Open-access "Eu sou uma fruta 'gogóia', eu sou uma moça": Gal Costa e o Tropicalismo no feminino

"I'm a 'gogoia' fruit, i'm a lass": Gal Costa and the Tropicalismo in the feminine

Resumos

Este artigo tem como principal objetivo discutir o fenômeno da performance musical a partir de uma imbricação de conceitos pertinentes à música, à antropologia e aos estudos de gênero e sexualidade. Defendendo a ideia de que a cantora Gal Costa desenvolveu um discurso performático - vocal e corporal - devidamente afinado aos propósitos tropicalistas, analiso as possibilidades de uso do corpo para a produção de imagens performáticas que incitam ao debate acerca das possíveis intersecções entre música, erotismo e sexualidade. Ao dialogar com a obra de autores como Clifford Geertz, Terence Turner, Mary Douglas, Marcel Mauss, Judith Butler e George Bataille, pretendo contribuir com uma revisão crítica do Tropicalismo na qual a interpretação musical e as técnicas corporais ocupam o centro da discussão. A intenção é propor uma problematização das subjetividades envolvidas no processo de construção performática que é fabricado no corpo do cantor.

Antropologia, gênero e sexualidade; MPB; Gal Costa e o Tropicalismo


This study aims at discussing the phenomenon of musical performance considering an overlap of relevant concepts from music, anthropology and gender and sexuality studies. Departing from the idea that Brazilian singer Gal Costa developed a performative discourse - vocal and corporal - properly tuned to the tropicalistas purposes, I analyze the possibilities of using the body to produce performative images that brings up the discussion about the possible intersections between music, eroticism and sexuality. In a dialogue with the work of authors such as Clifford Geertz, Terence Turner, Mary Douglas, Marcel Mauss, Juduth Butler and Georg Bataille, I hope to contribute to a critical review of Tropicalismo, in wich the musical interpretation and corporal techniques occupy the center of the discussion. The objective is to propose a debate about the subjectivity involved in the performative process that is fabricated on the singer's body.

Anthropology, gender and sexuality; Brazilian MPB; Gal Costa and the Tropicalismo


ARTIGOS CIENTÍFICOS

"Eu sou uma fruta 'gogóia', eu sou uma moça": Gal Costa e o Tropicalismo no feminino1

"I'm a 'gogoia' fruit, i'm a lass": Gal Costa and the Tropicalismo in the feminine

Rafael da Silva Noleto

Universidade Federal do Pará, Belém, PA. nolleto@gmail.com

RESUMO

Este artigo tem como principal objetivo discutir o fenômeno da performance musical a partir de uma imbricação de conceitos pertinentes à música, à antropologia e aos estudos de gênero e sexualidade. Defendendo a ideia de que a cantora Gal Costa desenvolveu um discurso performático - vocal e corporal - devidamente afinado aos propósitos tropicalistas, analiso as possibilidades de uso do corpo para a produção de imagens performáticas que incitam ao debate acerca das possíveis intersecções entre música, erotismo e sexualidade. Ao dialogar com a obra de autores como Clifford Geertz, Terence Turner, Mary Douglas, Marcel Mauss, Judith Butler e George Bataille, pretendo contribuir com uma revisão crítica do Tropicalismo na qual a interpretação musical e as técnicas corporais ocupam o centro da discussão. A intenção é propor uma problematização das subjetividades envolvidas no processo de construção performática que é fabricado no corpo do cantor.

Palavras-chave: Antropologia, gênero e sexualidade; MPB; Gal Costa e o Tropicalismo.

ABSTRACT

This study aims at discussing the phenomenon of musical performance considering an overlap of relevant concepts from music, anthropology and gender and sexuality studies. Departing from the idea that Brazilian singer Gal Costa developed a performative discourse - vocal and corporal - properly tuned to the tropicalistas purposes, I analyze the possibilities of using the body to produce performative images that brings up the discussion about the possible intersections between music, eroticism and sexuality. In a dialogue with the work of authors such as Clifford Geertz, Terence Turner, Mary Douglas, Marcel Mauss, Juduth Butler and Georg Bataille, I hope to contribute to a critical review of Tropicalismo, in wich the musical interpretation and corporal techniques occupy the center of the discussion. The objective is to propose a debate about the subjectivity involved in the performative process that is fabricated on the singer's body.

Keywords: Anthropology, gender and sexuality; Brazilian MPB; Gal Costa and the Tropicalismo.

1 - Corpo, cor, gênero e performance

O Tropicalismo é um importante movimento estético da Música Popular Brasileira, deflagrado em 1968, que necessita ser problematizado para além do escopo das discussões pertinentes ao campo da música a fim de que se compreenda melhor a sua dimensão social no sentido de contribuir, indiretamente, para o estabelecimento de um debate acerca de identidades, indústria cultural, cultura brasileira, além de assuntos pertinentes às discussões sobre sexualidade e relações de gênero.

Sabendo que a cantora Gal Costa foi a única presença feminina que atuou no Tropicalismo desde sua gênese até sua provável dissolução, o que proponho neste artigo é problematizar a performance desta intérprete à luz dos estudos de gênero e sexualidade e estabelecer um diálogo com a literatura antropológica para propor uma discussão sobre as subjetividades envolvidas no processo de construção performática que é fabricado no corpo do cantor. Em outras palavras, este trabalho busca encontrar conexões entre os conceitos de corpo, performance e relações sociais para avaliar os reflexos da atuação feminina dentro de um movimento musical (Tropicalismo) que é frequentemente analisado em função das propostas estéticas empreendidas por seus idealizadores (compositores e homens), mas que carece de uma revisão crítica acerca do impacto da presença da figura da mulher (cantora) sobre um público de jovens brasileiros interessados em discutir política, sexualidade e liberdade de expressão. Além dessa problemática, esta discussão que proponho visa abordar como o erotismo associado ao corpo de Gal Costa foi produzido para criar a sua imagem pública na mídia brasileira, trazendo uma adaptação do discurso feminista para dentro de sua performance cênica e servindo também como estratégia de marketing para posicionar a cantora no mercado fonográfico do Brasil.

Apesar de os estudos de gênero e sexualidade terem desenvolvido certa tradição na discussão sobre corpo e performance corporal, optei por dialogar, em muitos momentos do texto, com teóricos da antropologia que realizaram pesquisas com povos indígenas do Brasil no intuito de, simbolicamente, evocar o "ideal antropofágico", adotado pelos tropicalistas, que consistia em produzir e aproveitar o olhar "nativo" para a cultura local, costurando-o a outras formas "estrangeiras" de pensar ou fazer música e produzindo algo novo a partir dessa associação. Em outros termos, minha intenção antropofágica se revela pelo desejo de promover um debate sobre corporalidade, embasado nas contribuições teóricas de antropólogos que discutiram algumas noções de corpo em um contexto literalmente "nativo", que consitste numa das bases constituintes da antropologia brasileira: o estudo de povos indígenas. Sendo assim, após o diálogo com essa produção "nativa" sobre corporalidade indígena, posso, então, alinhavar minhas análises às teorias "estrangeiras" - no sentido de, muitas vezes, serem alheias ao âmbito antropológico - sobre gênero, sexualidade e erotismo.

Problematizar a performance musical do cantor, buscando os aspectos subjetivos da construção do corpo em sua atuação cênica, requer também uma análise acerca dos adereços que ratificam a formulação social desse corpo em sua trajetória pública.

Neste sentido, Terence TURNER (1980), através de diversos argumentos presentes em The Social Skin, evoca uma série de aspectos importantes referentes a essa construção social do corpo, utilizando como exemplo as práticas dos índios Kayapó no que diz respeito ao adornamento de seus corpos como um ato representativo da diferenciação entre os vários tipos de status social.

Particularmente, penso que este conceito de distinções sociais representadas pelas diferenciações de vestimentas, uso de adereços e até pintura corporal entre os Kayapó pode perfeitamente servir a um exercício interpretativo que se ocupe da investigação quanto à constituição da identidade visual que um determinado artista (cantor) possa imprimir em seu trabalho de palco. Sendo este artista constituído de um corpo que se expõe aos demais interlocutores de sua atividade cênica, ele certamente necessita de algum tipo de artifício que delimite o seu "território" de atuação, estabelecendo claramente as diferenças entre o espectador e o performer. A apresentação do corpo amparado por uma estrutura de figurino pode ser um elemento essencial para a demarcação desses espaços.

De acordo com Turner, as sociedades humanas parecem ter uma noção geral acerca das funções desempenhadas pelo uso de vestimentas. Em sua avaliação, Turner sintetiza que as roupas e acessórios evocam funções diretamente relacionadas com os atos de "ornamentar, encobrir, revelar, alterar a forma humana de acordo com as noções sociais de decoro" (TURNER, 1980), sendo que, nesta mesma perspectiva, o autor entrelaça figurinos e acessórios num contexto de adequação ao sentido "sacro, solene ou estético" que a composição visual do corpo pode adquirir. (TURNER, 1980)2.

A roupa é concebida por TURNER (1980) como "a pele social" dos indivíduos. Isto é, o corpo é o pressuposto da roupa, é nele e por causa dele que é fabricada uma ou mais funções que são atribuídas às roupas e aos adereços que as complementam. Além disso, o autor conceitua a superfície do corpo como sendo uma "fronteira que separa o ser humano não apenas como uma entidade biológica e psicológica, mas também social" (TURNER, 1980, p.112).

No que diz respeito ao discurso performático3 de Gal Costa, é possível evocar essas noções de corpo, vestimentas e acessórios elencadas por TURNER (1980) a fim de que se possa ter uma visão social de como esses fatores foram utilizados em sua trajetória artística para dar ênfase às discussões implícitas sobre gênero e sexualidade que já estavam contidas em suas performances.

A relação entre cobrir e descobrir o corpo por meio da roupa estava presente na proposta de atuação cênica de Gal Costa durante os anos 1970 e representava um fator adicional para a exploração da feminilidade no palco através da gestualidade e da própria voz.

Além dos figurinos sensuais - decotes, pernas à mostra - e sua performance ousada - como, por exemplo, tocar violão com as pernas abertas expondo a região da genitália - Gal Costa usava, com muita frequência, em seus shows e discos, vocalizes nas extremas regiões agudas da voz (NOLETO, 2010, p.34-35).

Essa possibilidade de exposição do corpo ganhou mais respaldo, a partir da década de 1960, quando os estilistas criadores da moda vigente se apropriaram indiretamente das discussões acerca da libertação sexual da mulher e passaram a produzir roupas condizentes com a demanda social da época (POLLY, 2003).

Retornando ao discurso de TURNER (1980) sobre os Kayapó, outros aspectos para os quais desejo chamar a atenção - e que são perfeitamente cabíveis na análise que faço sobre a subjetividade da performance vocal e cênica de Gal Costa - dizem respeito à sua descrição acerca dos significados em torno do cabelo e das cores utilizadas na pintura corporal desse grupo indígena.

Em relação aos cabelos, TURNER (1980) afirma que possuem "uma função socializadora simbólica", pois "cada pessoa tem o seu próprio estilo de cabelo distintivo que mantém como um emblema de sua comunidade social e sua própria cultura" (TURNER, 1980, p.116). Esse conceito é bastante visível dentro da composição da imagem visual de Gal Costa, atentando para o destaque que a cantora deu, desde o final dos anos 1960 até os dias atuais, para o seu cabelo sempre alvoroçado, disposto como se fosse uma grande juba leonina, a ressaltar sua relação com o movimento hippie e as ideologias black power, além de evidenciar - e construir para si - uma representação simbólica de seu espírito contestador durante o Tropicalismo.

A utilização do cabelo como um recurso cênico, carregado de significações simbólicas associadas a Gal Costa, foi explorada pelo artista plástico Hélio Oiticica ao desenvolver a capa e o design gráfico do Long Play (LP) LEGAL (1970), no qual havia uma fotografia onde, dentro dos cabelos de Gal, estão contidos vários ícones da indústria cultural brasileira e mundial pertencentes ao imaginário dos jovens como, por exemplo, Gilberto Gil, Waly Salomão e James Dean. São, na verdade, fotos de personalidades e eventos sociais que representam as tensões políticas, sociais e artísticas de uma época e que, neste caso, também estavam representadas implicitamente pela rebeldia dos cabelos da cantora.

No que diz respeito à detalhada descrição que TURNER (1980) faz da utilização das cores preta e vermelha na pintura corporal dos Kayapó e da associação dessas cores, respectivamente, com as noções de repressão ou intensificação atribuídas a determinadas partes do corpo, é também possível estabelecer uma relação com a exploração exacerbada da imagem da boca de Gal Costa (pintada quase sempre em vermelho) como um elemento representativo de sua presença física como mulher e cantora. Nesta perspectiva, a exaltação da cor vermelha que pinta os seus lábios também remete ao conceito de intensificação que Turner consegue identificar na pintura corporal dos Kayapó.

Segundo o autor, "a cor vermelha está associada com a noção de vitalidade, energia e intensidade" e geralmente "é aplicada nos pontos periféricos do corpo que estão em contato direto com o mundo exterior", podendo-se exemplificar tais áreas periféricas como sendo "mãos e pés e os órgãos sensoriais da face" (TURNER, 1980, p.123).

Estabelecendo um diálogo entre minha análise do discurso performático de Gal Costa e as conclusões de TURNER (1980) a partir de experiência etnográfica com os Kayapó, é possível vislumbrar a ideia de que tais imbricações entre cor, roupa, acessórios e partes do corpo podem ser, simbolicamente, representações externas das noções de repressão e intensificação, que, em geral, são relacionadas a um nível inconsciente de conhecimento. No entanto, essas noções são, visualmente, retiradas dessa dimensão interior da consciência e acabam por integrarem a composição visual dos sujeitos, sejam eles artistas - vestidos em seus figurinos cênicos - ou indígenas - para quem a pintura corporal se constitui com um forte elemento de distinção social.

Nestes termos, é válido atentar para a significativa contribuição dada por GEERTZ (1997) ao entrecruzar interpretações antropológicas aos conceitos psicanalíticos de "experiência-próxima" e "experiência-distante", usados por Heiz Kohut. Na avaliação de GEERTZ (1997), "as pessoas usam conceitos de experiência-próxima espontaneamente, naturalmente, por assim dizer, coloquialmente; não reconhecem, a não ser de forma passageira e ocasional, que o que disseram envolve 'conceitos'" (GEERTZ, 1997). Nesta perspectiva, a noção de "experiência-próxima" corresponde às conceituações e expressões cotidianas, corriqueiras e triviais utilizadas pelos seres humanos para definir a diversidade de vivências por que passam ao longo da vida. Em contrapartida, a ideia de "experiência-distante" remete às conceituações e expressões científicas acerca das mesmas experiências humanas, com a diferença que essas vivências são, agora, traduzidas em termos considerados "científicos", visto que são construídos à luz de algum tipo de conhecimento e linguagem técnica pertencente a uma determinada área do saber.

Nestes termos, é possível compreender que essas noções de repressão e intensificação, identificadas por TURNER (1980), podem ser vividas, entre os Kayapó, como uma "experiência-próxima" inscrita no corpo, isto é, sem uma preocupação em conceituar a experiência e as noções nela envolvidas, mas com o desejo de vivê-la e ter consciência dela a partir dos elementos visuais das cores (pintura), roupas e acessórios usados para adornar certas partes do corpo. Sendo assim, parto do pressuposto que o artista, envolvido em sua atividade de construção performática, pode combinar elementos visuais dispostos em seu figurino sem, exatamente, ter para si a intenção de elaborar conceitualmente as múltiplas possibilidades de significado que sua imagem pode adquirir diante da plateia para quem se apresenta. Neste sentido, sugiro que o uso do figurino como elemnto que reforça o discurso performático de um artista, pode ser efetuado a partir de uma lógica de vivência de uma "experiência-próxima", isto é, de uma forma em que os múltiplos simbolismos dispostos na ornamentação visual do performer sejam vividos no corpo como resultado de uma consciência cotidiana.

Sendo assim, é possível estabelecer uma conexão entre as noções de repressão e intensificação descritas por TURNER (1980) e o constante uso do batom vermelho como recurso visual para a criação de uma imagem pública para a cantora Gal Costa a partir dos anos 1970. Neste caso, a utilização do batom vermelho seria útil para identificar, em Gal Costa, a fabricação de uma imagem pública vinculada à sua condição feminina e à intensidade e sensualidade de suas performances. Caberia ainda neste ponto, um diálogo com o trabalho de Mary DOUGLAS (1991) em que zonas periféricas do corpo - inclusive (e principalmente) os orifícios - são percebidas como áreas de "poder e perigo", pois simbolizam a vulnerabilidade da estrutura social sendo desestabilizada por comportamentos abjetos ou marginais. A boca, neste caso, seria interpretada como "poderosa e perigosa" na medida em que emite discursos, seduz pela arte do canto e apresenta possibilidades de prazer sexual. O uso do batom vermelho e a exploração da boca como símbolo da presença física de Gal Costa foram amplamente acionados durante toda a carreira da artista, aparecendo notavelmente na capa dos álbuns FA-TAL(Gal a todo vapor) (1971); Gal Tropical (1979); Profana (1984) e O sorriso do gato de Alice (1993). FA-TAL (Gal a todo vapor) é um LP que merece uma análise mais cuidadosa e detalhada, pois

é repleto de simbologias a começar da capa ilustrada com a boca de Gal Costa por trás do microfone que usa para cantar. Além do forte apelo sexual da boca (que se tornaria, a partir de então, emblema representativo da presença física da cantora), a foto dá margem a interpretações de que a boca pode ser usada para cantar, calar, denunciar ou até relacionar-se sexualmente. Com esta capa emblemática, Gal Costa explora e se deixa explorar por seus atributos físicos, ou seja, pela primeira vez em seu trabalho a artista lança mão da exibição do corpo e sensualidade feminina para chamar a atenção à mensagem que queria passar (NOLETO, 2010, p.23-24).

FA-TAL foi um projeto que compreendia a realização de uma turnê e a gravação de um LP com o registro do show. Este empreendimento artístico foi de extrema relevância para que os ideais estéticos propostos pelos tropicalistas fossem mantidos no mercado fonográfico brasileiro, visto que Caetano Veloso e Gilberto Gil - principais articuladores do movimento - estavam exilados em Londres. Gal Costa era peça fundamental do Tropicalismo, pois possuía um alto poder de penetração nas camadas sociais jovens daquele período e, de acordo com Caetano Veloso,

Gal tinha ficado no Brasil como uma espécie de representante do grupo baiano tropicalista. Seu

show

'Fa-tal/ Gal a todo vapor', dirigido por Waly, era o dínamo das energias criativas brasileiras - e todos os artistas, cineastas, jornalistas e jovens reconheciam isso. (VELOSO, 2008, p.447)

A partir deste trabalho, Gal Costa realizou um intenso uso da imagem de seu corpo como um complemento de sua atividade performática no palco. Na década de 1970, fez inúmeros ensaios sensuais para revistas vinculadas ao universo da música - especialmente o rock - e concedeu diversas entrevistas a veículos da mídia impressa dedicada ao mundo do entretenimento brasileiro que reforçavam sua imagem de rebeldía, como, por exemplo, as extintas revistas "Pop" e "Intervalo".

Ao analisar a fabricação do corpo em povos indígenas do Alto Xingu, especialmente os Yawalapíti, VIVEIROS DE CASTRO (1987) coloca a ideia de que "a natureza humana é literalmente fabricada, modelada, pela cultura. O corpo é imaginado, em vários sentidos, pela sociedade" (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p.32).

Partindo dessa concepção de VIVEIROS DE CASTRO (1987), nota-se que a imaginação do corpo e a representatividade que se faz dele é uma noção também geral presente nos grupos sociais e que, de acordo com o contexto, atende a diversas necessidades. No caso específico deste artigo, essa constituição corpórea perpassa o desejo do artista de fazer com que o seu instrumento de trabalho - o corpo - seja um elemento que represente a identidade de um determinado grupo social. Ou seja, há uma intenção de corresponder ao imaginário de corpo que certos conjuntos específicos de pessoas idealizam. De alguma maneira, é possível inferir que o corpo do artista representa e é representado pelos grupos sociais aos quais está atrelado.

Ainda abordando esse processo de fabricação do corpo dentro do discurso performático de Gal Costa, recorro ao trabalho de DAMATTA (1976), em sua análise da morfologia da sociedade Apinayé, relacionando-o aos conceitos problematizados por VIVEIROS DE CASTRO (1987) para evocar a temática da fabricação de um corpo destinado à cena (palco) em cuja performance está embutida uma série de discussões sobre gênero e sexualidade.

Ao analisar as representações de corpo por parte da população Apinayé, DAMATTA (1976) fornece dados que revelam o ponto de vista desse grupo social a respeito das relações entre os gêneros masculino e feminino. Sua descrição etnográfica deixa transparecer como os Apinayé vivenciam suas concepções acerca da construção do corpo a partir de uma relação entre o homem e a mulher. Segundo o autor,

Os

Apinayé

dizem que nenhuma mulher pode ficar menstruada sem ter tido relações sexuais. É o defloramento que provoca o início da menstruação que indica a presença ou ausência de gravidez. Esta noção tem consequências importantes, pois implica que o homem complementa a fisiologia da mulher num dos seus aspectos mais básicos. Sem a intervenção masculina, a mulher não poderia ter um mecanismo fisiológico que serve para marcá-la por toda a vida e que é parte de sua natureza (DAMATTA, 1976, p.83).

DAMATTA (1976)4 deixa explícito que, em sua interpretação da visão Apinayé, a mulher possui certo grau de dependência do homem, mesmo na própria constituição de seu corpo e no desencadeamento dos processos fisiológicos naturais deste. Tal noção de complementaridade e intervenção corporal entre homens e mulheres - presente não apenas na sociedade Apinayé, mas, de uma maneira geral e com diferentes matizes, em grande parte das sociedades - representa justamente uma das problemáticas exploradas pelas feministas durante o século XX: o direito à independência feminina quanto a vários aspectos que, dentre outras coisas, incluem o livre exercício de sua sexualidade através da experiencia da descoberta do próprio corpo sem uma intervenção masculina obrigatória.

Tais questionamentos feministas teriam reflexos diretos na construção performática de Gal Costa nos anos 1970, o que tornou possível que a cantora propusesse a exposição proposital de seu corpo nos shows e nos ensaios fotográficos que produziu para revistas especializadas em música e para as capas de seus álbuns. Essa exposição corporal construía sua imagem com uma aura de modernidade e erotismo, era utilizada como ferramenta de marketing para promovê-la e incitava, indiretamente, o debate quanto a liberdade sexual da mulher.

Diante disso, a problematização em torno do discurso performático de Gal Costa sendo analisado sob a ótica da Antropologia permite apenas o lançamento de impressões e interpretações que são estimuladas a partir do contato com sua obra, pois não se pode afirmar quais foram seus reais propósitos ao empreender determinados álbuns, shows e ensaios sensuais. Nesses termos, procuro sugerir que o discurso performático de Gal Costa demonstrou, cenicamente, uma apropriação do discurso feminista muito presente nesta época. Por outro lado, percebe-se em sua obra uma forte influência dos conceitos estéticos, performáticos e imagéticos sugeridos pela body art. Santaella ressalta que

com algumas exceções, antes dos anos 70, o

happening

e as artes performáticas eram dominados por artistas homens. Na

body art

esse domínio foi questionado com a entrada de um grande número de artistas mulheres que realizaram suas próprias cruzadas transgressoras, expondo seus corpos, suas vaginas e o imaginário obscuro de suas sexualidades, reforçadas pelo auge dos movimentos feministas (SANTAELLA, 2004, p.69).

A partir da turnê FA-TAL (1971) Gal Costa arrebanharia uma legião de seguidores que a assistiam nos shows e a acompanhavam nos modismos que ajudava a propagar no Brasil, mostrando que seu poder de persuasão não se resumia ao setor musical, mas avançava pelo campo da moda e do comportamento dos jovens daquele momento histórico. O período em que Gal Costa se tornou ícone de uma parcela da geração à qual também pertencia foi relembrado num texto escrito por Decio Bar para a Revista Veja5 (1979), cuja capa fora estampada por uma fotografia de Gal Costa trajando o figurino do showGal Tropical (1979). O texto documentava que

houve o tropicalismo, o sonho virando pesadelo sob a truculência do AI-5, o exílio de Gil e Caetano em Londres. É quando Gal vira mito de uma parcela da juventude, umbigo de fora, pés no chão, cantando sua raiva, que era a raiva de sua época. Já no Rio, em 1972, escolhe como seu lugar de tomar sol um deserto trecho de praia convulsionado pelas obras de um emissário submarino e é o bastante. Como que magnetizada, toda uma geração de 'pirados' e de representantes das mais variadas minorias eróticas passa a gravitar em torno da estrela nas 'Dunas do Barato', nas 'Dunas da Gal' (BAR, 1979, p.60).

Gal Costa, no palco ou fora dele, ostentava vasta cabeleira, trajava vestes da cultura hippie e cantava com os pés descalços. Seu visual era composto pela influência de muitas vertentes de informação advindas da cultura rock-hippie norte-americana, do candomblé da Bahia, das rendas nordestinas e tantas outras fontes de inspiração. As referências que Gal Costa e os outros membros do Tropicalismo buscaram, por exemplo, na cultura nordestina, podem ser interpretadas como marcas dos efeitos do processo diaspórico vivenciado por esses artistas (HALL, 2001) que, deixando sua região de origem (Nordeste) em busca de reconhecimento profissional no sudeste do Brasil, transportaram diversas referências identitárias - em especial da Bahia - para dentro de sua produção artística. Gal Costa trazia em seu corpo e em sua performance alguns elementos que se referiam tanto à cultura nordestina do Brasil quanto à cultura internacional do universo do rock. Essa ambivalência ilustra, com clareza, referências a dois processos diaspóricos nos termos de Stuart HALL (2001), pois evidencia a primeira diáspora do grupo de artistas baianos (Gal Costa, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Tom Zé) ao sair do nordeste para o sudeste brasileiro e a segunda diáspora, que consistiu no exílio involuntário de Caetano Veloso e Gilberto Gil para Londres, coincidindo com o desejo, mantido desde a concepção inicial do Tropicalismo, que esse artistas tinham de fazer com que a música brasileira dialogasse com a produção musical internacional, ampliando, consequentemente, o circuito de atuação profissional dos tropicalistas num contexto mundial.

A atitude vanguardista de Gal Costa provavelmente pode ter contribuído para a construção de um novo modelo feminino no Brasil, isto é, um parâmetro nacional de feminilidade e modernidade mais próximo da realidade das mulheres brasileiras - porém sem abandonar padrões de feminilidade e modernidade internacionais - no qual elas pudessem ser encorajadas a ter referências culturais plurais para construir sua identidade visual, sendo estimuladas a expor as suas sexualidades e a assumir relacionamentos não convencionais e, em muitos casos, homossexuais. Acerca do alcance comportamental que Gal Costa teve na vida das mulheres, dos jovens e dos homossexuais (masculinos e femininos) de sua geração, Caetano Veloso, registraria que

(...) os próprios cineastas do Cinema Novo tinham deixado seus cabelos crescerem, queimavam fumo e tomavam ácido. Gal era musa desse universo. Um trecho da praia de Ipanema que ela frequentava (...) ganhou o apelido de 'Dunas da Gal'. Em Salvador os desbundados se encontravam na praia do Porto da Barra. (...) Ali - como nas dunas da Gal - os rapazes não usavam sungas de praia, mas as cuecas mínimas (e um tanto transparentes) que já traziam por baixo das calças. E alguns casais homossexuais (sobretudo femininos) não se esforçavam muito em esconder suas carícias (VELOSO, 2008, p.461)

Os shows de Gal Costa, principalmente entre 1969 e 1977, reuniam em sua plateia todo um conjunto de diversidades sexuais, ideológicas e comportamentais, pois "tanto o submundo urbano noturno quanto as trocas clandestinas de sexo, por um lado, e, por outro, tanto a homossexualidade enquanto dimensão existencial quanto a bissexualidade na forma de mito andrógino eram temas tropicalistas" (VELOSO, 2008, p.263). A associação de Gal Costa com público homossexual também levantou dúvidas quanto a sua sexualidade, pois mulheres declaradamente lésbicas também constituíam seu grupo de seguidores (fãs) e, neste caso, ter uma orientação sexual lésbica, de certa forma, é romper com a inteligibilidade do gênero feminino hegemonicamente legitimada nas sociedades ocidentais, pois a experiência da homossexualidade - ou de outras sexualidades não pautadas na heteronormatividade - articula a produção de "'sujeitos' que não apenas ultrapassam os limites da inteligibilidade cultural como efetivamente expandem as fronteiras do que é de fato culturalmente inteligível" (BUTLER, 2010, p.54). O próprio Tropicalismo, ao cultivar o estranhamento através das inovações musicais que propunha para a música brasileira, mas também pelo uso das imagens andróginas - fisicamente e propositalmente semelhantes - de Gal Costa e Caetano Veloso, apresentava-se como um movimiento desafiador no sentido de desestabilizar a pretensa inteligibilidade dos gêneros feminino e masculino.

2 - Do erotismo como recurso performático

Prosseguindo na análise da relação entre o trabalho de Gal Costa e o público jovem (em boa parte homossexual), é interessante propor uma reflexão sobre o estabelecimento das redes de sociabilidade entre os fãs que, consequentemente, são responsáveis por constituir uma forte noção de grupo - ou até mesmo "parentesco" - entre aqueles que compartilham um gosto em comum por uma cantora. Tendo sido considerada musa de uma parcela de jovens de sua geração a partir do forte impacto da turnê FA-TAL, Gal Costa aglomerou em torno de si um conjunto de admiradores que a representavam como um ícone dos ideais da ideologia do desbunde6.

Em novembro de 2006, a revista Bizz documentou a existência desse fenômeno cultural e comportamental, publicando uma reportagem dedicada ao aniversário de 35 anos do projeto FA-TAL. Na matéria, escrita por Ricardo Schott, há depoimentos de personalidades que vivenciaram esse acontecimento, como, por exemplo, a jornalista Ana Maria Bahiana, que afirmou que Gal Costa "era objeto do desejo de homens e mulheres" (BAHIANA citada por SCHOTT, 2006, p.63). Nesta mesma reportagem, SCHOTT (2006) registra que a cantora "era um mito sexual de bustiê, bata, cabelos esvoaçantes e performance sensual, embora espontânea" (SCHOTT, 2006, p.65). Tal acontecimento e sua constatação ocorrem devido ao fato de que Gal Costa se dedicou a explorar a exposição do seu próprio corpo e o uso do erotismo como um recurso performático. A respeito dos efeitos da fabricação e veiculação midiática de sua imagem erotizada, a própria cantora afirmou nesta reportagem: "Ouvi de amigos que, durante o show, havia meninos e meninas se masturbando" (COSTA citada por SCHOTT, 2006, p.65).

Esse registro jornalístico do fenômeno em torno da realização da turnê FA-TAL é essencial para que eu coloque aqui minhas reflexões acerca das redes de sociabilidades que são construídas em torno de uma figura pública que é tida como ídolo e que, neste texto, está sendo representada pela cantora Gal Costa. Dessa maneira, fica mais claro como a música constitui um fator de sociabilidade de acordo com as proposições de SIMMEL (1983), que concebe "a sociabilidade como a forma lúdica da sociação" (SIMMEL, 1983, p.169) realizada por pessoas que são, em sua totalidade, "um complexo dinâmico de ideias, forças e possibilidades" (SIMMEL, 1983, p.171). Em suas argumentações sobre este tema, o autor amplia a discussão reforçando o caráter democrático e positivista da sociabilidade que, segundo ele, "cria um mundo sociológico ideal, no qual o prazer de um indivíduo está intimamente ligado ao prazer dos outros" (SIMMEL, 1983, p.172). Para SIMMEL (1983), a sociabilidade reproduz uma realidade ficcional na medida em que os integrantes do grupo não procuram desenvolver relações conflituosas, pois expressam o desejo idealizado de obtenção de uma interação pura com os outros. Ainda na mesma argumentação, o autor afirma que

a sociabilidade é o jogo no qual se 'faz de conta' que são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular; e 'fazer de conta' não é mentira mais do que o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio da realidade (SIMMEL, 1983, p.173).

Esse "mundo ficcional" criado pelos integrantes do grupo de sociabilidade e abordado por SIMMEL (1983) pode ser utilizado para analisar os motivos pelos quais esses fãs de Gal Costa se sentiam tão bem acolhidos em seus shows, pois aqueles espetáculos de música proporcionavam a configuração do espaço ideal e adequado para aquela juventude que se sentia reprimida por conta de suas orientações políticas, comportamentais e sexuais. Em outras palavras, os shows delimitavam um território onde a ideia de repressão não tinha força, estimulando-se um ideal de liberdade expressiva no imaginário destes jovens. Aliás, sob a lógica de FOUCAULT (1988), poder-se-ia descartar essa "hipótese repressiva" e adotar a ideia de que, na verdade, as relações de poder instauradas no período da Ditadura Militar do Brasil eram, de fato, produtoras de sexualidades a partir de discursos implícitos que incitariam a valorização de uma masculinidade e feminilidade socialmente legitimada, reforçando ideais heteronormativos, fabricadores da imagem do macho "viril" e da fêmea "delicada". Ao gerar esses padrões legitimados de comportamento para os gêneros e para as sexualidades, por outro lado, as relações de poder incitavam atitudes de resistência - empreendidas por sujeitos homossexuais - às regras de inteligibilidade dos gêneros. Neste sentido, compreendo que os shows de Gal Costa (nos anos 1970) poderiam ser considerados como espaços de sociabilidade onde sujeitos com comportamento divergente dos padrões heteronormativos produziam suas sexualidades e performatividades de gênero (BUTLER, 2002) como uma resposta direcionada às ações normalizadoras de performances corporais e condutas sexuais.

Diante desses conceitos de sociabilidade, é interessante observar como as pessoas criam relações de afinidade a partir de uma prática em comum. Neste caso, proponho uma analogia com a fabricação de parentesco detectada por FAUSTO (2002) na Amazônia. Em seu estudo, o autor relaciona práticas comensais à fabricação de ligações de parentesco ao expor que, para alguns povos da região amazônica, há "uma concepção muito difundida de que comer como e com alguém inicia ou completa um processo de transformação que conduz à identificação com este alguém." (FAUSTO, 2002, p.16). Dessa maneira, esse conceito quer dizer que a partilha de uma determinada prática ou de um determinado bem de consumo é capaz de aproximar as pessoas num nível parental ou de grande afinidade. Traduzindo essa realidade amazônica descrita por FAUSTO (2002) para a vivência de indivíduos inseridos num contexto urbano de compartilhamento de uma cultura musical, é possível afirmar que gostar de um produto cultural e consumir este produto com e como alguém gera uma afinidade que desencadeia uma forte noção de grupo e, talvez, até de "parentesco", simbolicamente falando.

Adentrando a dimensão erótica utilizada por Gal Costa como parte integrante de seu discurso performático, é importante falar da representatividade da capa do LP Índia (1973). A fotografia da capa consistia num close up da região genital de Gal Costa encoberta por um biquíni vermelho e adornada por uma vestimenta indígena, confeccionada com palha e que era segurada pelas mãos da cantora. Esta foto e as fotos da contracapa que exibem Gal Costa seminua com os seios à mostra foram consideradas ofensivas aos "bons costumes" da sociedade brasileira da época e, por isso, o LP sofreu censura por parte do regime militar, que determinou que este álbum só poderia ser comercializado nas lojas se envolvido numa embalagem plástica opaca que encobrisse as fotografias feitas por Antonio Guerreiro.

Ao analisar esta capa é possível retornar ao discurso de Terence TURNER (1980) sobre o uso das cores nas pinturas corporais dos índios Kayapó. Sendo o vermelho associado às noções de "energia, vitalidade e intensificação", esta cor - não se sabe as reais motivações - foi utilizada, no biquíni, para encobrir a região genital de Gal Costa na fotografia. Esta significação para a fotografia em questão pode não ter sido concebida originalmente desta maneira, mas a coexistência de tal configuração de cores, erotismo e dimensões de subjetividade dá margem às interpretações que venho construindo a partir do cruzamento da obra de Gal Costa com esta literatura antropológica.

Sendo assim, é possível inferir que toda a fabricação dessa imagem erótica de Gal Costa visava trabalhar com a dimensão subjetiva e interior do desejo de seu público-alvo. Nesse sentido, a erotização do corpo funcionava como isca para que o produto cultural "Gal Costa" e a estética musical tropicalista fossem assimilados por um mercado consumidor jovem. A imagem pública de Gal Costa era, aos poucos, construída na intenção de desencadear sentimentos de desejo tanto pela música que ela cantava quanto pelo ideal de libertação sexual feminina que ela representava. Portanto, suponho que o uso de uma interface que contemplava o universo musical associado a uma dimensão erótica, na verdade, era pensado para buscar uma comunicação efetiva com a subjetividade dos desejos desse público jovem almejado por Gal Costa e pela indústria fonográfica na qual estava inserida. Nesse aspecto, uma associação com as formulações de BATAILLE (1987) sobre o caráter íntimo e subjetivo do erotismo é perfeitamente válida para o entendimento desta minha proposta de problematização da sensualidade como recurso performático da atuação cênica de Gal Costa durante o Tropicalismo. Segundo o autor,

o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objeto de desejo. Mas este objeto responde à

interioridade

do desejo. A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do indivíduo: mesmo se ela recai sobre a mulher que a maioria teria escolhido, o que entra em jogo é frequentemente um aspecto indizível, não uma qualidade objetiva dessa mulher, que talvez não tivesse, se ela não nos tocasse o ser interior, nada que nos forçasse a escolhê-la. (BATAILLE, 1987, p.20)

Ainda na perspectiva da abordagem do discurso performático de Gal Costa, devo chamar a atenção para a clássica contribuição que Marcel MAUSS (2003a; 2003b) forneceu à compreensão das técnicas do corpo e aos conceitos de pessoa. O autor define como técnicas do corpo "as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, servem-se de seu corpo" (MAUSS, 2003, p.401). Neste sentido, o corpo é colocado como um instrumento através do qual o homem se manifesta por meio de diversas ações que se traduzem em comportamentos físicos e comunicam uma mensagem simbólica.

A associação entre os vocábulos "corpo" e "instrumento" parece ainda mais óbvia quando transferida para um contexto de análise de performance no âmbito da música, no qual a concretização do fenômeno musical somente ocorre através do uso explícito de técnicas corporais que permitem a emissão do som.

Analisar a conduta do corpo durante o processo expressivo do ato de cantar requer não apenas um reconhecimento de dados técnico-musicais, mas também uma identificação das mensagens simbólicas transmitidas pelo corpo quando posto em conformidade com o discurso estético que um determinado artista propõe ao lançar uma obra.

O conceito de "imitação prestigiosa" no qual Mauss identifica que "a criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela" (MAUSS, 2003, p.405) é valioso para o entendimento da influência que determinados artistas possuem sobre seus admiradores ou fãs, interferindo, inclusive, na construção de suas performances de gênero (BUTLER, 2002), principalmente no caso de fãs homens e homossexuais cujo ídolo é uma cantora, uma atriz ou uma mulher de grande destaque social. Essa conceituação proposta por MAUSS (2003) pode ser aplicável à compreensão do vínculo existente entre o ídolo (detentor da autoridade) e o fã (aquele sobre quem se exerce a autoridade), pois nessa relação há pontos que tratam diretamente da influência que certos artistas exercem sobre o público que o acompanha, fazendo com que o grau de influência exercido nas diferentes camadas deste público seja tido como parâmetro para estratificá-lo em grupos distintos que abrangem indivíduos simpatizantes de sua obra, pessoas colecionadoras de seus produtos e assíduas aos seus espetáculos ou, ainda, sósias e até "transformistas" que chegam ao nível da tentativa de incorporação das técnicas corporais de uma determinada personalidade artística. É válido ressaltar que essa polarização que configura o ídolo como detentor de autoridade e o fã como receptor de uma influência unidirecional é apenas um recurso para compreender esse raciocinio que estou expondo. Na realidade, meu entendimento da relação ídolo-fã obedece a uma lógica relacional - semelhante ao raciocínio de FOUCAULT (1988) ao discutir sobre relações de poder - na qual a cantora (indústria) produz o fã (mercado) e o fã (mercado) produz a cantora (indústria).

Com relação a esse conceito de "imitação prestigiosa", o que particularmente me interessa é pensar como a figura midiática de Gal Costa poderia influenciar a performatividade de gênero de seus fãs homens, homossexuais e com identidades de gênero autorreconhecidas como masculinas, que não representam nela (e em outras mulheres) um foco de desejo sexual, revelando aspectos descontínuos entre sexo, gênero e desejo, conforme sugere BUTLER (2010). Temos, dessa maneira, um caso explícito de homens cujas vidas giram, em parte, em torno de sua relação distanciada com uma mulher idolatrada, sem que isto implique um desejo - mesmo remoto - de caráter amoroso ou sexual, pois estes homens, objetos de minhas reflexões, possuem orientação homosexual e, pelo menos teoricamente e em primeira instância, não manifestam seus desejos sexuais direcionando-os para as mulheres7. Dessa maneira, esse quadro apresentado rompe com a divisão binária da sexualidade (BUTLER, 2010). A dificuldade de problematizar essas nuances da sexualidade e das possíveis relações homem-mulher ocorre pelo fato de que "a regulação binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica" (BUTLER, 2010, p.41). BUTLER (2010) critica esse posicionamento regulador da sexualidade num padrão binário de "gêneros inteligíveis", ou seja, aqueles que "mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo" (BUTLER, 2010, p.38).

Neste sentido, tenho procurado compreender quais os fatores que influenciam a relação afetiva entre um público composto por homens homossexuais e uma cantora a partir da perspectiva dos estudos sobre o corpo.

Para FOUCAULT (1997), "o corpo está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais" (FOUCAULT, 1997, p.28-29). Desta maneira, proponho que a performance artística no palco seria uma resistência a este controle do corpo, isto é, a relação entre o corpo e o campo político é importante para que se possa pensar em seu uso performático como um recurso contestatório da ordem moral e, consequentemente, da configuração política que se constrói a partir dessa moral. Com a consciência de que as relações políticas submetem o corpo a um regime (social, econômico e político), é possível avaliar que as artes performáticas, muitas vezes, fazem uso da exposição do corpo como um ato de subversão dessa suposta ordem estabelecida pelas relações de poder.

Esse é um dos fatores pelos quais suponho que indivíduos inseridos em grupos gays masculinos vão encontrar nos corpos femininos das cantoras - que na condição de mulheres também são vítimas de uma repressão histórica acerca de sua sexualidade - pontos de identificação que se configuram como uma resposta contrária à prática do preconceito e da discriminação física ou moral.

Sendo assim, o que me interessa investigar é, necessariamente, a figura da mulher sendo observada por homens que não a representam como um objeto de desejo sexual, mas como um modelo de poder exercido seja pelo domínio da própria sexualidade ou por qualquer outra característica que expresse força e independência diante de um mundo polarizado entre "fortes" (homens) e "fracos" (mulheres e pessoas com orientação sexual "desviante").

Fazendo um cruzamento entre os conceitos de "imitação prestigiosa" (MAUSS, 2003) e "gêneros ininteligíveis" (BUTLER, 2010) cuja performatividade de gênero seria "incoerente" com o sexo dos indivíduos, é possível identificar pontos elucidativos quanto às vivências de muitos homossexuais masculinos que se dizem influenciados em sua gestualidade pelas cantoras e atrizes que admiram. A referência a um ídolo desencadeia atitudes de reverência na qual o admirador que imita - ou se inspira nos gestos do ídolo - atribui grande valia a determinados comportamentos físicos que traduzem, implicitamente, posicionamentos de personalidade positivos sob o ponto de vista do fã. Segundo MAUSS (2003), "é precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social" (MAUSS, 2003, p.405), ou seja, a posição privilegiada com status de autoridade conquistada pelo ídolo no imaginário de seu admirador provoca uma legitimação positiva de seus atos que, por este motivo, merecem ser reproduzidos por seus fãs. Esse cruzamento aparentemente conflituoso entre a performance de um artista e a performatividade de gênero de um fã pode ser verificado até mesmo na própria vida profissional de Gal Costa, que, antes de se tornar uma cantora nacionalmente conhecida, era fã de João Gilberto e completamente influenciada por sua forma de cantar. Ou seja, o maior parâmetro de referência artística para Gal Costa estava representado por uma figura masculina (João Gilberto), e é por este motivo que, na fase inicial de sua carreira profissional, pode-se verificar inúmeros registros fonográficos onde é nitidamente perceptível a influência do canto depurado e intimista de João Gilberto nas interpretações vocais de Gal Costa.

Além disso, o próprio visual de Gal Costa fora afetado pela influência de João Gilberto, visto que a cantora, de certa forma, masculinizou a sua imagem ao cortar, no início da carreira (1967), os seus cabelos de maneira semelhante ao corte de cabelo usado pelo ídolo. Em suas apresentações ao vivo, Gal Costa também se mostrava tocando violão (aos moldes de João Gilberto) e cantando composições com forte acento da estética da Bossa Nova. Enquanto esteve somente à sombra de uma figura masculina como referência, o canto de Gal Costa permaneceu tímido, emitido em baixa intensidade. Porém, ao aderir ao ideal estético do Tropicalismo admitindo a influência do rock e da pop art norte-americanos, Gal Costa se deixou inspirar pela performance agressiva de Janis Joplin (principal modelo feminino de performance dentro do âmbito do rock na transição das décadas de 1960 e 1970) e, assim, cria um estilo próprio de cantar e atuar baseado numa fusão entre as estéticas performáticas de João Gilberto e Janis Joplin. A partir de então, Gal Costa continuou, por exemplo, a tocar violão e a cantar sambas antigos em seus shows, porém sua postura corporal foi outra. Ao invés de tocar com as pernas cruzadas, Gal Costa executava o violão com as pernas extremamente abertas, vestindo, em geral, saias e, portanto, chamando a atenção para a sua região vaginal. Neste sentido, proponho que Gal Costa constrói uma releitura erotizada da figura emblemática de João Gilberto e, consequentemente, a postura de seu corpo sensualizada no palco possibilita que se represente, em sua imagem, o emblema de uma mulher sexualmente livre, aberta às mais diversas possibilidades de exercício de sua própria sexualidade.

Quanto ao uso do erotismo e da nudez explícita, há dois momentos marcantes em que Gal Costa refaz uma incursão nesse universo de maneira mais intensa. O primeiro momento ocorreu em 1985 quando, prestes a completar quarenta (40) anos, fez um ensaio sensual (LIMA, 1985) para a Revista Status (1985)8. O segundo aconteceu em 1994, quando Gal Costa estava próxima da idade dos cinquenta (50) anos, e consistiu na exibição de seus seios durante sua performance na turnê O sorriso do gato de Alice, que foi dirigida por Gerald Thomas.

Esses dois acontecimentos serviram para reafirmar essa dimensão erótica que está incrustada no discurso performático de Gal Costa desde a década de 1970. De alguma forma, o uso da nudez explícita na revista e no palco quebrou a imagem de grande "diva" da música brasileira que Gal Costa conquistou, com seus próprios méritos e com a contribuição da mídia, após três fatores que são: sua empreitada no projeto Gal Tropical em 1979 (turnê e LP que foram divisores de águas em sua carreira, pois sofisticaram a sua imagem e desfizeram seu vínculo com a imagem de cantora do desbunde); a morte de Elis Regina, em 1982, causando na mídia nacional uma ânsia para encontrar uma artista "substituta" para o posto de "grande cantora da MPB"9, e, por último, sua associação com o compositor Tom Jobim em 1983 - ao gravarem a trilha sonora para o filme Gabriela (Bruno Barreto) e realizarem diversos shows nos EUA durante os anos 1980.

Ao revelar sua nudez, Gal Costa renegou a posição de "grande dama da voz" e retoma seu discurso performático tropicalista, sendo alvo grandes críticas por parte da imprensa especializada e do próprio público, já habituados com sua conduta comportamental supostamente adequada aos padrões de moralidade atribuídos a uma mulher acima dos quarenta anos. Evocando novamente a contribuição de BATAILLE (1987), deve-se notar que, para ele, o homem é um ser único, isolado em si, e que elabora suas experiências de maneira individual. BATAILLE (1987) concebe a descontinuidade do homem afirmando que

cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros certo interesse, mas ele é o único diretamente interessado. Só ele nasce. Só ele morre. Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade (BATAILLE, 1987, p.11).

Nessa perspectiva, BATAILLE (1987) defende que a atividade erótica é uma constante busca do homem pela continuidade, ou seja, pelo inverso desse sentimento de isolamento que segrega o homem em um espaço individualizante no qual ele existe sozinho. O erotismo aparece em BATAILLE (1987) como uma marca da tentativa da fusão de dois universos descontínuos que ajuda a compreender esse desejo quase inexplicável do homem pelo outro ser.

Inspirado em BATAILLE (1987), o que pretendo sugerir é que todo o discurso performático de Gal Costa em torno da exposição do corpo e da exploração de sua dimensão erótica pode ser considerado como uma tentativa de trabalhar com esse desejo interior do ser humano pelo erotismo, fazendo com que esse desejo se manifeste no consumo dos produtos culturais lançados pela artista. Isto quer dizer que, ao se mostrar nua, Gal Costa adentra o universo da subjetividade do desejo, desencadeando (ou pelo menos estimulando) também a vontade de consumir sua música. O consumo desta música, sugiro, admitiria a interpretação de que, neste caso, a busca humana pela continuidade se manifesta para além do olhar puramente erótico, mas também dentro de uma escuta musical associada às nuances de sensualidade.

Ainda na perspectiva de BATAILLE (1987), reforço a ideia de que esse desnudamento buscado ciclicamente por Gal Costa - consciente ou inconscientemente - é uma investida perturbadora à descontinuidade dos seres humanos pelas vias do fato musical. A continuidade passa a ser um objetivo a ser alcançado não apenas pela satisfação de uma vontade com conotação sexual, mas também por outra necessidade subjetiva de apreciação musical na qual se pode construir uma relação de fusão (continuidade) entre o ser que canta e o ser que ouve. Considerando que toda relação sexual pode ser concebida como um momento em que dois universos descontínuos se "penetram" mutuamente, sugiro que a escuta musical também possui uma dimensão erótica no sentido de que o fenômeno sonoro estabelece uma relação entre aquele que realiza o som e aquele que o ouve. Contrariando a noção de que o sujeito emisor do som seria o agente penetrador enquanto o ouvinte estaria conformado apenas ao papel da receptividade, ressalto que esta ideia simbólica de penetração não deve ser entendida como um estigma que polariza músicos e ouvintes em padrões de "atividade" e "passividade" durante o fenômeno sonoro. Pelo contrario, o que ocorre é uma interpenetração desses universos descontínuos, na qual emissor e ouvinte se entrecruzam, se apropriam de suas lógicas, promovendo uma interação mútua que gera importantes significações para ambas as partes.

3- Conclusões

Ao evocar a atmosfera do erotismo e até mesmo utilizar a nudez explícita em suas atuações, Gal Costa acaba por enfatizar essa dimensão erótica do fenômeno musical de uma maneira ainda mais enfática, pois

a ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada (BATAILLE, 1987, p.14)

No que tange ao Tropicalismo, a impressão mais nítida que se pode ter é que cada um de seus membros teve uma contribuição específica na construção do movimento. Esta revisão crítica que tenho feito serve também para ratificar os posicionamentos de Caetano Veloso e Gilberto Gil como sendo, respectivamente, responsáveis pelos discursos conceituais e musicais dentro do Tropicalismo. Mais do que isso, essa análise que faço tem como principal objetivo avaliar qual o tipo de legado tropicalista que poderia ser atribuído a Gal Costa. A ela caberia o mérito de ter contribuído com a instauração de um discurso performático para o Tropicalismo, não apenas por ter usado a sensualidade como recurso da performance, mas pelos avanços significativos que deflagrou no campo da interpretação vocal. A respeito disso, Gal Costa soube inventar a sua forma própria de interpretar canções a partir da canalização das influências nítidas de João Gilberto e Janis Joplin, em conjunção com influências menos evidentes como Dalva de Oliveira, Carmen Miranda e Dorival Caymmi. Como resultado, o canto de Gal Costa mantém a peculiaridade interpretativa essencial que distingue sua marca como cantora, mas se apresenta também respaldado por uma série de outras referências que a permitiram expandir seus horizontes para o desenvolvimento de um canto versátil aos moldes da proposta do Tropicalismo.

Essa construção do próprio canto a partir de uma noção estética de pluralidade é o que vai contribuir para que Gal Costa seja apontada por inúmeros artistas da música brasileira - geralmente vinculados ao rock dos anos 1980 e, portanto, herdeiros do legado tropicalista como, por exemplo, Cazuza e Marina Lima - como sendo a primeira cantora moderna do Brasil. Tal qualificador de modernidade deixa subentendido que ser moderno é ser aberto à diversidade e é nesta perspectiva que Gal Costa se constitui como pioneira na constituição do conceito de "cantora eclética", pois conseguiu elaborar formas interpretativas cuja versatilidade lhe possibilitou o trânsito (com êxito) por diversos gêneros musicais, como bossa nova, canção, forró, frevo, rock,jazz, "música brega", samba etc. O mais importante desse trânsito pela diversidade é que, em nenhum desses estilos, Gal Costa soa como artificial, pois o seu canto tem um alto fator de adaptabilidade e é justamente esta característica que a qualifica como uma intérprete moderna dentro do âmbito da música popular nacional.

Outro aspecto notável é o fato de que a associação de Gal Costa com muitos estilos musicais - alguns deles considerados como de apuro estético "duvidoso" sobretudo nos anos 1980 - não restringiu sua passagem no circuito dos considerados grandes artistas brasileiros e internacionais, pois continuou a empreender projetos ao lado de nomes como Tom Jobim, Chico Buarque, Jaques Morelembaum, Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e grandes nomes muitas vezes vinculados à música erudita. Pretendo sugerir que isto ocorre pelo fato de que o Tropicalismo foi em si uma proposta de equilíbrio de tendências musicais na qual cabem o grito, o sussurro e o canto melodioso. Os parâmetros estéticos não se apresentam fixos, admitindo-se a retração e a expansão, o erudito e o brega, podendo-se trafegar com liberdade entre esses paradigmas. Como integrante do Tropicalismo, Gal Costa possui o álibi necessário e a desenvoltura técnica como cantora adequada para gritar ao som de guitarras ou cantar acompanhada por uma grande orquestra.

Diante de todas as questões levantadas neste artigo, procurei analisar, à luz de textos antropológicos, como o estudo do processo de fabricação do corpo em diversos grupos sociais pode também contribuir para elucidar o processo de fabricação do corpo inserido numa performance artística.

Dentro desta análise, concluo que, para a construção de uma performance artística, é igualmente necessário que o cantor seja submetido a um processo de fabricação do próprio corpo, porém desta vez trata-se de um corpo fora de suas atividades cotidianas, ou seja, um corpo cênico que transita pelo palco e que tem objetivos claros de estabelecer uma relação com seus interlocutores. Essa atuação corpórea pode provocar o desencadeamento de um debate que vai além da discussão em torno da própria arte e que, neste texto, tangencia questões importantes acerca de gênero e sexualidade. É imprescindível notar que esta compreensão de corpo não pode excluir a voz, que, na verdade, é um discurso melódico que comunica e que, no caso de Gal Costa, foi também usada para evocar a atmosfera do erotismo através do repertório e das interpretações vocais sensualizadas que registrou em seus álbuns.

Notas

Recebido em: 06/12/2012

Aprovado em: 15/07/2013

Rafael da Silva Noleto é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA), pertencendo à área de concentração em Antropologia Social e à linha de pesquisa "Paisagem, Memória e Gênero". Licenciado Pleno em Música (Universidade do Estado do Pará). Dedica-se a pesquisas vinculadas à Música Popular Brasileira, corpo e estudos de gênero e sexualidade. Integra o grupo de pesquisa "Cidade, Aldeia e Patrimônio" (UFPA). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música, atuando como cantor, compositor e performer.

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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A fabricação do corpo na sociedade Xinguana. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Marco Zero, 1987.
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    O título deste artigo faz referência à música
    Fruta Gogóia, obra de domínio público, pertencente ao folclore baiano, gravada por Gal Costa em 1971 e que está contida no repertório do álbum
    FA-TAL (Gal a todo vapor), considerado como um símbolo da contribuição de Gal Costa para a sustentação do movimento tropicalista na Música Popular Brasileira durante o período de ausência de seus principais articuladores, os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, que estavam exilados, pelo Regime Militar, em Londres.
  • 2
    Tradução livre a partir de excertos do texto que, originalmente, está escrito em inglês.
  • 3
    Utilizo a expressão "discurso performático" como sendo todo o processo corporal de atuação cênica considerado como uma linguagem que comunica, gera significado e produz diversas possibilidades de entendimento por parte de seus interlocutores.
  • 4
    Sabe-se que DAMATTA (1976) é um pesquisador fortemente influenciado pelas correntes estruturalistas do pensamento antropológico. No entanto, os estudos contemporâneos de gênero e de sexualidade partem de pressupostos teóricos que não compartilham de uma compreensão das identidades sexuais e das relações de gênero sob uma perspectiva estrutural, dividida em oposições binárias e estanques que dividem o mundo social em "masculino" e "feminino". Para esses estudos mais atuais, as categorías de gênero e as posibilidades de vivência da sexualidade são múltiplas, fluidas e não obedecem a uma lógica necesariamente binária. Sobre esses aspectos ver BUTLER (2010); Miskolci (2009); ALMEIDA (2003). Entretanto, utilizo o trabalho de DAMATTA (1976) justamente para exemplificar noções e hierarquias de gênero amplamente combatidas pelo pensamento feminista, que inseriu no debate das ciencias sociais outros olhares para as relações de gênero e para as identidades sexuais producidas no interior de diversos contextos culturais. Sobre ese aspecto, ver RUBIN (1975).
  • 5
    Em 1979, a "Revista Veja" escolheu Gal Costa para estampar sua matéria de capa devido ao sucesso absoluto do show "Gal Tropical". A reportagem documentava que este projeto lançou a cantora ao estrelato definitivo, impulsionou a vendagem de seus LPs, conquistou a alta sociedade brasileira e marcou a transição da imagem de musa do desbunde para "diva" da MPB.
  • 6
    Esta expressão possui origem na postura política (e não estética) assumida por determinados grupos de jovens da época, como bem definiu Daniel Gonçalves: "A concepção de arte engajada, predominante nos anos 1960, conheceu sua resistência por meio da revolução comportamental, que se difundiu mundo afora, e da instituição da ditadura militar, que fez com que fossem varridos os anseios de transformação da sociedade brasileira. Ambos os aspectos provocaram a revisão e o questionamento dos preceitos fundamentais da prática política tradicional. Para a ala engajada, esse movimento de rejeição do modelo de contestação política tradicional era conhecido como
    desbunde, designação dada àqueles que deixavam a militância política em favor de projetos pessoais. Mais especificamente, talvez possamos pensar em termos de gerações, afirmando que parte dos integrantes da geração anos 1970 - o que não exclui integrantes de outras gerações -, não reconheciam mais na militância política um ideal de vida a ser seguido e, em convergência com a liberalidade proposta pelos movimentos de contracultura, adotaram o desbunde como signo de rebeldia e descrença em relação aos projetos revolucionários e, de certo modo, também à ordem vigente" (GONÇALVES, 2008, p.31).
  • 7
    Para uma discussão mais densa sobre sexualidade (e homossexualidade) no que diz respeito à fluidez, variação e instabilidade com que é manifestada, percebida e caracterizada individual e socialmente, ler FRY & MACRAE (1985). Para uma compreensão mais aprofundada acerca de como as sexualidades são produzidas, historicamente, a partir de relações e instituições de poder, ler FOUCAULT (1988). CARRARA & SIMÕES (2007) possuem artigo que trata especificamente sobre como a homossexualidade masculina foi sendo problematizada no âmbito da antropologia brasileira, inclusive apresentando estudos precursores daquilo que hoje se conhece como "teoria queer". VANCE (1995) e ALMEIDA (2003) também possuem interessantes textos sobre o interesse e a relação da antropologia com a temática das sexualidades.
  • 8
    Ver reportagem de Apoenan Rodrigues (1985), "Os tons e os timbres de Gal", veiculada na na mesma revista em que Gal Costa foi fotografada nua.
  • 9
    Utilizo esta expressão não em seu sentido estrito - aquele que evocaria as qualidades vocais e interpretativas que uma cantora necessita ter para ser considerada como de renome -, mas em seu sentido figurado referindo-me ao rótulo de "grande cantora" frequentemente concedido pela mídia às personalidades femininas da música que conquistam grande sucesso de público. Este rótulo, de certa maneira, "aprisiona" a artista num certo padrão previsível no qual se espera que a cantora corresponda - em seus shows, álbuns e aparições públicas - a um estereótipo de refinamento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      15 Jul 2013
    • Recebido
      06 Dez 2012
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