lá?”, “Mais mortes, mais perdas” e “Não tenho informação sobre reassentamento depois da pandemia”. Os títulos das categorias foram elaborados a partir de falas e questões levantadas por trabalhadores e pessoas atingidas ao longo das observações participantes e grupos focais como forma de dar visibilidade às reflexões e dúvidas vivenciadas por essa população seis anos após o rompimento.
“E aí, veio mais essa!”
Desde o rompimento da barragem, já eram encontradas situações de dúvidas, inseguranças, angústias, tristezas e ansiedade vivenciadas pela população atingida. A pandemia e todas as exigências e repercussões decorrentes dela aparecem como mais um fator de sofrimento para famílias que já tinham sido expostas a um processo de vulnerabilização. A fala de uma pessoa atingida, durante a observação participante, traz uma perspectiva esperançosa de uma população que enfrenta mais um desafio:
Acredito que até hoje não está sendo fácil para ninguém. Acho que, cada dia que passa, é uma coisa diferente, uma vivência nova, mas eu acredito que lá no futuro, lá na frente, a gente vai conseguir vencer. (Registro de Diário de campo).
A ruptura de laços sociais ganha um novo significado a partir das exigências do isolamento social após a pandemia. Esses atingidos afirmam que já sofriam desse distanciamento social desde novembro de 2015, quando foram retirados de suas casas e deslocados de maneira forçada. Essas pessoas entendem que o conceito de distanciamento, tão propagado durante a pandemia, já era vivido por elas. Porém, não sabiam como nomear esse fenômeno até então.
Os atingidos já estavam acostumados com o isolamento social após serem deslocados das áreas atingidas e sofrerem hostilização e por conflitos comunitários e sociais que já eram difíceis. Eles costumam dizer: “Dessa forma, recluso, mais fechadinho no núcleo familiar, a gente já estava”. (SM7, sobre relatos de pessoas atingidas)
Em outra narrativa de profissional da saúde mental, é possível perceber como os novos modos de viver exigidos pelo período pandêmico se apresentam como uma sobreposição a uma condição de sofrimento social que se arrasta desde o rompimento da barragem:
Eles costumam dizer: “E aí, veio mais essa! Mais essa que a gente tem que enfrentar”. Meninos em casa, não conseguir ir para as reuniões, reduziu muito a participação, não é todo mundo que entende e consegue ter essa participação de modo remoto. Então, eles colocam assim, como mais um ponto de sofrimento. (SM1)
Assim como observado pela trabalhadora em sua prática, os estudos têm apontado diferentes consequências em saúde mental para populações no mundo todo. A revisão integrativa realizada por Rocha et al. (2020) analisou, a partir de 14 artigos, os efeitos psicossociais do distanciamento social durante a pandemia do SARS-CoV-2. Os resultados mostram que em todos os estudos foram identificadas repercussões na saúde mental e que estas causaram impactos na qualidade de vida e se manifestaram, principalmente, através de sintomas ansiosos e depressivos. Alguns fatores associados a esses efeitos são: os impactos financeiros, o medo de contágio, as incertezas sobre a duração do distanciamento social, o histórico anterior de transtornos psiquiátricos e as restrições alimentares ou de outros recursos básicos.
Conforme apontado por Schmidt et al. (2021), as ações de assistência e cuidado a diferentes públicos devem levar em conta não somente a condição atual, mas todos os fatores de vulnerabilidade preexistentes. Uma vez que a população em Mariana já havia sido atingida por um desastre e por todas as consequências e violações decorrentes dele, é preciso reconhecê-la enquanto uma população que demanda uma atenção específica relacionada à saúde mental e atenção psicossocial.
As redes socioafetivas são um fator de proteção para a saúde mental em contextos críticos. Após o rompimento da barragem, as pessoas atingidas passam por uma ruptura em suas redes de suporte e são colocadas frente a uma demanda de reconstrução emocional e material em um território pouco conhecido por elas (SANTOS; ROSSI, 2017; SANTOS, 2018). Antes da pandemia, os relatos de uma vivência de sofrimento enquanto inquilinos na área urbana no município já eram frequentes (SANTOS; SOL; MODENA, 2020). Nesse momento, é possível refletir sobre como é vivenciar um período de pandemia nesse território para aqueles que não estão adaptados a esse novo espaço.
O relato abaixo, de uma ACS pertencente à população atingida, mostra a falta do contato com as plantações, o quintal da casa ou a possibilidade de ver as pessoas da comunidade na vizinhança, mesmo que à distância.
Mas, eu vejo assim, que algumas pessoas que moram, por exemplo, num lugar que não tem terreiro, eu acho que tem uma dificuldade a mais. Se você tem um terreiro, você vai para o terreiro, vai mexer com a plantação. Porque você ia para a porta da rua, você ia para uma pracinha e conseguia passear um pouco e tem pessoas que não estão saindo, estão trancadas dentro de casa, que não tem terreiro. (AP4)
Diante da pandemia, os encontros também foram reduzidos nas reuniões e em eventos comunitários, religiosos e escolares. Para muitos, desde 2015, esses espaços eram reconhecidos como a possibilidade da manutenção dos laços sociais e afetivos. Nesses locais, sentiam-se confortáveis e seguros para trocar experiências e falar sobre suas dificuldades, angústias e esperanças.
O relato abaixo ilustra como as restrições de isolamento impactam novamente essa comunidade e os espaços de construção possíveis ao longo dos últimos anos. A possibilidade de realizar reuniões e encontros de forma virtual não é acessível a todos. Mesmo aqueles que têm acesso à internet podem ter dificuldade em utilizar celulares e computadores. Diante dessas dificuldades, esses laços se tornam mais frágeis e distantes.
Igual, antes do início da pandemia, desde quando a gente veio para cá [Mariana], tinha a nossa missa que acontecia no 4º domingo do mês. Então, a gente via a nossa comunidade de igreja uma vez por mês. Aí, logo depois da pandemia, teve a questão das restrições. Então, foram canceladas as missas. Então, tem família que a gente não vê desde março.” aquela família religiosa, vai fazer um ano que a gente não vê frequência agora em março. (AP2)
“E se eu estivesse lá?”
Essa indagação pode remeter ao passado ou ao futuro. Algumas pessoas se perguntam como seria a vida se estivessem naquele distrito que foi atingido, bem como na casa e na comunidade que foram destruídas pela lama. Em outros momentos, a questão se volta para um futuro tão esperado, para um desejo de reassentamento que não se concluiu. A vida da população atingida se organiza, nesse momento, entre diferentes territórios.
A partir da compreensão do território, que envolve as suas relações sociais, sua historicidade e seus diferentes usos (SANTOS, 1998), é encontrada uma população que busca constituir sentido e referências dentro de um lugar para onde foi deslocada de forma forçada. Como conceituado por Haesbaert (2019), o território é produto da apropriação de um espaço por um grupo social e nele são estabelecidas relações políticas de controle ou relações afetivas, identitárias e de pertencimento.
Se consideramos os registros de pessoas atingidas sobre o não pertencimento à área urbana de Mariana e o não reconhecimento das casas alugadas pelas mineradoras a título de reparação enquanto um lar (SANTOS; SOL; MODENA, 2020), o significado de ficar em casa é singular para a população atingida. Essas pessoas se questionam se poderiam passar pelas medidas de isolamento em outra condição, como, por exemplo, estar em uma comunidade menor junto aos seus animais e em contato com a natureza. Essa reflexão demonstra a ansiedade e a espera para o retorno à área rural:
Hoje, nesse momento de pandemia, os atingidos colocam: “Nossa, mas se eu estivesse lá, eu teria um pouco mais de liberdade, não teria que ficar trancado dentro de casa” Então, acho que a pandemia está intensificando o sofrimento dessas famílias. (SM1)
Essa falta de liberdade é algo que já vem sendo apontado por muitas famílias desde o rompimento da barragem. Como encontrado em Santos (2018), o medo da violência, o sentimento de não pertencer e a falta de identificação com a área urbana atravessam as vivências dos atingidos.
Diante dessa falta, observa-se um movimento de mudanças para outras áreas rurais de Mariana e uma intensificação desses deslocamentos desde o início da pandemia. Com mais atrasos no processo de reassentamento, algumas famílias têm feito a opção de alugar ou comprar casas em outros distritos, em busca de mais tranquilidade e liberdade. Também deve ser considerado que esse movimento de ir para distritos acontece entre pessoas predispostas e mobilizadas a construírem um novo círculo comunitário nesses novos lugares.
E eu percebo que, de uma certa forma, as pessoas estão querendo fazer uma outra comunidade. Quando eu falo isso, quero dizer que tem muita gente morando mais pertinho um do outro. Então, assim, a comunidade vai se readaptando à realidade e buscando o que era antes. Acredito que nunca vai ser como antes, isso nunca vai acontecer. Mas, eles buscam isso o tempo todo. (AP1)
“Mais mortes, mais perdas”
A pandemia nos coloca de forma mais incisiva diante do tema da morte, tão evitado dentro da nossa cultura. Rente e Merhy (2020) discutem uma aversão cultural em falar sobre a morte e apontam como a pandemia rompeu com essa ilusão de que é possível uma vida sem morte.
A pandemia intensifica muita coisa, reduz o contato físico. São múltiplos lutos, são vários. Cada vez que vem a iminência da morte ou ver essas notícias na televisão, isso é revivido. (SM2)
Os atingidos, que hoje residem na área urbana de Mariana, já tinham vivenciado a proximidade com a morte naquele 05 de novembro. Na observação participante, o luto coletivo, que já era identificado como uma questão para as comunidades atingidas, aparece de forma mais intensa nesse momento. A pandemia de SARS-CoV-2 é considerada por Rente e Merhy (2020) como um grande trauma coletivo da era atual e os autores apontam que as consequências ainda serão sentidas em médio e longo prazo por pessoas que foram infectadas e hospitalizadas e que perderam entes queridos, por profissionais de saúde e pela população em geral, que teve sua rotina completamente alterada.
No caso da população atingida, a cada pessoa desse grupo populacional que morre, o luto é sentido por todo o grupo, independentemente de qual comunidade pertence e de ser amigo ou familiar. As narrativas das agentes comunitárias de saúde mostram que a identificação em torno de ser atingido implica mobilizações em todas as comunidades em casos de mortes:
E como a gente já tem esse vínculo tão grande com todo mundo, quando morre alguém de Paracatu, a gente sente a mesma coisa como se fosse de Bento. A gente pensa assim: Poxa, é alguém da minha família que se foi, mexe muito com a gente. (AP4)
É possível perceber que, a cada morte, lamenta-se a impossibilidade de ser reparado, de conhecer a casa no reassentamento e de concluir a espera pela retomada da vida em comunidade. As narrativas mostram o sentimento de perda intensificado por ver que alguém da comunidade não teve acesso ao novo lar e pela dúvida se mais alguém viverá a experiência de lutar e não ver esse processo concluído em vida:
Por exemplo, nessa questão dos atendimentos, quando tem uma morte, mesmo que essa pessoa não tenha um laço afetivo com essa pessoa que faleceu, ela sofre muito. Eles falam: “Nossa, não viu a casa, não chegou a ter o seu espaço, mais uma pessoa que está indo embora”. Porque isso gera muita angústia. A morte gera angústia naturalmente, e, nesse contexto de que algo não se concluiu, algo está por fazer ainda, eu acho que a angústia fica mais forte né. (SM1 apresenta relato sobre escuta de pessoas atingidas)
O desastre envolve as lutas e articulações políticas e institucionais para a construção de respostas desde a ocorrência do rompimento da barragem. A busca por justiça nas reparações é um campo atravessado por diferentes interesses e conflitos e que envolve atores em diferentes instâncias organizacionais, sejam elas públicas ou privadas. Essas discussões e articulações não passam sem repercussão para a saúde mental e atenção psicossocial de pessoas atingidas, que sofrem os anseios, angústias e frustrações nesses espaços.
Cabe problematizar que, somado a essas questões, o período de pandemia tem imposto a necessidade de distanciamento inclusive no momento da morte. O impedimento do acompanhamento de familiares e amigos no final da vida e a ausência de rituais funerários e de despedida - vivências importantes para a elaboração do luto - têm trazido preocupações nos acompanhamentos psicossociais neste período de pandemia (CREPALDI et al., 2020; WALLACE et al., 2020). Diante desse cenário, Wallace et al. (2020) alertam para o aumento da probabilidade de luto complicado durante a pandemia e citam alguns sinais, como pensamentos invasivos e recorrentes sobre a pessoa que morreu, dificuldade de aceitação da morte, distanciamento de pessoas com as quais já se relacionava e percepção de falta de sentido na vida.
É importante considerar as formas de lidar com o luto e os recursos subjetivos encontrados por diferentes pessoas. Crepaldi et al. (2020) afirmam que os processos de terminalidade, morte e luto são experiências singulares e que as potencialidades e recursos familiares devem ser enfatizados no acompanhamento psicossocial.
“Não tenho informação sobre reassentamento depois da pandemia”
Junto ao medo de ser contaminado, morrer ou perder amigos e familiares, aumenta a insegurança em relação a receber a reparação da moradia pelas mineradoras. Seis anos após o rompimento da barragem, os reassentamentos das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo ainda não foram concluídos. As previsões de término das obras não têm sido cumpridas e os prazos são revistos com frequência. Com o início da pandemia, as obras foram paralisadas, ampliando ainda mais o tempo de espera da população atingida, como é possível observar nas narrativas dos participantes:
Com relação à pandemia, o que tem aparecido muito é essa questão do atraso com relação aos reassentamentos. Isso é um impacto muito grande para eles. Já estava atrasado e a pandemia contribui para atrasar mais ainda a questão do reassentamento, das negociações que alguns estavam fazendo, que muitos optaram por não fazer essa negociação remota, através das lives, essas discussões todas. Então, para muitos, tem sido um prejuízo muito grande. (SM2)
Após o rompimento, pessoas atingidas passaram pelo processo de se reconhecer em uma nova condição, em locais e campos de disputas pela reparação e direitos. Para além da mudança de espaço físico, sofreram com as alterações na rotina, com inclusão de uma série de reuniões e assembleias e com a negociação em espaços que lhes exigiram novas formas de se posicionar e comunicar em modalidades de discursos e linguagens desconhecidas por elas (ZHOURI et al., 2017). O acesso à informação continua sendo um direito buscado constantemente nesse cenário.
Com a pandemia, a falta de informação se agrava e aparece novamente como uma fonte de sofrimento. Os relatos das pessoas são de que passaram a receber ainda menos retorno sobre a situação do reassentamento. Na fala abaixo, é possível compreender a ausência de comunicação à população desde o início da pandemia:
Porque, eu não sei, por causa dessa pandemia, como está sendo. No meu caso, eu não conheço meu lote até hoje, não sei onde que vai ser feita a minha casa e não tenho conhecimento depois que começou essa pandemia, não tenho conhecimento como todo lá do terreno, o que tá sendo feito, porque com essa pandemia parou muita coisa. (AP3)
A desinformação pode intensificar ainda mais os sentimentos de angústia, insegurança e desesperança. Esses relatos nos mostram como as tratativas institucionais podem ser fonte de sofrimento social para as pessoas atingidas, conforme alertado por Zhouri et al. (2016). Kirmayer et al. (2010) também destacam a luta por reparações e o constante sentimento de raiva em relação aos responsáveis por desastres como fatores que prejudicam a recuperação e a condição de saúde mental a longo prazo.
Nesse momento, a falta dos encontros com as comissões de atingidos e em outros locais de referência para as comunidades reduz as possibilidades de construção dos espaços de contato e expressão, tão necessários nesse momento. Esse também precisa ser um fator de preocupação, considerando-se que a literatura mostra que o espaço na mídia é reduzido alguns anos após grandes desastres e esses grupos têm suas reivindicações invisibilizadas (MARCHEZINI, 2014; VALENCIO; SIENA; MARCHEZINI, 2011).
Após seis anos observa-se, nesse cenário, a intensificação de um sofrimento e de uma angústia diante da visualização de que a situação dos atingidos não tem sido direcionada de forma resolutiva pelas vias institucionais e pelas empresas responsáveis. Diante do atual cenário de pandemia, é preciso estar atento a um silenciamento por parte das empresas e uma maior dificuldade de mobilização da população atingida.
Considerações finais
As repercussões para a saúde mental das pessoas atingidas precisam ser consideradas a partir das estruturas políticas, históricas e sociais existentes antes e após a ocorrência do desastre. Após a pandemia de SARS-CoV-2, é possível identificar que essas pessoas agregam mais um ponto significativo de sofrimento em suas vidas. O processo de um luto coletivo, que já vinha se arrastando desde novembro de 2015 pelo rompimento da barragem de Fundão, é atravessado por mais uma questão crítica. Assim, é de extrema importância que os serviços públicos de saúde e de assistência social estejam atentos a esse tipo de sofrimento específico e a outras repercussões psicossociais que possam surgir nesse momento. É necessária uma escuta empática e sensível a esse contexto.
Além disso, é preciso observar a desmobilização dos espaços coletivos durante o período de pandemia, o que pode significar o enfraquecimento das práticas de enfrentamento e resistência. Diante da demora e da falta de respostas e de informações institucionais, pessoas atingidas têm buscado os recursos disponíveis em cada núcleo familiar para buscar espaços de maior tranquilidade em outras áreas rurais.
O artigo traz discussão sobre repercussões psicossociais ainda em desenvolvimento, visto que o desastre da mineração e a pandemia continuam em curso. Portanto, novas questões e reflexões podem surgir a partir do conteúdo aqui apresentado e de outros estudos acerca dessa interlocução de contextos críticos e dos processos sociais deles decorrentes. Dentro de um cenário dinâmico, é preciso manter o acompanhamento da condição de saúde da população e ter gestores e trabalhadores atentos a essa leitura ampliada para a construção de respostas a partir do SUS.1
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M. A. de L. Santos e C. M. Modena: concepção e projeto, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica relevante do conteúdo intelectual do artigo; aprovação final da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
07 Jan 2022 -
Aceito
24 Mar 2022 -
Revisado
03 Out 2022