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Contribuições do encontro entre o psicodrama e a dança criativa de Rudolf Laban

Contributions of the encounter between psychodrama and Rudolf Laban’s creative dance

Aportes del encuentro entre el psicodrama y la danza creativa de Rudolf Laban

RESUMO

Neste artigo, explana-se a interface entre o psicodrama e a dança criativa de Rudolf Laban, com o objetivo de revitalizar os recursos psicodramáticos utilizados para aquecimento corporal no contexto terapêutico. A pesquisa apresenta o trabalho desenvolvido com a dança criativa por meio da articulação entre o psicodrama e o estudo da arte do movimento de Laban. Este estudo de caso, qualitativo e de autorrelatos, combina revisão de literatura e diários de campo para analisar a sinergia entre essas duas abordagens. Os resultados mostram que a integração do psicodrama com a dança criativa fortalece a conexão entre mente, corpo e movimento, enriquecendo a prática terapêutica. Por fim, destaca-se a importância da contínua integração entre a psicologia e o estudo do corpo e do movimento, propondo a construção de uma psicologia do movimento.

PALAVRAS-CHAVE
Criatividade; Dança; Psicodrama; Psicologia do movimento

ABSTRACT

This article brings the interface between psychodrama and Rudolf Laban’s creative dance, with the aim of revitalizing the psychodramatic resources used to warm up the body in the therapeutic context. The research presents the work developed with creative dance, through the articulation between psychodrama and the study of Laban’s art of movement. This qualitative and self-report case study combines literature review and field diaries to analyze the synergy between these two approaches. The results show that the integration of psychodrama and creative dance strengthens the connection between mind, body and movement, enriching therapeutic practice. Finally, the importance of continuous integration between psychology and the study of the body and movement is highlighted, proposing the construction of a psychology of movement.

KEYWORDS
Creativity; Dance; Psychodrama; Human development

RESUMEN

Este artículo presenta la interfaz entre el Psicodrama y la Danza Creativa de Rudolf Laban, con el objetivo de revitalizar los recursos psicodramáticos utilizados para calentar el cuerpo en el contexto terapéutico. La investigación presenta el trabajo desarrollado con Danza Creativa, a través de la articulación entre el psicodrama y el estudio del arte del movimiento de Laban. Este estudio de caso cualitativo, autoinforme, combina revisión de la literatura y diarios de campo para analizar la sinergia entre estos dos enfoques. Los resultados muestran que la integración del Psicodrama con la Danza Creativa fortalece la conexión entre mente, cuerpo y movimiento, enriqueciendo la práctica terapéutica. Finalmente, se destaca la importancia de la integración continua entre la psicología y el estudio del cuerpo y el movimiento, proponiendo la construcción de una Psicología del Movimiento.

PALABRAS CLAVE
Creatividad; Danza; Psicodrama; Desarrollo humano

INTRODUÇÃO

Neste artigo são investigadas as contribuições da interface entre o psicodrama e a dança criativa de Rudolf Laban, visando oxigenar e revitalizar os recursos psicodramáticos utilizados para ativação e aquecimento corporal no contexto terapêutico. Além disso, detalha-se o trabalho desenvolvido com a dança criativa por meio da articulação entre as duas abordagens: o psicodrama e o estudo da arte do movimento de Rudolf Laban.

Para tanto, em um primeiro momento é apresentado o legado de Laban, reconhecido como o mais importante teórico do movimento, cuja abordagem tem potencial significativo para complementar e aprimorar as práticas terapêuticas, especialmente aquelas que reconhecem o corpo, o movimento e a ação como componentes essenciais do processo terapêutico.

O objetivo em questão é contribuir com o enriquecimento do repertório de psicólogos e psicodramatistas no que diz respeito às relações entre mente, corpo e movimento, tanto para aqueles que querem utilizar a dança como ferramenta de intervenção terapêutica como para aqueles que querem ampliar e incorporar novos olhares e técnicas de ativação corporal no cotidiano de suas práticas.

Com base na premissa de que o “vínculo mente/corpo é indissociável” (Carriço, 2020Carriço, P. (2020). A dança da mente: workshop psicodramático. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(1), 65-70. https://doi.org/10.15329/2318-0498.18413
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, p. 66), o desafio deste artigo está em propor novas representações psicodramáticas dessa relação, por meio do diálogo entre o psicodrama e a dança criativa, do qual emerge uma poderosa sinergia, capaz de catalisar transformações profundas, tanto a nível grupal quanto individual.

Por isso, ao examinar como Laban compreende e trabalha o corpo, busca-se oferecer insights valiosos para o campo da psicologia, principalmente para o psicodrama, destacando a importância das temáticas de movimento labanianas como ferramentas fundamentais na jornada de autoconhecimento e transformação pessoal.

Essa integração do psicodrama com o estudo da arte do movimento de Rudolf Laban ocorre pela ótica psicossomática1 1 O termo psicossomática – do grego psyche = alma e soma = corpo –, que vem sendo usado pela medicina e pela psicologia ainda de forma confusa, com várias significações, mas sem dúvida propondo uma integração, retorna, e assim possibilita, tanto para a ciência como para os seres humanos, o resgate de sua consciência espiritual, na medida em que integra corpo e alma como uma unidade indivisível anatômica e fisiologicamente, tornando-os assim responsáveis e co-participantes na coordenação dessa essência, essa força dinâmica e energética que tanto pode nos levar a adoecer como nos curar (Freire, 2000, p. 15). , pois, embora o psicodrama não seja tradicionalmente categorizado como uma forma de psicoterapia corporal, como as abordagens reichianas2 2 Wilhelm Reich (1897–1957) foi um dos primeiros terapeutas a colocar em questão a segregação entre corpo e mente, reconhecendo que sintomas neuróticos se relacionavam a alguns aspectos físicos. Considerado o pai da psicoterapia corporal, Reich inaugurou um modo de fazer terapia, focalizando o manejo do corpo como intervenção terapêutica e deslocando a atenção da palavra para o corpo do paciente (Brito et al., 2021). e pós-reichianas, ele reconhece a importância singular do corpo, enfatizando seu papel essencial na eficácia terapêutica (Carezzato, 2008Carezzato, M. C. (2008). O lugar do corpo no psicodrama. In IV Congresso Sul Mineiro de Medicina Psicossomática. Mesa-redonda O Corpo em Diferentes Escolas Psicoterápicas. Instituto Sedes Sapientiae, Departamento de Psicodrama. Recuperado de https://sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/O_Lugar_corpo_Psicodrama.pdf
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).

Como corrobora Naffah Neto (1980)Naffah Neto, A. (1980). Psicodramatizar: ensaios. Ágora., um dos princípios fundamentais do psicodrama é que a transformação da existência ocorre pela exploração do drama. Que acontece onde? No corpo. Por isso, o autor ressalta que o fundamento existencial do drama é o corpo, ou seja, o corpo e o movimento como forma de linguagem expressiva e manifestação motora do cotidiano (Fernandes, 2006Fernandes, C. (2006). O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. Annablume.).

Nesse contexto, a conexão entre o psicodrama e a trajetória de Laban surge como um convite para explorar o movimento como veículo de expressão, comunicação, interação e autoconhecimento. Com base no princípio de que o corpo é o principal elo que une o sujeito e o mundo, um corpo investido de afetos que nos representa perante o outro é um corpo que representa o que vivemos e o que somos (Dogan, 2010 apud Carriço, 2020Carriço, P. (2020). A dança da mente: workshop psicodramático. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(1), 65-70. https://doi.org/10.15329/2318-0498.18413
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, p. 67).

Esta é a motivação principal da presente investigação: contribuir para que a psicologia continue expandindo o olhar sobre a importância da integração corpo e mente, para que a sociedade possa ter uma relação mais íntima com o corpo, “um corpo mais expressivo, um corpo mais prazeroso” (Petrella, 2006Petrella, P. (2006). Sobre os novos conceitos de espaço e tempo. In M. Mommensohn & P. Petrella (Eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 203-210). Summus., p. 11).

O intuito deste artigo coloca-se, assim, em apresentar os efeitos da aproximação do psicodrama com a dança criativa, uma vivência corporal que resulta em uma dinâmica prazerosa capaz de estimular qualquer pessoa que queira transitar de maneira mais efetiva entre seu mundo interno e seu mundo externo, a fim de desenvolver a autoexpressão e a habilidade de pensar em termos de movimento.

METODOLOGIA

Para fundamentar metodologicamente esta investigação, foi realizado um estudo de caso único, com autorrelato, de natureza qualitativa, alicerçado em uma revisão de periódicos e livros de autores reconhecidos tanto no campo da psicologia, mais especificamente do psicodrama, quanto no campo do movimento, com destaque à teoria labaniana.

Além disso, para ilustrar a experiência, são trazidas vivências práticas do trabalho que tenho desenvolvido com dança criativa desde agosto de 2019, quando foi realizada uma primeira oficina como campo de pesquisa. Tais pressupostos metodológicos são apresentados em Marra (2023)Marra, M. M. (2023). Sociodrama dialógico: um estudo preliminar? Um ensaio teórico? Revista Brasileira de Psicodrama, 31, e0523. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.637
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, que relaciona a coleta de dados à experiência pessoal profissional da autora e às vivências da dança criativa por meio das seguintes etapas:

  • Reflexão sobre a própria prática como psicodramatista e especialista no estudo do movimento, destacando situações específicas em que se utilizaram tanto o sociodrama, o psicodrama e as diversas técnicas psicodramáticas quanto o vasto repertório das temáticas labanianas;

  • Coleta de dados qualitativos por meio de diários de campo, nos quais foram registradas observações e reflexões após a realização do trabalho com os grupos.

Conforme sugerido por Marra (2023)Marra, M. M. (2023). Sociodrama dialógico: um estudo preliminar? Um ensaio teórico? Revista Brasileira de Psicodrama, 31, e0523. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.637
https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.6...
, a análise dos dados coletados na literatura envolveu a síntese das principais contribuições dos autores mencionados a fim de identificar tendências e pontos de convergência entre as teorias estudadas. Assim, foi possível conduzir a análise qualitativa dos dados da experiência pessoal com a dança criativa por meio da análise de conteúdo, identificando padrões emergentes relacionados à aplicação das teorias estudadas no contexto das vivências com os grupos.

Na sequência, os resultados obtidos foram sintetizados, tanto da literatura quanto da análise dos dados pessoais, para proporcionar uma visão ampla das interconexões entre o psicodrama, a dança criativa e o estudo da arte do movimento de Rudolf Laban. Ao sintetizar e discutir os resultados dessa análise no decorrer deste artigo, é oferecida uma visão abrangente das interconexões entre as duas abordagens, ressaltando como elas podem ser integradas de forma eficaz para enriquecer a prática terapêutica.

Para orientar a exploração dessas temáticas, o artigo tem a seguinte estrutura: no primeiro momento são apresentados o psicodrama e sua interação com a corporeidade. Em seguida, o estudo da arte do movimento de Laban é colocado na sua relação com o psicodrama. Nessa seção, são examinados os efeitos da integração entre as duas abordagens. Por fim, é compartilhada a dinâmica desenvolvida com a dança criativa mediante a experiência profissional com essas duas abordagens, culminando, nas considerações finais, nos destaques sobre a importância da contínua integração entre a psicologia e o estudo do corpo e do movimento para o aprimoramento das práticas terapêuticas e do conhecimento científico.

PSICODRAMA E CORPOREIDADE

Essa jornada começa com o reconhecimento do psicodrama como uma abordagem que navega entre a ciência e a arte, explorando verdades existenciais pela ação, uma visão arquitetada por Jacob Levy Moreno (1889–1974), que, além de médico, foi profundamente envolvido com as questões sociais e a arte (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.).

De acordo com Nery (2018)Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminhos das relações humanas. Ágora., no psicodrama, além das dimensões psíquicas, as dimensões corporais e relacionais presentes nos vínculos terapêuticos também são incluídas como cerne do processo psicodramático. Para a autora, o psicodrama “é ação da mente e da interpsique. É a busca da verdade presente no desempenho de papéis e nos elementos do vínculo: corpo, percepção, afetividade, cognição e comunicação” (Nery, 2018Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminhos das relações humanas. Ágora., p. 195).

Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., citado por Nery (2018)Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminhos das relações humanas. Ágora., argumenta que o desenvolvimento da psiquê é “a-semântico” e pré-semântico, ressaltando que a ação tanto antecede quanto incorpora a palavra. Foi com base nessa estruturação que Moreno criou um método que traz a ação humana como centralidade da intervenção. Trata-se da busca da fala integrada às dimensões corporal, afetiva, cognitiva e relacional, “uma espécie de genealogia e de arqueologia da alma” (Nery, 2018Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminhos das relações humanas. Ágora., p. 195).

Esse mergulho nas raízes do psicodrama nos leva à sua essência: a capacidade de cada indivíduo ser autor e ator do seu próprio drama, como expresso por Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix.. Nas palavras do autor: “Cada homem é o melhor agente para retratar-se a si mesmo e para dramatizar sua situação vital” (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., p. 333).

Por isso, ao considerarmos que a corporeidade é construída tanto ao nível psicológico quanto social e biológico e que a pessoa se expressa no mundo por meio do seu próprio corpo, torna-se essencial compreender como esse corpo foi gradualmente moldado e acabou por reprimir a expressão espontânea de sua verdade (Freire, 2000Freire, C. F. (2000). O corpo reflete seu drama: somatodrama como abordagem psicossomática. Ágora.). Em suma, como aliança Naffah Neto (1980)Naffah Neto, A. (1980). Psicodramatizar: ensaios. Ágora., é necessário buscar uma corporeidade autêntica, que reflita a singularidade do indivíduo, e não apenas as expectativas impostas pela sociedade.

A proposta da revolução criadora de Moreno busca resgatar a espontaneidade e a criatividade, que frequentemente se perdem no cotidiano, promovendo ruptura com os padrões de comportamento muitas vezes estereotipados, com valores e formas de participação na vida social que tendem a reduzir os indivíduos a meras peças e engrenagens, resultando na automatização do ser humano (Gonçalves et al., 1988Gonçalves, C., Wollf, J., & Almeida, W. (1988). Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de J. L. Moreno. Ágora.), o que acontece tanto mental como corporalmente.

Nesse sentido, o psicodrama tem contribuição valiosa: a ênfase na importância da espontaneidade como esforço para resgatar uma presença que potencializa o corpo em movimento (Vieira, 2017Vieira, E. D. (2017). O psicodrama e a pós-modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 59-67. Recuperado de https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/164
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). De acordo com Carezzato (2008)Carezzato, M. C. (2008). O lugar do corpo no psicodrama. In IV Congresso Sul Mineiro de Medicina Psicossomática. Mesa-redonda O Corpo em Diferentes Escolas Psicoterápicas. Instituto Sedes Sapientiae, Departamento de Psicodrama. Recuperado de https://sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/O_Lugar_corpo_Psicodrama.pdf
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, considerando que a espontaneidade é um estado mental, o corpo desempenha papel significativo em sua manifestação inicial, e o processo de aquecimento é o estágio preliminar necessário para que o organismo seja capaz de executar a ação espontânea. O autor deixa claro que “a espontaneidade depende de uma interação corporal e ocorre na relação” (Carezzato, 2008Carezzato, M. C. (2008). O lugar do corpo no psicodrama. In IV Congresso Sul Mineiro de Medicina Psicossomática. Mesa-redonda O Corpo em Diferentes Escolas Psicoterápicas. Instituto Sedes Sapientiae, Departamento de Psicodrama. Recuperado de https://sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/O_Lugar_corpo_Psicodrama.pdf
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, p. 2).

Assim, a espontaneidade é entendida como a presença transformadora de um “corpo consciente, que percebe a realidade em ação e numa relação de unidade com o mundo” (Vieira, 2017Vieira, E. D. (2017). O psicodrama e a pós-modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 59-67. Recuperado de https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/164
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, p. 65), buscando não apenas compreender a realidade em todas as suas nuanças, mas também transformar ativamente o contexto em que estamos inseridos. Essa “percepção é a abertura do corpo, do aspecto sensório motor, que amplia os horizontes e busca apreender a realidade em sua multiplicidade” (Vieira, 2017Vieira, E. D. (2017). O psicodrama e a pós-modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 59-67. Recuperado de https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/164
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, p. 65).

De acordo com Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., o agente da improvisação encontra seu ponto de partida em si mesmo, no “estado” de espontaneidade, que não é um estado permanente, e sim fluente, de uma fluência rítmica com altos e baixos. Para isso, o psicodrama pretende recuperar as forças vitais por meio do resgate do “potencial afetivo das relações e da presença ativa de cada um” (Merengué, 2010 apud Vieira, 2016Vieira, E. D. (2017). O psicodrama e a pós-modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 59-67. Recuperado de https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/164
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, p. 65). Portanto:

O fenômeno da espontaneidade tem efeitos no corpo. A energia vital criada durante a vigência do ato espontâneo pode alterar o estado mente/corpo. A espontaneidade é o fator que anima os fenômenos mentais de forma que se apresentem viçosos, novos e flexíveis. Esse intenso sentimento de novidade parece resultar da reestruturação cognitiva. O ator/pensador substitui as soluções conhecidas por possibilidades comportamentais recém conhecidas. A espontaneidade encontra-se na fonte dessa transição

(Karp, 1994Karp, M. (1994). O rio da liberdade. In P. Holmes, M. Karp, & M. Watson (eds.). Psicodrama após Moreno: inovações na teoria e na prática (pp. 61-87). Ágora., p. 84).

É com a experiência vivida que esses estados inconscientes, revelados e vividos no encontro terapêutico, podem lançar o indivíduo a uma nova possibilidade de romper o que foi determinado. Uma nova experiência vivencial traz uma abertura que produz mudança e crescimento de forma espontânea e criativa. É a revelação do novo, do nunca vivido, um ato de nascimento em que a pessoa expressa sua obra de forma visível, audível e tangível (Freire, 2000Freire, C. F. (2000). O corpo reflete seu drama: somatodrama como abordagem psicossomática. Ágora.).

Por essa razão, a ativação e o envolvimento do corpo e do movimento nas práticas terapêuticas desempenham papel crucial, permitindo-nos acessar as camadas mais profundas da experiência humana. Enquanto a mente tende a ficar na racionalização e na superfície, o corpo carrega consigo todos os registros das nossas vivências, testemunhando cada momento da nossa existência. Assim, ao movê-lo, acendemos essa conexão com nossas experiências, permitindo-nos explorar os lugares mais profundos da nossa alma.

O ENCONTRO: PSICODRAMA E A ARTE DO MOVIMENTO DE RUDOLF LABAN

Considerando que a escolha pelo psicodrama como abordagem de ação atravessa a trajetória profissional desta autora desde o início da graduação em Psicologia, ao incorporar o corpo e o movimento como prática de ação e intervenção social, importa dizer que foi somente pelo desenvolvimento da metodologia de trabalho com a dança criativa que se deu o estudo da arte do movimento de Rudolf Laban.

Rudolf Laban (1879–1958) foi ativo em uma época de grande efervescência cultural na Europa, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, quando a sociedade estava passando por grandes mudanças sociais, políticas e culturais. Esse contexto de transformação influenciou fortemente as ideias de Laban sobre movimento, expressão corporal e comunicação não verbal. Trazendo grandes contribuições em relação às questões corporais no que diz respeito ao desenvolvimento de sua expressão individual e coletiva, delineando uma linguagem específica, com aplicações teóricas, coreográficas, educativas e terapêuticas (Fernandes, 2001Fernandes, C. (2001). Esculturas líquidas: a pré-expressividade e a forma fluida na dança educativa (pós) Moderna. Cadernos Cedes, 21(53), 7-29. Recuperado de https://revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/185
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), Laban dedicou-se à busca da solução para o conflito cartesiano entre corpo e mente (Mommensohn, 2006Mommensohn, M. (2006). Corpo Trans-Lúcido: uma reflexão sobre a história do corpo em cena. In M. Mommensohn & P. Petrella (Eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 105-120). Summus.), estabelecendo parâmetros para a análise do movimento que não se restringem à dança, mas que abrangem também o teatro, a psicologia e a educação (Amadei, 2006Amadei, Y. (2006). Correntes migratórias da dança: modernidade brasileira. In M. Mommensohn & P. Petrella. Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 25-38). Summus.).

O estudo e a análise da arte do movimento proposto por Laban foram inicialmente nomeados como la dansa libre, ou dança livre. De acordo com Laban, a comunicação do conhecimento, da emoção e do sentimento não somente passa pelo movimento: ela é movimento. Ele acredita na beleza da dança que cada um pode descobrir em si mesmo, juntamente com a certeza de que a dança é possível para qualquer pessoa (apud Mommensohn, 2006Mommensohn, M. (2006). Corpo Trans-Lúcido: uma reflexão sobre a história do corpo em cena. In M. Mommensohn & P. Petrella (Eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 105-120). Summus.). O autor também baseava seus estudos em várias fontes ligadas ao interesse científico, artístico e espiritual, buscando explicações científicas para as leis naturais que regem o movimento. Suas pesquisas foram muito influenciadas pelos estudos da física, da filosofia, da psicologia e das artes (Hofstra, 2012Hofstra, D. (2012). Rudolf Laban e a arquitetura do templo do ritmo: bases conceituais da Effort Theory. LIMS Moviment News, 1(1), 2-14.).

Conhecido como um dos grandes pensadores e criadores da primeira metade do século XX, Laban buscou no movimento e na dança uma forma de fazer com que o indivíduo tivesse uma relação diferente com o corpo. O autor trouxe de volta a atenção sobre o movimento cotidiano, o homem comum, o ser humano e suas contradições, suas singularidades, transcendendo o formalismo idealizado do balé, das cortes e contos de fadas, para um olhar a respeito da expressividade de cada um, o estudo do corpo por meio da subjetividade de cada pessoa (Mommensohn, 2006Mommensohn, M. (2006). Corpo Trans-Lúcido: uma reflexão sobre a história do corpo em cena. In M. Mommensohn & P. Petrella (Eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 105-120). Summus.).

Os alunos de Laban foram artistas plásticos, terapeutas, bailarinos, atores, educadores e atletas. Assim, após dedicar toda a vida ao estudo e à sistematização da arte do movimento, Laban deixou seu legado a uma série de seguidores3 3 Houve a participação de uma das precursoras do movimento labaniano no Brasil, Maria Duschenes, no V Congresso Internacional de Psicodrama e no I Congresso da Comunidade Terapêutica, realizados conjuntamente no Museu de Arte de São Paulo, em 1970 (Petrella, 2006). e inspirou toda uma comunidade de intelectuais, filósofos, artistas, médicos, psicólogos4 4 Judith Kestenberg (1910–1999), aluna e discípula de Laban, ampliou as cinco fases do desenvolvimento identificadas por Freud para incluir dez ritmos orgânicos, que se manifestam desde a vida intrauterina, além de suas combinações e diversas variações. Esses ritmos de tensão de fluência representam uma das nove categorias presentes no método Kestenberg Movement Profile (Amighi et al., 1999 apud Fernandes, 2015). A teoria de Laban também baseou o método de dançaterapia desenvolvido por Mary Starks Whitehouse (1910–2001), aluna de Mary Wigman, uma colaboradora-chave de Laban na evolução da teoria do esforço (Fernandes, 2015). Em suma, todo o campo da dança movimento terapia, representado por oito abordagens distintas da psicologia, cada qual com sua metodologia própria e referenciais teóricos específicos, compartilha algo em comum, os princípios e atividades fundamentados nas teorias e técnicas labanianas (Brito et al., 2021). , fisioterapeutas, educadores corporais e muitos pensadores da época. Possivelmente até mesmo Moreno, que usou o termo psicodança para significar a união da dança com o psicodrama e sua extensão (Bermúdez, 1997Bermúdez, R. (1997). Teoria e técnica psicodramáticas. Paidos.).

Ao fazer uma avaliação global da bibliografia moreniana sobre esse assunto, Bermúdez (1997)Bermúdez, R. (1997). Teoria e técnica psicodramáticas. Paidos. relatou que o termo psicodança foi pouco mencionado e que não foi encontrado um grau suficiente de sistematização conceitual a respeito do assunto. Por isso, em 1961, o autor iniciou um grupo de pesquisa em psicodança conforme o enquadre psicodramático formado por artistas das mais diversas especialidades (teatro, cinema, dança, mímica e marionetes). Com essa colaboração, passou a compreender e sistematizar as possibilidades terapêuticas do trabalho corporal de enquadramento psicodramático tal como é praticado hoje em Portugal: a psicodança. A psicodança é uma técnica psicoterapêutica de enquadramento psicodramático regulada e sistematizada que utiliza o corpo e o movimento como veículos preferenciais de comunicação e a música como suporte dessa comunicação (Bermúdez, 1997Bermúdez, R. (1997). Teoria e técnica psicodramáticas. Paidos.).

Em sua análise detalhada e meticulosa do movimento humano, Laban continua a fornecer valiosas contribuições para uma variedade de campos, incluindo dança, teatro, psicologia, antropologia, sociologia e saúde. Em sua essência, Laban incentivava a contínua exploração e experimentação, encorajando as pessoas a descobrirem suas próprias maneiras de dançar, ensinar, observar e investigar o movimento humano. Seu objetivo último era permitir o fluir da vida (Marques, 2011Marques, I. A. (2011). Revisitando a dança educativa moderna de Rudolf Laban. Sala Preta, 2, 276-281. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v2i0p276-281
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).

Para isso, Laban desenvolveu três pesquisas. A primeira refere-se ao sistema de análise do movimento formado pelo estudo do espaço (teoria das harmonias espaciais) e dos esforços (teoria do esforço). A segunda constitui-se em sua notação de dança, conhecida como kinetography ou labanotation, e a terceira leva o nome de coreosophy, ou coreosofia (Almeida et al., 2022Almeida, M., Vaz, L., & Gomes, M. (2022). Região do silêncio, atividades humanas, corpo e movimento. In F. B. Assad & C. T. Cirineu (eds.). Corpo em foco: proposições contemporâneas (v. 1, pp. 81-98). Claretiano.), compreendida como um conjunto de ideias e práticas que perpassam a obra de Laban de maneira difusa, mediante conceitos que problematizam a função do movimento humano para a constituição do corpo e do próprio homem enquanto sujeito singular, social e cósmico (Almeida et al., 2022; Hofstra, 2012Hofstra, D. (2012). Rudolf Laban e a arquitetura do templo do ritmo: bases conceituais da Effort Theory. LIMS Moviment News, 1(1), 2-14.).

Por isso, assim como na teoria socionômica de Moreno, encontro é o principal conceito deste artigo. “Ele é existencial e vai além do encontro físico, implicando toda a existência no aqui-agora” (Conceição & Iunes, 2017Conceição, M. I. G. & Iunes, A. L. S. (2017). Intervenção psicodramática em ato: ampliando as possibilidades. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 19-27. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170018
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, p. 22). Moreno define o encontro existencial como a experiência essencial da relação télica entre duas ou mais pessoas, o instante único, um momento de criação e espontaneidade (apud Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.).

Depois de muitas vivências e experiências, na retomada do aprofundamento do psicodrama e no mergulho na arte do movimento de Rudolf Laban, encontrei espontaneamente o sustento teórico que tanto buscava. A especialização no psicodrama da Casa das Cenas, em Uberlândia (MG), e o curso de formação Laban e a Arte do Movimento, de Denise Telles, entre Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP), foram as chaves de abertura de uma nova fase, um momento de criação e execução dos desejos mais profundos da minha alma.

Em agosto de 2019 eu iniciei as oficinas. Nessa época, na universidade em que eu lecionava, os estudantes, instigados pelas breves práticas corporais que eu fazia como aquecimento e preparo para as nossas aulas, já se posicionavam de maneira curiosa e entusiástica em relação a essa conexão da psicologia com a corporeidade. Então, quando busquei interessados para a minha primeira oficina de dança criativa, em apenas duas horas, eu tinha público não apenas para a realização de uma oficina, mas para duas.

Foi assim que nasceu a Dança Criativa Marcela Amaral, um convite à expressão das singularidades e possibilidades de experimentar o corpo nas suas diversas potencialidades. A proposta é levar a pessoa para um lugar de intimidade com ela mesma, com base no pressuposto de que o movimento é uma forma de expressão e comunicação, que busca desenvolver a autoexpressão e a capacidade de pensar em termos de movimento. O objetivo é alcançar uma movimentação livre e criativa, propiciando a expressão de emoções e sentimentos, o conhecimento a respeito do próprio corpo e a ativação da energia vital. Contudo, para que tais proposições sejam aprofundadas, fazem-se necessários três aspectos de ambas as teorias para pensarmos essa aproximação: o entendimento da psiquê na relação com o corpo e como a teoria do esforço e das harmonias espaciais de Laban se conjuga com a teoria dos papéis em Moreno.

Primeiras aproximações: da psiquê em ação

Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. já compreendia essa mobilização pela via corporal como uma das principais contribuições do psicodrama à psicologia. O autor considerava que, desde os primórdios, Freud e Med negligenciaram o desenvolvimento pré-semântico e assemântico da psique, enfatizando a fala como a principal raiz de análise psicológica. Atualmente, psicodramatistas como Giro et al. (2015, p. 51)Giro, N., Oliveira, M., Musleh, M., & Prado, W. (2015). Ressonância corporal: uma proposta de intervenção psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(1), 51-59. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932015000100007&lng=pt&tlng=pt
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continuam ressaltando a importância de “potencializar a capacidade expressiva corporal inerente às pessoas”, evidenciando a “linguagem corporal como meio sensibilizador para leitura consciente dos sentimentos e das sensações expressas pela fala” (Giro et al., 2015Giro, N., Oliveira, M., Musleh, M., & Prado, W. (2015). Ressonância corporal: uma proposta de intervenção psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(1), 51-59. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932015000100007&lng=pt&tlng=pt
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, p. 56). Assim, historicamente o psicodrama representa um marco na transição dos métodos verbais para métodos de ação e do tratamento individual para o tratamento em grupo. Segundo Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., o psicodrama é a “psiquê em ação”, uma ciência que explora a “verdade” por métodos dramáticos.

Fonseca (2000), citado por Carezzato (2008)Carezzato, M. C. (2008). O lugar do corpo no psicodrama. In IV Congresso Sul Mineiro de Medicina Psicossomática. Mesa-redonda O Corpo em Diferentes Escolas Psicoterápicas. Instituto Sedes Sapientiae, Departamento de Psicodrama. Recuperado de https://sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/O_Lugar_corpo_Psicodrama.pdf
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, apresenta três dimensões em que o corpo se manifesta no psicodrama:

  • O corpo físico, biológico: que pode adoecer, movimentar-se e perceber sensações;

  • O corpo psicológico ou simbólico: as representações afetivas de cada parte do corpo adquirem significado psíquico;

  • O corpo energético: resultado da interação entre o corpo físico e o psicológico, indicando alterações antes das manifestações físicas de doenças.

Carezzato (2008)Carezzato, M. C. (2008). O lugar do corpo no psicodrama. In IV Congresso Sul Mineiro de Medicina Psicossomática. Mesa-redonda O Corpo em Diferentes Escolas Psicoterápicas. Instituto Sedes Sapientiae, Departamento de Psicodrama. Recuperado de https://sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/O_Lugar_corpo_Psicodrama.pdf
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sugere denominar essa terceira dimensão de corpo psicossomático e acrescenta uma quarta dimensão, a psicodramática, que integra todas as outras durante o ato psicodramático. De acordo com o autor, após um processo de aquecimento, o corpo lança-se na ação dramática, pleno de espontaneidade e aberto para experimentar o desconhecido (Carezzato, 2008Carezzato, M. C. (2008). O lugar do corpo no psicodrama. In IV Congresso Sul Mineiro de Medicina Psicossomática. Mesa-redonda O Corpo em Diferentes Escolas Psicoterápicas. Instituto Sedes Sapientiae, Departamento de Psicodrama. Recuperado de https://sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/O_Lugar_corpo_Psicodrama.pdf
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). Segundo Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., o aquecimento é a primeira manifestação operacional da espontaneidade, subdividindo-se em autoarranques físicos e mentais. Na infância, apenas os arranques físicos são usados, pois a capacidade de mentação ainda não está desenvolvida. Nas palavras do autor:

Há muito pouca atividade mental no arranque do recém-nascido. Por conseguinte, podemos muito bem admitir que ele só faz o uso de arranques físicos. E estes continuam sendo os arranques auxiliares em todos os processos de aquecimento preparatório, ao longo da vida. O adulto recorre a eles, especialmente em casos de emergência ou quando é colhido de surpresa

(Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., p. 104).

Vejam como as histórias impressas em nossa corporeidade estão presentes em nossos comportamentos atuais, especialmente quando deparamos com situações que demandam espontaneidade. Porque, embora os adultos possuam recursos mentais, sociais e psicoquímicos adquiridos ao longo da vida, esses recursos nem sempre estão prontamente acessíveis (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix.), sobretudo em momentos de surpresa e emergência, em que é difícil alcançar a reflexão consciente, e acabamos agindo com base nas memórias corporais que acumulamos ao longo da vida.

Portanto, antes do desenvolvimento do ego, desempenhamos papéis psicossomáticos, ligados às funções fisiológicas essenciais à sobrevivência (Freire, 2000Freire, C. F. (2000). O corpo reflete seu drama: somatodrama como abordagem psicossomática. Ágora.). Esses papéis são registrados na memória corporal e predominam em situações de emergência. Em termos evolutivos, os papéis psicossomáticos surgem primeiramente, seguidos dos papéis psicodramáticos e sociais. Os papéis sociais são aquecimentos para atos de realidade, enquanto os papéis psicodramáticos são aquecimentos para atos de fantasia. Já os papéis psicossomáticos estão embutidos tanto nos papéis psicodramáticos quanto nos sociais, influenciando nossas ações de forma significativa (Moreno, 1975Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix.).

Na teoria do esforço, Laban compreendeu que as ações do corpo se originam de impulsos internos. As qualidades dinâmicas (forte, leve, rápido, lento, direto, multifocado, livre e contido) expressam atitudes internas em relação aos quatro fatores de movimento: fluxo, espaço, peso e tempo (Guimarães, 2006Guimarães, M. (2006). Rudolf Laban: uma vida dedicada ao movimento. In M. Mommensohn & P. Petrella (eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 39-50). Summus.). O sistema de análise de Laban entende os esforços como combinações de qualidades dinâmicas que constituem o gesto, tanto funcional quanto expressivamente (Almeida et al., 2022Almeida, M., Vaz, L., & Gomes, M. (2022). Região do silêncio, atividades humanas, corpo e movimento. In F. B. Assad & C. T. Cirineu (eds.). Corpo em foco: proposições contemporâneas (v. 1, pp. 81-98). Claretiano.). De acordo com Fernandes (2006)Fernandes, C. (2006). O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. Annablume., para descrever e discutir o corpo, é necessária uma linguagem dinâmica, em que oposições binárias se alternam em constante transformação.

Laban (1978)Laban, R. (1978). Domínio do movimento. Organização: L. Ullmann. Summus. também enfatiza a importância das transições harmoniosas entre diferentes qualidades de movimento, entendendo que a prática do movimento permite tomar consciência dos princípios que governam o movimento e preservam a espontaneidade. Cada pessoa, em suas ações cotidianas, emprega em seu corpo algumas ações e posturas para suas atividades diárias. Por isso, treinar o corpo para ser um instrumento de livre expressão requer tornar-se ciente das suas várias articulações e de seu uso na criação de padrões espaciais e rítmicos, como também aperceber-se do estado de espírito e da atitude interna produzida pela ação temporal.

Laban propôs que o movimento transforma o corpo e o ser humano por meio de interações espaciais. A teoria das harmonias espaciais estuda a interação do corpo com o espaço, suas leis de regência e o potencial criativo latente nessa interação (Fernandes, 2006Fernandes, C. (2006). O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. Annablume.). Inspirado nos princípios de harmonia formulados pelos gregos na Antiguidade, Laban fundamentou suas ideias em Platão, em Pitágoras e nos conceitos geométricos da escala musical para analisar e definir o movimento. O autor ainda distinguiu o espaço geral do espaço pessoal, estabelecendo uma espécie de “mapa” de experimentação e ampliação do repertório corporal (apud Guimarães, 2006Guimarães, M. (2006). Rudolf Laban: uma vida dedicada ao movimento. In M. Mommensohn & P. Petrella (eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 39-50). Summus.).

Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix. também enfatizou a importância das notações de tempo, espaço e coordenação na estrutura de uma produção teatral de forma semelhante à harmonia espacial de Laban. Ambos os autores visam ajudar as pessoas a tomarem consciência dos princípios do movimento, preservando a espontaneidade e promovendo a expressão criativa. Dessa maneira, entendemos que a memória corporal dos esforços é constituída da trajetória histórica corporal de cada indivíduo e das suas características físicas e biológicas (Almeida et al., 2022Almeida, M., Vaz, L., & Gomes, M. (2022). Região do silêncio, atividades humanas, corpo e movimento. In F. B. Assad & C. T. Cirineu (eds.). Corpo em foco: proposições contemporâneas (v. 1, pp. 81-98). Claretiano.). Laban (1978)Laban, R. (1978). Domínio do movimento. Organização: L. Ullmann. Summus. acentua a importância de identificarmos o fato de que as atitudes interiores habituais são as indicações básicas daquilo que chamamos de caráter e temperamento. Em outras palavras, “a linguagem corporal expressa conteúdos objetivos e subjetivos da personalidade” da pessoa (Giro et al., 2015Giro, N., Oliveira, M., Musleh, M., & Prado, W. (2015). Ressonância corporal: uma proposta de intervenção psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(1), 51-59. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932015000100007&lng=pt&tlng=pt
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, p. 53).

Assim, compreendemos que todo ato se dá no desempenho de papéis, entendendo que experimentar os fatores de movimento e transitar entre suas polaridades permitem experienciar diferentes maneiras de desempenhar novos e antigos papéis. É um trabalho profundo, porque alcança o arranque físico que precede a atividade mental. Trata-se de uma mudança primária que oferece infinitas possibilidades de expressão e transformações pelo movimento, proporcionando uma experiência psicofísica profunda e autêntica. Em ambas as abordagens, a espontaneidade e a criatividade são fundamentais para o desempenho de papéis e a expressão do eu. Isso permite que as pessoas experimentem novos modos de desempenhar papéis, ressignificando suas histórias e alcançando uma experiência autêntica e verdadeira.

DESDOBRAMENTOS DA DANÇA CRIATIVA

Segundo Marques (1997)Marques, I. (1997). A dança criativa e o mito da criança feliz. Revista Mineira de Educação Física, 5(1), 28-39., a dança criativa surgiu como uma derivação da dança educativa concebida por Laban na Europa em 1926. No Brasil, a modalidade também ficou conhecida como expressão corporal, dança expressiva, Laban e até mesmo método Laban. Isso porque Laban acabou inserindo-se no contexto brasileiro pelas portas da educação, em 1940, via Maria Duschenes5 5 Na década de 1940, Maria Duschenes desembarcou no Brasil após uma breve temporada na Inglaterra, onde absorveu os fundamentos de Laban entre 1937 e 1939. Ao retornar, difundiu esses princípios, concentrando-se especialmente nos meios educacionais que frequentava (Marques, 1997). , criando profundas conexões com o ensino-aprendizagem e os processos escolares e terapêuticos (Marques, 1997Marques, I. (1997). A dança criativa e o mito da criança feliz. Revista Mineira de Educação Física, 5(1), 28-39.).

Laban afirmava que “a função da dança na escola não é formar artistas, ou mesmo ‘danças sensacionais’, mas pessoas livres e capazes de expressar em atitudes criativas e conscientes o fluxo natural do movimento humano” (apud Ullmann, 1990Ullmann, L. (1990). Algumas normas para o estudioso do movimento. In R. Laban (ed.). Dança Educativa Moderna (2ª ed., pp. 107-128). Ícone. apud Marques, 2011Marques, I. A. (2011). Revisitando a dança educativa moderna de Rudolf Laban. Sala Preta, 2, 276-281. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v2i0p276-281
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, p. 227). Sua proposta inicial buscava transcender a mera execução de movimentos, promovendo um encontro mais profundo do ser humano consigo mesmo. De acordo com Ullmann (1990)Ullmann, L. (1990). Algumas normas para o estudioso do movimento. In R. Laban (ed.). Dança Educativa Moderna (2ª ed., pp. 107-128). Ícone., um dos objetivos da dança educativa/dança criativa de Laban é ajudar o ser humano a encontrar uma relação corporal com a totalidade da existência, na qual a interação entre esforço e espaço, por intermédio do corpo, permite desenvolvermos uma consciência de nós mesmos e do ambiente que nos circunda (Marques, 2011Marques, I. A. (2011). Revisitando a dança educativa moderna de Rudolf Laban. Sala Preta, 2, 276-281. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v2i0p276-281
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).

Para Ullmann (1990)Ullmann, L. (1990). Algumas normas para o estudioso do movimento. In R. Laban (ed.). Dança Educativa Moderna (2ª ed., pp. 107-128). Ícone., quando estamos envolvidos e comovidos por meio da dança, conseguimos uma expressão autêntica e derrubamos as barreiras que foram erguidas por nosso estilo de vida e pela atmosfera mental do mundo moderno. Assim, revitalizamos nosso impulso interior para o movimento e orientamos uma expressão mais plena e estruturada. Essa visão alinha-se com a definição de Miranda (1979)Miranda, R. (1979). O movimento expressivo. Funarte., que afirma que os objetivos da dança criativa são ampliar o repertório de movimento da pessoa e liberar sua capacidade criativa.

Atualmente, a dança criativa tem sido realizada por educadores e artistas do movimento de abordagem labaniana, em práticas educativas especificamente voltadas para o público infantil. Por isso, escolhi inserir meu nome na expressão dança criativa, como forma de distinção de nomenclatura e denominação, já que a Dança Criativa Marcela Amaral oferece uma articulação única e específica entre o psicodrama e a arte do movimento de Rudolf Laban, nascendo da aproximação entre as duas abordagens teóricas apresentadas: a arte do movimento de Laban e a socionomia de Moreno.

A dança criativa em ato

Tendo em vista a revisão realizada, cabe olharmos para como a Dança Criativa Marcela Amaral toma corpo. É assim que nesta seção o método é apresentado, por meio do ato sociopsicodramático.

Sabemos que a teoria socionômica de Moreno é definida como a ciência das leis sociais que interferem nas relações interpessoais e que seu objeto de estudo é a articulação entre o individual e o coletivo, em que a cocriação significa a criação conjunta que promove interações e o bem-estar social. Como metodologia de trabalho, utilizo tanto o psicodrama, que é o tratamento pela ação dramática do protagonista, quanto o sociodrama, que tem como protagonista o próprio grupo. No olhar psicodramático, o indivíduo é visto como um ser em relação, por isso o trabalho se potencializa no grupo, no qual o indivíduo se identifica, se reconhece e ressignifica suas vivências (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.).

A aprendizagem acontece por meio da experiência do grupo, que contribui com a tomada de consciência e a posterior reflexão dos participantes. A finalidade é ativar a mobilização do sentir por meio da catarse de integração, conceito moreniano que denomina um mecanismo de ação terapêutica pelo qual se pretende a liberação de afetos e emoções, bem como a sua posterior elaboração e construção de formas de estar no mundo. É uma catarse ativa, múltipla, por onde a pessoa amplia e ressignifica suas concepções de mundo e assume novas posturas nos planos mental e corporal (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.). Um convite ao encontro da pessoa com ela mesma, com o outro e com o meio, visando tanto à mudança no momento presente como à atualização da qualidade das nossas relações ao longo da vida.

O trabalho tem sido realizado em um único ato terapêutico, uma experiência singular, com a vivacidade e intensidade do momento presente, sem necessária articulação com outras oficinas, de maneira robusta, com rigor e alto investimento técnico e metodológico. De acordo com Conceição e Iunes (2017, p. 21), trata-se da “relevância do ato terapêutico como método de intervenção, tendo em vista sua praticidade em oferecer suporte e empoderamento em uma única intervenção para várias pessoas trabalhadas de maneira conjunta”.

Ainda de acordo com as autoras, diferentemente dos processos psicoterapêuticos, “o ato é realizado com foco na demanda presente, com intuito de provocar envolvimento e apresentar uma conclusão no mesmo dia” (Conceição & Iunes, 2017Conceição, M. I. G. & Iunes, A. L. S. (2017). Intervenção psicodramática em ato: ampliando as possibilidades. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 19-27. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170018
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, p. 21). Para o desenvolvimento desse trabalho, usa-se a base do tripé que norteia qualquer método socionômico: os três contextos, cinco instrumentos e três etapas, além das técnicas básicas (duplo, espelho, solilóquio, inversão de papel, técnica da escultura, role-playing etc.).

Os atos sociopsicodramáticos6 6 O termo sociopsicodrama tem sido utilizado para descrever experiências que transitam entre o psicodrama e o sociodrama, ora com foco na ação dramática do protagonista, ora com foco no protagonismo do próprio grupo. dão-se em diferentes contextos, com diferentes pessoas, em diferentes cidades. As vivências duram 1,5 hora e podem envolver um grupo de até 20 pessoas. As oficinas acontecem em um encontro único, que geralmente tem um tema específico, focado em populações específicas, como estudantes universitários, grupo de mulheres, equipes educativas ou grupos de pessoas interessadas no autoconhecimento por meio do corpo e do movimento.

No aquecimento, mediante uma movimentação livre e criativa, os participantes são convidados a conectar-se com seu mundo interno, emoções e sensações, a fim de abrir condições para o aparecimento de improvisações espontâneas e criativas.

As atividades propostas nos aquecimentos, inespecíficos e específicos, têm como objetivos: 1. Resgatar a liberdade de expressão por meio da movimentação corporal e da valorização dos sentidos, despertando a espontaneidade e a criatividade em toda a sua plenitude; 2. Permitir ao sujeito a consciência de seus sentimentos, muitas vezes inibidos pela expressão verbal ou ocultados por comportamentos que se mantêm idênticos, “cristalizados”; 3. Colaborar para manifestação das emoções e sua expressão genuína, possibilitando o desempenho de ações criativas e espontâneas diante da conserva cultural

(Giro et al., 2015Giro, N., Oliveira, M., Musleh, M., & Prado, W. (2015). Ressonância corporal: uma proposta de intervenção psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(1), 51-59. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932015000100007&lng=pt&tlng=pt
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, p. 54-55).

Ainda, de acordo com Moreno (1975)Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. Cultrix., no aquecimento, a pessoa pode começar respirando ou movimentando-se de diversas maneiras. O objetivo é utilizar dispositivos físicos de arranque a fim de dar início ao trabalho, com a confiança de que as atividades neuromusculares ou outras atividades físicas acabarão por afirmar e libertar formas de expressão mais altamente organizadas, como a adoção de papéis e a inspiração criadora, levando ao máximo grau de aquecimento preparatório de um ato.

Na parte do desenvolvimento, são empregados jogos, brincadeiras e diversas técnicas psicodramáticas, além dos fatores de movimento, das harmonias espaciais e do vasto cardápio de possibilidades de práticas corporais labanianas: exercícios corporais, jogos de improvisação e de composição de movimentos, assim como danças individuais e grupais.

Para Laban, não importa desenvolver habilidade para virar inúmeras piruetas ou dar saltos altíssimos, mas sim a capacidade de criar ideias por meio da improvisação. O importante é desenvolver a capacidade de compreender e usar o corpo expressivamente (Guimarães, 2006Guimarães, M. (2006). Rudolf Laban: uma vida dedicada ao movimento. In M. Mommensohn & P. Petrella (eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 39-50). Summus.). Todos os estudos e a compreensão de como o psiquismo se expressa por meio do corpo vêm afirmando que o corpo é o porta-voz de uma verdade inconsciente que busca revelação (Giro et al., 2015Giro, N., Oliveira, M., Musleh, M., & Prado, W. (2015). Ressonância corporal: uma proposta de intervenção psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(1), 51-59. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932015000100007&lng=pt&tlng=pt
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). Por isso, como encerramento do desenvolvimento e preparação para o compartilhamento, proponho sempre um alongamento e um momento de quietude com relaxamentos inspirados nas práticas do ioga e das filosofias orientais.

No compartilhamento é feita uma escuta ativa e cuidadosa, estabelecendo uma relação verdadeira, mesmo que breve, com cada participante, a fim de “acolher todas as dimensões, biopsicossociais e espirituais do sujeito, contribuindo com a elaboração das experiências e a integração de todas essas dimensões do ser humano, ajudando-o a elaborar suas experiências e integrando suas diferentes facetas” (Conceição & Iunes, 2017Conceição, M. I. G. & Iunes, A. L. S. (2017). Intervenção psicodramática em ato: ampliando as possibilidades. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 19-27. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170018
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, p. 24).

Para concluir, ocorre um breve processamento teórico, em que explico os principais eixos do trabalho desenvolvido, principalmente no que diz respeito às qualidades de movimento que foram trabalhadas, no intuito de fazer com que os dançantes/protagonistas possam compreender como desenvolver maiores habilidades ao assumir papéis e se liberarem das velhas atitudes e papéis cristalizados, tornando-se mais autênticos e abertos (Karp, 1994Karp, M. (1994). O rio da liberdade. In P. Holmes, M. Karp, & M. Watson (eds.). Psicodrama após Moreno: inovações na teoria e na prática (pp. 61-87). Ágora.).

Os propósitos são liberar a espontaneidade-criatividade que se traduz na capacidade de o indivíduo reinventar sua história pessoal (Nery et al., 2006Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminhos das relações humanas. Ágora. apud Conceição & Iunes, 2017Conceição, M. I. G. & Iunes, A. L. S. (2017). Intervenção psicodramática em ato: ampliando as possibilidades. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 19-27. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170018
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, p. 22) e recuperar a pulsão individual, o ponto de afinação de cada dançante. Essa transformação só se dá mediante o desenvolvimento de uma consciência gradativa, atenta e fluida dos fenômenos físicos e psíquicos que se manifestam durante a prática do movimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa jornada de articulação entre o psicodrama e a dança criativa, é possível reconhecer, no legado de Jacob Levy Moreno, um convite a sermos autores e atores de nossos próprios dramas, desvelando a verdade presente nos papéis que desempenhamos, nos vínculos que estabelecemos e em nossa corporeidade. Nessa perspectiva, pode-se compreender que o resgate da espontaneidade se torna vital para nos conectarmos com nossas experiências mais profundas e para entendermos a corporeidade como reflexo de singularidades.

A contribuição de Rudolf Laban para o estudo do movimento humano se revelou vasta e impactante, abrangendo teoria, prática e aplicação terapêutica. Ao navegar pelas águas da arte e da ciência, Laban buscou resolver o conflito entre corpo e mente, estabelecendo parâmetros para a análise do movimento que transcendem a dança e influenciam na transdisciplinaridade. Suas teorias convidam a mergulhar nas profundezas da expressão corporal, descobrindo sua beleza e significado na jornada individual e coletiva.

Após essa detalhada análise das contribuições da interface entre o psicodrama e a dança criativa de Rudolf Laban, fica evidente que esse diálogo entre as abordagens tem o potencial não apenas de enriquecer, mas também de oxigenar e revitalizar os recursos psicodramáticos utilizados para ativação e aquecimento corporal no contexto terapêutico. Ao promover essa integração, abrimos novos caminhos para a prática terapêutica, oferecendo uma abordagem mais holística e dinâmica para a promoção do bem-estar físico, emocional e psicológico dos indivíduos.

Ao investigar a teoria dos papéis, o estudo da espontaneidade, do esforço e das harmonias espaciais, a intenção foi ressaltar a importância da corporeidade, da espontaneidade e da integração corpo-mente na expressão e no desenvolvimento humano. Logo, à medida que exploramos a interseção entre expressão emocional, movimento corporal e narrativas pessoais, abrimos portas para um autoconhecimento mais profundo, uma consciência ampliada de nossos padrões comportamentais e maior conexão com nosso potencial criativo.

Nesse sentido, o convite aqui realizado não diz respeito apenas a uma imersão no mundo da dança e às práticas terapêuticas, mas também a uma busca constante pela compreensão e pelo aprimoramento das complexas interações entre corpo e mente. Na apresentação do trabalho desenvolvido com a dança criativa, entendemos que o movimento é um elemento fundamental da vida e que existe em todos nós. No entanto, para aproveitar sua força, precisamos tomar consciência de seu significado, aprender a reconhecer seus princípios e experimentar suas formas.

Além disso, por meio do movimento, acessamos os registros mais autênticos de nossa existência, explorando os recantos mais íntimos de nossa alma, para transcender os limites do que conhecemos. Compreendemos, assim, que a ativação do corpo e do movimento nas práticas terapêuticas é essencial para desvendar as camadas mais profundas da experiência humana, proporcionando uma jornada de transformação e autodescoberta.

A dança, como expressão do movimento, oferece uma porta de entrada para nos conectarmos com o mundo e com as pessoas ao nosso redor, promovendo uma profunda conexão com nosso eu interior e nossas emoções. Muitas pessoas acreditam que não podem dançar porque relacionam a dança ao balé clássico ou a outras danças com movimentos complicados, mas a dança é algo simples que todos podemos realizar. Na dança criativa, o movimento torna-se poesia mediante a revelação do movimento orgânico de cada pessoa. O propósito é proporcionar uma sensação de libertação, na qual podemos expressar livremente nossos pensamentos, emoções e sentimentos, além de propiciar um profundo autoconhecimento.

Logo, o legado de Laban ensina-nos, por intermédio do corpo, um conhecimento, uma sabedoria que transcende palavras e se manifesta no movimento: a importância da contínua integração entre a psicologia e o estudo do corpo e do movimento, elementos fundamentais para a evolução das práticas terapêuticas e do conhecimento científico. Dessa maneira, a abertura proposta impulsiona-nos a avançar na construção de outro conceito: a psicologia do movimento.

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    O termo psicossomática – do grego psyche = alma e soma = corpo –, que vem sendo usado pela medicina e pela psicologia ainda de forma confusa, com várias significações, mas sem dúvida propondo uma integração, retorna, e assim possibilita, tanto para a ciência como para os seres humanos, o resgate de sua consciência espiritual, na medida em que integra corpo e alma como uma unidade indivisível anatômica e fisiologicamente, tornando-os assim responsáveis e co-participantes na coordenação dessa essência, essa força dinâmica e energética que tanto pode nos levar a adoecer como nos curar (Freire, 2000Freire, C. F. (2000). O corpo reflete seu drama: somatodrama como abordagem psicossomática. Ágora., p. 15).
  • 2
    Wilhelm Reich (1897–1957) foi um dos primeiros terapeutas a colocar em questão a segregação entre corpo e mente, reconhecendo que sintomas neuróticos se relacionavam a alguns aspectos físicos. Considerado o pai da psicoterapia corporal, Reich inaugurou um modo de fazer terapia, focalizando o manejo do corpo como intervenção terapêutica e deslocando a atenção da palavra para o corpo do paciente (Brito et al., 2021Brito, R. M. M., Germano, I. M. P., & Severo Junior, R. (2021). Dança e movimento como processos terapêuticos: contextualização histórica e comparação entre diferentes vertentes. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 28(1), 147-165. https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000100008
    https://doi.org/10.1590/S0104-5970202100...
    ).
  • 3
    Houve a participação de uma das precursoras do movimento labaniano no Brasil, Maria Duschenes, no V Congresso Internacional de Psicodrama e no I Congresso da Comunidade Terapêutica, realizados conjuntamente no Museu de Arte de São Paulo, em 1970 (Petrella, 2006Petrella, P. (2006). Sobre os novos conceitos de espaço e tempo. In M. Mommensohn & P. Petrella (Eds.). Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento (pp. 203-210). Summus.).
  • 4
    Judith Kestenberg (1910–1999), aluna e discípula de Laban, ampliou as cinco fases do desenvolvimento identificadas por Freud para incluir dez ritmos orgânicos, que se manifestam desde a vida intrauterina, além de suas combinações e diversas variações. Esses ritmos de tensão de fluência representam uma das nove categorias presentes no método Kestenberg Movement Profile (Amighi et al., 1999 apud Fernandes, 2015Fernandes, C. (2015). Quando o Todo é mais que a Soma das Partes: somática como campo epistemológico contemporâneo. Epistemologias da Somática, 5(1), p. 9-38. https://doi.org/10.1590/2237-266047585
    https://doi.org/10.1590/2237-266047585...
    ). A teoria de Laban também baseou o método de dançaterapia desenvolvido por Mary Starks Whitehouse (1910–2001), aluna de Mary Wigman, uma colaboradora-chave de Laban na evolução da teoria do esforço (Fernandes, 2015Fernandes, C. (2015). Quando o Todo é mais que a Soma das Partes: somática como campo epistemológico contemporâneo. Epistemologias da Somática, 5(1), p. 9-38. https://doi.org/10.1590/2237-266047585
    https://doi.org/10.1590/2237-266047585...
    ). Em suma, todo o campo da dança movimento terapia, representado por oito abordagens distintas da psicologia, cada qual com sua metodologia própria e referenciais teóricos específicos, compartilha algo em comum, os princípios e atividades fundamentados nas teorias e técnicas labanianas (Brito et al., 2021Brito, R. M. M., Germano, I. M. P., & Severo Junior, R. (2021). Dança e movimento como processos terapêuticos: contextualização histórica e comparação entre diferentes vertentes. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 28(1), 147-165. https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000100008
    https://doi.org/10.1590/S0104-5970202100...
    ).
  • 5
    Na década de 1940, Maria Duschenes desembarcou no Brasil após uma breve temporada na Inglaterra, onde absorveu os fundamentos de Laban entre 1937 e 1939. Ao retornar, difundiu esses princípios, concentrando-se especialmente nos meios educacionais que frequentava (Marques, 1997Marques, I. (1997). A dança criativa e o mito da criança feliz. Revista Mineira de Educação Física, 5(1), 28-39.).
  • 6
    O termo sociopsicodrama tem sido utilizado para descrever experiências que transitam entre o psicodrama e o sociodrama, ora com foco na ação dramática do protagonista, ora com foco no protagonismo do próprio grupo.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no presente estudo.

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Editado por

Editora de seção: Oriana Hadler https://orcid.org/0000-0001-9736-2224

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2023
  • Aceito
    01 Jul 2024
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