Open-access Palavra escrita (Bilac, Iessiênin e Augusto de Campos) e palavra cantada (Toquinho e Belchior): aspectos estilísticos do poema e da canção na Literatura e na MPB

Writing word (Bilac, Iessiênin and Augusto de Campos) and singing word (Toquinho and Belchior): stylistical aspects of the poem and the song in Literature and Brazilian Popular Music (MPB)

Resumos

Assumindo a Literatura e a Música Popular Brasileira enquanto práticas discursivas, nosso objetivo neste artigo é analisar os aspectos estilísticos de três enunciados dos gêneros poema e canção, produzidos respectivamente nas esferas discursivas literária e verbomusical, e que mantêm entre si um diálogo intertextual. Os textos analisados, sob a ótica dos estudos de Bakhtin e de seu Círculo, são o poema Até logo, até logo, companheiro, tradução de Augusto de Campos para texto de Sierguéi Iessiênin; a canção quase homônima, musicada por Toquinho a partir da tradução de Campos; e a canção Até mais ver, uma adaptação do poema de Iessiênin feita por Belchior, que dialoga também com o poema In extremis de Olavo Bilac. Em nosso estudo, verificamos como se dá a relação interdiscursiva, se de modo contratual ou polêmico, operada pelos autores-criadores Augusto de Campos, Toquinho e Belchior, a partir de Sierguéi Iessiênin.

estilística discursiva na música popular; análise dialógica do discurso; esferas discursivas e gênero de discurso; literatura, poema e canção; Olavo Bilac; Sierguéi Iessiênin; Augusto de Campos; Toquinho; Belchior


Assuming Literature and Brazilian Popular Music (MPB) as discoursive practices, this paper aims at analysing the stylistical aspects of three propositions of the genres poem and song, stated in the literary and "verbomusical" discoursive fields which are in intertextual dialogue. The analysed texts, under the perspective of Bakhtin and his Circle, are the poem Até logo, até logo, companheiro, as translated by Augusto de Campos from the original by Sierguéi Iessiênin; the almost homonymous song, set to music by Toquinho, from the translation by Campos; and the song Até mais ver, an adaptation of the poem by Iessiênin, as recorded by Belchior - who also refers to the poem In extremis, by Olavo Bilac. In our research, we verified how the interdiscoursive relation takes place, either contractual or polemycal, established by the author-creators Augusto de Campos, Toquinho and Belchior, from the original by Sierguéi Iessiênin.

discoursive stylistics in popular music; dialogical discourse analysis; discoursive fields and discourse genre; literature, poem and song; Olavo Bilac; Sierguéi Iessiênin; Augusto de Campos; Toquinho; Belchior


ARTIGOS CIENTÍFICOS

Palavra escrita (Bilac, Iessiênin e Augusto de Campos) e palavra cantada (Toquinho e Belchior): aspectos estilísticos do poema e da canção na Literatura e na MPB

Writing word (Bilac, Iessiênin and Augusto de Campos) and singing word (Toquinho and Belchior): stylistical aspects of the poem and the song in Literature and Brazilian Popular Music (MPB)

Josely Teixeira Carlos

USP, São Paulo, SP; Sorbonne e Est Créteil Val de Marne, França. josyteixeira@usp.br

RESUMO

Assumindo a Literatura e a Música Popular Brasileira enquanto práticas discursivas, nosso objetivo neste artigo é analisar os aspectos estilísticos de três enunciados dos gêneros poema e canção, produzidos respectivamente nas esferas discursivas literária e verbomusical, e que mantêm entre si um diálogo intertextual. Os textos analisados, sob a ótica dos estudos de Bakhtin e de seu Círculo, são o poema Até logo, até logo, companheiro, tradução de Augusto de Campos para texto de Sierguéi Iessiênin; a canção quase homônima, musicada por Toquinho a partir da tradução de Campos; e a canção Até mais ver, uma adaptação do poema de Iessiênin feita por Belchior, que dialoga também com o poema In extremis de Olavo Bilac. Em nosso estudo, verificamos como se dá a relação interdiscursiva, se de modo contratual ou polêmico, operada pelos autores-criadores Augusto de Campos, Toquinho e Belchior, a partir de Sierguéi Iessiênin.

Palavras-chave: estilística discursiva na música popular; análise dialógica do discurso; esferas discursivas e gênero de discurso; literatura, poema e canção; Olavo Bilac; Sierguéi Iessiênin; Augusto de Campos; Toquinho; Belchior.

ABSTRACT

Assuming Literature and Brazilian Popular Music (MPB) as discoursive practices, this paper aims at analysing the stylistical aspects of three propositions of the genres poem and song, stated in the literary and "verbomusical" discoursive fields which are in intertextual dialogue. The analysed texts, under the perspective of Bakhtin and his Circle, are the poem Até logo, até logo, companheiro, as translated by Augusto de Campos from the original by Sierguéi Iessiênin; the almost homonymous song, set to music by Toquinho, from the translation by Campos; and the song Até mais ver, an adaptation of the poem by Iessiênin, as recorded by Belchior - who also refers to the poem In extremis, by Olavo Bilac. In our research, we verified how the interdiscoursive relation takes place, either contractual or polemycal, established by the author-creators Augusto de Campos, Toquinho and Belchior, from the original by Sierguéi Iessiênin.

Keywords: discoursive stylistics in popular music; dialogical discourse analysis; discoursive fields and discourse genre; literature, poem and song; Olavo Bilac; Sierguéi Iessiênin; Augusto de Campos; Toquinho; Belchior.

Uma análise estilística que queira englobar todos os aspectos do estilo deve obrigatoriamente analisar o

todo

do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-lo dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é apenas um

elo

inalienável (BAKHTIN, 1997b [1952-1953], p.326).

1. Primeiras palavras

A esfera discursiva literária brasileira é formada pela atividade enunciativa que une fundamentalmente um escritor a um leitor por meio de enunciados verbais, chamados literários. Nesse campo de atividade, outros sujeitos do dizer e do fazer participam da situação enunciativa literária, entre os quais os críticos e os historiadores literários, os editores, os tradutores, os professores de literatura e os donos de livrarias. Os agentes dessa comunidade dialogam por meio de textos concretos de variadas formas, estilos, construções composicionais e temáticas, definidos como gêneros de discurso. É na esfera literária que são produzidos, divulgados, lidos e comentados textos como a crônica, o conto, o romance. Neste artigo, analisaremos um enunciado pertencente ao gênero poema, escrito (traduzido) pelo autor Augusto de Campos.

Já o discurso verbomusical brasileiro é uma prática discursiva resultante da atividade de uma comunidade específica formada pelos compositores, cantores, produtores de discos, consumidores e apreciadores da canção, gênero de discurso produzido por essa comunidade. Analisaremos neste texto uma canção do cantor e compositor Toquinho e outra de Belchior (sujeitos dessa esfera discursiva).

Assumindo a Literatura e a Música Popular Brasileira enquanto práticas discursivas, o objetivo geral deste artigo é analisar os aspectos estilísticos (entonação ou o som expresso pela palavra escrita e cantada; eleição e disposição das palavras no interior da enunciação) de três enunciados dos gêneros poema e canção, produzidos nas esferas discursivas e ideológicas literária e verbomusical. Na análise dos enunciados, iremos observar as variadas semioses que os compõem: a verbal, no caso do poema1; a verbal e a musical, no caso da canção. A escolha desses três textos justifica-se pelo diálogo que os enunciados mantêm entre si por meio de uma relação intertextual. Pretendemos, a partir daí, analisar a relação que se dá entre a prática discursiva literária e a prática discursiva verbomusical brasileira. Para isso, analisaremos os gêneros de discurso poema e canção como objetos ideológicos e concebidos em suas relações ideológicas.

Nessa intertextualidade é importante examinar o trabalho empreendido pelos autores-criadores dos textos escolhidos para análise (Augusto de Campos, Toquinho e Belchior). Chamamos ao primeiro de escritor e aos dois últimos de compositor. Verificaremos em que medida esses autores aproximam-se e afastam-se; como eles constroem uma identidade enunciativa nas comunidades discursivas literária e verbomusical; se a relação interdiscursiva entre eles é contratual ou polêmica; se seus discursos vão ao encontro um do outro, ressignificam-se ou polemizam-se; de modo geral, como as escolhas estilísticas articulam-se para a construção do modo de dizer desses autores-criadores na literatura e na música brasileira. Essas são algumas questões que tentaremos responder/esclarecer ao longo de nossa análise.

Para analisarmos os aspectos estilísticos nesses três enunciados, nos apoiaremos no arcabouço teórico-metodológico de BAKHTIN e de seu Círculo (19242, 19263, 19294, 1934-19355, 19636, 19657, 19798 [1920-1930, 1952-1953, 1970-1971])9, percorrendo várias obras nas quais aparece o conceito de estilo. Nosso objetivo é investigar o vínculo entre a forma verbal da enunciação, a sua situação e o seu auditório. Assim, além do conceito estilo, fundamentar-nos-emos também nas reflexões acerca da relação falante-ouvinte, da orientação social e das dimensões verbal e extra-verbal da enunciação, feitas por BAKHTIN e VOLOCHÍNOV (1993, p.245-276).

Pela representatividade do escritor Augusto de Campos e dos cancionistas Toquinho e Belchior na literatura e no cancioneiro brasileiro, pensamos ser desnecessário fazer um histórico de suas carreiras e obras. Com relação à escolha de um poema de Campos, justifica-se pelo importante papel desse escritor na tradução para a língua portuguesa de textos clássicos da literatura contemporânea. Já no que concerne à escolha de textos desses dois cancionistas, cremos que ela se justifica devido à força expressiva de suas interpretações e à complexidade discursiva de suas canções (tanto na dimensão verbal quanto na musical). Supomos que nosso estudo também se justifica no sentido de aprofundar as pesquisas que têm como objeto o gênero canção, bem como suas interfaces com gêneros literários.

De modo geral, acreditamos que esta pesquisa tem importância enquanto aplicação empírica de um conjunto de conceitos teóricos da Teoria dialógica do enunciado ou da Análise dialógica do discurso a um corpus da Literatura e da Música Popular Brasileira, contribuindo para validar o discurso literário e o verbomusical brasileiro enquanto campo de pesquisa a ser abordado discursivamente. Objetivamos assim contribuir com os estudos que relacionam a literatura e a música a essa prática de leitura de textos: a metalinguística.

Defendendo que todo texto tem uma orientação social, acreditamos que o trabalho com os discursos literário e verbomusical tem mérito por pretender examinar discursos tão entranhados na nossa cultura e tão significativos na constituição de nossa identidade enquanto sujeitos no mundo brasileiro. Parafraseando JAKOBSON (2001, p.161-162) em seu texto antológico Linguística e comunicação, se o poema e a canção são duas linguagens, o linguista, cuja área de investigação abrange qualquer tipo de linguagem, pode e deve incluir esses enunciados em seu campo de estudos.

Neste ponto, chamamos a atenção para o fato de que não tencionamos realizar a análise dos enunciados de Campos, Toquinho e Belchior a partir de suas biografias. Estamos considerando esses escritor e compositores como instâncias enunciativas. Seguindo a noção bakhtiniana de autor-criador10, julgamos ser o autor não um indivíduo histórico propriamente, mas principalmente uma função enunciativa de unidade dos sentidos. Por fim, é importante deixar claro que a questão central em nosso artigo não será simplesmente comparar os investimentos estilísticos nesses enunciados, mas sim perceber como se dão as relações dialógicas nesses textos, ou seja, qual a posição do autor com respeito ao leitor e ao ouvinte e segundo a situação social na qual a enunciação se realiza.

2. Palavra escrita e palavra cantada: material de análise

Nosso material de análise é constituído de três enunciados concretos, um produzido na esfera discursiva literária e dois na esfera discursiva verbomusical brasileira. O primeiro deles, do gênero discursivo poema, é o texto Até logo, até logo, companheiro, uma tradução de Augusto de Campos para poema do poeta russo Sierguéi Iessiênin, escrito em 1925 e endereçado ao também poeta Vladimir Maiakóvski. A tradução de Augusto de Campos para os versos de Iessiênin foi publicada em 1968 no volume Poesia Russa Moderna, organizado a seis mãos por Boris Schnaiderman e pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos para a Editora Civilização Brasileira, e reeditada em 1985 pela Editora Perspectiva, de São Paulo. Para efeito de comparação, trabalhamos com duas edições dessa obra: a primeira, de 1968, e a última a que tivemos acesso, publicada em 2001, pela mesma Editora Perspectiva.

O texto seguinte é a canção Até logo, companheiro, criada com música de Toquinho a partir da tradução de Campos para o poema de Iessiênin. A canção foi inicialmente lançada em 2001 em DVD de Toquinho pela gravadora Biscoito Fino. No DVD, o primeiro da carreira do cantor e compositor, Toquinho apresenta alguns dos seus maiores sucessos com imagens de shows ao vivo, algumas inéditas no Brasil, cedidas pela emissora italiana RAI, além de gravações em estúdio, seguindo um roteiro biográfico do artista. Em momento histórico, Toquinho canta Samba pra Vinicius, na presença do próprio homenageado e do Quarteto em Cy. Revela curiosidades, como por exemplo de onde saiu a expressão que originou a música A tonga da mironga do kabuletê, e que a letra de Samba pra Vinicius foi composta a pedido do próprio "poetinha". Ao todo, são 26 músicas, com apenas uma delas inédita, Até logo, companheiro11.

Na análise propriamente dita, iremos nos deter na gravação da canção Até logo, companheiro não no suporte DVD, mas no CD Só tenho tempo pra ser feliz, gravado posteriormente por Toquinho pela Movieplay em 2003. Porém, ao longo da análise iremos fazer remissões à gravação dessa mesma canção nessas duas enunciações distintas, em 2001 e em 2003.

O último enunciado também pertence ao gênero de discurso canção. Trata-se da música Até mais ver, uma adaptação do mesmo poema de Iessiênin, comentado acima, feita pelo compositor Belchior. A canção foi gravada no CD Baihuno, lançado em 1993 pela Movieplay. É importante destacar que apesar de a canção de Toquinho só ter sido gravada pela primeira vez em 2001, ela teria sido composta antes mesmo da gravação da adaptação de Belchior, como se comprova em gravações ao vivo nas quais Toquinho interpreta Até logo, companheiro.

3. As palavras entre o homem e o mundo: por uma estilística discursiva

O conceito de estilo aparece em vários momentos da produção bakhtiniana e de seu Círculo. Podemos citar como exemplo as reflexões feitas nas obras Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica); Marxismo e filosofia da linguagem; Questões de literatura e de estética: a teoria do romance; Problemas da Poética de Dostoiévski; A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais; O autor e o herói na atividade estética e Os gêneros do discurso de Estética da criação verbal. "Em todas [elas] é possível encontrar estilo como uma dimensão textual e discursiva que vai sendo trabalhada, refinada, em função dos objetos específicos tratados em cada um dos estudos" (BRAIT, 2005, p.80).

Em Marxismo e filosofia da linguagem, na terceira parte, intitulada Para uma história das formas das enunciações nas construções sintáticas, Bakhtin, assinado Volochínov12, estuda o estilo a partir das formas de transmissão do discurso de outrem. Distingue um estilo linear de um estilo pictórico (cap.9), além de relacionar Gramática e Estilística (cap.10). Nessa obra, ao estudar o estilo na língua somente em correlação com o discurso do outro, o autor já nega a compreensão do estilo como algo individual, singular, único, particular e original, como defende a estilística clássica.

Para estudar o estilo, Bakhtin recorre tanto à esfera literária como à da vida cotidiana. Ilustram o primeiro caso as obras Problemas da Poética de Dostoiévski e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Nesta última, Bakhtin atenta para "a estreita relação entre a palavra na vida e a palavra na arte". O mesmo caminho de comparação ocorre no texto Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica), de Volochínov, e é retomado no texto em parceria com Bakhtin, no qual discutem as partes verbal e extra-verbal das enunciações cotidianas. "As enunciações da vida cotidiana já dão a chave de compreensão da estrutura linguística da enunciação artística"13 (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 1993, p.259). Na análise de Dostoiévski e Rabelais, Bakhtin inaugura uma perspectiva estilística inédita, colocando óculos novos na leitura dessas produções. E essas lentes enxergam o sujeito em sociedade e o indivíduo inscrito em sua historicidade.

Se para uma concepção tradicional e subjetivista do estilo, "o estilo é o homem" ("Le style est l'homme même"), como lemos nas palavras de Buffon (1707-1788) de Discours sur le style14, nas obras do Círculo de Bakhtin, "o estilo são pelo menos dois homens, duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social", como estabelece Volochínov no texto Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tendo em conta a natureza social da linguagem humana, esta é um fenômeno de duas faces, o que significa dizer que toda enunciação pressupõe, para sua realização, a existência não só de um falante, mas também de um ouvinte (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 1993, p.262).

Para Bakhtin, uma imagem do discurso não deixa de ser a imagem do homem que fala; no entanto, essa imagem só será possível na medida em que essa fala estiver orientada para o outro. Nesse sentido, o conceito de estilo é o outro lado da moeda do conceito de dialogismo, onde não se distingue quem é a cara e quem é a coroa, pois cada uma das faces traz em si a outra. Nessa concepção, as singularidades e particularidades estilísticas de um sujeito serão constituídas sempre na relação com o social. Esse social pode ser compreendido como o contexto situacional em interação com os outros sujeitos dessa situação. Como nos mostram BAKHTIN e VOLOCHÍNOV (2004, p.114) em Marxismo e filosofia da linguagem, é exatamente "a situação e os participantes mais imediatos [que] determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação".

No texto O autor e o herói na atividade estética, o estilo também é analisado no âmbito da esfera artística. Ele é definido como o "conjunto dos procedimentos de formação e de acabamento do homem e do seu mundo". Assim, "o estilo artístico não trabalha com palavras e sim com valores do mundo e da vida" (BAKHTIN, 1997b [1920-1930], p.209). E seria exatamente esse acabamento que cria a ficção para Bakhtin e que constitui a obra de arte. Esse conceito de acabamento relaciona-se diretamente com o conceito de autor - muito importante no conjunto da obra de Bakhtin e de seu Círculo. É o autor-criador, como elemento da obra, a instância suprema e última que dá acabamento à obra e imprime nela uma marca de arte.

Na arquitetônica teórica do Círculo, interessa a posição axiológica do autor-criador, do sujeito que cria, ou seja, o modo como essa instância discursiva enforma o mundo por meio de um excedente de visão, que conta com uma responsividade do público que recepcionará a obra. No momento de criação da obra, a visão de mundo do autor relacionada com o ato de empatia (identificação; olhar com os olhos do outro: princípio de conteúdo-forma que sedimenta a relação do autor-contemplador com o objeto em geral e com o personagem em particular) é que torna possível a elaboração de um material (BAKHTIN, 1997b [1920-1930], p.31 e 218).

Essa reflexão sobre a autoria nos traz de volta à estética do próprio processo criativo, à atividade do artista ou do autor. Neste momento, é importante diferenciar esse autor-criador, que emerge da própria obra, do autor-pessoa, que é o elemento do acontecimento ético e social da vida, o sujeito empírico. Aqui, deixamos claro que, na análise da constituição estilística dos enunciados analisados neste trabalho, o que nos interessa é a maneira como o autor-criador utiliza as formas da língua para representar/constituir o homem e o mundo. Essa mesma relação entre o homem e o mundo é reconhecida por Discini, ao defender que o analista do estilo deve recuperar quem diz pelo modo de dizer. Para a autora, a estilística discursiva parte do estilo para reconstruir o homem. Reconhecendo o lugar do autor-criador e do outro, chamado de enunciatário, na constituição do estilo, afirma que:

o estilo refere-se ao modo próprio de dizer de uma enunciação, única, depreensível de uma totalidade enunciada. Essa perspectiva faz com que as relações de sentido convirjam recorrentemente para um centro que, longe de mostrar um sujeito empírico, cria o próprio sujeito. (...) O estilo é efeito de sentido, produzido

no

e

pelo

discurso, reconhecido pelo fazer interpretativo de um enunciatário, cúmplice de um sujeito da enunciação, para que, juntos, construam um efeito de individuação (DISCINI, 2004, p.17 e 26).

Pelo que vimos até aqui, a reflexão sobre o estilo parece estar relacionada diretamente ao campo literário ou das artes de um modo geral. Essa impressão é desmentida ao olharmos para o texto Os gêneros do discurso, também publicado na coletânea Estética da criação verbal. Nesse texto, BAKHTIN (1997b [1952-1953], p.279) postula que "todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua que se efetua em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana".

Esses enunciados, "tipos de textos relativamente estáveis", são os gêneros do discurso, constituídos por três elementos, o conteúdo temático, o estilo verbal (a seleção operada nos recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) e a construção composicional. Esse trecho deixa claro que todos os modos de utilização da língua implicam um estilo. A maneira de olhar o estilo, para Bakhtin, mais uma vez contrapõe-se à da visão clássica do estudo do estilo, que traz a concepção de "a arte do bem escrever", criando a dicotomia "bom estilo" versus "mau estilo", como encontramos no Livro 3 da Rhétorique de Aristóteles.

Ao definir gêneros, Bakhtin demonstra que os enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas15 de comunicação:

A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 1997b [1952-1953], p.279).

Isso significa que cada esfera produzirá determinados gêneros, ou seja, enunciados relativamente estáveis por seu conteúdo temático, estilo e construção composicional. Em nossa análise, a noção de esfera e suas implicações para os gêneros poema e canção serão de bastante utilidade. Examinaremos aqui três instâncias dessas esferas: a da circulação, a da produção e a da recepção dos enunciados.

Na teoria bakhtiniana, a esfera discursiva é também ideológica. A noção de ideologia no Círculo está ligada necessariamente à de esfera, além de dizer respeito a uma visão de mundo (cosmovisão), como destaca Bakhtin, em sua tese sobre Rabelais nos anos 40, e de se constituir numa relação de reflexão ou de refração da realidade. Assim, essa visão de mundo, enquanto projeto discursivo do falante, está condicionada tanto à esfera ideológica quanto ao gênero de discurso. O que significa dizer que cada esfera, por meio dos seus gêneros de discurso, tem o seu modo particular de refletir e refratar a realidade. Além disso, o(s) sujeito(s) do(s) dizer(es), como apresentam Volochínov, Bakhtin e Medvedev, são constituídos de uma intersubjetividade, ou seja, na relação que manté(ê)m com outros sujeitos e outros dizeres. Sobre a correlação entre gênero e estilo, Bakhtin afirma que o enunciado, enquanto gênero de qualquer esfera da comunicação, pode refletir a individualidade de quem fala (ou escreve):

Em outras palavras, possui um estilo individual. Mas nem todos os gêneros são igualmente aptos para refletir a individualidade na língua do enunciado, ou seja, nem todos são propícios ao estilo individual. Os gêneros mais propícios são os literários - neles o estilo individual faz parte do empreendimento enunciativo enquanto tal (...) (BAKHTIN, 1997b [1952-1953], p.283).

Estendendo essa declaração de Bakhtin, assim como os gêneros da esfera literária, os da esfera verbomusical são igualmente propícios à manifestação do estilo individual, exatamente pelo mesmo motivo exposto por Bakhtin, ou seja, por uma exigência da estrutura enunciativa mesma dessa esfera.

Voltemos agora à citação de BRAIT (2005, p.80) acima, que reconhece duas dimensões do estilo: uma textual e outra discursiva, uma verbal e outra social. Reconhecendo também essas características, em nosso trabalho, pela própria natureza sincrética dos nossos objetos, iremos analisar o estilo numa perspectiva que ultrapassa em muito a materialidade verbal. Seguindo o exemplo de Bakhtin, olharemos para os nossos objetos tentando refinar nossa análise de acordo com as próprias especificidades do objeto.

Lidamos com três enunciados concretos, um do gênero poema e dois do gênero canção. Iremos analisar esses três enunciados contemplando as suas características estilísticas (entonação ou o som expresso pela palavra escrita e cantada; eleição e disposição das palavras no interior da enunciação), sempre vinculando a forma verbal de enunciação à situação enunciativa e ao auditório (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 1993, p.262). Além da forma verbal, como analisamos o gênero canção, iremos investigar a forma musical desse enunciado, bem como a entonação expressa pela interpretação dos cantores. Para tanto, nos apoiaremos nas contribuições de TATIT (1996)16, que elaborou uma teoria de estudos da canção, e de pesquisas de nossa autoria (CARLOS, 2007).

TATIT (1996, p.9), ao falar da canção, concebe-a como uma "imbricação necessária entre duas semioses, a letra e a melodia". Assim, o cancionista se assemelharia a um malabarista, pois tem a função de equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia. Para esse autor, a "dicção" do cancionista (compositor, cantor, arranjador) está ligada a um modo de dizer, de cantar, de musicar, de gravar, mas, principalmente a uma maneira de compor. Com relação à metáfora do cancionista visto como um malabarista, para nós, esse "jogo de equilibrar" está ligado a uma complexidade bem mais ampla do que as coerções do gênero, pois o cancionista, no momento de compor uma canção, precisa mobilizar uma série de outras estratégias discursivas exigidas principalmente pela situação comunicativa e o auditório, ou seja, impostas pela esfera discursiva verbomusical.

Outra reflexão feita por TATIT (1996, p.12-14) é a da ligação entre canto e fala. Ao relacionar canto e fala, o semioticista defende a ideia de que toda e qualquer canção popular tem sua origem na fala. Aqui, haveria uma tensão entre a voz que fala (interessada pelo que é dito) e a voz que canta (interessada pela maneira de dizer). Em nosso trabalho, essa inter-relação entre voz que fala e voz que canta será de singular importância, ao analisarmos a identidade discursiva dos autores-criadores Toquinho e Belchior e o modo pelo qual esses cancionistas, através de sua dicção, colocam-se/posicionam-se diante de si e de uma ou várias exterioridades ou, falando com outras palavras, a maneira pela qual esses sujeitos instituem um estilo.

No texto de Volochínov de 1926, ele elege três elementos de uma obra artística: o autor, o herói (o objeto do enunciado) e o ouvinte, os quais devem ser entendidos como constitutivos da obra determinando o seu estilo. Em nossa análise, esses elementos são essenciais para compreender o próprio modo de existência de uma obra. Faremos nesta pesquisa exercício semelhante ao de Volochínov (que discute nesse texto as relações entre o autor e o ouvinte, entre o ouvinte e o herói), analisando como se dão essas relações entre escritor, poema e leitor, na esfera discursiva literária; e entre cancionista, canção e ouvinte, na esfera discursiva verbomusical brasileira; bem como as relações entre as duas esferas.

4. Tecendo palavras: análise dos aspectos estilísticos dos gêneros discursivos poema e canção nas esferas literária e verbomusical

4.1 Os enunciados

Transcrevemos no Ex.1 , acima, os enunciados analisados neste artigo. A transcrição dos textos, desde os títulos, foi feita seguindo a forma materializada nos seus suportes originais de publicação, respeitando tanto a divisão de versos e estrofes quanto o destaque dado a algumas palavras e expressões: a página do livro Poesia Russa Moderna, no caso do poema de Iessiênin, traduzido por Augusto de Campos (Ex.1.1 ); o encarte do CD Só tenho tempo pra ser feliz e do DVD Toquinho, considerando a letra da canção do compositor homônimo (Ex.1.2 ); o encarte do CD Baihuno, no caso da letra da canção de Belchior (Ex.1.3 ). Os álbuns dos quais foram retiradas as canções estão detalhados na seção 4.2, a seguir. Com relação à letra da canção de Belchior, o último verso transcrito aqui não aparece no encarte do CD Baihuno, surgindo somente na interpretação de Belchior. Como lidamos com enunciados do gênero discursivo canção, composto pela imbricação entre a semiose verbal e a musical, analisaremos também a dimensão sonora desse gênero discursivo, ao investigar os aspectos estilísticos ligados à entonação, entendida como expressão vocal. O áudio das duas canções, bem como as capas e contracapas coloridas dos três álbuns podem ser tomados como anexos a este artigo. Recomenda-se, portanto, que a leitura de nossa análise seja feita simultaneamente com o cotejo deste material.

4.2 Os álbuns20

I - Baihuno. Belchior. Movieplay, 1993. CD.21

Faixas

ABERTURA (Recado Baihuno) 01 Baihuno (com Francisco Casaverde); 1º MOVIMENTO (Num País Feliz) 02 Num país feliz (com Jorge Mello); 03 Senhoras do Amazonas (com João Bosco); 04 Notícia de terra civilizada (com Jorge Mello); 05 Quinhentos anos de quê? (com Eduardo Larbanois/Versão de Belchior); 2º MOVIMENTO (Ondas Tropicais) 06 Ondas tropicais (com Caio Sílvio); 07 Onde jaz meu coração; 3º MOVIMENTO (Anais da Guerra Civil) 08 Lamento do marginal bem sucedido [sic]; 09 S.A. (com João Mourão); 4º MOVIMENTO (Elegia Obscena) 10 Amor e crime (com Francisco Casaverde); 11 Balada do amor perverso (com Francisco Casaverde); 12 Elegia obscena; FINAL (Arte Final) 13 Arte final (com Gracco e Jorge Mello); 14 Se você tivesse aparecido (com Gracco); 15 Viva la dolcezza! (com Gracco); 16 Até mais ver (Adap. de poema de Sierguéi Iessiênin)22.

II - Toquinho. Toquinho. Biscoito Fino, 2001. DVD.

Faixas

01 Aquarela (com Fabrizio, Morra e Vinicius de Moraes); 02 Bachianinha (Paulinho Nogueira); 03 Samba de Orly (com Chico Buarque e Vinicius de Moraes); 04 O que será (Chico Buarque); 05 Que maravilha (com Jorge BenJor); 06 Na boca da noite (com Paulo Vanzolini); 07 Samba pra Vinicius (com Chico Buarque); 08 Tarde em Itapuã (com Vinicius de Moraes); 09 Samba da benção (com Baden Powell e Vinicius de Moraes); 10 Regra três (com Vinicius de Moraes); 11 A felicidade (com Tom Jobim e Vinicius de Moraes); 12 A tonga da mironga do kabuletê (com Vinicius de Moraes); 13 Carta ao Tom-74 (com Vinicius de Moraes); 14 Escravo da alegria (com Mutinho); 15 La voglia la pazzia (com Bardotti e Vinicius de Moraes); 16 Doce vida (com Francis Hime); 17 Amor em paz (com Tom Jobim e Vinicius de Moraes); 18 Caso sério; 19 Hino ao Corinthians (Lauro D'Avila); 20 Ao que vai chegar (com Mutinho); 21 Até logo, companheiro (com Sierguéi Iessiênin); 22 A casa (Vinicius de Moraes); 23 O pato (com Vinicius de Moraes); 24 O caderno (com Mutinho); 25 Canção pra Jade (com Mutinho); 26 Criança feliz (domínio público).

III - Só tenho tempo pra ser feliz. Toquinho. Movieplay, 2003. CD.

Faixas

01 Esquece; 02 Canção pra Jade (com Mutinho); 03 Jeito simples de ser; 04 Receita de felicidade; 05 Em primeiro lugar (D.R); 06 A distância (Domenico Modugno/Versão de Toquinho); 07 Amor ateu (com Mutinho); 08 Só tenho tempo pra ser feliz (com Hampar e Nani); 09 Caso encerrado (com Paulinho da Viola); 10 Lindo e triste Brasil; 11 Na chama da cama; 12 Além do portão (com João Carlos Pecci); 13 Vem viver (com Mauricio Mattar); 14 Quem? (Sergio Jodice/Versão de Toquinho); 15 Nas asas de um instrumento (com Rizzo e Silvestro); 16 Até logo, companheiro (com Sierguéi Iessiênin).

4.3 Aspectos estilísticos

O primeiro enunciado (Ex.1.1 ), pertencente ao gênero de discurso poema, é produto da esfera discursiva literária brasileira, composta por escritores, agentes de escritores, editores, donos de livrarias e de sebos, distribuidores de livros, leitores etc. São esses sujeitos que produzem, fazem circular e consomem todos os enunciados que compõem essa esfera: crônica, conto, romance, novela, haicai, dentre outros. Esses textos materializam-se em diversos suportes (papel, tela do computador) e são difundidos por diversos midia. O texto escolhido para nossa análise foi originalmente materializado no suporte canônico dessa esfera: a página do livro.

Já os outros dois enunciados analisados (Exs.1.2 e 1.3 ), do gênero de discurso canção, são constituídos no âmbito da esfera discursiva verbomusical brasileira, formada por compositores, letristas, músicos, intérpretes, radialistas, produtores musicais, empresários do meio artístico, donos de lojas de discos, ouvintes e fãs, todos fazedores, divulgadores e consumidores da canção, gênero discursivo por excelência produzido pela/para a prática discursiva verbomusical. Outros gêneros discursivos produzidos nessa esfera são as capas e contracapas dos álbuns (Exs.2 , 3 e 4) e encartes que, junto com a canção (semiose verbal e musical), materializam-se nos suportes K7, LP, CD (Exs.2 e 4), DVD (Ex.3), circulando pelos meios radiofônico, televisivo, eletrônico, mecânico, magnético e digital.

A seguir, analisamos os três enunciados (Ex.1 ), sempre pensando nos aspectos estilísticos desses dois gêneros textuais nessas duas esferas de discurso: a literária e a verbomusical. Como vimos na fundamentação teórica, a forma da enunciação é constituída pela entonação, pela escolha das palavras e pela sua disposição no interior da enunciação (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 1993, p.262). Passemos agora ao exame da forma da enunciação, associada à sua situação comunicativa e ao seu auditório.

Enunciado I - Poema Até logo, até logo, companheiro

Ao analisarmos as questões estilísticas no texto de Augusto de Campos (Ex.1.1 ), contemplamos as relações que esse texto mantém com o conteúdo e o contexto de produção do texto que o deu origem: no caso, o poema em língua russa do poeta Sierguéi Iessiênin. No entanto, não faremos observações no que diz respeito à diferença linguística entre a tradução de Campos e o poema original, pois não é objetivo deste trabalho empreender essa comparação entre os dois idiomas. Como observamos em sua publicação, o texto de Augusto de Campos apresenta-se, na materialidade verbal do suporte livro, como uma tradução de um poema de Sierguéi Iessiênin. Porém, a nomeação de Sierguéi Iessiênin como autor-primeiro não aparece na página em que está impresso o poema; podendo ser identificada no sumário que abre o livro. Aqui a relação autor-tradutor e autor-criador do poema em russo, considerando o próprio texto, a comunidade discursiva (autor e leitor; criador e tradutor etc.) e o modo de circulação (suporte etc.) dar-se-á das seguintes maneiras:

a) na esfera da circulação e recepção, se o auditório da enunciação não souber previamente quem é Sierguéi Iessiênin, ele só saberá que Campos traduziu um poema de uma língua diferente da língua portuguesa e talvez desconhecida para falantes/leitores do idioma vernáculo;

b) se o leitor observar o título da obra, que já anuncia a língua traduzida (o russo), a inferência evidente é a de que o poema Até logo, até logo, companheiro foi escrito originalmente em russo; desse modo, o leitor não precisa saber pelo conhecimento de mundo que Iessiênin é um poeta russo;

c) se esse leitor olhar para o texto examinando o título da publicação, Poesia Russa Moderna, ele inferirá que Sierguéi Iessiênin relaciona-se de algum modo com Maiakóvski, reconhecido como o maior poeta russo do século vinte;

d) se o leitor não ativar seu conhecimento prévio, pode atuar com uma responsividade que o dirigirá a procurar outros elementos paratextuais (prefácios, notas, outros poemas) do livro no qual foi publicado o poema, os quais o farão "descobrir" quem é o autor do texto traduzido; o próprio modo de acabamento da obra já contribui definitivamente para o diálogo entre o leitor e os autores-primeiros dos textos traduzidos, apresentando, antes de cada um do conjunto de traduções de um mesmo escritor, uma pequena biografia dos autores-criadores. Apesar de a remissão a essas biografias não aparecer na edição de 1968, os organizadores da tradução resolvem esse problema na edição de 2001, com a informação "ver nota biográfica", localizada no final da página, logo abaixo do poema Até logo, até logo, companheiro;

e) para chegar à relação entre Iessiênin e Maiakóvski, o leitor poderá ainda recorrer a outros textos traduzidos pelo trio Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, como a obra Maiakóvski/Poemas, organizada um ano antes, em 1967, pela Editora Tempo Brasileiro, e reeditada em 1982, pela Editora Perspectiva23.

Em todos esses casos, o autor-tradutor do poema, que é também organizador da obra de tradução, infere, na esfera de produção da obra, que seu auditório é interessado pela, ou conhecedor de, literatura russa e sabe ou quer saber da relação entre Maiakóvski e Sierguéi Iessiênin. Esse conhecimento de mundo deve ser acessado pelo leitor para que o autor-criador do poema mantenha "um vínculo vivo e dialógico com seu auditório" (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 1993, p.251). Para que esse vínculo se efetive, o leitor deve saber de dados biográficos de Maiakóvski e de Iessiênin. Sierguéi Iessiênin nasceu em 1895 e suicidou-se aos 30 anos. Sofrendo de alcoolismo e com um casamento turbulento e fracassado, Iessiênin tirou sua vida num quarto do Hotel Inglaterra em Leningrado, no dia 28 de dezembro de 1925. Cortou os pulsos e escreveu com o próprio sangue duas estrofes (Até logo, até logo, companheiro) endereçadas ao amigo Maiakóvski; logo depois de escrever os versos finais, enforcou-se.

Numa atitude dialógica, foi a Iessiênin que Maiakóvski dedicou um de seus mais belos poemas24, condenando a atitude que ele próprio viria a adotar25, cinco anos depois, e cunhando um de seus mais célebres versos: "Melhor morrer de vodca que de tédio!". Maiakóvski também dialogou com a ação de escritura do amigo Iessiênin, deixando um bilhete de despedida, que dizia: "O incidente está encerrado. O barco do amor quebrou-se contra a vida cotidiana. Estou quite com a vida. É inútil passar em revista as dores, os infortúnios e os erros recíprocos. Sejam felizes".

O autor-tradutor conta com que o seu leitor recupere um pouco da vida apresentada no texto que ele traduziu. Como nos escrevem BAKHTIN e VOLOCHÍNOV (1993, p.255), "na construção do seu herói, o escritor não deve esquecer nem por uma instante que a força de expressividade artística depende, em grande medida, da força de verdade da vida que está encerrada na obra"26.

Na leitura desse poema, quanto mais o leitor recuperar a dimensão extra-verbal do texto, mais ele apreenderá a vida da obra. Assim, se o auditório da tradução de Campos não conhecer o contexto de produção do texto de Iessiênin, só apreenderá o significado dado pelas próprias palavras do texto (a parte verbal) traduzido: um sujeito que, ao morrer, despede-se de um outro sujeito, consolando-o e prevendo um encontro no futuro com seu companheiro, o qual não tardará a chegar.

Nesse caso, o intercâmbio de enunciações entre autor-criador e auditório não seria o previsto pelo autor da tradução, na esfera de produção do texto, mas ainda assim haveria diálogo, uma conversação recíproca entre duas pessoas: um autor-tradutor que escreve e um leitor que se propõe a ler (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 1993, p.250). Mesmo que o leitor de Campos não recupere exatamente o signifcado extra-verbal da enunciação de Iessiênin, haverá interação. A entonação, a escolha das palavras e a sua organização no poema, além da quantidade de versos aproxima o leitor para uma enunciação cujo tema principal é a despedida ao morrer.

A relação entre o autor-criador, o autor-tradutor e o leitor expressa pelo texto de Campos deixa clara a importância do destinatário na enunciação. Sobre esse assunto, Bakhtin esclarece que:

o índice substancial (constitutivo) do enunciado é o fato de

dirigir-se

a alguém, de estar voltado

para o destinatário.

(...) o enunciado tem autor e destinatário. Essas formas e concepções do destinatário se determinam pela área da atividade humana e da vida cotidiana a que se reporta um dado enunciado. A quem se dirige o enunciado? Como o locutor (ou o escritor) percebe e imagina seu destinatário? Qual é a força da influência deste sobre o enunciado? É disso que depende a composição, e sobretudo o estilo, do enunciado. Cada um dos gêneros do discurso, em cada uma das áreas da comunicação verbal, tem sua concepção padrão do destinatário que o determina como gênero (BAKHTIN, 1997b [1952-1953], p.320-321).

Se compararmos as enunciações do poema originário de Iessiênin e da tradução de Campos, podemos dizer que, na tradução, o texto do autor-tradutor tenta se aproximar ao máximo da enunciação do texto do autor traduzido, fenômeno de outra natureza no caso da adaptação de um texto de um gênero para outro gênero, como veremos à frente ao analisar a canção de Belchior. Assim, o discurso do autor-tradutor cumpre a função de mediar o encontro de um leitor de um determinado idioma (nesse caso, o português) com as palavras de um autor-criador de um idioma (no caso, o russo) desconhecido pelo leitor. Nesse sentido, o auditório privilegiado do texto de Campos é o leitor que conhece a língua portuguesa, mas não conhece a língua russa. O que o leitor esperaria aqui é dialogar com Iessiênin e "usa" as palavras de Campos apenas para chegar ao poeta russo.

Mesmo destacando esse diálogo entre o autor-criador do poema e o leitor brasileiro via palavras de Campos, não podemos desconsiderar o papel autoral do tradutor. Em Até logo, até logo, companheiro, Campos também se instaura como autor-criador, na medida em que ele transpõe os elementos de uma língua (russa) para outra (portuguesa) dando um novo acabamento ao texto. Além disso, o novo leitor do novo texto não precisa "compreender o texto como o compreendia o próprio autor[-criador]. Mas a compreensão pode e deve ser superior à dele. Uma obra, poderosa e profunda, é, sob muitos aspectos, inconsciente e portadora de sentidos múltiplos" (BAKHTIN, 1997b [1970-1971], p.382).

Enunciado II - Canção Até logo, companheiro

É muito comum na produção cancional brasileira a musicalização de textos, em geral daqueles com valor poético. Como exemplo, podemos citar o caso de Gilberto Gil, que musicou27, em sua totalidade, o poema mais conhecido de Manuel Bandeira, Vou-me embora pra Pasárgada28. Essa prática, inclusive, é o que dá base ao curso dos professores Reginaldo Domingos e Marco Pereira, que tem como tema a relação entre a música brasileira e a poesia, mais especificamente a musicalização de poemas feita por grandes compositores da MPB (Ex.5).

Os organizadores citam alguns nomes de cancionistas brasileiros que se utilizam desse expediente, entre os quais Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Renato Russo, Fagner e Belchior. A mesma atitude teve Toquinho (Ex.1.2 ), ao musicar a tradução de Augusto de Campos para o poema de Iessiênin (Até logo, até logo, companheiro). Ao compararmos os dois textos em sua materialidade verbal, vemos que Toquinho deu à sua canção praticamente o mesmo título da tradução de Campos indicada no sumário do livro, apenas omitindo uma vez a expressão "até logo". Além disso, manteve a mesma quantidade de versos e estrofes do poema. A disposição visual dos versos da canção de Toquinho no encarte do CD e do DVD também segue a mesma do poema de Campos publicado no livro Poesia Russa Moderna. É como se o ouvinte da canção estivesse escutando o mesmo texto (praticamente as mesmas palavras) do poema traduzido, mas agora cantado na voz do intérprete Toquinho. Porém, o texto enquanto gênero é outro.

Apesar de Toquinho ter musicado praticamente o mesmo texto traduzido por Campos, esse texto, agora na esfera verbomusical, muda de status. O novo texto quando se junta a uma melodia não será mais designado poema, mas sim letra de canção. O ouvinte da canção até poderá pensar que se trata do mesmo texto de Campos/Iessiênin29, mas o texto adquire nova identidade, pois a situação enunciativa (participantes: autor e auditório; espaço e tempo), a esfera, o gênero e o estilo são outros. Isso comprova a observação de VOLOCHÍNOV (1926) de que a mudança de esfera de produção, circulação e recepção implica a mudança de gênero e, assim, a mudança de estilo.

Com relação à materialidade verbal propriamente dita, há algumas diferenças de construção entre a canção e o poema, principalmente no que se refere à exclusão, inserção e troca de lexemas. Na canção (Ex.1.2 ):

a) a forma enclítica "Guardo-te" transforma-se em próclise ("Eu te guardo"), com a inclusão do pronome de primeira pessoa (verso 2, estrofe 1);

b) é excluído o artigo "o" que antecede o pronome possessivo "nosso" (verso 3, estrofe 1);

c) a palavra "sobrolho" é trocada pela palavra "ar" (verso 2, estrofe 2);

Todas essas alterações estilísticas empreendidas por Toquinho são motivadas, juntamente às injunções linguísticas e discursivas da própria esfera, pela formação melódica da canção. O texto é mudado para que se adéque à melodia; o cancionista atua aqui como um malabarista, equilibrando a melodia no texto e o texto na melodia. Como observa TATIT (1996, p.9), "na junção da sequência melódica com as unidades linguísticas, o cancionista tem sempre um gesto oral elegante, no sentido de aparar as arestas e eliminar os resíduos".

Com relação à troca indicada no item "c", presenciamos aqui a atuação da posição axiológica do compositor Toquinho que, ao substituir um substantivo por outro, ajusta semanticamente, na esfera verbomusical, a frase traduzida por Campos. O posicionamento axiológico do autor da canção também é flagrado na interpretação da música, por meio da substituição do pronome demonstrativo de primeira pessoa "nesta" (verso 3, estrofe 2) pela forma de segunda pessoa "nessa". Linguisticamente, essa classe de pronomes demonstra a posição de um elemento qualquer em relação às pessoas do discurso, situando-os no espaço, no tempo ou no próprio discurso.

O uso do pronome demonstrativo de primeira pessoa indica tanto a proximidade de quem fala ou escreve com um objeto referido, como também a referência ao tempo presente em relação a quem fala ou escreve. Já as formas de segunda pessoa indicam um maior distanciamento entre o sujeito que fala ou escreve e o objeto referido, bem como a referência ao tempo passado em relação a quem fala ou escreve. Tanto em Até logo, até logo, companheiro como em Até logo, companheiro, o objeto em referência é a vida. Enquanto no poema o sujeito do enunciado ainda toma "a vida" como algo presente e próximo, na canção a troca de pronomes operada por Toquinho realça a distância entre o sujeito e a vida, a qual desde o presente do enunciado já passa a ocupar um lugar no passado.

Voltando ao que dissemos acima, ao fato de que o ouvinte, ao escutar a canção de Toquinho, pareça estar ouvindo o mesmo texto do poema de Iessiênin traduzido, cabe uma pergunta: quem seria o autor da canção? Quem dá a resposta é o próprio Toquinho. Essa autoria é dividida entre o cancionista Toquinho, o poeta russo e o seu tradutor brasileiro, afinal "o estilo é pelo menos duas pessoas". Mas esse compartilhar de vozes foi articulado pelo compositor Toquinho, pelo seu poder de dar acabamento a essa canção enquanto obra. Essa tripla autoria é assumida pelo cancionista por meio da indicação no encarte do CD e do DVD dos nomes de Iessiênin e Augusto de Campos (Ex.1.2 ). Na disposição da letra no encarte temos, após o título da canção, os antropônimos Toquinho e Iessiênin, lado a lado, seguidos pelo nome de Campos. Nesse empreendimento estilístico, Toquinho já deixa clara a função de Campos como "apenas" o mediador entre ele, cancionista, e o autor-criador primeiro do texto que se juntará à sua melodia, conformando-se em uma canção.

Ao compararmos os títulos dos enunciados de Campos e Toquinho, vemos que são quase idênticos. No entanto, o modo como esses dois textos apresentam-se para o seu interlocutor é sutilmente diferente. No primeiro (Ex.1.1 ), no que concerne ao modo como o autor relaciona-se com o objeto textual, o próprio autor-criador (da tradução), que é também organizador da obra, apresenta-se como tradutor do texto Até logo, até logo, companheiro. Nessa esfera discursiva literária, é clara a diferença entre tradução (de uma língua estrangeira para o português) e versão (do português para uma língua estrangeira). Já no segundo texto (Ex.1.2 ), Toquinho coloca seu nome junto ao de Iessiênin, instaurando aí uma coautoria, patenteada na listagem das músicas nos álbuns, com a indicação apenas do nome de Iessiênin (Exs.3 e 4 em negrito). Além disso, chama de versão a relação entre Campos e o objeto traduzido. No âmbito desse campo discursivo (o verbomusical), não há a preocupação com essas distinções terminológicas. Portanto, tradução e versão são usados como sinônimos. Sobre essa relação que um autor mantém com o seu enunciado e com os enunciados dos outros, Bakhtin resume:

Este é um caso típico e importante: com muita frequência, a expressividade do nosso enunciado é determinada - às vezes nem tanto - não só pelo teor do objeto do nosso enunciado, mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos, com os quais polemizamos; são estes últimos que determinam igualmente a insistência sobre certos pontos, a reiteração, a escolha de expressões mais contundentes (ou, pelo contrário, menos contundentes), o tom provocante (ou, pelo contrário, conciliatório), [

sic

] etc. A expressividade de um enunciado nunca pode ser compreendida e explicada até o fim se se levar em conta somente o teor do objeto do sentido. A expressividade de um enunciado é sempre, em menor ou maior grau, uma

resposta,

em outras palavras: manifesta não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do locutor com os enunciados do outro (BAKHTIN, 1997b [1952-1953], p.316-317).

Como analisamos o estilo em dois enunciados sincréticos verbal e musical (Exs.1.2 e 1.3), é necessário ampliar o conceito de entonação para a materialidade sonora e para a interpretação vocal. Assim, a entonação refere-se ao som expresso pela palavra escrita (a letra da canção) e pela palavra cantada (a canção cantada por um intérprete). Nesse sentido, retomamos a relação feita por BAKHTIN e VOLOCHÍNOV (1993, p.262) de que o "tom faz a música e o sentido de qualquer enunciação".

A canção de Toquinho classifica-se no que TATIT (1996, p.22) chama de canção passional. Até logo, companheiro caracteriza-se por desaceleração, prolongamentos vocálicos (final de cada verso), valorização do percurso melódico e ausência de refrão. O sujeito dessa canção está sempre num grau de alta emotividade pelo sentimento de falta de um objeto desejado; e sofre por isso. No caso da letra da canção, o objeto desejado é a morte. O sujeito quer entrar em conjunção com a morte e, consequentemente, em disjunção com a vida.

A ideia de brevidade ou de abreviação apresentada na letra da canção (a brevidade da vida) é expressa igualmente na interpretação da música, que dura apenas 1 minuto e 6 segundos, quando o tempo médio de uma canção é de 3 minutos. Até logo, companheiro é uma canção compacta, sem introdução nem finalização instrumental, que traz unicamente a voz de Toquinho e o seu violão (já anunciados na capa do DVD e do CD como se observa nos Exs.3 e 4). Breve é a canção porque breve é a vida. Falta refrão, faltam instrumentos. Falta vida.

Agora, pensemos na relação não mais entre o compositor e o enunciado, mas entre o enunciado analisado e os outros enunciados do álbum enquanto obra. No contexto do DVD (Ex.3), que revisita e celebra a trajetória de Toquinho, a enunciação do texto de Iessiênin em forma de canção esvazia a dramaticidade do poema. Apesar de a melodia da canção ser mais lenta e disfórica, apenas com a expressividade de uma voz suave, quase falada, acompanhando-se de um violão, a semântica global da obra, que nos apresenta alegria e euforia (expressa já na capa do DVD com um artista sorridente de rosto erguido, violão na mão e cantando energicamente ao microfone), diminui em muito a carga dramática e torturada do texto do poeta russo. Aqui, dentro dessa cronotopia, é mais difícil para o ouvinte dessa canção pensar em morte, em dor, em uma despedida definitiva, apesar de a letra expressar esses lexemas. No DVD, a organização das faixas (Ex.3) também comprova que não há uma relação semântica entre as canções. A canção Até logo, companheiro aparece próxima a canções de temáticas bastante variadas: de amor, de futebol, infantis, alegres. Isso se explica pelo fato do álbum não ser um disco conceitual, gestado em torno de um tema comum. Mas o álbum pode ser generalizado com a ideia da comemoração (da carreira do compositor) e da alegria.

Essa mesma alegria incorporada à letra da canção em 2001, no lançamento do DVD, é repetida dois anos depois, quando Até logo, companheiro é novamente registrada no CD Só tenho tempo pra ser feliz (Ex.4), que traz, para corroborar o título do disco, também uma imagem de capa semelhante à do trabalho anterior: Toquinho com sorriso nos lábios numa imagem com cores fortes e vibrantes. Mas aqui o enunciado, diferentemente do que acontece no álbum de 2001, aparece como última canção do disco, cumprindo a função de texto de despedida. O conteúdo do texto dessa canção, se comparado ao contexto do CD, que gira em torno da felicidade, e de outras canções com temática igual (Receita de felicidade e Só tenho tempo pra ser feliz), causa um embate ideológico, uma tensão entre vida (feliz) e morte. À primeira vista, a presença dessa canção em um disco que aborda a felicidade seria incoerente com o contexto do CD enquanto obra. Caberia a pergunta: como um CD, que fala de felicidade na vida, traz uma canção que retrata a morte? A contradição acaba se pensarmos em termos bakhtinianos: vida e morte estão diretamente associadas na mesma medida em que o indivíduo só é porque se relaciona com o outro.

Enunciado III - Canção Até mais ver

Contrariamente ao que acontece com a canção de Toquinho, o projeto estilístico empreendido por Belchior não pode ser comparado somente à melodização (ou musicalização) de um poema. Seu projeto é mais ambicioso, já sinalizado pelo gesto de criar um novo título para a sua composição. Na canção Até mais ver (Ex.1.3 ), uma balada country à moda de Bob Dylan, Belchior faz o que ele próprio chama de uma adaptação do poema de Sierguéi Iessiênin. Esse é o único caso encontrado em toda a sua obra30, em que o compositor cearense indica no próprio encarte do CD, logo abaixo do título da canção, essa relação hipertextual entre a sua música e um texto de outro autor, nesse caso o poema Até logo, até logo, companheiro. Além da indicação presente no encarte, há uma outra, não mais materializada no papel, mas sim durante a interpretação da canção. Ao final da música, Belchior anuncia falando a autoria do texto no qual se apoia para fazer sua canção, dizendo "Sierguéi Iessiênin, in extremis". Portanto, há uma redundância na indicação autoral do texto de Iessiênin: uma marcada pela palavra escrita e outra marcada pela palavra cantada (que se manifesta em fala).

Aqui, temos a seguinte situação enunciativa: numa primeira instância, o sujeito-locutor (intérprete) canta a música; numa segunda instância, o sujeito-autor da composição indica o nome de Iessiênin e instaura o papel de coautoria para esse sujeito e/ou para si próprio. Todos esses aspectos fazem parte do processo de acabamento da canção, que traz em um mesmo enunciado a tensão entre a voz que canta e a voz que fala. A primeira reforça o próprio modo de enunciar; a segunda reforça o conteúdo do enunciado (TATIT, 1996, p.12). Nessa fala final, há uma dupla remissão, tanto ao poeta russo, que se matou, quanto ao poema In extremis do parnasiano BILAC (2004)31, o qual trazemos abaixo:

É interessante observar que a dupla intertextualidade entre a canção de Belchior e os textos de Iessiênin e Bilac é marcada no encarte do CD pela utilização das aspas (Ex.1.3 ), as quais inserem em um único bloco de texto os dois autores colocados em diálogo por e com Belchior32.

Retomando o poema de Bilac (Ex.6), vemos que o enunciador, à beira da morte ("(...) os meus dedos gelados (...) E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo!"), ainda não aceitando a sua condição ("Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia/Assim! de um sol assim!"), compartilha a sua dor, por morrer, com a de sua amada, que sofre a perda do amado ("(...) postos nos meus os teus olhos molhados,/E apertando nos teus os meus dedos gelados..."). O poema de Iessiênin (Ex.1.1 ), cujo conteúdo é uma espécie de suicídio anunciado, traduz de modo incisivo a despedida final. O poeta, considerado um dos grandes da revolução, buscou no suicídio a saída para sua crescente desilusão com a situação soviética, após a morte de Lênin. In extremis é uma locução latina33 de uso ainda atual que significa "nos últimos momentos", "nas últimas". Aplica-se a certas pessoas e situações, indicando que estão a ponto de morrer, desaparecer, finalizar. É exatamente essa a cena que os textos de Bilac (1865-1918), Iessiênin (1895-1925) e Belchior (1946) querem estabelecer. No entanto, esses instantes finais são representados de modo oposto nesses três textos. Inversamente aos textos de Iessiênin e Belchior, que apresentam um sujeito que busca e provoca a morte, o texto de Bilac mostra um sujeito que sofre por ser obrigado a deixar "a delícia da vida".

A canção Até logo, companheiro (Ex.1.2 ) foi gravada pela primeira vez somente em 2001 (Ex.3), quase 10 anos depois do lançamento de Baihuno (Ex.2 ). Toquinho fala sobre a gênese da música, em entrevista ao site da Biscoito Fino:

BF - Fale sobre a música Até logo, companheiro - única inédita do DVD.

TOQUINHO - É uma melodia que fiz há muitos anos para o poema de Sierguéi Iessiênin, com tradução de Augusto de Campos. Iessiênin, que se matou no Hotel Inglaterra, em Leningrado, em 28/12/25, tinha escrito o poema pouco antes de sua morte, em homenagem ao seu companheiro Maiakóvski.

Com isso, não podemos saber se Belchior, ao fazer a adaptação para o poema de Iessiênin, já tinha tido acesso à música de Toquinho, parceiro seu nas baladas românticas Pequeno perfil de um cidadão comum e Meu cordial brasileiro34, além de companheiro na gravadora Movieplay, responsável tanto pelo CD Baihuno quanto pelo disco Só tenho tempo pra ser feliz. Por outro lado, é muito provável que já conhecesse a tradução de Augusto de Campos. Belchior é um profundo conhecedor da obra dos modernistas, como aponta o texto do contista carioca Sérgio Sant'anna, publicado no site Cronópios em 2 de junho de 2006:

Vocês não podem nem imaginar, mas sou amigo do Belchior ("vida/vento/vela/leva-me daqui"), do tempo em que ele fez uma espécie de estágio existencial-musical em BH, na época em que o Clube da Esquina tinha feito aquela obra maravilhosa com esse título (...) Mas o Belchior. Começou ele a frequentar o Suplemento Literário de Minas Gerais, onde se reuniam os artistas todos para fazer artes e molecadas. Belchior, vejam só, era um radical em poesia, só admitia de Haroldo de Campos para cima, ou seja, o que ainda nem fora inventado (...).

Diferentemente do que acontece na canção de Toquinho (Ex.1.2 ), que instaura três autores, a composição de Belchior institui uma dupla autoria (Ex.1.3 e 2 ). O cancionista enuncia a partir de um lugar que o torna coautor de um poeta russo. O que fica de recado para o ouvinte de Belchior é o fato de que ele não precisa de um mediador para dialogar com o poeta russo. Mas podemos pensar em duas hipóteses: ou o autor da composição omite o conhecimento do poema por meio da tradução de Campos; ou ele mesmo lê o texto no original e o adapta. Nesse último sentido, a adaptação se configura como um projeto estilístico mais sofisticado do que a musicalização feita por Toquinho. Enquanto este já achou o texto de Iessiênin pronto (traduzido), Belchior recria o texto, ressignifica-o. Entretanto, se julgarmos a adaptação como a ação de transformar um texto de um gênero para outro gênero ou de uma esfera para outra esfera, Toquinho, no próprio ato de musicar, gravar, cantar sua canção Até logo, companheiro, também empreende aí um gesto de adaptação e, portanto, de ressignificação.

Comparando o texto da canção de Belchior (Ex.1.3 ) com o poema de Iessiênin, por meio da tradução de Campos (Ex.1.1 ), vemos claramente que a estrutura do primeiro assemelha-se à do segundo. O cearense manteve a mesma forma - quantidade de versos (8) e de estrofes (2) - do texto do russo. Essa semelhança formal poderia nos levar a classificar o texto como uma paródia. No entanto, os dois textos têm a mesma temática: a história de um homem que, desiludido, prestes a cometer o ato extremado de tirar a própria vida, despede-se de um amigo.

Parece-nos que o projeto enunciativo de Belchior quer recuperar toda a carga trágica da enunciação de Iessiênin. Enquanto Toquinho "ameniza" a força trágica do ato de despedida definitiva (pela morte), com a troca, por exemplo, da palavra "sobrolho" pela palavra "ar" (verso 2, estrofe 2), bem menos expressiva porque muito genérica nesse contexto (Ex.1.2 ), Belchior a reforça com a escolha de lexemas e sintagmas bastante expressivos e representativos da ideia de morte, como "distância", "nada", "ao léu", "enruga", "vil", "in extremis". Essa tragicidade da canção faz parte, além de tudo, do contexto do CD Baihuno (Ex.2 ), um álbum conceitual.

A ópera Baihuno desenvolve-se durante 61 minutos e 16 músicas divididas em movimentos (Num País Feliz, Ondas Tropicais, Anais da Guerra Civil e Elegia Obscena). Os personagens protagonistas (vítimas e algozes) dessa tragédia representam grande parcela dos marginalizados sociais em embate com o "sistema": índios, gênios do mal, traficantes, neonazistas, Deus e o Diabo, assassinos, bêbados, marginais, machões, pivetes, trovadores eletrônicos, anjos tortos, nordestinos, prostitutas, punks, suicidas, viciados, vagabundos, perdedores, apaixonados, aventureiros, anarquistas, sonhadores, rebeldes, estudantes35.

A ópera inicia com uma abertura intitulada Recado Baihuno e encerra com Arte Final. Nesse disco, que critica veementemente o caos pelo qual vem passando o Brasil, o enunciador Baihuno, um cangaceiro solitário, um cowboy fora da lei, personagem dessa guerra, é quem denuncia a situação. E o modo usado para narrá-la foi o da ópera. "A violência se tornou uma ópera trágica, um espetáculo de mau gosto" (BELCHIOR, em entrevista a FONSECA, 2006), afirma Belchior. O termo baihuno é formado pela junção das palavras baiano e huno. Sobre o título da música que dá nome ao disco, Belchior explica:

"Em São Paulo, todos os nordestinos são empacotados como 'baianos', agredidos, humilhados"; o poeta adota essa figura de execração pública para aumentar a força política de seu trabalho; "somos doces 'baihunos', mas comparados com todo esse barbarismo"; esse é o dado central do disco (FONSECA, 2006).

Assim, Belchior - numa referência à sua própria trajetória enquanto autor-pessoa - compara os nordestinos que migram para São Paulo com os hunos, o povo bárbaro da Ásia Central que invadiu a Europa, sob a chefia de Átila, nos meados do séc.V. Quanto ao uso do gênero ópera, o dramático adquire aqui dois sentidos: tanto serve para designar a composição teatral quanto se aplica à situação de catástrofe da qual o disco fala.

Esse reforço do ato de tragédia pode ser verificado no próprio tempo da música. Até mais ver (Ex.1.3 ), que dura 03'17'', começa com uma introdução instrumental; logo depois vem as partes A e B, sendo o refrão constituído pelos dois últimos versos da parte B ("Se, sob o sol, nada mais velho e vil que a morte,/quem viu, na vida, novidade em estar vivo?"). Uma instrumentação finaliza a música, mas somente depois da repetição de toda a parte inicial (A e B e refrão). Segundo a classificação de TATIT (1996), essa canção pode ser considerada como temática. Caracteriza-se dentre outras coisas pela aceleração melódica, pela divisão entre primeira parte, segunda parte e refrão e pela repetição de trechos. Para o pesquisador, a existência de uma introdução instrumental provoca a tensão na música, que nesse caso corresponde à tensão do texto. A continuação da instrumentação mesmo depois do anúncio falado do nome de Iessiênin, no final da música, parece estabelecer o mesmo conteúdo apresentado no CD de Toquinho, parece querer dizer o mesmo ao ouvinte: que depois da morte, a vida continua. No momento de interpretação, além da repetição de toda a letra da canção e da existência do refrão, o conteúdo dramático do texto é reforçado pela expressividade vocal de Belchior e pela instrumentação enérgica, as duas constitutivas do gênero country.

Se relacionarmos o conteúdo de Até mais ver com outras canções e o projeto gráfico do disco (Ex.2 ), coloca-se a pergunta: quais as relações dialógicas entre os enunciados nas diversas semioses? Na capa de Baihuno - criação de arte do próprio Belchior - há uma reprodução de boneco da arte popular cearense, com o rosto de Belchior (Ex.2 , ver imagem mais à esquerda e central), sobre um fundo vermelho e abaixo de bandeirinhas de Volpi, nas cores da bandeira brasileira. Na contracapa (Ex.2 , ver imagem mais à direita), aparece um rinoceronte, obra de arte do pintor alemão Alberto (Albrenchr) Durero feita em 1515, um dos maiores símbolos da capacidade humana de estereotipar algo que não se conhece e, talvez, a pintura de um animal que mais exerceu influência no mundo das artes. Ao analisarmos todas as canções do álbum, já a partir dos títulos, vemos enunciadores indignados com a situação do Brasil, o país das cores das bandeirinhas de Volpi. Os sujeitos representados aí não suportam mais usar máscaras, como o próprio Belchior, parodicamente, na capa do CD, nem ser tratados como uma massa homogênea estereotipada (os baihunos) num país onde há pouca diferença entre ser gente e animal, como ataca ironicamente a canção que dá título ao disco, Baihuno: "O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão".

A canção Até mais ver, a última do disco (Ex.2 ), representa a triste despedida do cancionista com seu público36, ao contrário de Toquinho, que usa a canção Até logo, companheiro de Só tenho tempo pra ser feliz (Ex.4) para despedir-se da mesma forma, "feliz". Nos dois casos, temos duas enunciações. A enunciação interna ao texto da canção e a enunciação externa que coloca em comunicação os intérpretes/compositores Belchior e Toquinho com seus ouvintes.

Ao fazer a canção Até mais ver, Belchior polemiza ao mesmo tempo com os trabalhos já realizados por Campos (a tradução do russo para o português) e por Toquinho (a melodização do texto traduzido por Campos). De uma só vez, Belchior substitui, com letra e música, o trabalho empreendido por um e por outro. Nesse diálogo entre Sierguéi Iessiênin, Augusto de Campos, Toquinho e Belchior, podemos flagrar o próprio sentido de existência de uma enunciação: a presença de um falante e de um ouvinte. Não interessa para nós identificar quem é o autor "primeiro" e quem são os seus "contempladores". O que importa é analisar como se dão as relações dialógicas entre esses sujeitos. Como chama a atenção VOLOCHÍNOV (1926, p.4), "o que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas suas contínuas recriações por meio da cocriação dos contempladores"37. Mas essa comunicação não existe isoladamente, ela se desenvolve em interação com outras formas de comunicação. O que quer dizer que a comunicação estética só pode ser assim chamada se se levar em conta a presença do auditório, do outro, leitores e ouvintes. É por ele e para ele que a obra de arte existe em qualquer esfera, seja literária ou verbomusical.

5. Não existe a última palavra

O conceito de estilo foi operacionalizado aqui seguindo as bases epistemológicas da teoria bakhtiniana, portanto associado a um sujeito ativo, histórico, social, cultural, que age por meio da língua e da linguagem para chegar a outros sujeitos. Esse sujeito, sempre em relação com outros, usa a língua e a linguagem como instrumentos de comunicação. Mas não como meros instrumentos e sim como importantes e especiais ferramentas que têm como principal razão de existência o fato de possibilitar a comunicação entre o sujeito e os seus pares, entre o sujeito e o seu mundo.

Investigamos aspectos estilísticos nas esferas discursivas literária e verbomusical brasileiras para tentar compreender como se dá o processo de comunicação/interação nessas esferas entre autor-escritor e leitor, entre autor-compositor e ouvinte, entre autor-escritor e autor-compositor, entre autor-criador e autor-tradutor na tentativa de aproximarmo-nos um pouco da vida e do mundo dos homens dessas comunidades. Nossa análise comprova a ideia bakhtiniana de que as escolhas estilísticas dependem do tipo de relação existente entre o autor-escritor/autor-compositor e os outros parceiros da comunicação verbal, ou seja, o leitor, o ouvinte, outros autores-escritores/autores-tradutores/autores-compositores, confirmando a tese de que o estilo são muitos homens e, mais do que isso, de que todos são criadores.

Com relação à constituição do gênero canção, nossa análise mostra que devemos olhar para nosso objeto sempre ajustando a lente para tentar dar conta tanto da história desse gênero quanto das suas especificidades.

Finalizamos, esperando ter realizado pelo menos em parte aquilo que diz as palavras da epígrafe que abre este artigo: "uma análise estilística que analisa o todo do enunciado dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é apenas um elo inalienável".

Discografia

Páginas na Internet

Reportagens

Notas

17 O título do poema não aparece na página do livro, mas somente no sumário.

18 Também no site oficial de Toquinho em: <http://www.toquinho.com.br/pagina.php?musica=1>.

19 Por conta dos acordos ortográficos válidos nos respectivos anos de edição (1968, 1985 e 2001), o adjetivo "novo" aparece acentuado na primeira edição com um acento circunflexo, que desaparece a partir da segunda.

"Você partiu, como se diz, para o outro mundo./Vácuo... Você sobe, entremeado às estrelas./Nem álcool, nem moedas./Sóbrio. Voo sem fundo./Não, lessiênin, não posso fazer troça,/- Na boca uma lasca amarga não a mofa./Olho - sangue nas mãos frouxas,/você sacode o invólucro dos ossos./Sim, se você tivesse um patrono no 'Posto'/- ganharia um conteúdo bem diverso:/todo dia uma quota de cem versos,/longos e lerdos,/como Dorônin./Remédio? Para mim, despautério:/mais cedo ainda você estaria nessa corda./Melhor morrer de vodca que de tédio!/Não revelam as razões desse impulso/nem o nó, nem a navalha aberta./Pare, basta!/Você perdeu o senso?/- Deixar que a cal mortal Ihe cubra o rosto?/Você, com todo esse talento para o impossível;/hábil como poucos./Por quê? Para quê? Perplexidade./- É o vinho! - a crítica esbraveja./Tese: refratário à sociedade./Corolário: muito vinho e cerveja./Sim, se você trocasse a boêmia pela classe;/A classe agiria em você,/e Ihe daria um norte./E a classe por acaso/mata a sede com xarope?/Ela sabe beber/- nada tem de abstêmia./Talvez, se houvesse tinta no 'Inglaterra';/você não cortaria os pulsos./Os plagiários felizes pedem: bis!/Já todo um pelotão em autoexecução./Para que aumentar o rol de suicidas?/Antes aumentar a produção de tinta!/Agora para sempre tua boca está cerrada./Difícil e inútil excogitar enigmas./O povo, o inventa-línguas,/perdeu o canoro contramestre de noitadas./E levam versos velhos ao velório,/sucata de extintas exéquias./Rimas gastas empalam os despojos,/- é assim que se honra um poeta?/- Não te ergueram ainda um monumento - onde o som do bronze ou o grave granito?/- E já vão empilhando no jazigo/dedicatórias e ex-votos: excremento./Teu nome escorrido no muco, teus versos, Sóbinov os babuja,/voz quérula sob bétulas murchas/- 'Nem palavra, amigo, nem soluço'./Ah, que eu saberia dar um fim a esse Leonid Loengrim!/Saltaria - escândalo estridente:/- Chega de tremores de voz!/Assobios nos ouvidos dessa gente, ao diabo com suas mães e avós!/Para que toda essa corja explodisse inflando os escuros redingotes,/e Kógan atropelado fugisse, espetando os transeuntes nos bigodes./Por enquanto há escória de sobra./O tempo é escasso - mãos à obra./Primeiro é preciso transformar a vida, para cantá-la - em seguida./Os tempos estão duros para o artista:/Mas, dizei-me, anêmicos e anões,/os grandes, onde, em que ocasião,/escolheram uma estrada batida?/ General da força humana - Verbo - marche!/Que o tempo cuspa balas para trás,/e o vento no passado só desfaça um maço de cabelos./Para o júbilo o planeta está imaturo./É preciso arrancar alegria ao futuro./Nesta vida morrer não é difícil./O difícil é a vida e seu ofício" (Tradução de Haroldo de Campos publicada em 1967/1982 na obra

Maiakóvski/Poemas

, (p.109-114, ed. 1982)). Maiakóvski passou três meses escrevendo os versos de

A Sierguéi Iessiênin

e o aniversário do poema foi o pretexto para que uma pequena legião de fãs corresse ao Museu Maiakóvski, na Rua Myatninskaya, um endereço

cult

em Moscou. Foi nesse endereço que o poeta morou, entre 1919 e 1930, num quarto modesto onde viria a morrer.

"Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei//Vou-me embora pra Pasárgada/Vou-me embora pra Pasárgada/Aqui eu não sou feliz/Lá a existência é uma aventura/De tal modo inconsequente/Que Joana a Louca de Espanha/Rainha e falsa demente/Vem a ser contraparente/Da nora que nunca tive//E como farei ginástica/Andarei de bicicleta/Montarei em burro brabo/Subirei no pau-de-sebo/Tomarei banhos de mar!/E quando estiver cansado/Deito na beira do rio/Mando chamar a mãe-d'água/Pra me contar as histórias/Que no tempo de eu menino/Rosa vinha me contar/Vou-me embora pra Pasárgada//Em Pasárgada tem tudo/É outra civilização/Tem um processo seguro/De impedir a concepção/Tem telefone automático/Tem alcaloide à vontade/Tem prostitutas bonitas/Para a gente namorar//E quando eu estiver mais triste/Mas triste de não ter jeito/Quando de noite me der/Vontade de me matar/- Lá sou amigo do rei/- Terei a mulher que eu quero/Na cama que escolherei/Vou-me embora pra Pasárgada".

Recebido em: 22/07/2012

Aprovado em: 15/01/2013

Josely Teixeira Carlos é Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), tendo desenvolvido desde 2009 pesquisa sobre música popular brasileira na área de Análise do Discurso e no âmbito do "Grupo de Estudos sobre Retórica e Argumentação" (GERAR). Sua tese aborda as relações polêmicas entre o compositor Belchior e outros cancionistas da música brasileira, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Entre 2011 e 2012, realizou, com bolsa CAPES, estágio sanduíche nas Universidades Paris-Sorbonne e Paris-Est Créteil Val de Marne, sob a orientação do professor Dominique Maingueneau. Possui Graduação em Letras (2003) e Mestrado em Linguística (2007) pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É radialista, redatora e revisora com passagem pela Rádio Universitária de Fortaleza e pelo Governo do Estado do Ceará. Como professora, lecionou nas Universidades Federal e Estadual do Ceará e Universidade do Vale do Acaraú (UVA) nas disciplinas de Linguística, Análise do Discurso e Língua Portuguesa. Nessas instituições, participou de bancas e orientou trabalhos de graduação e especialização. Atuou também como tutora de Ensino à Distância na UFC e Faculdade Integrada da Grande Fortaleza (FGF). Foi membro de 2004 a 2009 do Grupo de Pesquisa "Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais" (DISCUTA), da UFC. Tem experiência na área de Letras, principalmente em Linguística e Análise do Discurso

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  • (TOQUINHO) FILHO, A. P. Site oficial 2012. Apresenta as seções biografia, discografia, infância, primeiros estudos, início de carreira, Toquinho e Vinicius, parcerias, universo infantil e atualidades. Disponível em: <http://www.toquinho.com.br>. Acesso em: 02 mar. 2012.
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  • 1
    Temos em conta, no entanto, o fato de que um poema já possui uma dimensão melódica e musical.
  • 2
    Correspondente à edição hispânica (1997a).
  • 3
    Utilizamos a tradução em português do texto de Volochínov, ainda não publicada e com circulação restrita.
  • 4
    Consultamos a edição em português de 2004.
  • 5
    Apoiamo-nos na edição em português de 1993.
  • 6
    Tomamos como base a edição em português (1997c).
  • 7
    Fundamentamo-nos na edição em português de 1999.
  • 8
    Nosso suporte é a edição em português (1997b).
  • 9
    Registramos aqui os anos originais de publicação das obras em russo.
  • 10
    Semelhante à noção de princípio de autoria (agrupamento do discurso), elaborada por FOUCAULT (2002 e 2003).
  • 11
    Informações disponíveis no
    site da gravadora Biscoito Fino.
  • 12
    Sabe-se hoje que o livro, publicado com a assinatura de V. N. Volochínov, em Leningrado (1929), foi na verdade escrito por Bakhtin.
  • 13
    Tradução de nossa responsabilidade.
  • 14
    Discurso pronunciado na Academia Francesa em 25 de agosto de 1753 por ocasião de sua eleição.
  • 15
    Sobre a noção de
    esfera, ler GRILLO (2008).
  • 16
    Conferir também as obras de 1997, 1999 e 2002.
  • 20
    A ordem em que aparecem os álbuns obedece ao critério genético de publicação.
  • 21
    Neste artigo, as canções dos discos
    Baihuno, Toquinho e
    Só tenho tempo pra ser feliz, de Belchior e Toquinho, são comentadas de modo lateral. Logo, sugerimos ao leitor a apreciação desses álbuns em sua integralidade.
  • 22
    Na lista de músicas de cada álbum, destacamos com negrito as canções analisadas neste artigo.
  • 23
    Como não tivemos acesso à primeira edição dessa obra, analisamos as edições de 1982 e 2006.
  • 24
    A Sierguéi Iessiênin (1926) de Vladimir Maiakóvski (1893-1930):
  • 25
    Maiakóvski também se suicidou, com um tiro na cabeça, em 14 de abril de 1930, aos 37 anos de idade.
  • 26
    Tradução de nossa responsabilidade.
  • 27
    A música
    Vou-me embora pra Pasárgada foi gravada por Olívia Hime em seu LP
    Estrela da vida inteira.
  • 28
    Texto extraído do livro
    Bandeira a Vida Inteira (1986):
  • 29
    Não é raro nesse contexto as letras de canções serem nomeadas de poemas musicados.
  • 30
    Ver CARLOS (2007, p.177).
  • 31
    Em álbum anterior (
    Todos os sentidos), Belchior dialoga com outro poema de Bilac:
    Via-Láctea (
    Poesias, 1888), do qual cita dois versos na canção
    Divina Comédia Humana de 1978. São eles: "'Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!' E eu vos direi, no entanto (...)".
  • 32
    Em nosso trabalho de dissertação (CARLOS, 2007), fizemos uma análise exaustiva do uso das aspas e de diversas outras marcas utilizadas por Belchior para indicar os diálogos entre a sua produção e a de autores da esfera literária e verbomusical brasileira e internacional.
  • 33
    É formada pela preposição
    in (em, no) e o ablativo plural de
    extremus, -a, -um (último).
  • 34
    Do LP
    Era uma vez um homem e o seu tempo - Mêdo [
    sic]
    de avião.
  • 35
    Ver a resenha do jornalista Juarez Fonseca sobre o CD
    Baihuno.
  • 36
    Sintomaticamente, o álbum
    Baihuno (
    Ex.2 ) é o último da carreira autoral de Belchior.
  • 37
    Destaques nossos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Aceito
      15 Jan 2013
    • Recebido
      22 Jul 2012
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    Escola de Música da UFMG Escola de Música da UFMG. Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha. Cep: 31270-010 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: permusiufmg@gmail.com
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