Resumo
O artigo investiga a ocorrência de uma crise ligada à ação dos jesuítas da Província do Brasil, no final do século XVI e início do XVII. Tal crise se deu entre os membros da Companhia e é exposta, neste manuscrito, nas críticas dirigidas aos superiores e nas denúncias de comportamentos desviantes, feitas pelos próprios padres que atuavam na missão do Brasil. Os descaminhos da missão se aprofundaram na medida em que alguns membros da Companhia feriram os votos religiosos e praticavam violências, sobretudo no trato com os índios nas aldeias. Para verificar esses descaminhos, fez-se uso de uma documentação muito pouco explorada e, em grande parte, inédita para o público brasileiro, pesquisada no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma.
Palavras-chave
ação dos jesuítas; fatores religiosos; Brasil Colônia
Abstract
The paper investigates a crisis linked to the action of the Jesuits from the Province of Brazil, in the late 16th and early 17th centuries. This crisis took place among the members of the Society and is exposed, in this manuscript, through criticisms directed to the superiors and in the complaints of deviant behaviors, made by the priests themselves who acted in the mission in Brazil. The Mission misdirections deepen as some members of the Society dishonored their religious vows and practiced violence, especially when dealing with the Indians in the villages. In order to verify these misdirections, we analyzed documentation, little explored and largely unknown for the Brazilian public, researched at the Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), in Rome.
Keywords
jesuit action; religious factors; Colonial Brazil
“Os operários de uma vinha estéril”4 4 Expressão tomada de Castelnau-L’Estoile (2006). : tempos difíceis
O artigo em pauta faz uso de fontes jesuíticas5 5 Referindo-se às cartas jesuíticas, Pécora (2018) afirma que elas devem ser vistas “como um mapa retórico em progresso da própria conversão. Isso significa afirmar que são produzidas como um instrumento decisivo para o êxito da ação missionária jesuítica, de tal modo que as determinações convencionais da tradição epistolográfica, revistas pela Companhia e aplicadas aos diversos casos vividos, mesmo os mais inesperados, sedimentam sentidos adequados aos roteiros plausíveis desse mapa [ênfase no original]” (p. 18). O autor destaca que as cartas estão longe de ser efeito espontâneo das novas experiências dos padres em regiões desconhecidas dos europeus. O estudo dessas fontes poderá revelar “o constructo formal e histórico da aparente positividade ou naturalidade dos testemunhos que dão nascimento ao Brasil. Pois o parto exigiu muita tinta, muita papelada. Os traços dos brasis foram sendo encontrados proporcionalmente à muita andança das letras. Enfim, supõe-se aqui que a construção da forma já faz parte da narrativa da história” (p. 68). pouco exploradas pela historiografia, pesquisadas no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Tais documentos expõem várias “feridas” que se verificaram no interior da Província do Brasil no final do século XVI e início do XVII. Os feridos foram, sobretudo, os índios. Mas há feridas também entre os membros da Companhia de Jesus, nos descaminhos de uma missão que, vocacionada ao cuidado espiritual, se embrenhou na lida temporal, administrando as aldeias e submetendo os nativos ao seu senhorio. Certamente, foi na aldeia que a missão encontrou seus maiores desafios, a ponto de ser questionada pela própria direção da Ordem em Roma. Foi também na aldeia que alguns inacianos experimentaram a angústia da missão e, em alguns casos, pediram para serem retirados dali.
A gênese dos embates e dos descaminhos que se acirraram em fins do século XVI pode ser situada nas alianças que se estabeleceram anos antes. Sobretudo na aliança entre poder temporal e espiritual está a origem do que chamo de crise no interior da missão da Companhia em terras brasílicas. A referida aliança tem suas fundações em 1557, quando Mem de Sá assumiu o governo, no qual permaneceu até 1572. Segundo Thomas (1982)Thomas, G. (1982). Política indigenista dos portugueses no Brasil (1500-1640). Loyola., os esforços do governador na questão indígena perseguiam todas e cada uma das seguintes metas:
estabelecer a segurança e a paz da terra, mediante a vitória e a sujeição completa sobre as tribos índias revoltadas ou inimigas e sobre os seus aliados, os franceses;
intensificar os esforços para a proteção dos indígenas aliados dos portugueses, contra a espoliação e escravização e, em especial, acelerar a civilização e cristianização dos índios, mediante a fundação sistemática de aldeias;
estabelecer um contato estreito e amistoso com os jesuítas, como pioneiros da política indigenista real, e sustentar as suas obras com apoio material.
(p. 74)
Porém, no próprio centro da Ordem dos jesuítas em Roma apareciam dúvidas sobre se os compromissos que os padres assumiram, ao aceitar a administração das aldeias no tempo de Mem de Sá6 6 De acordo com Perrone-Moisés (1992), no governo de Mem de Sá, os jesuítas foram encarregados da administração das aldeias, responsáveis não apenas pelo “governo espiritual” como, também, pela organização dos aldeamentos e repartição dos trabalhadores indígenas pelos serviços, tanto da aldeia quanto para moradores e para a Coroa (“governo temporal”) (p. 122). , eram compatíveis com as Constituições e com as tarefas peculiares da Companhia. O geral dos jesuítas em Roma manifestava publicamente seu desacordo com o tratado que os jesuítas haviam firmado com o poder secular na Província brasileira. Para Thomas (1982)Thomas, G. (1982). Política indigenista dos portugueses no Brasil (1500-1640). Loyola., é possível traçar uma relação entre tal oposição pública em Roma e a determinação do provincial Luís da Grã de propor ao governador a nomeação de capitães das aldeias. Em agosto de 1566, o rei ordenou a Mem de Sá nomear alguns portugueses dignos para este posto. No entanto, apesar da desaprovação da direção da Ordem, os jesuítas aceitaram, pouco tempo depois, novamente, a administração completa das aldeias, porque, segundo argumentavam, a recomendação de Roma não era aplicável, nas circunstâncias concretas da Colônia. Contra a vontade dos superiores da Ordem, os jesuítas da Província do Brasil ficaram, portanto, cada vez mais fortemente a serviço da política indigenista portuguesa. Até 1572, os padres assumiram, de novo, toda a administração das aldeias. Nesse ano, o novo provincial, Inácio de Tolosa, trouxe de Roma instruções para retirar, uma vez mais, a jurisdição temporal dos padres, o que não teve, porém, nenhuma consequência prática (pp. 89-91).
Contudo, o exercício da atividade temporal sempre foi caro aos inacianos e pode ser verificado, inclusive, no próprio carisma da Ordem. Assim, desde sua fundação, eles se fizeram “amigos” do mundo, e seu palco era a missão, em contraposição às ordens religiosas essencialmente contemplativas, de então. De acordo com Cristina Pompa (2003)Pompa, C. (2003). Religião como tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial. Edusc., a espiritualidade dos inacianos era uma abertura para o mundo externo, e a missão era a sua tradução mais completa. Isso está implícito no “Quarto Voto”: a total obediência ao papa e a aceitação pelo missionário de ser enviado a qualquer lugar onde sua santidade quisesse, entre os turcos ou nas Índias, entre hereges ou cismáticos. Os hereges têm de pagar pelo seu pecado (e os jesuítas estiveram, na Europa como no Novo Mundo, entre os consultores da Inquisição), e os pagãos devem ser tirados das trevas da ignorância mediante a conversão (p. 66).
Para O’Malley (2004)O’Malley, J. W. (2004). Os primeiros jesuítas. Edusc., o voto de estabilidade era, por outro lado, o que tornava o homem um monge, ou seja, o compromisso de viver toda a vida no mosteiro, onde buscaria sua própria santificação. O Quarto Voto dos jesuítas era, em essência, um juramento de mobilidade, isto é, uma promessa solene de viajar a qualquer lugar do mundo para “ajudar as almas”. Era, por assim dizer, uma das melhores indicações de como a nova Ordem queria quebrar a tradição monástica (p. 461).
A promessa de sujeição imediata ao santo padre permitia, assim, a autonomia dos membros da Ordem em relação ao poder secular dos reis cristãos. “Por deverem obediência apenas ao papa e aos seus superiores da hierarquia da Ordem, os jesuítas colocavam-se fora da jurisdição das autoridades religiosas locais” (Eisenberg, 2000Eisenberg, J. (2000). As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Ed. UFMG., pp. 36-37).
Ademais, especialmente o início dos anos 1580, período do qual se ocupa este trabalho, marcou uma virada decisiva na organização da Companhia de Jesus, a qual contava, naquele momento, com mais de cinco mil membros.
Elegia-se em Roma um novo geral, o italiano Cláudio Aquaviva. Seu longo generalato (1581-1615) seria marcado por uma intensa atividade de governo da parte do centro da Ordem, que tenta “regularizar” e unificar as práticas intelectuais, espirituais e administrativas das diferentes províncias [ênfase no original].
(Castelnau-L’Estoile, 2006Castelnau-L’Estoile, C. (2006). Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Edusc., p. 20)
Segundo a autora, a partir dos primeiros anos da década de 1580, o projeto missionário jesuíta em terras brasílicas precisou ser reformulado. Para a autora, a primeira grande transformação consistiu na brutal diminuição da população indígena no litoral. O contato com os europeus se revelou mortal para os índios: O choque microbiano, causa primeira da mortalidade, foi agravado pelo desmantelamento das sociedades indígenas provocado pela caça ao escravo indígena e pela política de concentração levada a efeito pelos jesuítas para as finalidades da conversão (Castelnau-L’Estoile, 2006Castelnau-L’Estoile, C. (2006). Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Edusc., p. 19).
Nessa ambiência, os jesuítas não mais se ocupavam somente do plano espiritual, senão também do temporal. Os inacianos “curavam”, “sangravam”, “enterravam”, “faziam covas” e outras práticas afins. Nesse sentido, vejamos o que disse Anchieta (1933)Anchieta, J. (1933). Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594). Biblioteca de Cultura Nacional. Col. Afrânio Peixoto da Academia Brasileira de Letras., em missiva escrita em 1583:
O modo que os padres da Companhia tiveram sempre com este gentio foi ajudá-los assim no temporal como no espiritual; no temporal, eles os curam em suas doenças, e os sagram e lhes dão da pobreza, que eles têm, pela extrema necessidade que eles têm destas cousas, e tanto que em tempo das bexigas e outras doenças, que eles não podiam acudir uns aos outros, os padres andavam com alguns moços pelas casas dos índios, lavando-os e alimpando-os ( ... ). De noite e de dia andavam os padres ministrando-lhes os sacramentos da confissão e unção sem descansar, nem terem tempo pera rezar suas horas, enterrando cada dia 10 e 12, ajudando-lhes a fazer as covas e trazê-los à igreja pera os encomendar e enterrá-los.
(pp. 380-381)
Para o centro da Ordem, a Missão no Brasil aparecia como uma “vinha estéril”, assim como a chamou o geral da Ordem, o padre-geral Cláudio Aquaviva, em 1582 (Castelnau-L’Estoile, 2006Castelnau-L’Estoile, C. (2006). Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Edusc., p. 20). Bem, mas o que estava acontecendo na Província do Brasil e por que o geral a designou “vinha estéril”? Talvez Aquaviva tenha chamado o Brasil de “vinha estéril”, sobretudo, pela desobediência de alguns membros da Província às ordens de Roma – ou seja, por não viverem “conforme o nosso Instituto”, como dizia –, e principalmente porque muitos jesuítas estavam “se perdendo” no trabalho entre os índios. Nesse período, a Província do Brasil precisou ser visitada7 7 Trata-se da Segunda Visita à Província do Brasil. Iniciada em 1583, teve como visitador o Pe. Cristóvão de Gouveia. .
De acordo com Leite (1938-1949)Leite, S. da S. (1938-1949). História da Companhia de Jesus no Brasil (10 v.). Instituto Nacional do Livro., o visitador saiu de Lisboa em 5 de março e chegou à Bahia no dia 9 de maio de 1583. Porém, antes de embarcar à Província do Brasil, o padre-geral Cláudio Aquaviva, passou-lhe uma Instrução particular, em que declarava o duplo objetivo da Visita. Fim principal: para “consolação dos nossos que trabalham naquela vinha tão estéril, laboriosa e perigosa”. Fim particular: para “ver como se guarda a disciplina religiosa, segundo o Instituto; e o que toca a Constituições, regras e obediências de Roma faça se executem, e meta tudo em ordem, quanto as circunstâncias das pessoas e lugares o sofrerem”. Dizia-se, continuava o padre-geral,
que os Padres Provincial [Anchieta], Gregório Serrão e Luis da Grã são pouco regulares e pouco dados às Constituições, e que, em geral, os súbditos procedem da mesma forma, frouxa e pouco regularmente. Veja bem isto, que tanto vai, e trabalhe por entender a raiz e o remédio que se pode ter.
(citado por Leite, 1938Leite, S. da S. (1938-1949). História da Companhia de Jesus no Brasil (10 v.). Instituto Nacional do Livro.-1949, Tomo II, p. 490)
Porém, a rigidez e a ortodoxia vindas de Roma se depararam com uma realidade que ia além de questões ligadas à “disciplina religiosa”, e o “remédio” para as mazelas da missão no Brasil parecia não surtir o efeito esperado. Na aldeia, aconteciam os problemas mais sérios, sobretudo, violências e abusos contra os índios. Senão, vejamos.
“Brigas” entre os padres: os percalços de uma Missão
De acordo com Londoño (2002)Londoño, F. T. (2002). Escrevendo cartas. Jesuítas, escrita e missão no século XVI. Revista Brasileira de História, 22(43), 11-32., Inácio de Loyola, como primeiro superior-geral, teve muito claro que havia de produzir uma imagem da Companhia por meio das letras:
Qualquer notícia deveria primeiro edificar, e para conseguir a consolação nada melhor que mostrar os avanços da glória divina nas obras e ações apostólicas dos padres e irmãos... Escrevendo para serem lidos por muitos outros, os padres deveriam ter a consciência de que estavam produzindo um texto para ser interpretado e lembrado.
(pp. 17-18)
Castelnau-L’Estoile (2006)Castelnau-L’Estoile, C. (2006). Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Edusc. destacou que a correspondência desempenhava, assim, um papel fundamental na difusão do “modo de fazer” jesuíta, fundamento de sua identidade. As cartas permitiam também aos jesuítas isolados reafirmar, por meio da escrita ou da leitura das cartas, seu pertencimento à Companhia (p. 73).
Contudo, de acordo com Curto (2009)Curto, D. R. (2009). Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII). Editora da Unicamp., é possível isolar temas e argumentos recorrentes na escrita jesuítica desse período. Mas,
no sentido inverso, a leitura das mesmas fontes permite matizar a ideia de uma ideologia jesuítica demasiado unificada, uma vez que de autor para autor se detectam tipos diferentes de autonomia no que respeita à hierarquização dos temas e à sua qualificação.
(p. 256)
As cartas, dispostas a seguir, estão longe de produzir uma imagem edificante e unificada da Companhia. Por conta disso, foram censuradas, cifradas e rasuradas, porque feriam a imagem idealizada por Loyola. Os relatos vindos das aldeias, sobretudo, se configuravam como um contratestemunho à missão. Entre os próprios jesuítas da Província do Brasil havia discordâncias e desentendimentos sobre a missão e sobre as aldeias. A carta8 8 A carta foi escrita por Antonio Ferreira e era dirigida a Aquaviva, “Desta casa ou residência de S. Vicente, costa do Brasil, a 15 de março de 1585” (ARSI, Lus. 69, fl. 53v). A carta está intitulada como “alguns avisos” e não tem a via que ficava no Brasil, como acontecia com outras cartas do período, que regularmente eram escritas em duas vias (ARSI, Lus. 69, fl. 54v). Ou seja, é uma missiva escrita exclusivamente para Aquaviva. seguinte é interessante por mostrar algumas dificuldades nesse sentido. Já no início da missiva, o jesuíta Antonio Ferreira apresentava algumas críticas a Anchieta e denunciava alguns colegas que não guardavam as “regras”. Confiramos:
Muitos tempos há que ando esperando oportunidade para dar conta a V. P.9 9 Nas cartas que pesquisei no ARSI, optei por deixar as abreviaturas conforme estavam no documento original. Ademais, como todas as cartas estão manuscritas, para não “deturpar” o documento, quando não entendi alguma palavra, coloquei-a sempre entre colchetes – e, em alguns casos nos quais tive dificuldade maior de entender o que estava escrito, coloquei, em seguida, um ponto de interrogação. Porém, quando algum trecho era ilegível, coloquei o sinal de reticências na transcrição dos documentos. de algumas coisas que tenho visto e experimentado por espaço de 11 anos que há que resido nestas residências de Piratininga e de S. Vicente, que tudo é uma jurisdição e Capitania, a derradeira que os portugueses têm nesta costa do Brasil para a parte do Sul... E ainda que a consciência me remordia algumas que havia de avisar ao Pe. Geral pela obrigação que tinha a Compª e por amor do maior bem e proveito espiritual desta Província do Brasil, me ocorriam muitas dificuldades em contrário por parte do Pe. Provincial Joseph de Anchieta, que sabia muito bem estas dificuldades e não provia com remédio... E assim o tenho entendido do Pe. Provincial, falando sobre a relaxação e distração dos nossos, pouco Espírito, pouca mortificação, pouca guarda das regras etc.
(ARSI, Lusitania Epistolae, Lus. 69, fl. 53ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Na mesma carta, Ferreira se referia à “costa do Brasil” e falava das consequências de se viver nela. Observemos:
Saberá V. P. como esta costa do Brasil de si é muito frouxa e relaxada e aparelhada a muitos vícios e não somente a gente nascida nela vive conforme a qualidade da terra, mas também a que vem de Portugal e de outras partes, ainda que traga algum cherume de virtude e boa criação, pouco a pouco, quase sem o sentir, a vai perdendo e vai aflouxando na virtude e criando hábitos de vícios contrários, por a terra ser muito conforme à natureza depravada.
(ARSI, Lus. 69, fl. 53ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
A imagem da inconstância dos índios certamente deriva também da constatação de que a terra é “frouxa e relaxada”, já que, para o jesuíta, os nativos vivem conforme a qualidade da terra. Esses estereótipos justificam a sujeição do nativo e classificam a alma indígena como imperfeita. Para Hansen (2002)Hansen, J. A. (2002). Educando príncipes no espelho. In M. C. Freitas, & M. Kuhlmann Jr. (Orgs.), Os intelectuais na história da infância (pp. 61-97). Cortez., ao universalizar a “concepção neoescolástica da unidade e coerência da alma humana, os jesuítas do século XVI afirmavam que os tupis do litoral brasileiro eram ‘inconstantes’” [ênfase no original] (p. 28). Viveiros de Castro (1992)Viveiros de Castro, E. (1992). O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, 35, 21-74. afirma que a inconstância passou a ser
um traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário nacional: o índio mal converso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma constante da equação selvagem.
(pp. 186-187)
Para o autor, no caso brasileiro, o conceito da natureza inconstante da alma selvagem advém principalmente dos anos iniciais de proselitismo missionário entre os tupis. “O problema dos índios, decidiram os padres, não residia no entendimento, aliás ágil e agudo, mas nas outras duas potências da alma: a memória e a vontade, fracas, remissas” (p. 188). Assim, os selvagens não criam em nada, porque não adoravam nada; e não adoravam nada, porque não obedeciam a ninguém. “Os brasis não podiam adorar e servir a um Deus soberano porque não tinham soberanos nem serviam a alguém. Sua inconstância decorria, portanto, da ausência de sujeição” (pp. 216-217).
Contudo, para Antonio Ferreira, a natureza da terra, frouxa e relaxada, prejudicava principalmente os próprios inacianos. O jesuíta usava abundantemente o termo “remédio” para se referir aos meios capazes de preservar a “virtude” e a “devoção” dos inacianos. Reparemos que novamente aparecia a crítica a Anchieta:
Digo isto porque muitos dos nossos que têm vindo ao Brasil há muitos anos, e já pela muita idade e anos de religião deveriam por boa razão ser um espelho de todas as virtudes em que se vissem os nossos que novamente vêm a estas partes. E é tudo pelo contrário, porque em breve tempo perderão o cheirume da devoção e prontidão para a virtude e criarão hábitos de frouxidade e tibieza... E de os superiores passarem levemente com tal gênero de enfermos e não lhes aplicarem os remédios e medicinas necessárias, mas antes dissimular com coisas que têm necessidade de correção e remédio e o que é mais, quando as faltas se vigoram e renovam à falta de não pôr o remédio para adiante... Estas coisas, vi com os olhos e por experiência em obra de 11 ou 12 anos que residi nestas Casas de S. Vicente e de S. Paulo de Piratininga, nos sujeitos que o Pe. Joseph Anchieta tinha criado havia muitos anos sendo Superior e depois tornando com o cargo de Provincial, vi claramente quanto os favorecia, defendia etc.
(ARSI, Lus. 69, fls. 53-53vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Antonio Ferreira apresentava, por fim, três coisas a Aquaviva, que para ele eram importantes e que mereceriam a atenção dos superiores. Para o jesuíta, Anchieta era falho também aqui. Sigamos seu raciocínio:
Três coisas me parecem dignas de advertência para que V. P. carregue a mão e encomende mui particularmente aos provinciais destas partes do Brasil, a observância das regras e disciplina religiosa, não afrouxar no Exercício da Oração e não proceder com os enfermos por via de tanta condescendência, de que o Pe. Joseph Anchieta tem muito. Não me pareceram bem suas palavras, que poucos tempos há, me disse o mesmo Pe. Indo-se desta Capitania e deixando-me encomendada a casa de S. Vicente se despediu de mim com me dizer, que com os que nela ficavam não usasse de repreensão, nem lhes desse penitências, mas que bastava que dissessem Missa e acudissem ao refeitório.
(ARSI, Lus. 69, fl. 53vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Essa carta representa muito bem um embate de posições que se configuram nesse período: aquele entre a “ortodoxia” romana e as práticas dos indivíduos. Nesse caso, o embate se referia ao próprio modo de viver a Missão jesuítica: entre Anchieta (que parecia mais próximo a uma “via amorosa”10 10 Nesse sentido, de acordo com Pécora (1999), nas cartas de Pe. Manuel da Nóbrega (1517-70), o primeiro movimento proposto “esboça um método de conversão assentado basicamente numa via que chama amorosa” (p. 395 – grifo do autor). Porém, sobretudo a partir das chamadas “guerras dos índios”, a posição de Nóbrega se afastou da via amorosa de conversão, de cuja eficácia tanto mais duvidava quanto mais se alongava sua experiência na Colônia. Assim, de acordo com Pécora (1999), a via amorosa pareceu a Nóbrega menos eficaz em relação aos índios – “gente servil” – do que a que se fazia “por medo”: “assim que por experiência vemos que por amor é mui difficultosa a sua conversão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo”[ênfase no original] (p. 400). e compreensiva no trato com os padres) e Antonio Ferreira (que representava a “via ortodoxa”, ou seja, daqueles que comungavam do desejo de Aquaviva de reorganizar o corpo disperso, sobretudo pela observância dos princípios reguladores da Ordem).
Ainda sobre os conflitos no interior da Companhia, reparemos na carta escrita por Marçal Belliarte para Aquaviva, em 1.º de janeiro de 1591 (ARSI, Lus. 71, fl. 003v). Nela apareceram alguns bens pertencentes aos jesuítas e a discordância do provincial com relação a isso. Evidenciavam-se, ainda, indícios do “favorecimento” de alguns membros da Companhia por parte do visitador Gouveia:
Na Província têm os nossos algumas coisas demasiadamente curiosas e que me parecem contra a pobreza religiosa dos da Compª, como são relicários e lâminas de prata e outras coisas custosas e de preço. Já quis quitá-las, mas não ouso por haver de ser necessário começar por alguns notavelmente favorecidos do Pe. Cristóvão de Gouveia, com cuja indulgência eles fizeram isto...
(ARSI, Lus. 71, fl. 003vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Ainda na mesma carta, o provincial Belliarte não economizava palavras para mostrar sua insatisfação com Fernão Cardim. Confiramos:
... O Pe. Cardim... no governo me ajuda mui pouco, por não dizer que desajuda. Por que se eu ordeno algo que não seja de graça ou gosto seu... com tais palavras o executa que todos entendem que ele não é daquele parecer, do qual se segue o que V. P. sabe. Já se a coisa toca a algum particular e leva algo de rigor, com dizer: o Pe. Provincial o manda, bem quisera eu não fazer isto... Fico eu tido por áspero, ele por manso e benigno e desta maneira, sou [hecho] odioso.
(ARSI, Lus. 71, fl. 003vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Agora era Aquaviva quem estava preocupado com o “bom odor” da Companhia, e por isso escrevia a Padre Marçal em outubro de 1591, demonstrando preocupação com o fato de os inacianos residirem nas aldeias:
Permitimos que pudessem os nossos que nas aldeias residem... Agora se nos escreve que eles usam mal desta licença, e para seu sustento têm como espécie... de carnes, que às nossas partes enviam e principalmente à Angola, de onde desta conta lhes vêm escravos. V. R. veja bem que isto possa prejudicar ao bom nome e odor da Comp. e dar ocasião aos que não veem as nossas coisas com bons olhos para com fundamentação repreendê-las. Convém que os consultores tenham plenária notícia das ordens que de Roma se enviam tocantes ao bom governo da Província.
(ARSI, Brasilia Epistolae – Bras. 2, fl. 64ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)
A carta a seguir transcrita é de Cristóvão de Gouveia. Foi escrita em Lisboa, no dia 15 de agosto de 1593 (ARSI, Lus. 72, fl. 121ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.). Mesmo depois de terminada a Visita, Gouveia continuava sendo consultado por Roma sobre questões referentes à Província do Brasil. O trecho transcrito diz respeito a um padre que estava causando problemas por aqui.
Recebi a de V. P. de 5 de junho acerca do Pe. Antonio Dias do Brasil. O que me lembro deste Pe. é que foi notado de... não se unir tanto com os superiores e ordens suas. E ser frouxo... no meneio espiritual, assim dos nossos que consigo tinha, como dos índios da aldeia. E tem que seu modo de governo era mais [in virga?] férrea e com vigores e castigos que com suave direção paterna e caridade, pelo que muitos índios fugiam da sua aldeia para as outras, com medo dele...
(ARSI, Lus. 72, fl. 121ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Ainda sobre o mesmo padre, notemos a recomendação de que não estivesse sem companheiro nas aldeias. Outra questão importante que aparecia era a referência de Gouveia ao regimento que ele compôs ao final de sua Visita. Esse dado é interessante, principalmente porque mostra o quanto Gouveia confiava no cumprimento das normas que tinha deixado por aqui. Confiramos o excerto:
Por estas coisas e modo de proceder deste Pe., o tive algum tempo tirado da Aldeia... Vendo também que este Pe. era velho, antigo, língua e não prestava para outras ocupações nos Colégios, não se lhe achava falta substancial, antes seguro e muito aceito aos portugueses, me pareceu deixá-lo tornar para a sua aldeia, dando-lhe, porém, muitos avisos, assim em particular como por escrito, mostrando ele em tudo conhecimento e vontade de emenda: encomendando muito aos superiores que lhe pusesse sempre com outro Pe. que tivesse a seu cargo sacramentos e ensinar os índios. E desta maneira, poderia o Pe. ocupar-se mais na capela e nos negócios de importância para os quais tem talento, ânimo e expedição. Quanto ao que V. P. aponta em particular, de ele fazer açoitar as índias diante de si e dar-lhe coices etc. nunca isso lá eu vi que fizesse, senão mandar castigar asperamente... os moços da escola por mão dos nossos. E estas duas coisas, ambas proibi na Visita que lá está R.º das aldeias n.º 11.12.
(ARSI, Lus. 72, fl. 121ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Atos que ferem o “bom odor” da Companhia: pecados graves dos padres
Nas cartas reproduzidas adiante, uma das questões que ressalto é da censura feita a alguns jesuítas, vistos como causa de escândalo para o “bom odor” da Companhia. Essas cartas, que sofreram censura ou que expunham algo que “manchava” a imagem da Companhia, são interessantes, sobretudo se pensarmos na questão apontada por Ginzburg (2002)Ginzburg, C. (2002). Relações de força: história, retórica, prova. Companhia das Letras., para o qual “é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu”11 11 A fim de discutir a relação do historiador com as fontes, Ginzburg se ampara em Benjamin (1987), para o qual “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” (p. 225). (p. 43).
Os testemunhos nas cartas utilizadas aqui certamente foram lidos às avessas. Mas esses documentos também estão marcados pelas condicionantes retóricas do período, nas quais os inacianos são formados. Mesmo assim, as missivas em pauta não deixam de expor feridas e desencontros. Os documentos classificam e silenciam os nativos e demonstram práticas de violências e abusos àqueles que não puderam falar e que foram obrigados a servir aos “senhores da fala”, assim como os nativos chamavam os padres da Companhia desde sua chegada. Em uma análise mais ampla, portanto, certamente é preciso considerar outras questões que impunham os descaminhos da missão e que implicavam na sujeição dos índios. Para tanto, cabe citar as considerações de Hansen (2005)Hansen, J. A. (2005). A escrita da conversão. In L. H. Costigan (Org.), Diálogos da conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto ibero-americano do período barroco (pp. 15-43). Editora da Unicamp., quando cita Michel de Certeau, no texto “Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry", no qual o autor analisa a Voyage au Brésil, de Jean de Léry. Segundo Hansen (2005)Hansen, J. A. (2005). A escrita da conversão. In L. H. Costigan (Org.), Diálogos da conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto ibero-americano do período barroco (pp. 15-43). Editora da Unicamp., no referido texto, Certeau destaca a
espacialidade selvagem, ou o quadro sincrônico dos sistemas sociais indígenas postulados como sociedades sem história, oposta à temporalidade portuguesa, definida e orientada providencialmente como parte do drama universal da salvação; a alteridade, ou a diferença selvagem, que evidencia o corte cultural entre a Europa e a América, oposta à identidade católica, que subordina a diferença como mais uma semelhança distanciada e confusa, entre outras, e, por isso mesmo, controlada pelo encontro do seu princípio; a inconsciência, ou o estatuto dado aos fenômenos coletivos indígenas, como o xamanismo, a poligamia, a guerra ritual e a antropofagia, que passam a ser referidos a uma significação que lhes é estranha, a unidade ou a coerência da alma cristã, aplicada a eles como um saber-poder vindo de fora. É o que acontece exemplarmente com o tema da inconsciência selvagem, oposta pelo padre à consciência, que é figurada na poesia e no teatro como memória platônico-agostiniano-escolástica, ao mesmo tempo esquecimento e lembrança da culpa decorrente do pecado original. Principalmente na correspondência jesuítica com a Europa, tais operações configuram uma hermenêutica ou uma técnica do comentário escrito caracterizada pela grande dispersão analítica da observação, coleta e sistematização de dados empíricos [ênfases no original]. (p. 43 – nota)
Embora caracterizadas por uma “grande dispersão analítica da observação”, algumas questões instigantes estão expostas por tais “testemunhos às avessas” e certamente permitem “escovar a história ao contrário”. Assim sendo, vejamos que, em 29 de setembro de 1594 (ARSI, Bras. 3-II, fl. 361), o provincial Pero Rodrigues respondeu a Aquaviva algumas questões vindas de Roma. Dentre elas, estava a seguinte pergunta feita pelo Geral e a resposta de Rodrigues:
6.º Se é verdade que o provincial mandou açoitar de “cabos de Raya” um irmão que se chamava [...]12 12 O nome do sujeito está rabiscado no manuscrito e acima do rabisco foi colocada a letra “N”. que já é despedido não sendo este castigo usado na Companhia e das mais particularidades que na despedida deste...
R. El [...]13 13 Também está rabiscado e se procedeu da mesma forma descrita na nota anterior. era de partes raras e grandes esperanças para os ministérios da Companhia, teria algumas leviandades e fraquezas com sua própria pessoa in materia castitatis, e era nesta parte tão molestado que pediu com instância ao Pe. de largar-se os votos... O Pe. o mandou açoitar duas vezes e a 2.ª foi de cabos de Raya como o afirmam o Pe. Fernão Cardim que então era Reitor e o Pe. Manuel Hernandes ministro... que o executou... E tinha muita fama com uma índia que se dizia estar dele grávida e fazia outras travessuras de mal exemplo; estando ainda com os votos e vestidos da Companhia, coisa que os padres estranharam ao Pe. Provincial.
(ARSI, Bras. 3-II, fls. 360v-361ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)
Não obstante os castigos aplicados entre os membros da própria Companhia, havia alguns jesuítas que davam trabalho aos seus superiores. Na carta adiante transcrita, de 18 de setembro de 1601 (ARSI, Bras. 8-1, fl. 28vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.), Pero Rodrigues falava de dois inacianos que foram despedidos e das razões para tal, pois pareciam zombar das rígidas normas existentes na Companhia. Um deles, aproveitando-se da ausência do reitor, “fez uma dança” que incomodou os superiores. Vejamos:
Dois irmãos foram despedidos em Pernambuco depois de muitas consultas e remédios que lhes não aproveitaram: Pe. Barboza que nestes poucos anos que esteve entre nós, era mui distraído, ocioso, desobediente, medroso... No Colégio de Pernambuco não queria estudar nem tomar as penitências que o Pe. Reitor lhe dava, sendo com estas faltas recolhido num cubículo, quebrou a janela aos coices... Lázaro G. no Colégio do Rio deu muito trabalho ao Pe. Fernão Cardim... com desobediências e desedificações públicas, como foi entre outras coisas, uma quando partiram os santos... fez uma dança... quando o Pe. Reitor era fora de casa, não queria comungar da mão do Pe. Ministro... maldoso e teimoso...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 28vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)14 14 É interessante a “segunda via” dessa carta, que ficava no Brasil. Nela se enumeravam os assuntos tratados na carta e no último tópico está escrito: “7. Despedida de dois irmãos e as causas” (ARSI, Bras. 8-1, fl. 29v).
Na carta que se segue aparecia a questão dos padres classificados como “cifrados”15 15 O termo “cifrado” aparecia nos manuscritos jesuíticos como uma forma de ocultar o nome de algum inaciano que estava em condições consideradas pecaminosas ou vergonhosas para o “bom odor” da Companhia. Nas cartas que consultei e analisei em Roma, tal artifício era usado constantemente. Colocava-se no lugar do nome do sujeito alguns caracteres desconexos e sem possibilidade de serem compreendidos por um possível leitor desautorizado. . A carta, que me pareceu ser do provincial, Pero Rodrigues, foi escrita na Bahia, no dia 15 de setembro de 1602 (ARSI, Bras. 8-1, fl. 17ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.). Reparemos que novamente se criticava o padre Fernão Cardim por não “estar muito inteirado no modo de proceder” da Província:
No rol dos promovidos à profissão de três votos, o 1º era o Pe. “┘.Ͻ..16 16 Em cima desses caracteres está escrito com outra grafia “Afonso Gago”. Pareceu-me uma anotação feita em Roma, depois que a carta já havia chegado às mãos corretas. Sobre padre Afonso já dizia Pero Rodrigues em 1601: “tem duas faltas com que ‘desdoura’ tudo: 1ª Pouco sóbrio; 2ª Pouco casto no tratar com mulheres, assim índias como portuguesas. E nestas matérias tem dado muito trabalho aos superiores... [ênfase no original]” (ARSI, Bras. 8-1, fl. 30). [CIFRADO!!!], de que assim eu como os padres consultores nos espantamos e entendemos que foi a informação do Pe. Fernão Cardim, que não devia estar muito inteirado no modo de proceder desta Província. Eu não o propus a V. P. e perguntado sobre isso outro padre, respondi que o não propusera, por não lhe fazer mal, mas agora direi a V. P. o que se passa. É este padre antigo na Província e tem trabalhado muito com os índios, assim em os trazer do sertão, como nas aldeias, mas não com a satisfação que pede o bom odor da Companhia. Fui informado de suas faltas graves... 2º muito colérico contra qualquer padre, sem respeito nem aos superiores; 3º Não é fiel ao dizer as faltas notáveis que sabe dos outros para os superiores...; 4º É notadamente atrevido, familiar e pouco seguro ao tratar com mulheres, assim índias, como portuguesas...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 17ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)
Dentre as cartas que encontrei no ARSI, contudo, nenhuma me pareceu tanto “um testemunho às avessas” quanto a que vem logo adiante. Escrita pelo padre Balthasar de Miranda, em 20 de fevereiro de 1602 (ARSI, Bras. 8-1, fl. 26vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.), ela expunha várias “feridas” dentro da Província do Brasil. A primeira delas era o descumprimento das determinações deixadas por Gouveia em sua Visita:
Pax Christi.
Posto que o ano passado escrevi a V. P. e não sei ainda se lhe foi dada minha carta, em que propunha a V. P. algumas coisas que me pareciam necessárias promover-se de remédio neste Colégio... Treze léguas deste Colégio temos uma Aldeia em que está por superior o Pe. Pero Leitão, de quem eu fui companheiro... Notei que de muito modo não se guarda a Visita do Pe. Christóvão de Gouveia em duas coisas: que pela manhã cedo se diga Missa à gente e no fim dela se ensine as orações com parte de diálogo.
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 24ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)
A carta continuava a expor outros problemas delicados referentes ao comportamento violento e abusivo de padre Pero Leitão:
Outro ponto da Visita é que o padre não castigue ninguém pela sua mão. E neste é vergonha ver o que se passa: porque o Pe. Pero Leitão ordinariamente, assim a homens e moços, como a mulheres e moças espanca..., e dá de bofetadas e, às vezes, coices. Vi eu com meus olhos uma noite que trazendo-lhe... uma talhada de queijo assado..., porque não achou a seu gosto, deu um coice na barriga do moço com tanto ímpeto que alcançou de si mais de seis passos, caindo o moço no chão atropelado e ainda sobre isto o queria açoitar. Vi outra vez que trazendo-lhe um índio caçados... que o padre lhe mandou cozer, parecendo-lhe que faltava meio palmo de pano e afirmando o índio que não tomara, nem o vira, o padre soltou nele as bofetadas, os coices e as pancadas... Vi mais que passado um índio pela nossa porta, chamou o padre por ele, e porque o índio não veio logo, lhe atirou com um pau e por pouco lhe não deu na cabeça, ao que acudiram portugueses que estavam na aldeia... [ênfase no original]
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 24ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)
O padre Pero Leitão continuava com suas atrocidades. E os índios, suas vítimas. Confiramos:
Vi mais que entrando o padre uma vez na cozinha e achando uma coalheira mal concertada, a tomou nas mãos e deu com ela nas costas do moço três e quatro vezes, desonrando-o com feias palavras... Vi mais que a um moço... lhe meteu a cabeça entre suas pernas e o encheu de bofetadas... até haver sangue... São os índios tão cativos que nem para buscarem de comer lhes deixa liberdade, e quando alguns lhe pedem licença para ir ao mar a buscar algo de comer para suas mulheres... faz com lhe tragam mariscos tão grandes, que aças faze os pobres em lhas trazer para comida. E se lhas não trazem cheias, são repreendidos, quando menos.
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 24vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)17 17 A carta seguia descrevendo as atrocidades praticadas pelo padre, porém está ilegível em grande parte e não tive condições de transcrevê-la por completo.
Embora o comportamento do padre Leitão causasse escândalo para alguns de seus colegas jesuítas, cabe lembrar que desde o início da missão em terras brasílicas, os nativos eram classificados como seres ridículos, por conta de seus “costumes diabólicos” e afins. Nessa direção, Baeta Neves (1978)Baeta Neves, L. F. (1978). O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Forense-Universitária. pontua que o gentio não tinha nada a ver com qualquer elemento cultural que povoasse mesmo os pesadelos já familiares aos europeus. O gentio não podia ser comparado, nem por sua “aparência exterior” tampouco pelos “feitos” de sua alma, aos padrões já conhecidos pela cristandade europeia. “Não reconhecendo caracteres nem culturais nem corporais, mas suposto que são homens e semelhantes, a ideologia da catequese procura um ponto do qual se aproxime o gentio” (p. 50).
Já para Raminelli (1996)Raminelli, R. (1996). Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Jorge Zahar., os religiosos comprovaram o pendor dos catecúmenos para a cristianização. Para tanto, deram aos índios e aos europeus a mesma origem. Os americanos, os sacerdotes e os colonos possuíam a mesma disposição para receber os ensinamentos divinos. A semente da “verdadeira religião” já residia nos corações dos naturais da terra. Bastaria, por conseguinte, a intervenção dos padres para florescer o grão plantado por Deus. Assim, para os inacianos, a imagem do bárbaro possuía um novo significado; não respaldava a escravidão, mas valorizava a catequese e ressaltava a missão heroica dos enviados da Igreja. Com a interferência divina, as “bestas humanas” transformar-se-iam em cristãos devotos (pp. 16-17).
Portanto, além de classificar, os estereótipos determinaram as ações dos europeus em relação aos ameríndios, porque, segundo Raminelli (1996)Raminelli, R. (1996). Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Jorge Zahar., a colonização pautava-se no pressuposto de que os nativos eram seres imersos nas trevas e necessitados da intervenção europeia para alcançar o estágio de “evolução” humana atingido pelos cristãos (p. 165).
Todavia, para o padre Leitão, a intervenção se dava por meio do uso da força, da violência e do abuso aos índios e nem mesmo o sigilo do sacramento da penitência escapava aos abusos do padre:
É o padre muito fácil em contar a qualquer branco os pecados e males dos índios...: aquele outro foi ter uma noite com fulana... Aquela andou tanto tempo com fulano... Tal português, vindo aqui em tal tempo, pecou com fulana... e lança no rosto de alguns índios os adultérios de suas mulheres...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 25vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.)
No trecho anotado adiante, a questão apontada por padre Balthasar de Miranda expunha alguns fatos “escandalosos”, tanto que havia um destaque no manuscrito sobre o “pecado” de padre Leitão. Os índios fogem porque são violentados e abusados pelo padre pecador:
...os índios, os mancebos da escola... tomaram pé para me dizer que o Pe. Pero Leitão se deleitava carnalmente com moços; o que eu estranhei muito por ser o padre nos exercícios muito casto: mas desejando saber a verdade de causa, que importaria contra a lisura da minha religião... um moço me disse... que o padre lhe mandava que o coçasse e esfregasse “in genitalibus”, fazendo o padre o mesmo ao moço... E isto me contou o mesmo cúmplice com muitas lágrimas que chorava de corrido. De outro moço soube que o padre lhe mandou que esfregasse os genitais. Dois moços fugiram de casa, os quais... índios... fugiram do padre Leitão porque pecava com eles... [ênfases no original].
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 25ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Os vícios do padre Leitão também não eram compatíveis a um inaciano. A disciplina disposta pelas regras inacianas não era seguida por ele e, também por tais “faltas”, padre Balthasar o denunciava:
... o Pe. Leitão... nos tempos dos exames sempre se ocupa em coisas exteriores. As horas canônicas ordinariamente as reza... deitado na cama, com muitas interpelações de sono, roncando valentemente... Na Missa, quando muito gasta um quarto de hora, antes menos que mais e de ordinário não diz senão nos domingos e dias santos e quando alguma vez é forçado a dizer Missa pela semana, di-la... sem nenhum gênero de recolhimento antes, nem depois. Cilício, nem disciplina, não nasceu para ele... come muito sempre e o que quer, porque sempre está munido de muitas galinhas, ovos e vinho, sem nenhum gênero de exercício espiritual...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 26ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
No trecho que se segue, de acordo com padre Balthasar, padre Pero Leitão se mostrava revoltado com o modo de governo da Companhia e zombava da ortodoxia e da rigidez da organização da Ordem:
No tempo que o acompanhei, o achei sempre malissimamente afeto ao modo de governo de nossos superiores, condenando a Companhia e zombando de seus vários modos de votar e professar, estranhando o cativeiro da religião, dizendo que nos tiram a liberdade mais do que o permite o direito natural; e outras histórias neste tom...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 26ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Revoltado e como que a justificar seus erros, Pero Leitão delatava os colegas padres, dizendo que grande parte deles era cristã-nova e que outros “pecavam com as índias debaixo do altar”:
Ele me disse que os padres Luis da Grã, Ignácio Tolosa, Afonso..., Domingos..., José da Costa, Quirício Caxa... são cristãos-novos; e que os que vinham de Portugal para esta Província são a escória da Companhia, e que o Pe. Luis da Grã quando veio para provincial, viera degredado, mas por ser qual era, o mandaram com o título de provincial... Ele me disse que o Pe. Diogo Ximenes... secretário que foi de V. P. fora batizado em pé. Ele me disse que dizia um índio da aldeia que o Pe. Luiz Valente e o Pe. Diogo Nunes tinham pecado com todas as índias debaixo do altar... Ele me disse de outros de casa que foram achados sobre índias e de outros que se tomavam do vinho... mas os índios que eu achei referidos por ele como autores de alguns ditos destes mo negaram...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 26ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Padre Balthasar reclamava, no entanto, por não ser ouvido em suas denúncias respeitantes ao padre Pero Leitão:
De tudo isto que tenho dito a V. P. avisei ao Pe. Reitor muito devagar, assim na Aldeia como agora cá no Colégio onde estou, e vendo que o Padre não fazia com isto diligência alguma, avisei... Pedi ao Padre que se quisesse tirar a limpo... antes que se espalhassem...
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 26ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Padre Balthasar terminava a carta, jurando ser verdade tudo o que descrevera e denunciando os jogos de interesse que perpassavam as relações entre os inacianos da Província do Brasil:
O Pe. Reitor espera por horas sucessor e está interessado nos muitos presentes do Pe. Leitão; o Pe. Provincial está, ao que parece por ele não terá isso remédio, pois que... é tão terrível este homem, que sabe granjear os superiores dessa Província que faz deles quanto quer; e nos vizinhos da Aldeia que ele agora tem, anda o ditado que quando suspeita que o querem mudar ou tirar da aldeia, manda logo porcos, ovos e outras coisas ao Reitor... E como ele tem enfeitiçado os superiores... não terão muitas testemunhas, pela muita simulação com que viva... Eu tenho proposto a V. P. tudo o que tenho dito com aquela verdade que lhe tratara se estivesse a Seus pés... Peço a Santa benção de V. P. desta Capitania no Brasil, 20 de fevereiro de 1602. De V. P. filho indigníssimo, Balthasar de Miranda.
(ARSI, Bras. 8-1, fl. 26vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)18 18 Na segunda via que ficava no Brasil, não havia nenhum detalhe semelhante ao que foi descrito na carta enviada a Roma. Somente se citava do que tratava a carta (tem três linhas). Nesta segunda via, porém, consta que tinha saído de Pernambuco e que a carta era dirigida a Aquaviva (ARSI, Bras. 8-1, fl. 27). Pareceu-me, assim, mais uma carta censurada.
O padre Pero Leitão incomodava muito os companheiros, até porque não foi somente padre Balthasar quem o denunciou. A carta que se transcreve a seguir é do padre Antonio de Araújo e dirigida a Aquaviva. Certamente, com o propósito de velar o significado de alguns termos, a carta está cheia de abreviaturas e, por isso, tive bastante dificuldade e empenhei bastante tempo em transcrevê-la. Mas essa mesma carta revelava um significado bastante claro: denunciar mais alguns “escândalos” cometidos pelo padre “pecador”. Confiramos:
Mui Rev. em Xto Pe.
Pax Christi.
No fim do meu 3.º ano de probación, que foi em novembro de 99, sendo mandado a uma aldeia, fui no caminho importunado de certas pessoas graves e fidedignas, que passasse por sua casa: porque importava muito tratar comigo certas coisas. Fui com meu companheiro. O que a matrona da dita casa me disse a parte é o que se segue pelas mesmas palavras.
A Compª não deve nada ao “Pe. Pº L.” porque de todos os dela tem que dizer etc. e a todos sabe a geração. Perguntado-se pelo Pe. N. disse,... está no Colégio encerrado, ou [ataipado] em um cubículo, dão-lhe a comer por onças, e assim acabava o coitado. Perguntado-se pela cousa, dizendo que quando se [impunham-lhe?] alguma coisa com alguma índia, replicou ele: Agora, não é bem isto nada... disse, por outras coisas de que Deus nos guarde: dando a entender que pelo pecado “M”.
(ARSI, Bras. 3-I, fl. 187ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
A chamada “matrona” continuava a expor o que, segundo ela, eram comentários de padre Pero Leitão. A carta estava bastante rasurada, mas o que pude compreender e transcrever está de acordo com o perfil de padre Pero Leitão já citado anteriormente. Muitos padres e pessoas “tidas por boas” estavam sob a língua afiada do padre revoltado. Observemos:
É um bêbado, lá se está com a puta filha de... que é um negro... que está junto à Aldeia do Espírito Santo em um como curral, onde então estava o Pe. e um companheiro... Contando a dita matrona outras particularidades que ela dizia ter tratado com o Pe. Provincial acerca do mesmo Pe. ...O Pe.... que com ele estaria então, e havia pouco tinha vindo de Portugal...; disse, é um cristão-novo... De outro Pe. que era mexeriqueiro... Que perguntando-lhe por uma mulher de certa Capitania, que a dita matrona tinha por boa, disse: essa putarrona! Do que não ficou pouco escandalizada...
(ARSI, Bras. 3-I, fl. 187ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Padre Araújo dava conta de tudo isso aos superiores, mas o provincial parecia estar conformado com a situação e não via o que fazer com o padre “pecador”:
Depois de estar no Colégio, por meu confessor me obrigar, dei conta destas coisas aos superiores em uma quinta feira, 16 de dezembro passado. O Pe. Provincial me disse que segundo a língua do dito Pe. não duvidava ter dito aquelas coisas. Mas que lhe havia de fazer, que não o podia despedir, nem mandar para Portugal, por não ter ordem de V. P. para isso. Enfim, julguei que não fizera muito caso destas coisas, parece que pelo costume de ouvir outras muitas do mesmo, ao qual tirou, por culpa que dele [tivera?], da aldeia do Espírito Santo e levou consigo o ano passado de 99 para Pernambuco, onde o pôs em uma aldeia, dando-lhe por companheiro um seu sobrinho: do que muito se espantaram os deste Colégio, pois é notório o modo que o dito Pe. tem nas aldeias: como a V. P. se tem escrito.
(ARSI, Bras. 3-I, fl. 187ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Na mesma carta, tratando agora de outro assunto que expunha mais conflitos internos na Província, padre Araújo se sentia traído pelos seus superiores que, segundo ele, enviaram-no definitivamente à aldeia de Boipeba sem que ele soubesse disso. O padre pedia desesperadamente para ser retirado dali. Isso, avalio, refletia o modo de pensar de muitos jesuítas que temiam pela própria vocação, ao se verem entre os índios. Acompanhemos:
Aos 29 de dezembro passado fui avisado pelos padres superiores provincial e reitor, no repouso, diante de todos, que fosse à aldeia de Boipeba que dista desta Bahia 19 léguas... E não se me disse outra coisa nem superior algum me falou mais acerca de eu haver de ficar lá de assento, sendo assim que sua intenção era essa… Fico nesta aldeia de Boipeba esperando que tanto que V. R. esta ler, sem dilação me mande tirar desta, porque afirmo a V. R. que [relevo?] assim a minha salvação e quietação da própria consciência, que é o que eu vim buscar na religião... E porque entendo que V. R. fará o que neste caso convém fazer, que é tirar-me logo daqui.
(ARSI, Bras. 3-I, fl. 187vARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.)
Apesar de estar contra sua vontade na aldeia, o jesuíta não deixava, contudo, de denunciar alguns “escândalos” que enxergava em Boipeba. Observemos:
Mas não deixarei por isto de dizer o que vi nesta aldeia de Boipeba: nisto também é sabido pelos superiores que há muitos anos que o têm dissimulado. O irmão que tem cuidado do temporal vai e vem só fora de casa aos matos... Um dos padres vai sem companheiro à casa dos portugueses, onde necessariamente há de dormir. A nossa casa não tem modo algum de tapagem ou cerca: estando nossas Casas como estão junto às dos índios e índias e tendo-se aqui impostas aos nossos algumas coisas tocantes à castidade, como consta e é notório na boca dos portugueses. Achei que o Pe. que ali tinha cuidado de prover este Colégio do temporal tratava aos índios forros da aldeia mal... Da Bahia, 29 de fevereiro de 600. Antº de Araújo.
(ARSI, Bras. 3-I, fl. 188)19 19 Uma vez mais, a via dessa carta que ficou no Brasil não descreveu nada do que era “escandaloso” (ARSI, Bras. 3-I, fl. 188v).
A “vinha estéril” desanimava, assim, muitos jesuítas que vinham para o Brasil nesse período. Alguns deles pediam para voltar à Metrópole. Foi o caso do padre Gonçalo Leite, primeiro professor do curso de artes no Colégio da Bahia. No dia 20 de junho de 1586, estando já em Lisboa, depois de morar no Brasil desde 1572 até aquele ano, escreveu ao geral, destacando o estado calamitoso da terra. O título da carta é “Alguns avisos tocantes ao Brasil” (ARSI, Lus. 69, fl. 244v). Confiramos:
Todos os Padres no Brasil andam perturbados e inquietos na consciência com muitos casos acerca de cativeiros, homicídios e muitos agravos, que os brancos fazem aos índios da terra... De outra maneira, bem se podem persuadir os que vão ao Brasil, que não vão a salvar almas, mas a condenar as suas. Sabe Deus com quanta dor de coração isto escrevo, porque vejo os nossos padres confessar homicidas e roubadores da liberdade, fazenda e suor alheio, sem restituição do passado, nem remédio dos males futuros, que da mesma sorte cada dia se cometem...
(ARSI, Lus. 69, fl. 243v)
Na mesma carta, padre Gonçalo Leite questionava o modo de enviar novos missionários para o Brasil: “Quando mandam algum padre do Brasil sempre se mandam tão de súbito e de modo que a gente de fora se persuade que vêm despedidos e ficam deitando outros juízos vários sobre suas vidas...” (ARSI, Lus. 69, fl. 243v).
O jesuíta terminava a carta, colocando-se à disposição de Aquaviva para “tirar medos” dos que eram destinados ao Brasil:
Ao presente não se me oferece mais senão ficar nesta casa de São Roque, aparelhado para fazer o que V. P. e os mais superiores me mandarem, e se for necessário para tirar medos que os nossos têm de ir ao Brasil...
(ARSI, Lus. 69, fl. 244)
Considerações finais
Por detrás das “cifras” usadas pelos inacianos em suas cartas, com a finalidade de preservar a identidade de alguns membros da Ordem, avalio que está o desejo de se preservar o “bom odor” da Companhia de Jesus. De fato, amparado no conjunto das fontes do período, não se pode jogar o trabalho dos homens de preto em uma vala comum e duvidar da boa-fé de grande parte dos que foram enviados em missão. Contudo, mesmo com as “cifras”, o que não se pôde esconder foi o que chamei de descaminhos de uma missão.
Como foi possível constatar, tais descaminhos se aprofundaram durante um período de críticas internas, direcionadas, sobretudo, a denunciar os desvios de comportamentos no trabalho dos inacianos nas aldeias da Província do Brasil e que foram formuladas pelos próprios missionários.
O texto demonstrou, ainda, que o confinamento do nativo e sua sujeição aos missionários trouxeram um tempo de violências e escândalos no trato com estes nas aldeias. Para além disso, foi também possível perceber um momento de discordâncias e desentendimentos entre as posturas de alguns membros da Companhia que atuavam na missão do Brasil e a direção da Ordem, em Roma. Tais discordâncias demonstraram o embate entre a posição da “via amorosa” e a que chamei de ortodoxa.
É preciso frisar, por fim, que os índios foram as principais vítimas das violências e abusos a que foram aqui expostos. A postura de alguns inacianos estava longe de produzir o “bom odor” que desejavam. Certamente, após o contato com a documentação que foi analisada neste artigo, não podemos deixar de afirmar que as atitudes de alguns religiosos cheiravam à podridão da violência, do abuso e do massacre àqueles que não puderam reagir a tamanha monstruosidade.
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Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com
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Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL-MG.
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Expressão tomada de Castelnau-L’Estoile (2006)Castelnau-L’Estoile, C. (2006). Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Edusc..
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Referindo-se às cartas jesuíticas, Pécora (2018)Pécora, A. (2018). Máquina de Gêneros (2. ed.). Editora da Universidade de São Paulo; Editora da Unicamp. afirma que elas devem ser vistas “como um mapa retórico em progresso da própria conversão. Isso significa afirmar que são produzidas como um instrumento decisivo para o êxito da ação missionária jesuítica, de tal modo que as determinações convencionais da tradição epistolográfica, revistas pela Companhia e aplicadas aos diversos casos vividos, mesmo os mais inesperados, sedimentam sentidos adequados aos roteiros plausíveis desse mapa [ênfase no original]” (p. 18). O autor destaca que as cartas estão longe de ser efeito espontâneo das novas experiências dos padres em regiões desconhecidas dos europeus. O estudo dessas fontes poderá revelar “o constructo formal e histórico da aparente positividade ou naturalidade dos testemunhos que dão nascimento ao Brasil. Pois o parto exigiu muita tinta, muita papelada. Os traços dos brasis foram sendo encontrados proporcionalmente à muita andança das letras. Enfim, supõe-se aqui que a construção da forma já faz parte da narrativa da história” (p. 68).
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De acordo com Perrone-Moisés (1992)Perrone-Moisés, B. (1992). Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In M. C. Cunha (Org.), História dos índios no Brasil. Companhia das Letras., no governo de Mem de Sá, os jesuítas foram encarregados da administração das aldeias, responsáveis não apenas pelo “governo espiritual” como, também, pela organização dos aldeamentos e repartição dos trabalhadores indígenas pelos serviços, tanto da aldeia quanto para moradores e para a Coroa (“governo temporal”) (p. 122).
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Trata-se da Segunda Visita à Província do Brasil. Iniciada em 1583, teve como visitador o Pe. Cristóvão de Gouveia.
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A carta foi escrita por Antonio Ferreira e era dirigida a Aquaviva, “Desta casa ou residência de S. Vicente, costa do Brasil, a 15 de março de 1585” (ARSI, Lus. 69, fl. 53v). A carta está intitulada como “alguns avisos” e não tem a via que ficava no Brasil, como acontecia com outras cartas do período, que regularmente eram escritas em duas vias (ARSI, Lus. 69, fl. 54v). Ou seja, é uma missiva escrita exclusivamente para Aquaviva.
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Nas cartas que pesquisei no ARSI, optei por deixar as abreviaturas conforme estavam no documento original. Ademais, como todas as cartas estão manuscritas, para não “deturpar” o documento, quando não entendi alguma palavra, coloquei-a sempre entre colchetes – e, em alguns casos nos quais tive dificuldade maior de entender o que estava escrito, coloquei, em seguida, um ponto de interrogação. Porém, quando algum trecho era ilegível, coloquei o sinal de reticências na transcrição dos documentos.
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Nesse sentido, de acordo com Pécora (1999)Pécora, A. (1999). Cartas à Segunda Escolástica. In A. Novaes. A outra margem do ocidente (pp. 373-414). Companhia das Letras., nas cartas de Pe. Manuel da Nóbrega (1517-70), o primeiro movimento proposto “esboça um método de conversão assentado basicamente numa via que chama amorosa” (p. 395 – grifo do autor). Porém, sobretudo a partir das chamadas “guerras dos índios”, a posição de Nóbrega se afastou da via amorosa de conversão, de cuja eficácia tanto mais duvidava quanto mais se alongava sua experiência na Colônia. Assim, de acordo com Pécora (1999)Pécora, A. (1999). Cartas à Segunda Escolástica. In A. Novaes. A outra margem do ocidente (pp. 373-414). Companhia das Letras., a via amorosa pareceu a Nóbrega menos eficaz em relação aos índios – “gente servil” – do que a que se fazia “por medo”: “assim que por experiência vemos que por amor é mui difficultosa a sua conversão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo”[ênfase no original] (p. 400).
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A fim de discutir a relação do historiador com as fontes, Ginzburg se ampara em Benjamin (1987)Benjamin, W. (1987). Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política – Obras Escolhidas (vol. 1, pp. 222-232). Brasiliense., para o qual “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” (p. 225).
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O nome do sujeito está rabiscado no manuscrito e acima do rabisco foi colocada a letra “N”.
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Também está rabiscado e se procedeu da mesma forma descrita na nota anterior.
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É interessante a “segunda via” dessa carta, que ficava no Brasil. Nela se enumeravam os assuntos tratados na carta e no último tópico está escrito: “7. Despedida de dois irmãos e as causas” (ARSI, Bras. 8-1, fl. 29v).
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O termo “cifrado” aparecia nos manuscritos jesuíticos como uma forma de ocultar o nome de algum inaciano que estava em condições consideradas pecaminosas ou vergonhosas para o “bom odor” da Companhia. Nas cartas que consultei e analisei em Roma, tal artifício era usado constantemente. Colocava-se no lugar do nome do sujeito alguns caracteres desconexos e sem possibilidade de serem compreendidos por um possível leitor desautorizado.
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Em cima desses caracteres está escrito com outra grafia “Afonso Gago”. Pareceu-me uma anotação feita em Roma, depois que a carta já havia chegado às mãos corretas. Sobre padre Afonso já dizia Pero Rodrigues em 1601: “tem duas faltas com que ‘desdoura’ tudo: 1ª Pouco sóbrio; 2ª Pouco casto no tratar com mulheres, assim índias como portuguesas. E nestas matérias tem dado muito trabalho aos superiores... [ênfase no original]” (ARSI, Bras. 8-1, fl. 30).
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A carta seguia descrevendo as atrocidades praticadas pelo padre, porém está ilegível em grande parte e não tive condições de transcrevê-la por completo.
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Na segunda via que ficava no Brasil, não havia nenhum detalhe semelhante ao que foi descrito na carta enviada a Roma. Somente se citava do que tratava a carta (tem três linhas). Nesta segunda via, porém, consta que tinha saído de Pernambuco e que a carta era dirigida a Aquaviva (ARSI, Bras. 8-1, fl. 27). Pareceu-me, assim, mais uma carta censurada.
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Uma vez mais, a via dessa carta que ficou no Brasil não descreveu nada do que era “escandaloso” (ARSI, Bras. 3-I, fl. 188v).
Referências
- Anchieta, J. (1933). Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594). Biblioteca de Cultura Nacional. Col. Afrânio Peixoto da Academia Brasileira de Letras.
- ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Brasilia Epistolae, Roma.
- ARSI: Archivum Romanum Societatis Iesu, Lusitania Epistolae, Roma.
- Baeta Neves, L. F. (1978). O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Forense-Universitária.
- Benjamin, W. (1987). Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política – Obras Escolhidas (vol. 1, pp. 222-232). Brasiliense.
- Castelnau-L’Estoile, C. (2006). Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620 Edusc.
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- Eisenberg, J. (2000). As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas Ed. UFMG.
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- Leite, S. da S. (1938-1949). História da Companhia de Jesus no Brasil (10 v.). Instituto Nacional do Livro.
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- Pécora, A. (1999). Cartas à Segunda Escolástica. In A. Novaes. A outra margem do ocidente (pp. 373-414). Companhia das Letras.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
09 Out 2020 -
Revisado
20 Fev 2021 -
Aceito
05 Jul 2021