Open-access Pensando cinema e educação em um contexto decolonial: regras do jogo e pedagogias

Thinking cinema and education in a decolonial context: rules of the game and pedagogies

Pensando cine y educación em un contexto decolonial: reglas del juego y pedagogías

Resumo

Este ensaio reflete a interface Cinema-Educação frente ao engajamento epistêmico e subjetivo que a prática cinematográfica e a política educacional assumem em uma perspectiva eurocêntrica. O estudo assume a perspectiva cartográfica como método e desenvolve-se por meio de questionamentos feitos às próprias práticas do autor como educador em oficinas de cinema para escolas, buscando explorar, com isso, a naturalização de modelos colonizadores nesses processos. A principal referência é o pensamento desenvolvido por autores da rede modernidade/colonialidade, que denunciam a Modernidade como uma construção simbólica e histórica nascida da violência colonial. Dentre as conexões que resultam da cartografia traçada, revela-se a aprendizagem inventiva como uma política fundamental para o enfrentamento da problemática em questão.

Palavras-chave Cinema e educação; decolonialidade; aprendizagem inventiva

Abstract

This essay reflects on the cinema-education interface in face of the epistemic and subjective engagement that cinematographic practice and educational policy take under an Eurocentric perspective. This study takes the cartographic perspective as a method and inquiries into the author’s own practices as an educator in film workshops for schools, seeking to explore the naturalization of colonizing models in these processes. The main reference refers to the thought of authors from the modernity/coloniality network who denounce Modernity as a symbolic and historical construction born from colonial violence. The connections that result from the traced cartography include inventive learning as a fundamental policy to face the referred problem.

Keywords Cinema and education; decoloniality; inventive learning

Resumen

Este ensayo refleja la interfaz Cine-Educación frente al compromiso epistémico y subjetivo que la práctica cinematográfica y la política educativa asumen en una perspectiva eurocéntrica. El estudio asume como método una perspectiva cartográfica y se desarrolla a través de preguntas realizadas sobre las propias prácticas del autor como educador en talleres cinematográficos para escuelas, buscando explorar, con ello, la naturalización de modelos colonizadores en estos procesos. El principal referente es el pensamiento desarrollado por autores de la red modernidad/colonialidad, que denuncian la Modernidad como una construcción simbólica e histórica nacida de la violencia colonial. Entre las conexiones que resultan de la cartografía esbozada, el aprendizaje inventivo se revela como una política fundamental para abordar el problema en cuestión.

Palabras clave Cine y educación; decolonialidad; aprendizaje inventivo

A interface cinema-educação: introdução do estudo

Após duas décadas de acesso mais democrático a tecnologias digitais de produção, edição e circulação de imagens, período no qual são desenvolvidas inúmeras formulações teórico-práticas acerca da relação entre cinema e educação, um duplo questionamento se coloca com a mais urgente necessidade: que cinema é esse que se relaciona com a educação e que educação é essa que se relaciona com o cinema?

Neste ensaio, observaremos aspectos do desenvolvimento da referida interface a partir dos anos 2000, com atenção especial a processos de realização de oficinas de cinema para estudantes e professoras da educação básica. Tomaremos como ponto de partida a nossa própria experiência, como educador do campo audiovisual, a fim de explorar mais detalhadamente um elemento específico da metodologia adotada por boa parte das oficinas desse período: o ensino da chamada “linguagem cinematográfica clássica”1 – um sistema de representação de mundo baseado na “visão” eurocêntrica.

Considerando que os avanços, acúmulos e consolidações adquiridos pela interface cinema-educação já são capazes de suportar certos tensionamentos teóricos-metodológicos, tomamos alguns pontos da constituição da chamada “modernidade” – período no qual se inscreve o nascimento do cinema – para pensar modelos de cinema e escola que sustentam práticas eurocêntricas.

Ao fazermos isso, remetemos nossa análise ao pensamento de autoras e autores como Frantz Fanon (1968, 2008); bell hooks (2013, 2019); João Colares da Mota Neto (2016); além daqueles e daquelas que integram a chamada rede modernidade/colonialidade2, tais como Anibal Quijano (2007); Júlio Pinto e Walter Mignolo (2015), Enrique Dussel (2008), Maldonado-Torres (2007); entre outros. Esses autores refletem sobre os processos de origem da chamada modernidade, denunciando silenciamentos imanentes à construção simbólica e histórica que emerge da violência colonizadora dos “povos originários” da América Latina e de outras partes do mundo. Tais reflexões nos parecem propícias para melhor compreendermos e interrogarmos práticas de cinema realizadas junto a (ou por) professoras e estudantes, na direção mesmo de uma autoatualizacão de nossas práticas e também da própria noção cinema-educação.

Para dar conta desse processo, assumimos a perspectiva cartográfica como método para o desenvolvimento desta pesquisa, tendo como referência o estudo “Pistas do método da cartografia – pesquisa-intervenção e produção de subjetividade” (Passos et al., 2015). Tal estudo se dedica ao acompanhamento de processos estabelecendo pistas que descrevem, discutem e, sobretudo, coletivizam a experiência do pesquisador. As pistas não se relacionam de forma hierárquica, de modo que a utilização de uma não é pré-requisito para a utilização de outra. Assim, das oito pistas propostas pelo estudo, assumimos uma (como a principal) para o desenvolvimento deste ensaio. Trata-se da pista 7: “Cartografar é habitar um território existencial” – que considera o trabalho da cartografia não com um sobrevoo conceitual sobre a realidade investigada, mas como um compartilhamento de um território existencial: conhecer não se reduz ao processamento de informações a respeito de um mundo supostamente pronto, mas presume uma implicação com o mundo, um comprometimento com a sua produção. Cartografar significa tentar desenhar a rede de forças pelas quais um pensamento se conecta e ganha existência: quais conexões (ou linhas de força) entram em ação para dar forma, por exemplo, a uma determinada pedagogia? O interesse está na lógica das conexões, nos pontos de convergência e bifurcação que podem ser entendidos como uma rede. Vale ressaltar que tal proposta busca franquear formas de expressão inventivas e ideias mais originais na direção dos dispositivos hegemônicos, considerando sempre os efeitos do processo da pesquisa sobre o objeto, o pesquisador, os sujeitos pesquisados e os resultados. Aposta-se no ato propositivo como instância para extrair aprendizado, significado e intersubjetividade, associando-o com outras experiências, enfim, construindo alguma forma de realidade. Nas palavras de Eduardo Passos e Regina Barros (2015), “o desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional de método – não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas (metá-hódos)3, mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-metá” (p. 17).

Retomando a relação entre cinema e educação, sabe-se que uma dimensão educativa é atribuída ao cinema desde o seu surgimento, no século XIX. No Brasil, essa dimensão ganha força especial no período que vai de 1936 a 1966, com a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), onde foram produzidos, segundo Rosana Catelli (2007), sob influência positivista e centralizadora do Estado Novo, algo próximo a 400 filmes documentários voltados ao desenvolvimento do país e a difusão científica4.

Ao pensarmos a relação entre cinema e educação, um elemento que não pode ser esquecido é o efeito que o desenvolvimento das tecnologias de filmagem produzem inevitavelmente sobre as práticas – o que não significa concordar com uma relação de simples causalidade entre técnica e expressão.

No âmbito do cinema documentário, por exemplo, conforme escrevem Consuelo Lins e Claudia Mesquita (2008), a chegada de equipamentos leves e sincrônicos ao Brasil estimulou o procedimento de entrevistas a partir dos anos 1960, levando o documentário brasileiro a abordar criticamente, pela primeira vez, problemas e experiências das classes populares5. A nova tecnologia estimulou a saída de cineastas dos estúdios, colocando-os em contato com o que Jean-Claude Bernardet (1985) chamou de “outro de classe”: pessoas tomadas como exemplo ou ilustração para a explicação de teorias sociais tidas como universais (pobres, excluídos, marginalizados). Trata-se, conforme o autor, do desenvolvimento de um “modelo sociológico” que, na perspectiva do documentário clássico brasileiro, se apoia na ideia de “dar voz” a esse “outro” (o povo). Nas décadas seguintes, além da “voz”, também é dado ao outro a possibilidade do “olhar”, e a câmera (parte do aparato tecnológico) passa da mão de cineastas para a mão desses “novos sujeitos do discurso”, usando aqui a expressão de Ivana Bentes (2003); gesto que faz aparecer nas imagens outras subjetividades. Com o advento do digital, a partir do final dos anos 1990, a produção de imagens se estende definitivamente aos setores populares, e o “antecampo” (Brasil, 2013)6 vai aos poucos sendo revelado: é o “outro do outro” entrando em cena.

Nos anos que seguem a partir do ano 2000, o cinema se expande, e a possibilidade de uma distribuição mais democrática das imagens produzidas se instaura definitivamente por meio da internet e seus dispositivos de compartilhamento via web. Sob custos mais viáveis, essas novas tecnologias (câmeras de vídeo digital e posteriormente câmeras de telefones celulares) são acessadas pelas camadas populares e atingem definitivamente as escolas.

A rápida absorção social desse fenômeno impôs inúmeras questões e perspectivas ao contexto escolar, dentre as quais destacamos duas: a que associa o uso dessas novas tecnologias ao desenvolvimento de práticas de cinema nas escolas e coloca sob interrogação o estatuto pedagógico da imagem: imagens pedagógicas ou pedagogia das imagens? (Leandro, 2001); e a que, apoiada no advento da convergência digital7, propõe a incorporação dessas novas tecnologias ao ambiente escolar, oferecendo uma espécie de cardápio de “inovações pedagógicas”, tais como a gamificação, a robótica, os ambientes makers etc., cuja promessa é o mercado de trabalho, e o maior interessado parece mesmo ser o setor corporativo.

Atentemos-nos neste ensaio à primeira perspectiva. Dela resulta uma série de formulações e críticas desenvolvidas no decorrer desse período de intensificação da produção de filmes em contexto escolar, refletindo questões políticas e estéticas sobre a mencionada interface, e consolidando-a efetivamente como um campo de estudos8.

A rede modernidade/colonialidade e o pensamento decolonial9

Com base em seus textos e os de outros autores que escrevem fundamentados em seu pensamento, considera-se Frantz Fanon (1968, 2008) um autor-chave na constituição do pensamento decolonial, cuja obra é reconhecida como testemunho de luta contra a opressão colonialista, particularmente o racismo. Conforme escreve Mota Neto (2016), é precisamente a partir da compreensão desse processo de dominação e da análise da ambígua relação colono-colonizado que Fanon denuncia o uso estratégico que o colonialismo fez da língua, da cultura, da ciência e da educação, na imposição do regime de domínio.

O que está em jogo nesse debate, e que é fundante na obra de Fanon, é a compreensão da colonialidade como o lado obscuro da modernidade. Essa tese, de acordo com Mota Neto (2016), vai fundamentar o trabalho de um conjunto de autores que, desde o final dos anos de 1990, se organizam em torno do que pode ser chamado de “programa” ou “rede modernidade/colonialidade”10. Tal escritura (em par) deve-se a ênfase invocada por esse grupo à ideia de que a colonialidade é constitutiva e não derivativa da modernidade. E também que:

O conceito emancipador hegemonicamente contido na ideia de modernidade é um mito porque não revela que ela só foi possível graças à opressão colonial que impôs aos povos conquistados da América Latina e de outros continentes. Daí que as instituições e os processos sociais atrelados ao fenômeno histórico da modernidade passam a ser questionados por esses autores por suas inter-relações (diretas ou indiretas, manifestadas ou ocultadas) na constituição da exclusão social do racismo, da negação de direitos e de modos de ser

(Mota Neto, 2016, p. 18).

A normalização do evento modernidade/colonialidade, aplicada às sociedades pós-coloniais, tem como efeito, ainda hoje, casos de violação de direitos humanos não só de negros, mas também de mulheres, homossexuais, crianças, idosos, trabalhadores, campesinos e indígenas, entre outros sujeitos. Fundamentalmente, argumenta-se que a independência jurídico-política dos países ex-colonizados não significou verdadeira libertação. A superação do colonialismo é uma tarefa muito mais complexa que a simples autonomia política para as antigas colônias, embora este tenha sido um passo importante nesse processo. Sabemos que as nações latino-americanas que se tornaram independentes no século XIX, assim como as nações africanas em meados do século XX, não conquistaram liberdade e autonomia apenas com a proclamação da independência. Não é difícil constatar nos dias atuais a reintrodução (ou manutenção) do controle do trabalho e da exploração das riquezas por meio do capitalismo na direção de corpos negros, pobres e de mulheres, que continuam a ver negadas as suas existências e formas de pensamentos, assim como os saberes indígenas e afrodescendentes, que se mantiveram silenciados, folclorizados ou mesmo roubados.

O antigo país dominado transforma-se em país economicamente dependente … Vê-se, portanto, que a aquisição da independência por parte dos países coloniais coloca o mundo diante de um problema capital: a libertação nacional dos países colonizados patenteia e torna mais insuportável o seu estado real. O confronto fundamental que parecia ser o do colonialismo e do anticolonialismo, até mesmo do capitalismo e do socialismo, perde logo sua importância. O que conta hoje em dia, o problema que traça o horizonte é a necessidade de uma redistribuição das riquezas. À humanidade, sob pena de se desmoronar, compete responder a essa indagação

(Fanon, 1968, p. 78).

É no sentido descrito acima que a ideia de decolonialidade assume uma importante diferenciação em relação à ideia de des-colonialidade, manifestando não apenas a libertação política dos países em questão, mas também, e sobretudo, das relações assimétricas de poder que persistem implicadas em suas culturas, conhecimentos, educação, mentalidades e organizações socioeconômicas. A opção por diferenciar decolonial de descolonial deve-se também aos esforços de diferenciação entre os termos colonialismo e colonialidade, tal como destacado pelos teóricos da decolonialidade.

O colonialismo refere-se ao processo e aos aparatos de domínios político e militar que se empregam para garantir a exploração do trabalho e das riquezas das colônias em benefício do colonizador … A colonialidade é um fenômeno histórico muito mais complexo que se estende até o nosso presente e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a re-produção de relações de dominação

(Restrepo & Rojas, 2010, p. 15, tradução própria)11.

Entende-se, assim, a colonialidade como algo que não terminou com o fim da colonização. Defende-se que uma espécie de “colonialidade global” continua sustentando, no chamado mundo pós-colonial, relações desiguais entre centro-periferia. A ideia de decolonialidade manifesta, portanto, na direção da colonialidade (e não meramente de um passado colonialista) “uma energia de descontentamento, de desconfiança, de desprendimento mobilizada por aqueles que reagem ante a violência imperial” (Mignolo, 2007, p. 26).

Desse modo, embora o termo “descolonialidade” circule em algumas produções brasileiras como sinônimo de “decolonialiadade”, observa-se, em síntese, que este último busca expressar um questionamento mais radical, na intenção de superar as mais distintas formas de opressão praticadas contra os povos originários pelo processo modernidade/colonialidade.

Pinto e Mignolo (2015) nos lembram que à época não era modernidade a palavra usada, mas re-nascimento; e que antes da invenção do Brasil houve a invenção das “Índias Ocidentais” e do “Novo Mundo”, termo utilizado pelos europeus para designar as terras desconhecidas. Segundo esses autores, tal expansão territorial, costurada pela narrativa do renascimento e da salvação, justificou a supressão e até mesmo o genocídio dessas territorialidades e memórias.

A desumanização de habitantes não europeus do globo foi necessária para justificar o controle de tais “seres humanos inferiores”. Racismo como o conhecemos hoje foi estabelecido àquela época. Racismo não é biológico, mas sim epistêmico; é a classificação e a hierarquização de umas pessoas por outras que controlam a produção do conhecimento, que estão em posição de atribuir credibilidade a tal classificação e hierarquização e que estabelecem a si mesmas como o padrão: “os humanos” – todos os demais são apenas diferentes graus de quase semi-humanos. Colonialidade é, portanto, constitutiva de modernidade

(Pinto & Mignolo, 2015, p. 383).

O enfrentamento crítico contra toda essa forma de exclusão produzida pelo sistema modernidade/colonialidade dá origem ao que vem sendo chamado de concepção, giro ou virada decolonial. Nas palavras de Nelson Maldonado-Torres:

Isto representa, em primeiro lugar, uma mudança de perspectiva e de atitude presente nas práticas e formas de conhecimento dos sujeitos colonizados, desde os primórdios da colonização, e, em segundo lugar, um projeto de transformação sistemática e global dos pressupostos e implicações da modernidade, assumido por uma variedade de sujeitos em diálogo

(Maldonado-Torres, 2007, p. 160).

Vale destacar, contudo, a impossibilidade de definir a genealogia do pensamento decolonial a partir de um ou de outro autor, movimento social ou marco temporal precisos. Nesse sentido, uma das defesas, por exemplo, sustentada por Walter Mignolo (2007), é de que um primeiro movimento do pensamento decolonial emerge já nos séculos XVI e XVII, com a própria fundação do processo modernidade/colonialidade. Essa visão destaca que não só a colonialidade é constitutiva da modernidade, mas também a própria decolonialidade. Isso significa entender a decolonialidade como uma energia de descontentamento e resistência que emerge imediatamente à lógica opressiva da colonialidade. Algo que se traduz efetivamente em práticas epistémicas decoloniais desde o início de todo esse processo, ainda que as reflexões mais sistemáticas em torno do giro ou virada decolonial, tal como mencionado acima, tenham se dado mais recentemente, a partir dos anos 1990, com o surgimento da rede Latino-americana. Mignolo faz um destaque interessante nesse sentido:

A modernidade é uma serpente de três cabeças, embora mostre apenas uma: a retórica salvacionista e do progresso. A colonialidade, cuja faceta é a pobreza e a propagação da AIDS na África, não aparece na retórica da modernidade como sua contrapartida necessária, mas como algo desvinculado dela

(Mignolo, 2007, p. 26).

Assim, enquanto autores como Maldonado-Torres (2007) e Enrique Dussel (2008) concordam com Mignolo sobre um possível marco genealógico iniciado no século XVI, Anibal Quijano (2007) afirma o final do século XIX como o momento a partir do qual estas práticas epistémicas decoloniais de resistência são efetivamente observadas na América Latina. Na esteira desses encontros e sistematizações, uma multiplicidade de conceitos vem sendo desenvolvidos pelos autores e autoras que integram a Rede Modernidade/Colonialidade, tais como colonialidade do poder, por Anibal Quijano; colonialidade do ser, por Nelson Maldonado-Torres; transmodernidade, por Enrique Dussel; diferença colonial, por Walter Mignolo; além de outros.

É preciso ressaltar, ante às pistas brevemente expostas, que este ensaio não busca desenvolver propriamente uma proposta decolonial para o campo cinema-educação, mas tensionar, com base nos efeitos da colonialidade, algumas das formulações teórico-práticas produzidas por esta interface nas últimas décadas, a fim de iluminar as questões trazidas no início do texto.

A assimilação do pensamento decolonial, diferente das teorias tradicionais, é algo que não se constrói exclusivamente a partir de uma certa intelectualidade, mas de saberes silenciados dos “povos subalternizados” e dos “povos originários da América Latina”, incluindo as lutas e movimentos sociais de resistência. Entendemos esse gesto como uma responsabilidade pedagógica e social, visto que o pensamento decolonial coloca em evidência outras cosmovisões (ou seriam cosmovivências?), as quais nos dão a perceber lógicas outras de compreensão de mundo, diferentes do pensamento dualista ocidental e suas perspectivas totalizantes fundadas na razão.

As pistas lançadas por esse referencial nos levam a pensar quais formulações, práticas e invenções podem emergir da interface estudada a partir de um desligamento ou desengajamento epistêmico do sistema eurocêntrico da modernidade/colonialidade – usando aqui palavras de Pinto e Mignolo (2015). Que imagens (em movimento) e sons podem emergir da interface estudada quando esta decide assumir outras lógicas (éticas e estéticas) de mundo? Que reflexões, críticas e revisões a interface estudada pode fazer de suas próprias práticas ao se dar conta de que grande parte de seu projeto constitutivo está fundamentado no sistema opressor modernidade/colonialidade? Que análises podemos fazer das práticas e dos filmes produzidos em contexto escolar quando estes assumem temáticas como racismo, mulher, homem e indígenas, por exemplo, e ao mesmo tempo naturalizam certas representações impostas aos sujeitos desses grupos pelo sistema modernidade/colonialidade?

Que escola é essa? (que produz filmes)

Pode-se dizer que na atualidade a escola tem sido um dos lugares mais potentes para pensar relações entre cinema e educação. No contexto da escola pública das últimas décadas – época em que se intensificam os vínculos entre escola e produção audiovisual – destacam-se os efeitos de uma ação que produziu um forte impacto na política educacional desse período, e que não podem ser naturalizados quando abordarmos aspectos da decolonialidade junto a práticas de cinema realizadas com professoras e estudantes. Trata-se do processo de expansão da escola pública, principalmente de ensino médio, implantando a partir dos anos 1990, durante a gestão do presidente da república Fernando Henrique Cardoso, cujo objetivo era a superação das barreiras que impediam o acesso da população à educação12. Embora o início desse processo anteceda a mencionada fase de consolidação da interface cinema-educação, o impacto e os efeitos dessa “virada” ou “giro” educacional sobre a ideia de escola pública (diga-se: não só de ensino médio, mas também de ensino fundamental) afetaram também, entre outras, as práticas voltadas ao cinema, desenvolvidas junto ao público dessas escolas a partir dos anos 2000. Com Juarez Dayrell (2007) e Mônica Peregrino (2006) é possível acompanhar esse momento em que as camadas populares passam a frequentar maciçamente a escola pública, lugar antes reservado a jovens das camadas médias e altas da sociedade. Esse “novo” grupo, marcado pela heterogeneidade e desigualdade social, pela pobreza e contextos de violência, traz “consigo para o interior da escola os conflitos e contradições de uma estrutura social excludente, interferindo nas suas trajetórias escolares e colocando novos desafios à escola” (Dayrell, 2007, p. 1116).

A expansão da escola pública às camadas populares leva alunos das camadas médias e altas para a rede privada de educação, que também experimenta uma ampliação significativa nesse período, consolidando, por um lado, uma face elitista do ensino e, por outro, uma identificação direta da escola pública como “escola para pobres” (Dayrell, 2007). Peregrino (2006) nos lembra que o movimento que rege essa “abertura” articula-se às formas de “gestão da pobreza”, antes circunscritas aos limites dos órgãos da “assistência”. A autora ressalta que esse processo amplia as “funções da escola”, trazendo prejuízo às suas funções eminentemente “escolares”. Em suas palavras, a “desescolarização da escola” resolve uma dificuldade operacional, visto que a escola pública “é ainda a instituição do Estado mais presente para a população do país. Daí a ‘vantagem’ de sua utilização operacional … como ‘Posto avançado do Estado’” (Peregrino, 2006, p. 98).

Um ponto importante a ser ressaltado nessa passagem é que essa controversa incorporação das camadas populares na escola passa fundamentalmente pela recusa do reconhecimento desse grupo como integrantes efetivos da sociedade. Trata-se, na contramão das aparências, de um aprofundamento das desigualdades em relação ao acesso e aos direitos sociais. Embora o referido episódio de expansão educacional tenha se dado a partir dos anos 1990, vale lembrar que essa ação política (como modelo) re-presenta um certo pensamento sobre educação popular que tem origem no século XIX.

As primeiras [ações expansionistas], que remontam ao final do século XIX e primeira metade do século XX, estavam dirigidas basicamente a estender a educação aos setores que não tiveram acesso a ela, e que podem ser ilustradas pelas campanhas de alfabetização do início do século XX, sobretudo filantrópicas, confessionais e oficiais, em perspectiva compensatória; pelo ensino supletivo; pelos cursos burocráticos e os ‘ginásios dos pobres’; e pelos cursos profissionalizantes de formação de mão de obra operaria”

(Mota Neto, 2016, p. 105).

Tal processo, nomeado “Instrução Pública”, cuja promessa é a igualdade social, é uma ação que avança, paradoxalmente, na contramão da sua própria promessa. Nas palavras de Jacques Rancière (2005), a Instrução Pública constitui-se como “o braço secular do progresso, o meio de equalizar progressivamente a desigualdade, vale dizer, de desequalizar indefinidamente a igualdade”, ou seja, a instrução do povo é o meio para construir igualdade (com desigualdade), numa “interminável compensação de seu atraso” (p. 181).

Um discurso aliado ao caráter da promessa da Instrução Pública – ficção social instituída da desigualdade – encontra-se manifesto em uma certa noção de “emancipação”, desenvolvida em várias formulações do campo pedagógico. Entretanto, a ideia de emancipação que tomamos emprestada para este ensaio, seguindo pistas lançadas por Rancière (2005), não é a que propõe a igualdade como um objetivo a ser atingido, mas a que toma a igualdade como “ponto de partida, uma suposição a ser mantida em qualquer circunstância” (p. 189). Trata-se de uma proposição que rejeita o sistema explicador:

A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes

(Rancière, 2005, p. 23).

A pobreza, marcadamente “inferior” pelos procedimentos da Instrução Pública, é um traço peculiar da constituição do lado obscuro da “modernidade”. Frantz Fanon (1968), ao articular os processos de dominação simbólica com os de ordem material e econômica, reitera um ciclo vicioso – que também caracteriza a Instrução Pública – ao afirmar que na imediatidade do contexto colonial “o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça … a causa é conseqüência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico” (p. 29). A colonialidade materializa assim duas dimensões para a existência: a zona de ser (onde a humanidade é possível) e a “zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida”, lugar para onde são empurrados os negros, os colonizados e os pobres (p. 26).

Tanto a naturalização da modernidade como promessa de progresso desenvolvimentista e salvacionista (sua face decididamente visível) quanto a naturalização da escola pública como “escola para pobres” são concepções (colonialistas) que se complementam, autorizam e alimentam um sem número de iniciativas e projetos pautados pela promessa de uma sociedade mais justa e igualitária (no futuro). Tais esforços, por mais bem intencionados que sejam, não contemplam a modernidade a partir de sua exterioridade; em vez disso, reproduzem um ciclo vicioso de adiamentos e repetições.

Esse é um modelo de direitos que consegue a “façanha” de introduzir a lógica da desigualdade na própria dinâmica de sua formulação e realização. Vista como universal (ou seria universalista, totalitarista?) e imposta aos países colonizados, tal lógica determina, por consequência, o caráter das suas instituições, dentre as quais encontra-se a escola (pública). Isso leva o funcionamento da escola a assimilar uma espécie de microfísica dessa modernidade universalista, afetando pensamentos e práticas desenvolvidos nesses espaços. É certo que, por efeito dessa própria lógica, uma série de iniciativas emerge e se destaca justamente pelas possibilidades que abre na direção de possíveis agenciamentos voltados ao enfrentamento do modelo em questão13.

Não seria então uma responsabilidade pedagógica olhar para as regras desse jogo e pensá-las não mais como algo “natural”, mas como elementos que constituem (ou não) a manutenção da escola atual? (lugar para onde são empurrados os negros, os colonizados e os pobres – retomando a escrita de Fanon). Não seria o caso de pensar – trazendo a conversa para as oficinas de cinema – quais concepções e métodos em nossas práticas reforçam ainda mais esses processos colonialistas ou da colonialidade?

Que filme é esse? (que se produz nas escolas)

Ao buscar formas de emancipação dos sistemas de dominação da instituição escola, bell hooks (2013) propõe a assunção de uma “pedagogia engajada” – esta que nega o exercício do poder e da autoridade, buscando valorizar a expressão de estudantes a partir de alguma relação de igualdade com professoras e professores:

Nas minhas aulas, não quero que os alunos corram nenhum risco que eu mesma não vou correr, não quero que partilhem nada que eu mesma não partilharia. Quando os professores levam narrativas de sua própria experiência para a discussão em sala de aula, elimina-se a possibilidade de atuarem como inquisidores oniscientes e silenciosos. É produtivo que os professores sejam os primeiros a correr o risco ... Se a experiência for apresentada em sala de aula, desde o início, como um modo de conhecer que coexiste de maneira não hierárquica com outros modos de conhecer, será menor a possibilidade de ela ser usada para silenciar

(hooks, 2013, p. 35, 114).

Seguindo pistas de hooks (2013), decidimos correr o risco de relatar aqui uma experiência que acompanhou boa parte da trajetória do autor como educador do campo audiovisual, iniciada em 1999, e também como pesquisador e observador dos trabalhos produzidos nesse domínio. Pode-se dizer que das oficinas de cinema que ministradas junto a professoras e estudantes da educação básica, seja por contratação de organizações governamentais, não-governamentais ou instituições do setor privado, salvo um ou dois casos, todas exigiam a entrega de um “produto” ao final dos cursos, por exigência dos financiadores. O produto era “um filme”, cujo processo de realização ancorava-se incontestavelmente na aprendizagem da “linguagem cinematográfica clássica”, e cujas imagens organizavam-se invariavelmente em torno da (re)presentação, ou seja, da “obrigação” de contar uma história, submetida à linguagem, à narratividade, à apresentação de um sentido ou de uma moral; ou ainda, como bem indica uma pista lançada por Peter Pál Pelbart, ao seguir pistas de Fernand Deligny: “Se o cinema não visasse o filme, ele poderia atingir as imagens – mas, para isso, seria preciso que ele deixasse de ‘fazer obra’, de querer um produto” (Pelbart, 2014, p. 253)14.

Nas oficinas mencionadas, em raríssimos momentos foi possível pensar a imagem em si, no sentido de alguma autonomia dela em relação ao sistema-mundo: “o filme como local de trabalho” (Leandro, 2001, p. 31). Partíamos quase sempre de um saber pronto: esse que deveria ser “transmitido”, o cinema. Nesse sentido, aprender cinema (no contexto de uma oficina) significava apropriar-se de um conjunto de elementos do fazer cinematográfico e posteriormente organizá-los (criativamente) para a obtenção de imagens (capturadas por um “olhar” sobredeterminado, que posiciona a câmera em certas direções). Assim, as oficinas obtinham um “bom resultado” quando os “alunos” usavam esse “aprendizado” com “criatividade”, ou seja, quando combinavam ou (re)combinavam tais elementos e tais olhares, inserindo-se assim no domínio da chamada “linguagem cinematográfica” – conjugação de enquadramentos, movimentos e angulações de câmera pensados para contar criativamente, por meio de cenas, uma história previamente roteirizada.

O estatuto da “linguagem cinematográfica clássica” nas oficinas era, assim, inquestionável e muitas vezes naturalizado por nós educadores, como se essa linguagem pertencesse naturalmente ao cinema. Contudo, é justo lembrar que a adesão a esse procedimento também provocava no autor sérias suspeitas sobre as suas limitações: nas oficinas, o que poderia ser um ato “inventivo” convertia-se em um ato “criativo” vinculado a modelos pré-existentes15.

Assim, ao assumirmos o ensino dessa forma-cinema como sendo o ensino do cinema, assumimos também em nossas práticas a regra do jogo (ou linhas de força dessa rede) que, em conexão com outras linhas de força, dá existência a tudo o que essa forma-cinema carrega. Sabendo que os propósitos da referida linguagem cinematográfica se instituem no início do século XX alimentados por um modelo de representação que dominava o teatro no final do século XIX (o melodrama)16 e que a “re-presentação” (em si) é uma forma essencial ao regime cognitivista (Kastrup et al., 2008), uma questão fundamental se impõe ante o processo das oficinas: se experimentar cinema (na escola) significa (re)conhecer objetos (do sistema-cinema) existentes no mundo, o método dessa experiência de aprendizagem, ao fixar os objetos que devem ser “aprendidos”, não estaria acionando processos arbitrários de seleção (e também de apagamentos) sobre aquilo que se leva a conhecer?

A concepção da cognição como representação traz consigo a preocupação com a busca de leis e princípios invariantes, condições de possibilidade do funcionamento cognitivo ... Conhecer não é apenas representar, nem tampouco a atividade de um sistema ou estrutura cujas regras invariantes seriam encapsuladas e refratárias ao tempo ... conhecer é criar, é produzir a realidade tanto do mundo conhecido quanto daquele que conhece ... A cognição representacional e a cognição inventiva são dois modos de estar no mundo ... O que o conceito de política cognitiva busca evidenciar é que o conhecer envolve uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, uma atitude, um ethos. Sendo assim, o cognitivismo naão é apenas um problema teórico, mas um problema político

(Kastrup et al., 2008, pp. 9-12).

Tendo em vista as pistas lançadas acima, pode-se dizer que o desenvolvimento de atividades para que estudantes lidem de forma “criativa” com modelos preexistentes revela uma pedagogia distinta daquela que define a cognição como um processo de “invenção” (de si e de mundos). Tal distinção (pedagógica) ganha ainda mais relevância quando não a compreendemos simplesmente como diferentes aplicações de modelos teóricos, mas como um problema de perspectiva filosófica ou política, ou seja, aproximar conhecimento e invenção não significa propor um novo entendimento da cognição, mas adotar uma certa maneira “de estar no mundo, de habitar um território existencial e de se colocar na relação de conhecimento” (Kastrup et al., 2008, p. 12).

Supomos que tenha sido precisamente por meio dessa “brecha” no regime cognitivista/representacional que muitas vezes notou-se uma dúvida sobre o caráter dos filmes feitos com professoras e estudantes. A experiência da aprendizagem cinematográfica não se limita ao âmbito epistemológico, ou seja, a discussões acerca do funcionamento de diferentes modelos teóricos propostos para o seu entendimento. Ela também contempla, inevitavelmente, processos filosóficos e políticos, que passam por modos “de estar no mundo” – um éthos ou atitude das nossas práticas –, ligados intuitivamente a uma espécie de descontentamento e desconfiança em relação aos silenciamentos ora expressos pelo pensamento decolonial.

Quando as linguagens tomam posição

Voltando a Fanon (2008), veremos em seus escritos que este autor atribui um papel central à linguagem para tornar evidente o processo de inferiorização produzido pelo pensamento colonial sobre o negro. Ele diz que “um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito (p. 34). Aproximando o pensamento de Fanon da experiência com as oficinas de cinema, interroga-se sobre em que medida reproduzimos a perspectiva epistêmica eurocêntrica quando privilegiamos o ensino de um cinema definido nas bases desse modelo hegemônico; mais que isso, indaga-se especialmente sobre quais vivências outras de mundo rejeitamos ao fazer isso. Embora Fanon (2008) não esteja se referindo ao cinema especificamente, sua convocação ao povo colonizado é de que devemos sempre “tomar posição” diante da linguagem. Ele diz: “quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole [linguagem], mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será” (p. 34).

O ensino da “linguagem cinematográfica clássica”, amplamente difundido nas oficinas de cinema do período mencionado, é, portanto, um método que colabora com a consolidação de um certo modelo (dominante) de cinema. Ao retomar o gesto inaugural do cinema, ocorrido no final século XIX, Ismail Xavier (2003) destaca dois tipos de recepção a esse advento que merecem ser retomados aqui: “na primeira, ele é observado como coroamento de um projeto já definido na esfera da representação [teatro]; na segunda, vislumbra-se o cinema enquanto inauguração de um universo de expressão sem precedente”, cujo destino seria romper a esfera da representação (p. 37).

Visto como coroamento, o cinema se insere na tradição do espetáculo dramático mais popular do século XIX: o melodrama. De forma mais verossímil que o teatro, o cinema potencializa os recursos da cena e leva o espectador a um mergulho mais intenso nos dramas e histórias narradas, visto que as ações avançam em espaço e tempo de forma até então impensável, otimizada pelos efeitos do “ilusionismo” – a encenação tal e qual o real. Nas palavras de Xavier, o melodrama tem sido:

por meio do teatro (século XIX), do cinema (século XX) e da TV (desde 1950), a manifestação mais contundente de uma busca de expressividade (psicológica, moral) em que tudo se quer ver estampado na superfície do mundo … envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar é convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da virtude ou do pecado ... não surpreende que a técnica do cinema, então emergente, tenha assumido essa pedagogia e tenha substituído o melodrama teatral na satisfação de uma demanda de ficção na sociedade. Quando falo em ilusionismo, reprodução das aparências, na verdade que advém do conflito de forças que se expressam e se revelam pelo olhar, estou afirmando princípios da representação aos quais o cinema vem se ajustar como uma luva

(Xavier, 2003, p. 39).

As técnicas do “ilusionismo”, que tantas vezes transmitimos aos participantes das oficinas de cinema, por meio do ensino da “linguagem cinematográfica clássica”, são repetidoras dos princípios de domínio e controle das aparências. Trata-se de uma técnica que faz valer certos mundos como, por exemplo, o das histórias melodramáticas, cujas características são o exagero e o excesso, a demarcação das relações entre ricos e pobres, entre mocinho e vilão, reforçando, com isso, os ideais da luta do bem contra o mal. Esta, que é a chave-mestra dessa forma de representação, é também o eixo estruturante do cinema comercial dominante, das telenovelas e até dos telejornais atuais; uma espécie de espelho pedagógico das relações sociais do “Novo Mundo”.

Nesse sentido, aprofundar investigações sobre essa linguagem fundada nesse modo de (re)presentação pode nos ajudar a entender, por exemplo, porque a escravidão ou o genocídio de negros e indígenas, ou mesmo a mulher e homossexuais, entre outras minorias, ganham existência de um modo e não de outro nos filmes, séries etc. ou, em outras palavras, só ganham existência quando enquadrados nessa estrutura (melodramática/cinematográfica/social) que distingue e nomeia hierarquicamente pessoas e coisas entre o que é “do bem” e o que é “do mal”, e também entre outros códigos dualistas, tais como ocidental-oriental, primitivo-civilizado, mítico-científico, tradicional-moderno.

Uma outra linha de força que se conecta na rede do mapa que buscamos traçar pode ser vista no estudo realizado por hooks (2019) sobre a representação da mulher negra no cinema. Nele é possível constatar que mesmo diante do aparecimento de atrizes negras no cinema dominante – como é o caso de Lena Horne – grande parte dos espectadores brancos não se dava conta de que eram mulheres negras, a menos que o filme fosse classificado com tal. De acordo com a autora, “a obsessão de transformar mulheres brancas em estrelas de filmes ultrabrancas era claramente uma prática cinematográfica que buscava manter uma distância, uma separação entre aquela imagem e a Outra negra; era uma forma de perpetuar a supremacia branca” (hooks, 2019, p. 222). Essa é uma distinção que também pode ser observada em boa parte da trajetória da telenovela brasileira, um dos conteúdos de maior audiência na televisão aberta do país17.

Pensando na moçada que se encontra atualmente nas escolas e na experiência que esse grupo vive no âmbito da formação audiovisual, não faz sentido pensar com eles e elas um cinema desdobrado dos clássicos (linguagem e filmes). Não se trata de negar acesso a esse tipo de cinema, mas antes considerar o que pode esse grupo frente a potência heterárquica que habita a produção de imagem e som na atualidade, seja para o bem ou para o mal (visto o preocupante avanço com as chamadas deepfakes etc.).

Na esfera “do bem” – após mais de duas décadas de contato entre as camadas populares e as tecnologias digitais de produção, edição e circulação de imagens –, não é arriscado supor que os filmes que se destacam atualmente como um cinema eminentemente inventivo sejam produções realizadas justamente por grupos que não assimilaram os valores do ensino da “linguagem cinematográfica clássica” em suas formações, mas tomaram posição diante dela.

Nesse contexto, destaca-se o desenvolvimento da chamada “pedagogia dos dispositivos”, prática que vem sendo amplamente difundida nas oficinas de cinema e educação dos últimos tempos18. O uso dos dispositivos (cinematográficos) produz imagens que emergem de acontecimentos, em vez de atender a previsibilidades impostas por roteiros: são imagens-acontecimento, livres da necessidade de representações. Dispositivos “são formas frágeis, que não garantem a existência de um filme nem a sua qualidade, mas é um começo, o único possível” (Lins, 2004, p. 102). A noção de dispositivo pode, assim, ser compreendida como:

um procedimento produtor, ativo, criador – de realidades, imagens, mundos, sensações, percepções que não pré-existiam a ele. … Não é, em absoluto, algo que se dá em todo filme de forma semelhante, estrutural ao cinema como um todo, mas criado a cada obra, imanente, contingente às circunstâncias de filmagem, e submetido às pressões do real

(Lins, 2007).

Retomando a minha trajetória como educador e profissional do audiovisual, vale lembrar que eu não tive formação regular em cinema. Trago experiências de uma graduação em Comunicação Social e do trabalho com filmes documentários19. Isso significa dizer que a minha “formação em cinema” – essa que me autorizou a dar oficinas – nunca passou por aulas formais sobre linguagem cinematográfica clássica. Talvez por isso o “produto” exigido como conclusão das oficinas que ministrei tenha me provocado tantas suspeitas: aquilo que se apresentava como uma “falha” na minha formação retorna agora como uma tomada de posição (pedagógica) em minhas práticas.

Como dito, é possível notar nos últimos dez anos a propagação de um conjunto significativo de filmes e oficinas de cinema no campo de ação de algumas formas resistência – práticas que não se afirmam propriamente como decoloniais, mas se mostram dotadas de uma certa decolonialidade, no sentido da mudança de perspectiva e de atitude que assumem quando criam espaços para a produção do sensível em lugar de uma aceitação passiva do modelo canônico-cinéfilo. Embora isso venha ocorrendo em boa parte fora da escola, ela não deixa de estar presente nesse processo, visto que o grupo social que produz essas formas de resistência (fora da escola) é semelhante ao que, em alguma medida, se encontra dentro dela, conforme vimos na outra seção. Nesses filmes e oficinas, o enfrentamento da linguagem tem se convertido em recurso para expressar a vida que se acha em constante ameaça nos territórios: zonas (de não-ser?) em que moradores-estudantes, apropriados das tecnologias de filmagem, tornaram-se cineastas e, de certo modo, aquilombados, fundaram coletivos que produzem filmes. Os filmes Branco sai, preto fica (2015), de Adirley Queirós, e Baronesa (2017), de Juliana Antunes, podem ser tomados como exemplos disso.

A recusa, nesses casos, parece ser o princípio da ação; uma forma opositiva de olhar a representação dessas realidades nas imagens dominantes e, a partir dessa insatisfação, inventar formas cada vez mais sensíveis de atravessar o real (e por ele ser atravessado). Entendidas como formas de resistência, essas novas propostas estéticas, provocadas por realidades ancoradas no presente, reforçam uma perspectiva heterárquica de pensamento, noção utilizada pelo grupo da rede modernidade/colonialidade. As heterarquias são tentativas de conceituar as estruturas sociais com uma “nova linguagem” que vai além daquela imposta pelo paradigma eurocêntrico.

A velha linguagem serve a sistemas fechados, pois tem uma lógica única que determina tudo o mais a partir de uma hierarquia única de poder. Necessitamos de uma linguagem capaz de pensar os sistemas de poder como uma série de dispositivos heterônomos vinculados em rede. As heterarquias são estruturas complexas nas quais não existe um nível básico que domina os outros, mas todos os níveis exercem um grau de influência mútua ... em uma heterarquia, a integração dos elementos disfuncionais ao sistema jamais é completa, como na hierarquia … existem processos complexos, heterogêneos e múltiplos, com diferentes temporalidades

(Castro-Gómez & Grosfoguel, 2007, p. 18, tradução própria)20.

Seguindo pistas desse pensamento – heterárquico e também heterotópico – interessa pensar as linhas de força que entram em conexão como regra do jogo dando existência a esses movimentos de invenção, resistência e criação, frente a formas prontas e a modelos de subalternização epistêmicos. Interessa pensar também os agenciamentos que se depreendem desses movimentos em direção ao sistema-mundo: experiências afastadas da linguagem (dominante), tal como dito por Fanon (2008), a fim de que outros mundos – apartados dos mundos que essa linguagem expressa, insiste e reproduz – sejam habitados.

Assim, antes de finalizar, vale reafirmar que nosso posicionamento não se endereça contra o ensino da “linguagem cinematográfica clássica” – essa que se constitui no início do século XX e, de certo modo, permanece até os dias atuais como composição formal do cinema dominante. Afinal, ela nos deu a ver filmes extraordinários. Muitos deles, inclusive, apropriados dessa linguagem, politizaram as relações “do olhar” nos ensinando a “olhar de um certo modo [opositor] como forma de resistência” ao sistema de representação do cinema dominante (hooks, 2019, p. 217). Nosso posicionamento, objetivamente, se endereça contra a naturalização com a qual esse elemento do fazer cinematográfico tende a ser adotado nas práticas de cinema com professoras e estudantes, e contra as formas de representação que ele invoca, e todas as performances que autoriza durante uma “filmagem”. Nessa direção, colocamos sob interrogação não só o ensino da linguagem clássica do cinema (como algo que reforça visões eurocentradas de mundo), mas todas as práticas naturalizadas no processo de trabalho com cinema nas escolas, tais como a reprodução das formas hierárquicas na distribuição das equipes, a compartimentalização do trabalho, as premiações por competição, a valorização da ideia de “talento” (diretor, autor, ator etc.) – demandas que, por princípio, atendem a um processo artístico-industrial e não educacional.

Considerações finais

Neste ensaio refletimos práticas da interface Cinema-Educação frente ao pensamento desenvolvido pela rede modernidade/colonialidade. Partimos da nossa própria experiência no campo audiovisual, junto a professoras e estudantes da educação básica, para problematizar uma certa naturalização e uma certa suspeita, ocorridas ao mesmo tempo, em relação ao ensino recorrente da “linguagem cinematográfica clássica”, requerido em boa parte das oficinas de cinema realizadas a partir dos anos 2000. Por que insistir na transmissão de um saber pronto em vez de tomar o filme como local de trabalho? – retomando aqui uma expressão de Anita Leandro (2001). Mobilizados por questões como esta, avançamos com o estudo buscando pensar essa insatisfação pedagógica, entender esse processo e promover uma autoatualização das nossas práticas.

Com o traçado do mapa que emerge desse processo, uma compreensão essencial ganhou força em nossa pesquisa. Ao problematizar a lógica de um ensino voltado à aprendizagem de modelos preexistentes (a linguagem consolidada do cinema, por exemplo) junto à lógica de uma aprendizagem inventiva, revelou-se uma distinção importante que situou este estudo diante de duas vertentes no campo no conhecimento: a política da representação e a política da invenção (Kastrup et al., 2008).

Nessa direção, o contato com o pensamento desenvolvido pela rede modernidade/colonialidade foi esclarecedor (diríamos, de “efeito libertador”) ao expor a violência e os apagamentos que a centralidade atribuída a certos conhecimentos e metodologias pode exercer sobre os saberes de outros povos. Com base nesse referencial, o elemento específico das oficinas de cinema tomado para a análise neste estudo – a “linguagem cinematográfica clássica” –, revelou-se não mais como um elemento (problemático), mas como apenas um dentre os muitos que naturalizamos em nossas práticas – e que por certo não são os mais estimulantes e nem mesmo os mais convenientes para enfrentar os desafios colocados pelo pensamento decolonial. O que fica então é a seguinte pergunta: que outras escolhas dessa mesma ordem assumimos como naturais em nossas práticas?

Considerando que o mais interessante não é propriamente responder a questão colocada, mas pensar com ela, diríamos que essa pergunta, minimamente, nos convoca a jogar um outro jogo, cujas regras situam a “invenção” no centro do processo de aprendizagem. Diríamos ainda que ela nos anima ao exercício de uma mudança na qualidade da atenção e dos agenciamentos pedagógicos, permitindo que outras cosmovivências, histórias e cinemas se manifestem em nossas práticas.

  • 1
    Em certo sentido, pode-se dizer que o cinema, em seu início, não era dotado de linguagem, apenas reproduzia o real. Embora seja controverso o reconhecimento de D. W. Griffith como “pai fundador” do cinema tal como conhecemos até hoje, é a partir do trabalho desse cineasta americano, com os filmes Nascimento de uma nação (1915) e Intolerância (1916), que se tem marcado “o fim do cinema primitivo e o início da maturidade lingüística”. Jean-Claude Bernardet (2006) diz que foi nos filmes desse cineasta que as variadas formas que ele e outros cineastas vinham intuitivamente pesquisando se organizaram em um sistema, dando forma ao que se pode chamar linguagem cinematográfica clássica: “Foi feita, por exemplo, uma espécie de codificação dos planos, partindo do mais aberto, aquele que apresenta uma maior porção de espaço, ao mais fechado. As escalas dos planos têm inúmeras variantes, mas correspondem em geral ao seguinte: o Plano Geral (PG) mostra um grande espaço no qual os personagens não podem ser identificados; o Plano de Conjunto (PC) mostra um grupo de personagens, reconhecíveis, num ambiente; o Plano Médio (PM) enquadra os personagens em pé com uma pequena faixa de espaço acima da cabeça e embaixo dos pés; o Plano Americano (PA) corta os personagens na altura da cintura ou da coxa; o Primeiro Plano (PP) corta no busto; o Primeiríssimo Plano (PPP) mostra só o rosto; o Plano de Detalhe mostra uma parte do corpo que não a cara ou um objeto”(Bernardet, 2006, p. 37).
  • 2
    De acordo com Mota Neto (2016), programa de investigação da modernidade/colonialidade latino-americano foi o nome inicialmente utilizado pelos autores que se reúnem em torno de uma crítica às visões eurocentradas da modernidade. Posteriormente foi chamado de grupo modernidade/colonialidade, coletividade de argumentação da inflexão decolonial e mais recentemente rede modernidade/colonialidade, nome que doravante será usado neste ensaio.
  • 3
    Metá (para além) + hódos (caminho, direção).
  • 4
    Uma vasta bibliografia encontra-se acessível acerca da criação e do desenvolvimento do INCE, bem como sobre o contexto político no qual o referido instituto ganha existência no Brasil. Para além do senso comum que restringe ao INCE à função prioritária de difundir a ideologia nacionalista do Governo de Getúlio Vargas, sua missão pedagógica de auxiliar o ensino por meio da divulgação científica pode ser compreendida de forma mais diversa e complexa quando se observa, por exemplo, o trabalho do cineasta Humberto Mauro, que realizou 357 filmes na instituição (Schvarzman, 2004). Em relação a essa bibliografia, recomendamos o levantamento realizado pelo site Mnemocine, assim como as publicações de Almeida (1931), Schvarzman (2004) e Morettin (2013).
  • 5
    Trata-se de uma evolução tecnológica que compreende a utilização de gravador magnético portátil em sincronismo com a câmera, a partir de 1959. Tal avanço fomentou uma concepção tecnicista que atribuía aos novos equipamentos o poder “redentor de captar a realidade”. Para mais detalhes, ver Da-Rin (2006).
  • 6
    Tudo o que está fora do enquadramento da câmera é geralmente conhecido como extracampo. De forma mais radical, o antecampo se refere ao que está atrás da câmera, espaço geralmente habitado pelo diretor e equipe de filmagem. O antecampo ressalta uma espécie de inversão do lugar do “outro” na relação entre quem filma e quem é filmado. Ver: Brasil (2013) ou Aumont (2004).
  • 7
    Convergência digital é a integração de tecnologias e serviços de comunicação, tais como computação, telefonia, celular, rádio, televisão, internet etc., que compartilham um mesmo meio (a internet) em um único dispositivo que pode ser um telefone celular, um tablet ou outros.
  • 8
    A consolidação de um campo convergente entre teorias do cinema e da educação pode ser vista no aumento significativo de teses, dissertações, artigos e outras publicações voltadas para essa área, bem como no surgimento de núcleos de estudos em cinema e educação em várias regiões do país, entre os quais destacam-se a criação, em 2014, do Seminário Temático da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), e a Rede Latino Americana de Educação, Cinema e Audiovisual (Rede Kino), criada em 2009.
  • 9
    Os termos “decolonial” e “decolonialidade” têm origem nas línguas espanhola e inglesa. Uma tradução possível para o português seria “descolonial” e “descolonialidade”. A fim de preservar o sentido do que vem sendo chamado de pensamento, giro, prática ou inflexão decoloniais, optamos por manter os termos tal como utilizados em suas línguas de origem, evitando possíveis confusões sobre a ideia de “descolonialidade” como processo que põe fim ao colonialismo no âmbito jurídico e político dos países antes dependentes de suas antigas metrópoles.
  • 10
    Para um aprofundamento da relação entre o trabalho desenvolvido por esse conjunto de autores e a obra de Fanon, recomendamos o estudo recentemente publicado por David Lehmann (2022), o qual, a partir de uma cuidadosa e divergente análise, evidencia que a realidade apresentada pelos teóricos do decolonialismo pode estar baseada em dicotomias e binarismos equivocados. Ao escrever sobre Fanon, o autor ressalta que: (tradução nossa) “é particularmente importante demonstrar o seu compromisso universalista porque ele é frequentemente invocado em apoio a uma espécie de reducionismo racial” (p. 19); “A última coisa que Fanon deveria ser é um guru ou uma figura de culto porque sua vida teve muitas facetas, especialmente dada a sua brevidade, e sua escrita teve a honestidade de quem sofre e testemunha o sofrimento dos outros” (p. 34). Em alguma medida, o que o estudo busca mostrar é “o que o decolonial poderia ser se estivesse enraizado na experiência daqueles em cujo nome afirma falar” (p. 42).
  • 11
    No original: “ El colonialismo refiere al proceso y los aparatos de dominio político y militar que se despliegan para garantizar la explotación del trabajo y las riquezas de las colonias en beneficio del colonizador … La colonialidad es un fenómeno histórico mucho más complejo que se extiende hasta nuestro presente y se refiere a un patrón de poder que opera a través de la naturalización de jerarquías territoriales, raciales, culturales y epistémicas, posibilitando la re-producción de relaciones de dominación”.
  • 12
    Segundo Juarez Dayrell (2007, p. 1126), dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2001 mostram que “entre 1995 e 2001, por exemplo, o número total de estudantes entre 15 e 24 anos passou de 11,7 para 16,2 milhões. Neste mesmo período, o ensino médio registrou um aumento de 3 milhões de matrículas, significando um crescimento relativo de 65,1%”.
  • 13
    Entre as referidas iniciativas, destaca-se a criação da Lei nº 13.006/2014, proposta pelo Senador Cristovam Buarque, que estabelece a exibição de filmes de produção nacional como componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica das escolas, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, duas horas mensais (Lei nº13.006/2014, de 26 de junho de 2014, 2014). Nesse contexto, vale ressaltar os esforços em curso desenvolvidos pela Rede KINO – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual, para atualizar e ampliar a proposta de regulamentação dessa lei por meio de consultas públicas realizadas para a elaboração do Programa Nacional de Cinema na Escola (Carta de Ouro Preto, 2024).
  • 14
    Somos cientes da diversidade de oficinas realizadas nas últimas décadas e do nosso não conhecimento sobre todas elas, de forma que não se pode afirmar que todos os projetos conjugam as mesmas características aqui descritas. Contudo, para além da experiência aqui relatada, pode-se dizer que a presença de orientações voltadas à realização de filmes que contam histórias era uma prática comum nas oficinas do período mencionado. Mais detalhes podem ser encontrados na tese desenvolvida por Cirello (2010). A autora faz um mapeamento da experiência de oficinas de cinema realizadas no Brasil entre os anos de 1990 e 2009.
  • 15
    Com Kastrup, é possível fazer uma distinção cuidadosa entre os termos “criatividade” e “criação”. A noção de criatividade se difere da noção de criação porque a criatividade é considerada uma dimensão da inteligência, ou seja, a criatividade é entendida como um processo de solução de problemas, enquanto a criação inclui a “invenção de problemas”. A autora também se refere ao conceito de “inovação”, traduzido em muitos discursos educacionais como invenção: a inovação se difere da invenção precisamente porque a inovação “está voltada para o produto e não para o processo” (Cinead Lecav, 2019).
  • 16
  • 17
    A trajetória do negro na telenovela brasileira pode ser acompanhada de 1963 a 1997 no filme documentário A Negação do Brasil, de Joel Zito (2000). Para assistir, acesse: https://drive.google.com/file/d/1NLmtLptkyu-pbVa6FMGdzUtX2k-8Ucs1/view?usp=drive_link.
  • 18
    Tal pedagogia foi sistematizada e proposta pelo programa Inventar com a Diferença – cinema, educação e direitos humanos, iniciado em 2013 pelo Laboratório Kumã, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e contribuições de grupos de pesquisa como o CINEAD/LECAV, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A proposta consiste em procedimentos simples, cuja principal característica centra-se na ideia de que o ensino de cinema e audiovisual nas escolas pode ocorrer de maneira democrática, dispensando, necessariamente, equipamentos e conhecimentos prévios técnico ou da linguagem. Para conhecer a Pedagogia dos Dispositivos, ver Migliorin et al. (2016).
  • 19
    Comecei no cinema trabalhando na equipe do filme Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho: um filme essencialmente fragmentado e descentralizado em relação à figura do “diretor-autor”; um projeto que foi rejeitado em um edital de financiamento justamente por não se inscrever no domínio das linguagens previsíveis; uma experiência que apresenta, nas palavras de Consuelo Lins (2004), uma “concepção instável e aberta, que se amplia, modifica e reorganiza no contato com o mundo” (p. 126).
  • 20
    No original: “El viejo lenguaje es para sistemas cerrados, pues tiene una lógica única que determina todo lo demás desde una sola jerarquía de poder. Por el contrario, necesitamos un lenguaje capaz de pensar los sistemas de poder como una serie de dispositivos heterónomos vinculados en red. Las heterarquías son estructuras comple- jas en las que no existe un nivel básico que gobierna sobre los demás, sino que todos los niveles ejercen algún grado de influencia mutua … En una heterarquía, la integración de los elementos disfuncionales al sistema jamás es completa, como en la jerarquía …existen procesos complejos, heterogéneos y múltiples, con diferentes temporalidades”.
  • Apoio e financiamento:
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/150999/2023-2
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ/Nº: SEI-260003/014892/2023.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2024
  • Revisado
    30 Ago 2024
  • Aceito
    03 Out 2024
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