Open-access SABERES-FAZERES FEMINISTAS DECOLONIAIS NA UNIVERSIDADE: CONTRIBUIÇÕES SUBJETIVAS, EPISTÊMICAS E POLÍTICAS DE INTELECTUAIS NEGRAS

DECOLONIAL FEMINIST KNOW-HOW AT THE UNIVERSITY: SUBJECTIVE, EPISTEMIC AND POLITICAL CONTRIBUTIONS BY BLACK INTELLECTUALS

EL SABER HACER FEMINISTA DECOLONIAL EN LA UNIVERSIDAD: APORTES SUBJETIVOS, EPISTÉMICOS Y POLÍTICOS DE INTELECTUALES NEGRAS

Resumo

Esta pesquisa intencionou compreender como, a partir dos relatos narrativos (auto)biográficos de três docentes negras do ensino superior público, implodem-se saberes e fazeres que decolonizam o conhecimento, a ciência e a sociedade no âmbito da UFMG. Tomou-se a experiência dessas sujeitas como analisadores das inúmeras contradições que se apresentam em uma universidade pública de histórico moderno/colonial. O que tem sido capaz de movimentar rupturas epistêmicas e políticas na reinvenção de um novo mundo que já se mostra possível apesar das armadilhas da colonialidade. Nessa direção, as estratégias de combate à colonização do ser, do saber e da sociedade são um processo constante de mobilizações e alterações dessas experiências. É, apenas e unicamente, por meio dessa ferida aberta, que essas intelectuais inventam outros horizontes na produção do conhecimento, da ciência e da própria sociedade em sua versão mais justa rumo à experiência-ciência feminista, antirracista e decolonial.

Palavras-chaves: Intelectuais negras; Antirracismo; Feminismo; Decolonialidade; Universidade pública

Resumen

Esta investigación pretendió comprender cómo, a partir de los relatos (auto)biográficos de tres profesores negros de educación superior pública, se implosionan saberes y acciones que descolonizan el saber, la ciencia y la sociedad en el ámbito de la UFMG. Se tomó la experiencia de estos sujetos como analizadores de las innumerables contradicciones que se presentan en una universidad pública de historia moderna/colonial. Lo que ha podido mover rupturas epistémicas y políticas en la reinvención de un mundo nuevo que ya es posible a pesar de las trampas de la colonialidad. En esa dirección, las estrategias para combatir la colonización del ser, el saber y la sociedad son un proceso constante de movilización y alteración de estas experiencias. Es, única y exclusivamente, a través de esta herida abierta, que estos intelectuales inventan otros caminos en la producción del conocimiento, la ciencia y la sociedad misma en su versión más justa hacia la experiencia-ciencia feminista, antirracista y decolonial.

Palabras clave: Intelectuales negras; Antirracismo; Feminismo; Decolonialidad; Universidad pública

Abstract

This research intended to understand how knowings and doings that decolonize knowledge, science and society in the scope of the UFMG are imploded, from the (auto)biographical narrative reports of three black teachers of public higher education. The experience of these teachers was taken as analyzers of the innumerable contradictions that appear in a public university of modern/colonial history. This has been able to move epistemic and political ruptures in the reinvention of a new world that is already possible despite the traps of coloniality. In this direction, the strategies to combat the colonization of the being, of knowledge and of society are a constant process of mobilization and alteration of these experiences. Only and solely, it is through this open wound that these intellectuals invent other paths in the production of knowledge, science and society itself in its fairest version towards feminist, anti-racist and decolonial experience-science.

Keywords: Black Intellectuals; Antiracism; Feminism; Decoloniality; Public university

A construção de um problema de pesquisa feminista decolonial

Na disputa por um regime, radicalmente, democrático de produção de conhecimento, de ciência e de intervenção nos rumos da sociedade; campos como o antirracismo, o feminismo, as ações afirmativas e a decolonialidade têm protagonizado resistências ao Sistema Moderno/Colonial de Gênero (Maria Lugones, 2014). No encontro dos colonizadores europeus com as africanas, afro-latinas e ameríndias - existências que lutavam, caçavam e cujas sexualidades não era tomadas como um pecado cristão - a leitura do feminino foi distinta. Esses corpos, fisicamente identificáveis como femininos, mas, racialmente, marcados por tons e contornos de outros povos, enquadraram comunidades não-europeias como existências bestiais, selvagens e sem humanidade (Paula Gonzaga, 2019). Portanto, povos sem as condições básicas para a produção de um saber legítimo sobre si mesmos e sobre o mundo: povos sem epistemologia.

O eurocentrismo, portanto, foi o âmbito que alicerçou a construção das universidades latino-americanas, o que têm tido, então, o compromisso de disseminar conhecimentos e formas de ensino superior que tomam como referência parâmetros da universidade renascentista europeia. Nessa direção, a universidade torna-se não só o espaço privilegiado para a produção do conhecimento, mas se estabelece, também, como a grande instituição republicana capaz de estabelecer os limites entre o saber legítimo e ilegítimo, bem como aquela que seria capaz de produzir uma prática de pensamento - tida como superior - que pudesse avaliar o passado, o presente e o futuro da vida em sociedade (Bringel & Varella, 2016)

No entanto, o fato de que a realidade e os problemas dos países da América Latina e, nesse caso, o Brasil, sejam decorrentes dos processos de colonização, tem levado os projetos de ciência, que rompem com o universalismo eurocêntrico/moderno/colonial, a repensar, continuamente, teorias, conceitos e metodologias de pesquisa e reforçado o caráter político das escolhas científicas. Para este artigo, fizemos as escolhas de focarmos nas contribuições trazidas pelos relatos narrativos (auto)biográficos de três docentes negras do ensino superior público e seus saberes e fazeres que decolonizam o conhecimento, a ciência e a sociedade no âmbito da UFMG.

Tabela 1
Informações sobre as sujeitas da pesquisa

Por meio de um processo multifatorial de busca de potenciais sujeitas de pesquisa para o tema da decolonialidade na UFMG realizamos, então, (a) uma análise de Currículos Lattes, (b) um levantamento de produções extensionistas no SIEX (O Sistema de Informação da Extensão da UFMG), bem como (c) uma busca, por meio de nossas redes de afeto e trabalho, de possíveis docentes que poderiam colaborar com os objetivos desta pesquisa.

Em recusa, então, às metodologias científicas neutras que se interessam em descrever realidades, supostamente, dadas e naturais ao mundo; as pedagogias feministas decoloniais estão interessadas em intervir sobre esse mundo. O que tem sido feito por meio de tecnologias e metodologias de luta e de militância que são construídas por meio de encontros, afetos, respeito, (auto)cuidado recíproco, ações práticas que emergem das zonas fronteiriças de diferenças entre as mulheres. De modo que seja possível vislumbrar um novo mundo mais ancorado nas vozes democráticas, nas lutas populares e nas práticas autoconscientes (Matos, 2018).

Nesse âmbito, tomamos o processo de (re)construção da universidade pública como uma tentativa de pluralização das várias maneiras de se fazer, politizar e narrar a universidade. Por meio, então, de narrativas (auto)biográficas (Castro & Mayorga, 2019), construímos um roteiro temático com eixos analíticos que tomaram as experiências das docentes como local privilegiado do encontro entre elas e suas inscrições numa história social, cultural, institucional e política com o ensino superior público. Assim, “o que está em jogo nessa trama da existência narrada é a tensão permanente entre as forças organizadoras da ordem e da concordância e as forças da discordância, do caos, da surpresa, do inesperado e arbitrário do destino” (Carvalho, 2003, p. 288; Fonte, 2006). Nesse sentido, sem muitos direcionamentos e perguntas prontas, os encontros com as docentes se deram, individual e virtualmente, durante o ano de 2021. Apostou-se, aqui, em algumas temáticas importantes para nossas conversas. Caso esses temas não surgissem de forma espontânea, pontuava-se, mais especificamente, quais rumos poderíamos tomar em nossos diálogos, tendo em vista os objetivos da pesquisa.

Todas as docentes concordaram em ter suas vozes e rosto gravados, bem como ter os seus nomes publicizados sem nenhuma necessidade de sigilo e produção de nomes fictícios. Todos os documentos com esses consentimentos encontram-se arquivados pelo pesquisador e pela orientadora responsável por essa investigação.

Diante dessas ponderações, tomamos, aqui, a trajetória fronteiriça das sujeitas desta pesquisa - que são docentes críticas, decoloniais e afirmativas e, ao mesmo tempo, representantes de uma instituição de poder, historicamente, colonial e desigual - como chave de análise para compreender as (des)construções epistêmico-teórico-políticas ao projeto eurocêntrico/patriarcal/racista da modernidade científica. No entremeio dessas tensões - entre o agenciamento dessas docentes e a instituição universitária, historicamente, colonial -, tornou-se importante conhecer e se interrogar acerca de suas trajetórias pessoais, familiares, afetivas, coletivas, políticas, econômicas, étnico-raciais e de gênero que (im)possibilitaram suas vivências no âmbito da UFMG.

Fronteiras subjetivas, epistêmicas e políticas: reconstruindo-se intelectual negra desde a universidade pública

Jorge Larrosa (2016) afirma que o sujeito da experiência é algo que “nos passa ou que nos toca, ou o que nos acontece, e, ao nos passar nos forma e nos transforma” (p. 28). A partir dos atravessamentos, em suas histórias, é possível se deparar com o modo como essas sujeitas foram se construindo na relação com o mundo e com a própria construção do conhecimento.

Cida Moura: fui moradora de favela até os meus 15 anos. Eu fui criada com a minha avó, principalmente, porque teve um tempo que a minha mãe foi trabalhar como empregada doméstica em São Paulo. Então, eu venho desse contexto, de uma família de mulheres lavadeiras e que ralaram para cuidar dos seus filhos. Eu mesma trabalhava em casa de família. E era uma situação muito humilhante ... eu fiz magistério no ensino médio. Não atuei como professora de Ensino Fundamental, mas isso marcou porque naquela época era um jeito da gente escapar dessa desse destino de ser empregada doméstica eternamente.

Shirley: eu sou a primeira da minha família entrar na universidade, a única da vizinhança ... Meu ingresso no magistério tem de fato muito a ver com a minha relação com a minha mãe. Na verdade, ela tinha um desejo muito explícito de ter uma filha professora. Ela mesma queria ser professora. A gente vem de uma família muito pobre. Minha mãe não teve chance de estudar, estudou até a quarta série. E contava do encantamento dela vendo as colegas, as vizinhas, que conseguiam continuar estudando.

Luciana: Eu acho importante dizer que eu venho de uma família que vem da roça, né? Que migra bem no final da década de 50 interessada na escola. Mas essa migração motivada pela própria pressão social daquele momento para a transformação do Brasil de um país agrário para um país urbano e moderno. Minha avó, nessa época, tinha perdido uma filha de doze anos para uma questão de saúde mais simples que poderia ter sido tratada no espaço urbano pelo modelo biomédico e curada. Eu acho que o impacto da perda dessa filha foi uma coisa bem grande para minha vó. Havia uma pressão muito grande por estudo, pela escrita, pela escola. Minha mãe tem quatro anos de escolaridade. Meu pai tem três. Meu pai queria muito estudar, tinha muito desejo de estudar, mas vivendo ali naquele mundo e trabalhando na roça, isso seria impossível. Eu venho, então, desse desejo pela escola, pela escrita, pela universidade, pelo diploma e pela ascensão social associadas à vida urbana.

Enquanto algumas trajetórias, no magistério superior público, foram construídas na direção da educação como um direito quase natural (Castro, 2022); outras, sobretudo as racialmente marcadas, percebe-se, a educação, em qualquer um de seus níveis, não se tratou de um caminho linear e esperado. Muito pelo contrário, em trajetórias pobres, negras e rurais; trata-se de um desejo e de um projeto relacionados a sonhos de vida mais amplos. Sonhos implicados com a interpelação de um ciclo de pobrezas econômicas e a possibilidade de acessos simbólicos, cujas famílias dessas sujeitas não foram capazes, outrora, de garantir.

Cida Moura: Minha mãe falava “estudar para quê? Se vai esquentar no fogão e esfriar no tanque?”. Isso me marcou muito na minha na minha trajetória. E eu não fugi disso no sentido de que eu fui empregada doméstica a partir dos meus 14 anos e eu estudava regularmente. A gente é tratado igual bicho, né? Eu lembro que quando eu saia do trabalho, a patroa trancava a comunicação da área de serviço para o resto da casa, com medo de eu roubar alguma coisa. Além disso, quando ela estava lá, ela pedia para ver minha bolsa na hora de eu sair.

Luciana: eu estava no Mestrado. E eles pediram para gente preencher um questionário socioeconômicoComo me doeu marcar lá no quadrinho que a minha avó era analfabeta, os três anos de escolaridade do meu pai, os quatro anos de escolaridade da minha mãe. Eu acho que essas coisas são de muita violência, ter que falar sobre isso. E essa violência fica ali, você vai trabalhando ela, tentando construir outra coisa ... dentro da minha trajetória como professora e pesquisadora, uma coisa que eu nunca tinha pensado, até um tempo atrás, era escrever um livro. Que eu achava que eu não tinha nada para colocar no livro. Então, eu sei que isso faz parte dessa coisa de uma opressão, porque claro que eu tenho coisas a dizer que ninguém nesse mundo pode dizer. É muito difícil, nesse sentido, porque é um trabalho que, de partida, você já tem que se bancar muito subjetivamente, se mostrar, se expor e tal. E com essa formação psíquica acho que há muitas violências.

O sexismo e o racismo atuando juntos perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime, na consciência cultural coletiva, a ideia de que ela está neste planeta principalmente para servir aos outros. Desde a escravidão até hoje, o corpo da mulher negra tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina natural orgânica mais próxima da natureza animalística e primitiva (hooks, 1995, p. 468).

No entanto, mulheres negras, historicamente, subalternizadas nunca tomaram esse lugar como destino e ao se assumirem intelectuais, em todas as modalidades em que isso é possível, elas disputam aquilo que sempre lhes foi negado: a partilha do poder (Anzaldua, 2000). Assim, essas várias experiências de opressão, a partir do desejo de garantir outros modos de vida mais dignos, começam a estabelecer a possibilidade de se reescrever a própria história, por meio da disputa dos lugares de fala sobre o mundo e no encontro de ecos para vozes que foram inaudíveis por tanto tempo (Gonzaga, 2019). Uma série de encontros com outros atores/as sociais, para além do núcleo familiar, portanto, foram se tornando exemplos a serem seguidos no âmbito acadêmico.

Cida Moura: teve uma ocasião em que um professor meu de história convidou uma professora para fazer uma palestra para nós e eu já era liderança comunitária no meu bairro. Foi um ano em que eu tinha feito um texto sobre a questão racial, no 13 de maio, no início dos anos 80. E o professor era muito empolgado comigo, com a energia que eu tinha, com a minha inteligência como uma aluna do noturno. E aí essa professora era diretora da Associação dos Professores Públicos de Minas Gerais. E aí, na ocasião, ela me chamou para ir lá na Associação para ser recepcionista. Então, foi assim que eu saí da casa de família, né? Além disso, eu fui aluna no ensino médio do Juarez Dayrell6. E aí na época ele me dava muito material, ele via que eu era espevitada com esses trens de Movimento ... encontrei muita gente que era militante e que tinha virado professor da universidade pública. Isso fez toda a diferença.

Luciana: e eu tinha um grande professor, na época da graduação, que se tornou um amigo, um mestre. E ele me falou: ‘não desiste do seu curso, faz um Mestrado na UFMG depois, na Antropologia, que você gosta e tal’. É o Onofre dos Santos Filho7, professor até hoje no quadro lá da PUC-MINAS, o único professor negro que eu tive na universidade. Eu falava para ele ‘Onofre, como assim?’. Esse negócio de fazer mestrado é para gente muito cabeção, para pessoas ricas, não é para mim. Ele foi me acalmando: ‘você consegue, você é inteligente, você estuda, eu vou te ajudar’.

Shirley: ainda no ensino básico, no fundamental, antes de eu entrar para o Magistério público, havia uma família vizinha nossa que tinha ligações com um colégio particular. Eles conheciam e tinham pessoas com bolsa que estudavam lá. E deu para a gente um canal que não existiria se não fosse por eles. Então, por isso, tem óbvio uma rede, né? Se não fosse essa indicação que apontava para um financiamento e para o fato de podermos ir lá conversar, não haveria um caminho, né?

É interessante observar como público e privado se atravessam nessas construções subjetivas, epistêmicas e políticas na consolidação de uma carreira acadêmica. Na recusa de que suas origens seriam vergonhosas ou limitantes, por exemplo, essas intelectuais nos convocam, por outro lado, a produzir um conhecimento responsável que seja capaz de “prestar contas” da sua existência (Haraway, 1995).

Shirley: uma das graves coisas que o colonialismo nos fez foi traçar essa divisão entre público e privado; indivíduo e coletivo, né? Então, essa fronteira ela é sempre rompida, porque aquilo que se fala no espaço privado é ressonância de muita coisa que tá do lado de fora. A própria construção das expectativas, os lugares que você almeja, o desejo que se tem para os filhos. É como se eles fossem atravessando a pele da gente. Como é que isso vai acontecendo, tem muito da dinâmica social, né? A gente constrói, sim, uma singularidade. Eu entendo isso, como eu te falei, eu tenho um estilo de ser professora. Mas, esse estilo é uma elaboração, uma escolha, dentro de muitas possíveis, mas que estão disponíveis socialmente. E nem todos estão disponíveis para mim.Essa lógica do indivíduo, ela acaba nos dizendo que nós podemos tudo se fizermos um esforço e não é assim. Não está tudo disponível para todo mundo, né? ... Então, eu acho que essas fronteiras precisam ser borradas, reescritas, reeditadas, para a gente conseguir ser uma pessoa melhor, né?

Aposta-se, aqui, que o conhecimento e a ciência não são o campo da verdade. Pelo contrário, eles seriam a fundamentação de um argumento, o que se dá por meio de uma construção complexa entre a sujeita e as instituições sociais que as atravessam ao longo de uma história. Com isso, queremos dizer que trajetórias marcadas por eixos de dominação e violência históricas como as que se apresentam aqui, costumam ser desvalorizadas e enquadradas como desconhecimento ou um conhecimento de menor valor. Se em um primeiro momento, suas histórias e seus saberes são desconsiderados como potências; em um segundo tempo, de politização de suas trajetórias, elas assumem que eixos importantes de suas escolhas acadêmicas atravessaram suas histórias pessoais e vice-versa.

Luciana: é com esse background que eu tinha da família que eu tinha de nomear trabalho criativo como algo amplo que curtia. O que tinha de trabalho criativo era o que a gente podia ver mais de perto: televisão, cinema, a propaganda. Houve um outro momento, já próximo de entrar na graduação em Comunicação, eu fiz um curso de corte e costura. Então, sou muito orgulhosa disso. Eu tenho diploma de costureira, sou de uma família de costureiras e amo esse trabalho com os tecidos, com a mão, com a costura, porque também é trabalho criativo. Só que eu não sabia nomear isso dessa forma lá naquela época. Achava que ser costureira era uma coisa de pobre, como ser da roça, era uma coisa de gente pobre.

Shirley: a Filosofia era um desejo forte. As Ciências Sociais sempre foram muito presentes na minha formação no Magistério. Letras, História. Mas, Filosofia falava ainda mais forte porque não me dava as respostas. Tinha uma coisa das perguntas que eu podia fazer e elas me abriam perspectivas e possibilidades que me interessavam. Mais à frente, isso se mostrou assim ‘como é que eu trabalho relações sociais-raciais com meus alunos, né?’ Essa era a grande questão, para mim, que vinha desde a infância. Como é que a gente discutia escravidão, como é que a gente olha para os livros e consegue trazer aquelas imagens estereotipadas dos afro-brasileiros? Como é que pode, né? Porque a mim ofendia muito e me causava extrema tristeza. Enfim, como construir uma outra educação ... eu terminei me interessando, então, em saber os meus direitos e me interessei em participar de construções coletivas, né? O sindicato sempre foi uma escola para mim, né? Desde o início da carreira, uma escola que me formou, desde a professora que eu fui na educação básica até a professora que eu sou hoje, né? Fui professora da educação de jovens e adultos, sempre ligada a movimentos por conquista de direitos. Nesse caminho, eu me descobri uma professora entendendo esse fazer político.

Cida Moura: então, eu tratei de continuar na universidade, com as coisas que eu já tinha vivência mesmo, até porque eu não ia conseguir ser outra coisa a não ser o que eu era mesmo. Então, no primeiro emprego contratada em uma ONG, a gente acompanhava as greves, a gente acompanhava os Sindicatos, Movimentos, a gente trabalhava com produção de acervo audiovisual para os Movimentos Populares. A gente dava curso de comunicação popular na periferia. Eu já mexia com grupos de jovens e já, trabalhava nas coisas de comunidade periférica mesmo. Lutar por água, luz, essas coisas que a gente faz. Além disso, nesse período, também, que eu início a minha participação no MNU (Movimento Negro Unificado). Então, todo o cursinho que tinha, eu ia fazer. Eu fiz curso lá de audiovisual, fiz curso de fotografia. Então, eu trabalhava com isso, né? Eu sabia editar, essas coisas, então fiz, então quando eu entrei para a universidade eu entrei com essa trajetória e bagagem.

Também, nessa direção, ainda que essas sujeitas intencionassem construir carreiras acadêmicas de destaque - dentro dos padrões do que se espera de dedicação ao ensino, à pesquisa e à extensão - não há, aqui, qualquer possibilidade de que o desejo individual se sobreponha aos limites sócio-históricos e políticos que modulam a amplitude dos nossos sonhos.

Luciana: e aí, então, né, com alguma dificuldade eu decido estar na PUC. O meu pai já tinha trabalhado muito na formação dos meus irmãos mais velhos e aí eu já tinha dois irmãos formados, né? Um formado em Engenharia e outro formado em Medicina. E o meu irmão formado em Medicina me ajudou a pagar os meus estudos na PUC, né? Nessa época, financiamento estudantil e alternativas eram muito difíceis. Até tentei, mas não consegui. Nessa época da minha graduação, fui operadora na central de atendimento do banco. Porque meu irmão bancava, para mim, as despesas da universidade, a mensalidade da universidade. Mas eu tinha que me manter, aqui, em Belo Horizonte. Nessa época, meu pai, que tinha um mercadinho de frutas que foi o sustento da minha família durante muitos anos, estava fechando seus negócios porque já estava mais velho e se aposentando. Então, eu sempre trabalhei e estudei na minha trajetória.

Shirley: e junto com isso eu tinha que custear isso, né? Quando fui pra graduação, era em outro bairro, eu tinha que pagar condução, tinha tudo isso, né? Minha mãe era costureira e ela costurava pra manter a gente na escola. No ensino superior, já na PUC, eu dava aula numa escola particular, aí eu tinha bolsa do Sindicato, bolsa de 60%. Que foi mais ou menos até o final do curso, mas aí eu fui demitida por uma greve. Aí nesse período eu já estava na rede municipal e eu dobrei as horas de trabalho na rede municipal e consegui custear.

Cida Moura: hoje em dia eu olho pra trás e falo: ‘eu ainda fazia iniciação científica’. Eu não sei como eu fazia isso, porque eu morava longe, eu morava na periferia, estudava na UFMG, tinha filho pequeno, deixava filho na creche, aquela correria. Eu, também, fui monitora de extensão. Eu pegava oito ônibus por dia. Para entregar menino, buscar menino, ir para a escola, ir trabalhar e tal. ... Nós estávamos sempre com as pautas dos Movimentos Sociais de Minas Gerais, a gente acompanhava muito o que que tava acontecendo. Tinham muitas mulheres que me apoiaram muito. Então, eu fiz curso de fotografia lá. Eles pagaram para mim, quando eu fiquei grávida. Naquela época, era caro tomar aquela injeção-anestesia peridural, né? Eles que pagaram. Então, assim era um ambiente muito solidário entre nós.

E, dessa forma, mesmo identificando distinções quanto a singularidade nas trajetórias dessas sujeitas de pesquisa, reconhecem-se “desafios e obstáculos que se configuram quando as condições econômicas, de raça e de origem cruzam com as exigências materiais e simbólicas para o ingresso, permanência e inserção na universidade” (Mayorga & Souza, 2012, p. 268).

Ao mesmo tempo, há que se evitar qualquer romantização dessas trajetórias por meio da naturalização da figura da “batalhadora”, da “esforçada” e da “exceção que foge à regra”. Isso porque, em função do empuxo ao poder moderno/colonial, um projeto de branqueamento permaneceu sendo um resto colonial que ainda forja parte da identidade nacional latino-brasileira.

Luciana: dentro da minha família, houve uma opção pelo branqueamento. As falas aparecem né? ... meu avô materno, que é esse que faz a migração pra cidade e tal, ele escolhia os parceiros dos filhos e das filhas para serem brancos.

Há pesquisas que explicitam como o marcador racial opera a partir de construções sociais que funcionam como mecanismo de privilégios, demarcação e hierarquização de grupos. Ainda assim, os processos de embranquecimento biológico e racial - que podem culminar na obtenção de bens, valores, costumes e renda - não impedem que as experiências de preconceito e discriminação aconteçam. “Ao sujeito negro não adianta ter educação, casas de tijolo e ascensão social, pois quando adquirir tudo isto a raça será o fator de interdição do sujeito a este grupo da elite” (Schucman, 2012, p. 97).

Cida Moura: a gente não faz transferência igual o povo branco faz, né? Que investe num projeto de longevidade hereditária, essa longevidade do lugar social. E isso acaba que quebra muita gente, né? E essa disputa ainda não tá no ponto de acabar. Veja bem: olha o tempo que a gente foi oprimido e tem sido oprimido, olha quanto tempo que houve uma abolição da escravidão no Brasil. Quer dizer, a gente não completou muitas gerações nessa mudança. Então, se a gente olha, a escravidão quase que alcança minha avó. Esse povo tá no lucro desde que mundo é mundo. E eles construíram aquele espaço (a universidade pública) para eles, não foi pra gente. A gente tá tendo que entrar e mudar.

Shirley: eu acho que a gente tá vivendo isso, né? Uma insurgência e insubordinação, mas, sobretudo, do meu ponto de vista, a busca por justiça eu acho que ela traça esse limite da resistência. Depois que eu ingresso na universidade, como docente, eu tento fazer um percurso muito parecido com que eu fiz também na educação básica. Que é desconstruir alguns lugares fixos que já estavam estabelecidos, né? Construir uma prática que fosse mais dialógica e uma luta que pra mim é incessante, que é do reconhecimento. Resistir significa continuar nesse caminho, não retornar a patamares anteriores de justiça, mas resistir impulsionando esse caminho que já vem sendo construído há anos.

A justiça, em termos decoloniais, por assim dizer, precisa se inspirar em saberes e práticas que prescindam da lógica dos homens brancos como única inspiração política.

Shirley: o poder é algo que disputamos e queremos, sim. não é qualquer poder, mas eu acho que ele está presente, se faz num jogo cotidiano. e com a nossa capacidade de dizer de nós, né? resistência é insurgência e rebeldia. é conturbar aquilo que já está estabelecido e muito normalizado. É ela que nos impulsiona a fazer uma outra coisa, né? a pensar de modo que nós nunca pensamos. para mim, a resistência tá ligada a não ceder a determinados poderes que querem estabilizar o jogo e deixar o jogo com soma zero. A resistência me aponta, assim, pra possibilidades de insurgência, de pensar o novo, e de pensar o novo agora e não no futuro, apenas. É uma resistência a se conformar dentro de espaços predeterminados.

Cida Moura: eu trabalhei com saberes tradicionais, fui ouvidora da universidade. Agora, eu trabalho na diretoria de direitos humanos. Eu acho que eu só fui referendando os meus compromissos com o lugar de onde eu vim. E as pessoas continuam sendo racistas com toda essa trajetória que eu construí. Elas continuam achando que a gente não é inteligente, só porque a gente é preto, né? Além disso, o fato de você ter um carro melhor, as pessoas acham: ‘nossa! Como assim? Que carro é esse, né?’ Se você vai num restaurante melhor, você já chega com as pessoas te olhando, parece assim que o mundo vai acabar. As pessoas acham mesmo que determinados lugares são lugares de branco; mas que, na verdade, são coisas que qualquer um poderia acessar dentro de um determinado contexto de vida. Os caras veem um corpo preto, em lugares da elite, e eles já ficam em estado de alerta, né? Seria engraçado se não fosse trágico, né?

O branqueamento dos negros ascendidos, nesse sentido, jamais é total, já que ainda que o sujeito negro possua status social de branco, nem todos os benefícios do pacto branco estão ao alcance do negro. Com isso, queremos dizer que têm ocorrido mudanças estruturais e culturais - com uma maior utilização e comercialização de símbolos e produtos da denominada cultura afro-brasileira - bem como toda uma institucionalização em torno de medidas racialmente democráticas que possibilitam esses processos de mobilidade econômico-social para além do desejo de querer ser branco. Esse cenário pode, portanto, estar criando condições que ajudem na diminuição da distância entre ser negro e ocupar posições mais valorizadas na hierarquia social (Castro, 2017).

Luciana: você tá dentro do mundo colonial. Você se levanta da cama, você tem que falar: ‘Deus, me dá força para enfrentar essa colonização e como eu posso ser mais descolonizada no dia de hoje, né?’ Então, é essa coisa muito prática mesmo. Hoje em dia, a gente pode falar de contracolonização e citar o livro do Bispo8. E, no mundo acadêmico, que é muito letrado e movido pela escrita isso é importante. É importante que essa estrutura de saber e poder ocidental, também, seja arranhada pela presença desses mestres, dessas mestras, quando eles a ocupam.

Cida Moura: a universidade é coisa de branco. Por outro lado, eu não quero ser uma pessoa raivosa, né? Então, assim, uma coisa que eu invisto muito é nessa articulação nossa com a sociedade, eu acho que vai ser a coisa mais linda do mundo e a coisa que eu mais luto na universidade é por esse conhecimento dos saberes dos tradicionais, pela titularidade. Então, assim, são coisas que eu prefiro saber que eu vou olhar pra trás e que eu participei disso.Mas, eu acho que é muito pouco perto do outras pessoas poderiam tá fazendoeu acho que é pouco para o povo negro. É pouco para os periféricos que estão nas universidades.

Nesse sentido, mais do que pensar um projeto acadêmico e social para si e para os “seus”; essas docentes são mobilizadas por causas coletivas e isso as move a estar em espaços de poder e decisão que possam democratizar o ensino superior. Sendo assim, é preciso tomar cuidado para que não vejamos armadilhas em toda escolha militante antirracista e feminista que adentre espaços, historicamente, da hegemonia branca e masculina. Não se deve impossibilitar a ocupação de espaços que decidem pelos projetos epistêmicos e políticos da sociedade e da universidade. Decolonizar, nesse sentido, é deslizar pelo fio de navalha que pode tanto potencializar uma integração ou uma rejeição a um projeto colonial de saber/poder (Bernardino-Costa & Grosfoguel, 2016).

Dessa forma, solidariedades, negociações, rupturas e dissensos qualificam a resistência docente no horizonte da construção de uma universidade que resiste ao poder colonial. Assim, concepções e olhares sobre o político podem e devem ser questionados e reformados, constantemente, na construção de uma universidade decolonial.

Cida Moura: eles (colegas docentes) nunca me deixaram ser chefe de departamento. Eu fui vice chefe, que eu lembro uma vez, que ninguém mais queria ser chefe. Hoje em dia, eu sei que é uma roubada. Eles ficam lá querendo que eu mexa com isso. Mas, assim, naquela época que aquilo era lido como poder, logo no início, né? Hoje em dia, enfim, não tem um efeito prático de poder não, né? Eu lembro, certa vez, que uma pessoa lá tinha sido chefe do departamento duas ou três vezes. Ela já tava meio de saco cheio disso, né? Ela não estava a fim. Aí, eu me inscrevi, mas você acredita que os colegas foram lá e obrigaram ela a se inscrever, para eles votarem nela e não votarem em mim? Assim, eu, na realidade, atualmente, eu tô querendo é sair desse lugar, desses holofotes, eu quero ficar bem quieta.

Luciana: eu tenho uma presença, na UFMG, marcada por um lugar muito diferente porque eu não fiz a minha formação lá. Então, assim, eu não trago uma herança e um legado de conflitos anteriores comigo. E, particularmente, não quero brigar brigas que não são minhas. Então, eu tenho essa postura institucional. Eu acho que é uma fortuna que eu não tenha nenhuma briga no interior do meu departamento. Eu me sinto assim, ninguém briga comigo, mas também ninguém me dá um suporte no sentido de dizer assim, ‘poxa você é uma puta intelectual, mulher, nossa, o trabalho que você faz é assim gigantesco e tal’. Me sinto uma pessoa alternativa, eu sou muito questionada sobre o que meu trabalho tem a ver com a Comunicação Social. E, por isso, faço o meu trabalho da melhor forma possível.

Dessa forma, por não serem reconhecidas por lentes tradicionais da razão moderna da ciência, essas docentes precisam criar táticas para que não sejam flagradas em locais frágeis. A resistência, aqui, é se manter longe da mediocridade e entregar um trabalho docente/pesquisador/extensionista acima da média.

Cida Moura: resistir, eu acho, é a gente não desistir da gente como projeto.

Na incansável reconstrução de um projeto de si mesma, o tema da resistência decolonial aparece como possibilidade de um segundo doutorado para Cida Moura

Cida: Montei, mandei e passei com o projeto e estou fazendo outro doutorado na Sociologia. Para estudar essa questão, a minha temática sobre decolonialidade por dentro, né? Quero pensar o projeto de decolonização da universidade por intermédio dos saberes tradicionais e do notório saber.

Luciana: a universidade não é um lugar da humildade. É o lugar de muita vaidade e jogo de poder, né? Esse poder ali mesquinho, finito, escasso. Então, tem muita luta por esse poder que tá ali, né, concentrado e tal. E eu não sei, mas gosto de fazer essa trajetória um pouco assim marginal. Meio alternativa, né? Porque também para a resistência, às vezes, ocupar esse lugar marginal é mais... te permite falar certas coisas que quando você tá dentro da posição institucional não é possível, né?

Nesse sentido, é interessante, para alguns desses docentes, fazer uso dos conflitos como espaços estratégicos de potencialização e divulgação de seus projetos de mundo. Na mesma medida em que os conflitos podem afastar diálogos, eles podem ser conexões produtivas diante das divergências ético-políticas dentro de um mesmo campo. Assim, evitam-se dicotomias moderno-coloniais - como razão-afeto, mente-corpo - que despolitizam o cotidiano e naturalizam um mundo sem desejo e intenções (Sawaia, Albuquerque, & Busarello, 2018).

Luciana: eu entrei na UFMG, como docente, no contexto do REUNI, sabe? Eu acho assim, que é muito importante uma política pública de expansão da universidade pública e gratuita porque ela não só promove essa importante possibilidade de uma entrada. Mas ela pensa uma entrada que não seja uma entrada de exceção como a minha foi. O REUNI conseguiu ofertar uma entrada digna e uma entrada respeitosa e uma entrada maior para estudantes, né, homens e mulheres, moços e moças, que precisam se formar, mas ela também possibilitou a entrada de mais gente com meu perfil no ensino, sabe?

O Programa REUNI (Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) foi uma ação, em âmbito federal, que impulsionou uma nova fase da educação superior brasileira, por meio de ações de expansão tendo como fim a ampliação de acesso e permanência, de alunos/as e professores/as nas instituições de ensino superior. Tem sido possível observar, nesse sentido, que houve um aumento de ampliação de vagas nessas instituições, bem como do número de cursos. O que permitiu, por exemplo, que mais alunos/as pudessem acessar a universidade por meio de cursos noturnos e mais possibildades de escolha quanto à qualificação desejada. Houve, dessa forma, uma ressignificação do público docente e discente, o que trouxe novas formas de se pensar o conhecimento e o lugar da ciência na relação com a sociedade (Edriene C. S. Santos Sales, 2018).

Shirley: na minha carreira, eu acho que é uma das coisas que mais me alegra assim, não é a gestão, é a orientação, porque a orientação ela é o momento em que você pode contar um pouco da sua experiência para quem tá chegando e atalhar alguns caminhos. Eu acho que isso também tem a ver com descolonizar, porque é muito comum nesse espaço hierárquico que as pessoas subam a escada e, quando elas estão no topo, elas jogam a escada pra baixo. E eu acho que uma coisa que eu me ponho a fazer, eu acho que o meu corpo tem que tá disponível a fazer isso também: traçar essas pontes. Atalhar esses caminhos para que novas gerações cheguem de outro modo e trazendo outros elementos e que possam ter trajetórias mais exitosas com menos dificuldades. Isso também é uma coisa difícil, a gente chega na universidade e é muito comum que digam que não é pertinente que você esteja ali, né? É tanto que até hoje eu não sou convidada pra todas as coisas. Eu sei que algumas coisas na universidade vão ser tramadas na sala de visitas onde eu não estou, onde eu não sou convidada, né?

Cida Moura: tudo que eu fiz e faço, nessa universidade, foi muito mais no marco da sua popularização e democratização. Quando eu tô abrindo a universidade para mais gente, eu tô abrindo ela, inclusive, para negros. Quando eu recebo alunos negros é como se eu pudesse auxiliá-los numa espécie de design da trajetória de uma forma menos doída. A gente não sai desse lugar, até porque a gente não sai da gente, né? Eu, inclusive, não saio de mim nunca.

A relação com as discentes permanece sendo um espaço privilegiado de transformações políticas mais radicais na universidade, onde interpelações ao status quo colonial podem ser produzidas, entre dois/duas atores/izes sociais que, a partir de posições de poder distintas, podem tecer pontos de convergência em um horizonte ético-político decolonial (hooks, 2013).

Luciana: estar na universidade federal ancorado no tripé, na pesquisa, no ensino, na extensão, é uma ótima plataforma para você fazer muitas coisas. Eu nunca vejo a universidade como o lugar em si mesmo. Eu vejo esse lugar e ocupo esse lugar com uma grande responsabilidade de tentar a todo custo fazer redistribuição de poder, acadêmico, político, econômico, epistêmico. É claro que é muito bom também tá nesse lugar pelo status que esse lugar oferece, e daí também ser uma grande plataforma e pelo pela estabilidade, pelo salário também, essas questões objetivas, também, são válidas.

Cida Moura: e aí comecei a trabalhar como efetiva-concursada, foi muito bom né, foi uma experiência bacana no sentido de que eu tava ali agora no espaço e que eu poderia planejar melhor a vida. Planejar no sentido de que eu quero fazer, a coisa de ter uma casa. Nós os periféricos quando a gente chega tá tudo por conseguir. É claro que quando eu entro pra UFMG melhorou no sentido de que eu pude pagar aluguel no bairro melhor que tem mais ônibus, padaria perto e supermercado.

Dessa forma, a consciência dos desafios e a importância que a sua identidade de mulher negra, docente e intelectual, a cada dia, torna-se mais elaborada a ponto de pensar de modo global e coletivo nos demais sujeitos não brancos que se encontram em posições desprivilegiadas em nossa sociedade. Além da necessidade objetiva - que é a remuneração, o bem viver financeiro - não se trata somente de um projeto individual, mas também de um dever/fazer presente em suas práticas pedagógicas profissionais (Silva & Euclides, 2018, p. 63).

Para (não) concluir: o potencial decolonial das mulheres negras na universidade pública

Lelia Gonzalez (1984) nos convoca a romper com a imagem da inofensiva e submissa mulher negra que, de seu ponto de vista, foi muito mais capaz de resistências históricas do que as imagens controladoras coloniais nos deixam ver. Rompendo, portanto, com as interpretações que as enxergam, unicamente, como sujeitas dóceis e “traidoras da raça”, Gonzalez nos convida a enxergar o protagonismo de mulheres não-brancas em espaços de poder, no processo de formação cultural latino-brasileiro. Reconhecendo-a como uma agente psicossocial que foi capaz de transmitir a cultura amefricana para a Casa Grande, desmantelando, com armas enegrecidas, a hegemonia epistemológica das narrativas coloniais sobre o mundo (Cardoso, 2014).

Shirley: não é pensar que todo conhecimento é conhecimento científico. Acho que não se trata disso. Nós temos várias dinâmicas de conhecimento. Mas, é importante pensar que todo conhecimento científico pode ser construído em outras bases. Em bases que possam alargar a compreensão de mundo. E, ao alargar a compreensão de mundo, nós podemos potencializar o reconhecimento de um equilíbrio que combata a desigualdade.

Luciana: o problema não é nem o eurocentramento, mas o euroexclusivismo, né? Eu não sou contra ter o pensamento europeu como eu não sou contra ter pensamento nenhum na universidade se ela é um lugar de pensamento e de guarda de saber, né?

A postura, aqui, não é recusar os métodos tradicionais da Europa como local do conhecimento. Mas é, sobretudo, deslocar o continente europeu da ideia de que esse é único lugar geográfico que pode criar as regras do jogo do conhecimento legítimo e científico. E, para isso, é preciso se dispor a encontrar com diferentes formas de experiência da vida sensível que criam outros olhares epistemológicos.

Finalmente, é preciso, em alguma medida, ainda que isso interpele o espaço da privacidade de nós docentes, que intelectuais publicizem suas trajetórias como forma de estar, nesse lugar, como um local de capacidades e potencializações da vida e da justiça. Essa é uma forma honesta de convocar mais trajetórias, historicamente, subalternizadas ao exercício de uma prática científica insurgente e a vida docente como ativismo (hooks, 1995). Esse local epistêmico-político pode ser uma inspiração a todas nós que, ainda que não sejamos mulheres negras de origem popular e rural, duvidamos que o destino do mundo precisa ser a subjugação do saber e da experiência daquelas que não foram convocadas a participar do pacto cidadão moderno/colonial.

Referências

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Notas

  • 1
    Luciana é graduada em Comunicação Social pela PUC-Minas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais). Realizou mestrado em Antropologia e Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG. É pós-doutora em Antropologia pela UNB (Universidade de Brasília). Atualmente, ela atua como professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação e no curso de graduação em Comunicação Social da UFMG, sendo líder do grupo de pesquisa Corisco: Coletivo de Estudos, Pesquisas Etnográficas e Ação Comunicacional em Contextos de Risco. Atua desde 2014 na gestão do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG que promove a inserção de mestres populares, indígenas e quilombolas como professores e pesquisadores na Universidade. Desde 2013 é impulsionadora do projeto Bordados pela Paz Guarani e Kaiowa Brasil. É vinculada ao Departamento de Comunicação Social. (texto informado pela autora na Plataforma Lattes)
  • 2
    “Eu, assim, sou reconhecida como um corpo branco, eu acho. Mas, eu me considero parda. Porque eu sou afrodescendente e indígena descendente”.
  • 3
    Cida Moura possui graduação em biblioteconomia pela UFMG, mestrado em Educação pela UFMG, doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pós-doutorado em Semiótica Cognitiva e Novas Mídias pela Maison de Sciences de l' Homme. É atual diretora da universidade dos Direitos Humanos da UFMG e atua nos programas de pós-graduação em Comunicação Social (PPGCOM/UFMG) e Ciência da Informação (PPGCI/UFMG). Ela participa da comissão coordenadora da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. E, também, trabalha com os temas sobre semiótica aplicada aos estudos informacionais, organização da informação, cultura informacional, organização da informação em ambientes colaborativos, identidade e cultura popular. Encontra-se vinculada ao Departamento de Organização e Tratamento da Escola de Ciência da Informação. (texto informado pela autora na Plataforma Lattes)
  • 4
    Shirley é graduada em Filosofia pela PUC/Minas, mestre e doutora pela Faculdade de Educação de Minas Gerais. É integrante da Comissão de Ações Afirmativas do Programa de pós-graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social. Local onde desenvolve pesquisas sobre políticas educacionais e diversidade étnico-racial e cultural com enfoque na educação indígena e educação quilombola, tematizando raça e descolonização de processos educativos. Encontra-se vinculada ao departamento de Administração Escolar. (texto informado pela autora na Plataforma Lattes)
  • 5
    “Eu me declarei parda-negra, né? Eu sou de uma família miscigenada, E eu não faço essa autodeclaração em outros processos, por exemplo, processos que sejam referentes às cotas e etc porque eu acho que não tem a ver. Mas, eu sou de uma família miscigenada”.
  • 6
    Juarez Dayrell possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1983), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1989) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001). Em 2006 realizou o pós-doutorado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Integrou até 2020 a Pós-graduação da Faculdade de Educação na linha de pesquisa: Educação, cultura, movimentos sociais e ações coletivas, desenvolvendo pesquisas em torno da temática Juventude, Educação e Cultura. Foi pesquisador do CNPQ no período 2007 a 2020. Atualmente é professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais. É fundador e integrante do Observatório da Juventude da UFMG (texto retirado do Currículo Lattes)
  • 7
    Onofre dos Santos Filho possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986) e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1993). Atualmente é Professor Assistente III do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e leciona "Teoria das Relações Internacionais II" e "Metodologia da Pesquisa em Relações Internacionais II" para o curso de Relações Internacionais da mesma Universidade. Atua principalmente na área de Relações Internacionais com ênfase na docência superior em Teoria e Método em Relações Internacionais e estudos e pesquisas principalmente nos seguintes temas: Teorias Contemporâneas em Relações Internacionais, Instituições e Regimes Internacionais, Política Internacional e Transnacional, Imaginário e Identidade Social dos Estados e Segurança Coletiva. Atualmente é aluno do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais no qual pretende desenvolver sua tese de doutoramento acerca da formação das redes transnacionais de violência, como no caso da "Al Qaeda", e suas implicações para o monopólio legítimo da força por parte dos Estados. (texto retirado do Currículo Lattes)
  • 8
    Antonio Bispo dos Santos nasceu em 1959, no Vale do Rio Berlengas, Piauí. Formou-se pelos ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí; completou o ensino fundamental, tornando-se o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização. Nego Bispo, como também é conhecido, é autor de artigos, poemas e dos livrosQuilombos, modos e significados(2007) eColonização, Quilombos: modos e significados(2015). Como liderança quilombola, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Destaca-se por sua atuação política e militância, que estão fortemente relacionadas à sua formação quilombola, evidenciada por uma cosmovisão a partir da qual os povos constroem, em defesa de seus territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida. (Porfírio, Iago & Oliveira, Lucas (2021). InEnciclopédia de Antropologia. Universidade de São Paulo. https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos

Notas

  • Financiamento
    Não houve financiamento e o doutorando não foi bolsista durante o doutoramento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2023
  • Revisado
    25 Set 2023
  • Aceito
    25 Set 2023
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