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Entrevista

Interview

Entrevista

Interview

Allan YoungI

Entrevistado por: Paul Kennedy; David CayleyII

Tradução e Apresentação: Luciana Vieira CalimanIII; Rogério Gomes de AlmeidaIV

IUniversidade McGill, Montreal, Canadá

IICanadian Broadcasting Corporation, Montreal, Canadá

IIIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

IVFaculdade FUCAPE, Vitória, Brasil

Durante o ano de 2007, a Canadian Broadcasting Corporation - CBC -, como parte do programa IDEAS, realizou uma série de 24 entrevistas, apresentadas por Paul Kennedy, com o intuito de refletir sobre uma questão intrigante: "How to Think About Science?" (como pensar a ciência), nome dado ao programa1 1 As entrevistas duram cerca de 40 minutos e podem ser ouvidas na íntegra no site http://www.cbc.ca/ideas/features/science/index.html. . No prefácio que introduz as entrevistas, David Cayley, entrevistador e idealizador do programa, esclarece que "How to Think About Science" começou com uma intuição que dizia que tanto a prática científica quanto sua recepção pública estão vivenciando mudanças dramáticas. Para Cayley, passamos a viver em um mundo que se assemelha cada vez mais a um experimento científico não-controlável, em um momento no qual questionamos o papel da ciência como fonte de certeza, predição e controle.

Por outro lado, como afirma Cayley, a ciência, como espaço de produção de conhecimento, tem sido cada vez mais desmistificada. As sociedades modernas acreditavam que a ciência era a forma mais verdadeira e legitima de conhecer, ordenar e controlar o mundo. Todas as coisas tornaram-se objeto da ciência, mas a ciência em si mesma escapou ao estudo científico. No entanto, nos últimos anos, esse panorama tem passado por grandes transformações. Uma nova área acadêmica denominada Science Studies que, desde a década de 70, reúne antropólogos, historiadores, sociólogos, filósofos e cientistas, tem se dedicado ao estudo das formas através das quais o conhecimento científico é produzido e institucionalizado.

As entrevistas realizadas por Cayley oferecem uma introdução fascinante sobre como a ciência tem sido repensada em nossos tempos, no âmbito dos Science Studies, pelos pesquisadores mais renomados dessa área de estudos. Dentre eles estão autores que, também no Brasil, têm sido importantes para repensar a psicologia e áreas afins, como a medicina e a psiquiatria.

Das 24 entrevistas realizadas, quatro foram traduzidas e serão publicadas na Revista Psicologia & Sociedade. Os autores Ian Hacking, Margareth Lock, Allan Young e Richard Lewontin foram escolhidos devido a sua importância internacional no campo dos Science Studies; pelas temáticas das entrevistas que são de interesse particular para a área da psicologia, da psiquiatria e das biomedicinas; e pela repercussão que os estudos de tais pensadores possuem no Brasil, influenciando o trabalho de muitos pesquisadores.

A entrevista a seguir, com Allan Young, é a segunda da série. Young é professor de Antropologia no Departamento de Estudos Sociais da Medicina da Universidade de McGill, e seu trabalho concentra-se na etnografia da psiquiatria e especialmente na valorização de novos diagnósticos e tecnologias terapêuticas, em especial no estudo do Transtorno do Estresse Pós-Traumático - TEPT.

No número anterior da Revista Psicologia & Sociedade, publicamos a entrevista de Ian Hacking, filósofo da ciência canadense e professor emérito da Universidade de Toronto e do College de France. Hacking é autor de inúmeros livros e artigos e considerado um dos filósofos da ciência mais importantes de nossos tempos. Seu trabalho inicial sobre a emergência do pensamento probabilístico e estatístico no ocidente tornou-se referência para todos os estudiosos da sociedade do risco.

No próximo número da revista, teremos a entrevista de Margareth Lock, antropóloga da medicina, professora do Departamento de Estudos Sociais da Medicina e do Departamento de Antropologia da Universidade de McGill, em Montreal. Internacionalmente reconhecida como uma das mais importantes antropólogas da medicina de sua geração, Lock passou 30 anos de sua carreira construindo pontes entre a medicina e as ciências sociais. Grande parte de seu trabalho destaca as relações entre o corpo, a cultura e a inovação tecnológica, na saúde e na doença. Por fim, teremos Richard Lewontin, o quarto entrevistado da série, que é professor de biologia em Harvard, biólogo evolucionista, geneticista e comentador social. Seu trabalho se contrapõe fortemente ao determinismo genético. No Brasil, encontramos traduzido o seu famoso livro A Tripla Hélice.

Assim, é com grande satisfação que agradecemos o apoio dado pela Revista Psicologia & Sociedade para publicação das quatro entrevistas.

Uma boa leitura a todos!

ENTREVISTA COM ALLAN YOUNG2 2 © Transcrito de programa originalmente veiculado em rádio, na série IDEAS, adquirido pela Canadian Broadcasting Corporation. Agradecemos a Mark Thompson pelo auxílio na tradução das entrevistas.

Paul Kennedy

O nosso assunto hoje é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) - uma doença primeiramente diagnosticada nos veteranos da guerra do Vietnã e agora parte do nosso vocabulário cotidiano. Nosso convidado é Allan Young, professor de Antropologia do Departamento de Estudos Sociais de Medicina em McGill. Young é autor de The Harmony of Illusions: Preventing Post-Traumatic Stress Disorder. O livro analisa a noção de memória traumática por volta de 1860, quando um cirurgião britânico primeiro descreveu os efeitos remanescentes de acidentes durante a construção de ferrovias, até a atualidade, quando o Instituto Nacional de Saúde Mental americano estima que, todo ano, 7,5 milhões de americanos sofrem de TEPT. Mais do que isso, o trabalho de Young examina como um objeto científico, um diagnóstico psiquiátrico, passa a existir, e como ele impacta a experiência daqueles que foram diagnosticados. Neste programa, Allan Young fala sobre a sua pesquisa e sua trajetória intelectual.

David Cayley

O programa de hoje será sobre o que Allan Young chama de "A invenção do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)". Seu uso da palavra "invenção" é uma afirmação audaciosa e potencialmente controversa. No entanto, tal afirmação não quer dizer que o TEPT seja irreal. No início de seu livro, Young afirma de forma inequívoca que o TEPT e o sofrimento a ele associado são reais. Ao usar o termo invenção, o autor quer dizer que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático não é um objeto natural, que em um determinado momento foi descoberto, nomeado e descrito. Eventos assustadores sempre deixaram impressões dolorosas na mente, mas o Transtorno de Estresse Pós-Traumático é muito mais do que a constatação desse fato comum. Ele é uma construção científica e social que, além de outras coisas, cria uma determinada teoria sobre a memória, unifica sintomas diferentes em uma mesma categoria, confere benefícios e status às pessoas diagnosticadas e dá poder àqueles que estudam, tratam e certificam a doença. Em todos esses sentidos, o TEPT pode adequadamente ser descrito como uma invenção, um ato que constitui o seu objeto mais do que simplesmente o descreve.

Allan Young aborda esse assunto como um antropólogo, alguém que assume a posição de um estranho, não influenciado pelos interesses e verdades naturalizadas pertencentes ao seu campo de estudo. Foi sobre sua formação em Antropologia que primeiro conversamos quando o entrevistei em seu escritório, em McGill, em 2007. Young me contou que uma das coisas que mais o influenciou foi um livro que ele considera ser o início, e uma das peças mais importantes, da antropologia médica: Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande (Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande), de Edward Evans-Pritchard, publicado em 1937. Pritchard foi um antropólogo britânico que estudou o povo Azande, da parte alta do Rio Nilo, em uma época na qual a política colonial britânica estava forçando-os a abandonar seus acampamentos e mudar para vilas construídas no estilo europeu, com o objetivo de erradicar a doença do sono. Como um membro da Colonial Social Science Research Council, Evans-Pritchard foi convidado a explicar a resistência dos Azande a essa política.

Allan Young

A explicação era o medo de magia, e o relato dos Azande a respeito da magia era muito familiar ao efeito de armas de fogo. Se você mora a 10 km de alguém que tem um rifle e te odeia, você não se preocupa muito, mesmo que ocasionalmente ele atire em sua direção. Por outro lado, se você mora próximo dele, você fica realmente preocupado. Os Azande têm uma ideia muito parecida. Esse medo com relação à magia, obviamente, se tornou parte do senso comum em sociedades tribais que são presas a costumes e que possuem essas ideias estranhas. Mas Evans-Pritchard passou um tempo com eles e criou uma formulação muito interessante, na verdade, um quebra-cabeça - que os Azande, em primeiro lugar, são totalmente racionais. Eles também são totalmente empíricos. Em outras palavras, eles desejam ver provas, e provas empíricas para o que quer que eles acreditem. E, por serem empíricos, os Azande podem reconhecer contradições entre suas crenças e o mundo. Além disso, os Azande querem progredir: querem melhorar suas vidas; não estão presos a costumes. Aqui você tem quatro proposições. A quinta proposição é de que eles acreditam em bruxas, e a sexta proposição é que não existem bruxas nas terras dos Azande. Logo, o quebra-cabeça é: como você reconcilia o primeiro conjunto de proposições, a respeito da racionalidade e empirismo, com o segundo conjunto de proposições, no qual eles acreditam em bruxas e que não existem bruxas. No resto de seu enorme livro, muito bem escrito, há uma explicação que reconcilia os dois conjuntos de proposições em torno de uma forma de compreender como o conhecimento é produzido no mundo.

David Cayley

Como um povo com uma mentalidade empírica passa a acreditar em magia? A resposta de Evans-Pritchard é que a crença em magia é um produto do que Allan Young chama de cultura epistêmica. Esse termo se refere ao que qualquer grupo de pessoas possui de conhecimento em comum. Episteme é a antiga palavra grega para conhecimento. Young demonstra esse aspecto do pensamento de Evans-Pritchard fazendo referência ao seu segundo grande professor - Ludwick Fleck. Nascido na Polônia, Fleck era médico e microbiologista que sobreviveu a Auschwitz e morreu em Israel em 1961. Allan Young acredita que as ideias de Fleck complementam o trabalho de Evans-Pritchard.

Allan Young

Para mim, Fleck está no mesmo nível que Evans-Pritchard, não apenas no meu desenvolvimento intelectual pessoal, mas na nossa compreensão da ciência. Fleck era um judeu polonês, e em 1935 - aproximadamente na mesma época em que Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande foi publicado - ele publicou um livro, hoje muito famoso, chamado Genesis and development of a scientific fact ("Gênese e desenvolvimento de um fato científico", em uma tradução livre). Em tal livro, ele faz um afirmação extremamente audaz, como um cientista, de que fatos científicos são produzidos. Uma outra forma de dizer isso é que quando pessoas trabalham em conjunto e colaboram entre si, elas criam o que podemos denominar de uma cultura epistêmica. Fleck usou a palavra alemã "Denk-Kollektiv" (coletivo de pensamento). De acordo com o autor, o que está acontecendo não está na mente de uma única pessoa, mas na coletividade que está fazendo a pesquisa, nos aparelhos que eles estão usando e assim por diante. Essas ideias nós conhecemos hoje.

Fazendo um breve paralelo com Evans-Pritchard, ele afirma que feitiços e magias são produtos de uma cultura epistêmica, envolvendo uma tecnologia particular de oráculos de vários tipos que os Azande desenvolveram durante um longo período de tempo, tais como: envenenar galinhas, espetar gravetos em formigueiros e coisas do tipo. No fim, a sua conclusão é que bruxas e bruxarias são o produto epistêmico dessa cultura e, nesse sentido, são inteiramente reais. Reais no sentido de que pessoas ficavam doentes, morriam e assim por diante. Nós podemos dizer que algo é real nesse sentido, sem aplicar os padrões de verdade.

Fleck faz uma afirmação parecida a respeito da pesquisa científica. Ele usa essa bela frase quando descreve como fatos são produzidos, estabilizados e depois circulados nas comunidades de cientistas. Ele descreve esses fatos como sendo produtos de "uma harmonia de ilusões". A ilusão de que, de alguma forma, nós penetramos no que é real para nós, no que de fato existe fora do nosso esforço de compreensão do mundo.

Então, peguei o termo harmonia de ilusões diretamente de Fleck, e o argumento que usei em meu livro, argumento no qual continuo a acreditar, que o TEPT é, na verdade, real. Isso não pode ser negado. Não pode ser negado que feitiçaria entre os Azande é real. Ela não existe apenas como ideia ou como impressões nas suas mentes, mas como doenças, diagnósticos, mortes e em várias formas de decisões materiais importantes que as pessoas fazem. Podemos falar do TEPT da mesma forma. Agora, deixe-me clarificar um aspecto nesse momento, porque alguém poderia dizer "espere um minuto. Você está sugerindo que feitiçaria Azande e bruxas Azande são a mesma coisa que o TEPT, já que ambos são resultado do que você está denominando cultura epistêmica?" Minha resposta é não. Ambos são produtos, mas produtos de um caráter profundamente diferente. Por outro lado, do ponto de vista dos antropólogos, eles estão igualmente abertos a uma interpretação antropológica e a uma metodologia antropológica.

David Cayley

Coletivo de pensamento ou culturas epistêmicas, de acordo com Allan Young, não são a mesma coisa. Afirmar que uma bactéria está vinculada a uma doença, tema este do estudo de Ludwik Fleck, não é igual a distinguir a identidade de uma bruxa das entranhas de uma galinha. Mas ambos os resultados são produtos de uma certa tecnologia e de um determinado estilo de pensamento coletivo e, nesse sentido, eles podem ser analisados através do mesmo método etnográfico. No entanto, a utilização desse método coloca ao antropólogo cientista, que quer estudar os trabalhos de seus colegas cientistas, uma série de problemas bem diferentes daqueles enfrentados pelos antropólogos de outrora.

Allan Young

Quando ensino para os meus alunos, falo sobre uma certa história da antropologia e da medicina. Na verdade, isto seria a minha biografia. No início da antropologia, a grande tarefa dos antropólogos (ou obstáculo) era aproximar-se o máximo possível das pessoas que eles estavam estudando. Se você olha para os grandes antropólogos do século XX, como Malinowski e Evans-Pritchard, este era o grande desafio: ser capaz de chegar perto, de se aproximar. Mas quando você pesquisa a sua própria sociedade, e particularmente quando você trabalha com pessoas que são, na verdade, colegas, mais do que informantes, cujas opiniões são tão fortes quanto as suas - e se não forem mais fortes -, então a grande tarefa não é mais a de tornar-se próximo, e sim a de distanciar-se. E eu diria, particularmente, para não usar termos pretensiosos, que existe uma insegurança ontológica quando se trabalha com cientistas. Todos nós, eu assumo, temos um sentido ou um sentimento sobre o que é real no mundo e sobre a instituição de autoridade que nós escolhemos para definir o que é real, e, para mim, essa instituição é a ciência e os cientistas. Eles são a base da minha noção sobre o que é o real. Mas, ao mesmo tempo, são meu objeto de estudo. E, nesse caso, como antropólogo, eu tenho três opções. Opção numero 1 é a opção de Luddite dizendo "Estes cientistas estão desumanizando e desencantando o mundo", mas esse não é meu ponto de vista. Opção número 2 é simplesmente traduzir o que os cientistas já sabem em uma linguagem nova, a linguagem da antropologia, ou a linguagem do jornalismo científico, o que eu penso ser ok, não tenho problemas com isso. Existe a opção número 3: fazer alguma coisa diferente, fazer uma etnografia verdadeira da ciência e do conhecimento científico. E é aqui que os problemas começam, e eles não apenas epistemológicos, são também problemas morais no seguinte sentido: se eu tivesse que dizer o que é a antropologia e o objetivo do antropólogo, acho que uma forma de responder seria dizer que o papel do antropólogo é tornar explícito o que é tido como natural, como verdadeiro para os demais. E isso é muito difícil de fazer, mesmo em outras culturas. O problema em tornar explícito o que é visto como natural e verdadeiro (quando você torna explícito o que são as pressuposições) é que frequentemente o informante fica furioso ou não se sente confortável. Felizmente, comigo, isso aconteceu apenas algumas vezes, e a área com a qual eu trabalho, a desordem que mais me interessa - o Transtorno do Estresse Pós-Traumático -, é extremamente difícil de controlar. Existem todos os tipos de brigas e discussões acontecendo dentro do campo e uma enorme amargura por parte de algumas pessoas. Esta não é somente uma observação minha, mas também de outras pessoas dentro da psiquiatria, de que, até certo ponto, há uma qualidade religiosa na sensibilidade de pesquisadores e clínicos trabalhando com o TEPT. É possível entender, porque há vitimas e sofrimento e questões complicadas de compensação financeira, mas isso faz com que seja difícil para o antropólogo se distanciar desse campo.

David Cayley

Apesar de tais dificuldades, Allan Young passou mais de 20 anos estudando o campo do TEPT. Segundo ele, o estudo começou com um convite.

Allan Young

Em 1985, o Congresso americano ordenou a criação de uma unidade especial dentro do "Veterans Administration Hospital" para desenvolver um programa de tratamento e um programa educacional para o Transtorno de Estresse Pós-Traumático. A desordem havia sido incluída na nosologia psiquiátrica cinco anos atrás, em 1980, e havia uma grande pressão política dentro do congresso, em particular no senado, para criar uma unidade desse tipo. A unidade havia sido criada há alguns meses e eu fui convidado - uma história complicada e não vou entediar vocês com ela - para visitar o hospital, a unidade de internação, que era o centro das instalações, e ver se eu gostaria de fazer alguma pesquisa como antropólogo. Esse convite veio de pessoas que tinham proximidade com a antropologia, que conheciam parte do meu trabalho anterior, e eles me convidaram.

David Cayley

Allan Young realizou uma pesquisa de campo nesse hospital, localizado no centro-oeste americano, durante três anos. Em 1995, ele publicou The Harmony of Ilusions. O livro relata sua pesquisa, mas também conta a história da noção de memória traumática, uma história que tem início no século XIX.

Allan Young

Se retornamos a 1895 e olhamos as publicações de Freud e os estudos de Breuer sobre a histeria, vemos que eles falam sobre uma histeria traumática. Eles dizem, em uma frase muito famosa, que a desordem é baseada principalmente em reminiscências, isto é, em memórias traumáticas, e não em eventos traumáticos. Eventos dão origem a memórias, mas é a memória que direciona a síndrome depois. Essa é a fala de Freud e Breuer em 1895, e antes deles outras pessoas pensaram da mesma forma. Nos 110 anos seguintes, a memória continuou sendo um interesse e um foco de estudos, mas de forma muito controversa. Ao longo do período até 1980, houve debates acalorados entre psiquiatras em muitos países. Durante a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, especialmente na Alemanha, ocorreram debates sobre a natureza das memórias traumáticas: sobre como elas eram formadas, sua maleabilidade e sobre o que elas eram. Elas são memórias do passado ou, como alguns psiquiatras alemães sugeriam, memórias do futuro? Ou seja, elas são medo do que está para acontecer no futuro e, assim, passam a ser incorporadas como memórias de eventos que já aconteceram? Esses foram relatos muito sutis, estimulantes e importantes. Durante esse período, a ciência da memória também estava se desenvolvendo. Questões similares foram feitas sobre a memória. Um livro famoso foi publicado em 1932 por Frederic Bartlett, que teve como professor um dos grandes médicos especialistas em traumas durante a Primeira Guerra Mundial, W.H.R. Rivers. Quando Bartlett escreveu esse livro sobre memória ele deu um título interessante, e o título não era "memória", e sim "remembering" (lembrando). Ele destaca que, quando falamos de memória, estamos falamos sobre um processo. Cada vez que lembramos, esse é um processo ativo no qual uma memória é construída e reconstruída. Então, esse é um processo muito dinâmico. Memórias são maleáveis. Eram relatos lindos e maravilhosos sobre a memória.

Tudo mudou em 1980 quando, com o TEPT, se tem um relato da memória traumática que é bem diferente, porque é um relato padrão. Não se fala mais de memória como remembering (lembrando). Não se fala mais de memória como um processo, mas como uma essência que é criada por ocasião da experiência traumática, e, ao ser uma essência, é vista como um objeto que não muda com o tempo. Uma vez que é produzida, permanece como está. A memória pode gradualmente erodir através da terapia, mas ela não é um processo. Assim temos uma variedade de metáforas que eram usadas. Pessoas falavam de memórias de flashback ou de flash-bulb. Há referências de memórias traumáticas indeléveis, o que sugere que a memória seria algo muito sólido. Então, a questão passa a ser "por que" esta mudança repentina? Em Iídiche nós temos uma expressão "oyf tse loches", como se essa ideia viesse do nada. Bem, obviamente isso não vem do nada. Ela não surge simplesmente do nada. Sabemos todos os detalhes. Eu entrevistei todas as pessoas, com exceção de uma, que estavam no comitê e que fizeram todas as mudanças no DSM III, e a resposta é bem clara.

David Cayley

A semente dessa resposta, diz Allan Young, reside em um dos nomes que é comumente visto como precursor do TEPT: Compensation Neurosis. O termo vem do século XIX, quando efeitos traumáticos, posteriores a acidentes ferroviários, tornaram-se uma questão para os viajantes feridos, assustados e para as companhias ferroviárias e suas seguradoras. O uso do termo destaca um dos fatores críticos do Transtorno do Estresse Pós-Traumático. Diferentemente das doenças que se originam de alguma disfunção ou distúrbio fisiológico, as memórias traumáticas têm uma causa externa. Elas são um produto de eventos pelos quais alguém é responsável e pode vir a ser legalmente responsabilizado. Em 1980, a psiquiatria americana e o governo americano precisavam encontrar uma estrutura para lidar com questões relativas à responsabilidade e compensações financeiras, provenientes da guerra do Vietnã. Parte da solução foi incluir o Transtorno do Estresse Pos-Traumático na terceira edição do DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - que é o Manual de Doenças Mentais da Associação de Psiquiatria Americana. Mas essa solução - redefinir a memória como uma essência, uma impressão fixa e permanente - foi bem diferente, de acordo com Allan Young, da solução que os britânicos encontraram depois da Primeira Guerra Mundial.

Allan Young

Depois da Primeira Guerra Mundial, essa era uma grande questão, especialmente no Reino Unido. Havia muitos soldados que tinham sido diagnosticados com "Shell Shock" (trauma relacionado com explosão de bombas, em uma tradução livre). Eles estavam realmente mal depois da guerra, não podiam trabalhar, suas relações familiares eram pobres etc. E em torno de 1922, os britânicos tinham um grande inquérito com os psiquiatras e médicos militares mais importantes da época. Eles sugeriram a seguinte questão: ok, vamos considerar, então, já que não podemos entrar dentro de suas cabeças, que todo homem que afirmar ter sido traumatizado realmente foi. O que deveríamos fazer agora? O que eles querem e têm direito é uma compensação financeira. Como devemos pagar essa compensação? Bem, este parece ser um assunto sem graça, bobo, que somente os especialistas que calculam benefícios estariam interessados, mas, do ponto de vista da ciência, essa é uma discussão extremamente interessante. O TEPT é um dos transtornos cuja história não pode ser entendida apenas nos termos da psiquiatria, mas também nos termos da lei. Ambas, psiquiatria e justiça, estão determinando o que nós, finalmente, chamamos de "trauma" e "Transtorno do Estresse Pós-Traumático". Então, a questão era: podemos fazer o que fizemos no passado, isto é, pedir às pessoas para virem uma vez por ano ou a cada seis meses para um exame psiquiátrico e então ver se sua deficiência resulta de Shell Shock. Se alguém tem 50% de deficiência, nós oferecemos 50% de benefício. Se ela é de 100%, damos 100% de pensão. Fazemos simplesmente assim e, depois de certo tempo, algumas pessoas melhoram, e então paramos de conceder o beneficio. O argumento contrário foi: "ok, temos feito isso há algum tempo, e ninguém melhora. E a ausência da melhora não é somente porque alguns querem continuar recebendo benefícios. Muitos deles não têm sequer consciência deste processo psicológico, e o incentivo real é não melhorar". O que o pagamento desse benefício faz é criar uma condição crônica. Se não fossem pagos, talvez pudéssemos ter um quadro no qual as pessoas melhorassem gradualmente. Então, eles decidiram dar a todos uma certa quantia e dizer que eles não poderiam voltar. E isso é o que os britânicos fizeram. Essa foi a solução deles.

Agora, avançando rapidamente para os anos de 1970, e para o debate após a Guerra do Vietnã. Lembrem-se que a maioria dos soldados americanos retornaram do Vietnã até 1973, e que em 1975 a Guerra havia terminado completamente. Existia uma grande preocupação com vítimas psiquiátricas decorrentes da Guerra, e então tais debates vieram à tona novamente, mas com uma diferença. Os britânicos diziam que não eram capazes de decidir ou determinar quem havia sido traumatizado, quem tinha uma memória autêntica, e que, então, iriam tomar isso como fato e decidir o que fazer depois. Os americanos fizeram algo completamente diferente. Eles disseram "nós sabemos o que fazer em seguida". Nós temos um nome para aquilo que há de errado com pessoas que foram traumatizadas e têm uma deficiência: "service-connected disorder" (desordem ocupacional, em uma tradução livre). E nós temos uma variedade de desordens que podem ser incluídas nessa categoria: lesões e danos físicos, permanentes, temporários etc. Tudo isso passará a ser visto como uma desordem ocupacional e deveria ser tratado como tal, ou seja, com exames periódicos, avaliações e classificações. Nós teremos que criar comitês de classificação para o TEPT e para a deficiência, para examinar os indivíduos. Isso não é problemático porque é consistente com o que temos feito. O que é problemático é a questão de quem tem direito a receber o benefício. Para isso, teremos que desenvolver um padrão que determinará quem tem e quem não tem esse direito.

Tal padrão foi construído em torno da noção de memória traumática autêntica. Nessa época, foi adotado um prontuário clínico com uma lógica interna específica. Essa lógica interna começa com a ideia de que existe um evento traumático, terrível e extremamente perturbador, que cria uma memória. Tal memória retorna com frequência e é extremamente dolorosa e estressante para os indivíduos. Esse é o segundo critério. O terceiro critério é que o indivíduo, consciente ou inconscientemente, luta para evitar aquelas situações que irão estimular a recorrência da memória - isto é chamado "avoidance behaviour" (comportamento de recusa) - e/ou luta consciente ou inconscientemente para anestesiar-se - na maioria dos casos, homens - contra os efeitos emocionais das memórias quando elas de fato retornam. Uma das maneiras usadas para se anestesiar é um distanciamento psicológico, se afastando psicologicamente de sua esposa, filhos etc., mas uma maneira ainda mais efetiva, como sabemos, é com o uso de álcool ou drogas. Assim, o abuso de substâncias químicas foi redefinido como sintoma do TEPT, como uma adaptação à memória traumática. Essa é uma parte do terceiro critério. O quarto critério é que existe uma estimulação psicológica que é associada ao Transtorno e que pode ser parcialmente explicada pela antecipação inconsciente do ressurgimento da memória traumática, de tal forma que o corpo se mobiliza e o sistema nervoso autônomo se mobiliza para lutar ou fugir. Você tem tudo isso embrulhado em um pacote.

Eu descrevo esses critérios como estando unidos por uma lógica interna, porque tudo que segue é baseado na relação entre o evento precipitante e a instalação da memória. É o evento precipitante que cria a memória indelével. Bem, a princípio, isso parece inevitável. De que outra forma isso poderia acontecer? Quais alternativas existiriam? São boas perguntas. Se você quer uma resposta, precisa voltar no tempo, antes do marco de 1980. Voltar, por exemplo, aos psiquiatras da Primeira Guerra Mundial, que tinham explicações muito boas a respeito de como a síndrome pode, de fato, começar com o sofrimento, a ansiedade e a depressão que o indivíduo sente, talvez, com abuso de substâncias químicas também ocorrendo. Na sequência, após o surgimento da síndrome, uma causa é procurada. Essa causa é o evento traumático que o paciente descobre com a colaboração do terapeuta. Esse evento, no momento da sua ocorrência, pode não ter sido um evento tão sofrido, mas ele é reinterpretado, de certa forma, como a causa da síndrome.

Entre as diversas pessoas que escreveram sobre isso, está Freud. Freud, é claro, agora é anátema em psiquiatria. Mas Freud escreveu sobre isso, e usava o termo alemão nachträglichkeit para descrever a reinterpretação de uma memória de tal modo que a memória, então, assume o poder que o evento original não tinha. Essa é outra forma que isso pode acontecer. Por fim, todas essas explicações estão baseadas na ideia de que a memória é Remembering, que nossas memórias do passado não são uma biblioteca de fotografias. Elas não são uma coleção de videoteipes. Repetidamente, na literatura sobre o TEPT, é precisamente assim que as memórias traumáticas são descritas: como fotos, como videoteipes - talvez, hoje as pessoas falem sobre DVDs - de memórias, como algo que é armazenado.

David Cayley

A noção de memória como um sistema de armazenamento foi fundamental no esquema diagnóstico introduzido no DSM, o Manual das desordens mentais oficialmente aceitas, em 1980. O diagnóstico do Transtorno do Estresse Pós-Traumático iria reconhecer o sofrimento de muitos veteranos do Vietnã e oferecer uma medida para sua compensação financeira. A desordem era definida, como Allan Young acabou de dizer, por quatro critérios: um evento traumático, que resulta em uma memória recorrente e dolorosa, que a pessoa tenta evitar e que produz uma variedade de sintomas perturbadores, traumáticos e debilitantes. Tais critérios estão unidos uns aos outros pelo que Young chama de uma lógica interna, conferida pela memória traumática. Caso contrário, diz ele, muitos dos sintomas do TEPT poderiam ser sintomas de várias outras desordens.

Allan Young

A única forma pela qual você pode diferenciar o TEPT destas outras desordens - desordem da depressão maior, desordem da ansiedade generalizada, desordem do abuso de substâncias -, que frequentemente aparecem em conjunto na ausência da memória traumática, é o fato de que existe essa lógica interna. Eles estão todos conectados. Alguns dos sintomas dessas outras desordens são chamados em psiquiatria de "sintomas não-específicos". Alguns deles não são nem mesmo sintomas psiquiátricos: dificuldade em dormir e para se concentrar, irritabilidade etc. Eu não estou criticando, mas, em si mesmos, eles não são necessariamente sintomas. O que faz com que eles sejam sintomas do TEPT é o fato de serem todos tingidos, coloridos por essa memória. É a memória que vincula todos eles e esse processo que eu descrevi, que conecta o evento à memória, à adaptação e à excitação fisiológica causada pela memória. Isso é o que une todos eles.

David Cayley

Os sintomas do Transtorno do Estresse Pós-Traumático se tornam sintomas somente quando são vinculados uns aos outros por uma memória traumática, diz Allan Young. Mas, desde 1980, essa lógica interna, como ele a chama, tem sido cada vez mais negligenciada. Clínicos diagnosticam agora um TEPT parcial, quando somente alguns dos critérios da desordem estão presentes. Isso levou a uma dramática expansão do escopo de um transtorno que foi, num primeiro momento, talhado às circunstâncias da Guerra do Vietnã. Um segundo fator igualmente importante foi a redefinição do que constitui um evento traumático.

Allan Young

Isso começa em 1980 precisamente definido, e quando digo pra você qual era a definição, talvez a imagem que venha a sua mente seja de um pobre coitado numa floresta do Vietnã, com granadas explodindo sobre sua cabeça. A definição era: um evento fora da experiência humana usual, que seria profundamente traumatizante para qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer tempo. Isso é completamente claro. A definição do evento foi assim estabelecida para ser inequivocamente precisa, de forma que não pudesse ser rejeitada pela Veterans Administration, com relação à concessão de benefícios. Tal definição torna claro que esses não são eventos triviais.

O que aconteceu a partir de 1980, embora existam pessoas no campo que neguem isto, é que essa definição começou a ser mudada gradualmente. Houve um afastamento da noção de um evento que é definido objetivamente através de características que são externas ao paciente. "Um evento fora da experiência humana usual" não diz nada para você sobre o paciente, sobre o indivíduo. "Profundamente traumatizante para qualquer um" significa para qualquer um. Isso não diz nada sobre o paciente. Houve um deslocamento, e esse deslocamento foi redefinir o evento traumático como um evento que é percebido subjetivamente pelo indivíduo como, de alguma forma, ameaçador. Um exemplo comum, que muitas pessoas alegam em seus processos, são as colisões automobilísticas. Bateram na parte de trás do seu carro, e você fala "Nossa, bateram em mim. Eu vi a minha vida passar em um flash quando isso aconteceu. Isso foi um choque, uma surpresa, um susto. Isso bem poderia ser - e não haveria nenhum problema em diagnosticar esse caso como TEPT - uma experiência de caráter traumático".

David Cayley

O número de pessoas diagnosticadas com o Transtorno do Estresse Pós-Traumático aumentou continuamente desde 1980. O último informativo da Canadian Mental Health Association afirma que um em cada dez canadenses é acometido pelo TEPT ou por uma desordem de ansiedade relacionada. O National Institute of Mental Heath (Instituto Nacional de Saúde Mental) dos EUA estima que 7,7 milhões de americanos irão sofrer de TEPT por ano. Uma das formas através da qual a categoria foi expandida, diz Allan Young, é que agora ela é aplicável a eventos nos quais a vítima não está pessoalmente envolvida.

Allan Young

Todos nós sabemos o que aconteceu em 11 de setembro, e nós sabemos que o fato foi amplamente coberto pela televisão. Todo mundo viu fotos dos aviões colidindo com as torres do World Trade Center, e fotos das pessoas caindo. Pessoas se jogando das torres, a nuvem tóxica passando pela parte baixa de Manhattan, essas imagens foram transmitidas por todos os EUA e por todo o mundo. Havia pesquisadores do TEPT e epidemiologistas que quiseram estudar os efeitos traumáticos dessas imagens na população, dentro da área metropolitana de Nova York e em outras partes dos EUA. Os resultados dessa pesquisa foram publicados nos últimos cinco anos, nos principais jornais médicos e psiquiátricos: no The New England Journal of Medicine; The Journal of the American Medical Association, Arquives of General Psychiatry, The Journal of the American Psychiatric Association. Os seus resultados foram extremamente interessantes. Para as pessoas que foram entrevistadas, que moram em Seattle ou Broken Mesa, Arizona e por todo o mundo, foram dadas listas de sintomas, e eles diziam, por exemplo, "desde 11 de setembro eu realmente tenho tido problemas para dormir e, desde então, passaram-se seis meses", "Eu estou mais irritado", ou alguma coisa semelhante. Então às vezes eles têm um sintoma ou dois, usando o modelo do TEPT parcial. Mas, do ponto de vista da lógica interna da qual tenho falado, isso não faz nenhum sentido. Esses são sintomas não-específicos. Nós não sabemos o que eles significam. A gente nem mesmo sabe se eles são sintomas. Contudo, esses sintomas são então relacionados, colocados juntos, agregados dentro de tabelas. Nessas tabelas, nós temos os quatro sintomas centrais e o percentual das pessoas que apresentam os sintomas. Então, o que está sendo construído nestas páginas é um caso bem convincente de TEPT com todos os quatro sintomas, mas o indivíduo, a pessoa que está sendo representada, é o que eu tenho chamado de pessoa ficcional, ela não existe, é um composto, algo que foi colocado junto, um agregado de milhares de pessoas para criar ou construir um tipo de golem, um autômato.

David Cayley

No tipo de pesquisa sobre TEPT que Allan Young descreve, os sintomas são separados dos indivíduos que os relatam e depois são reunidos para criar um "sofredor composto", cuja realidade é apenas estatística. Para Allan Young, isso representa o cume, o ápice de um processo que ele acredita estar acontecendo no tratamento e na pesquisa do TEPT há algum tempo. Um diagnóstico que inicialmente derivava da história concreta e das circunstâncias biográficas de homens que lutaram no Vietnã transformou-se, finalmente, em uma categoria universal, capaz de ser reconhecida e aplicada sem nenhuma referência histórica ou biográfica.

Allan Young

Um dos objetivos do programa de tratamento e, eu acredito, um dos objetivos da pesquisa, é universalizar uma situação histórica. O que era particular em relação a esses homens foi generalizado para produzir, no fim, uma linguagem de sofrimento que não é historicamente particular. Isso representava, até 2007, um tipo de "Esperanto Psiquiátrico", que nos permitia falar sobre o sofrimento em qualquer lugar. Permitia-nos considerar o sofrimento e a miséria de alguns veteranos do Vietnã, que vinculavam a sua condição psiquiátrica a atrocidades que eles observaram passivamente ou de que tomaram parte, e, de alguma forma, ser capaz de falar a respeito delas da mesma forma que os sobreviventes do holocausto - uma comparação que acredito ser obscena. Cria-se aqui um tipo de equivalência clínica. Todos eles são sofrimentos que podem ser descritos com os mesmos termos clínicos. Em certo sentido, é função da linguagem psiquiátrica isolar a experiência do contexto histórico e moral, e transformar questões morais em questões essencialmente psicológicas e psiquiátricas.

David Cayley

Muitos dos acometidos por TEPT que Allan Young estudou no Veterans Administration Hospital, onde ele realizou a sua pesquisa de campo, estiveram envolvidos em eventos que levantam profundas questões morais e de justiça. Alguns participaram do massacre de civis. Outros relataram ter assassinado um soldado companheiro aproveitando da confusão da batalha, etc. Durante o tratamento, essas se tornam questões terapêuticas. Questões de justiça e moral são deixadas de lado. "Ideologias como estas, encontradas neste hospital", Young escreve em uma passagem eloquente no final de seu livro, "criam verdades eliminando outras verdades". E isso nos leva de volta ao que Allan Young disse no início do programa de hoje. Todo conhecimento, ele afirma, é produzido dentro do que ele chama "culturas epistêmicas", que determinam para os seus membros o que é válido conhecer e como isso deve ser conhecido. Os oráculos dos Azande produzem feiticeiros. A ciência médica produz o Transtorno do Estresse Pós-Traumático. Não existe, então, nenhuma diferença, perguntei a Allan Young, entre a ciência e outras culturas epistêmicas?

Allan Young

Esta é uma questão recorrente dentro da psiquiatria: o que é único e específico da ciência? A resposta para isso é muito insatisfatória, mas essa é a resposta que ensinamos aqui na Faculdade de Medicina de McGill. Nós chamamos isso de "método científico" - ser capaz de formular uma hipótese que possa ser provada falsa e tentar negá-la. Se você não puder negá-la, então você tem razões para confiar na hipótese. Esse é o conhecido argumento de Karl Popper.

Tenho uma outra definição, muito mais simples. Uma das características da não-ciência é que ela ignora ou elimina debates e contradições. Uma das características de toda cultura epistêmica - Ian Hacking descreveu isto maravilhosamente - é que elas são "self-vindicating" (autojustificante), e isso também é válido para as culturas científicas. Self-vindicating significa que elas podem reconhecer contradições - podem reconhecer resultados inesperados quando eles são produzidos no desenvolvimento da pesquisa -, mas elas têm formas de explicar essas contradições, e não somente explicá-las, mas apropriar-se delas e dizer que, na verdade, não são contradições. Tais contradições não representam uma falsificação da minha hipótese original, mas uma elaboração sobre o que a minha tese significa. Elas têm ajudado muito por nos contarem coisas que nós ainda não sabíamos. Eu acredito que este tipo de qualidade autojustificante no interior da ciência é inevitável e certamente necessário. Karl Popper, a pessoa que primeiro formulou essa noção de falsificação e de hipóteses falsificáveis, fez, em um de seus livros, uma observação muito interessante. Ele disse, tomando literalmente a doutrina do falsificacionismo, que você tenta falsificar uma hipótese e se você não consegue falsificá-la, mesmo que você tente arduamente, isso dá razões para que você tenha confiança nessa hipótese - então, o que acontece se você tem sucesso na primeira vez que você tenta falsificar a sua hipótese? Estamos sugerindo, com isso, que você simplesmente deixe de lado essa hipótese e procure outra? Ele responde que absolutamente não. Se olharmos para as hipóteses científicas de maior sucesso, elas estão constantemente se falsificando, e é frequentemente a crença do cientista na hipótese e sua teimosia em permanecer com ela que, no final, nos dá uma hipótese útil em diversos sentidos. Então ele diz - e eu estou colocando palavras em sua boca - que a qualidade self-vindicating (autojustificante) não deve ser simplesmente desacreditada. Mas, e essa é a minha resposta a sua pergunta, isso é algo que precisa ser reconhecido. Fatos científicos são, na verdade, produzidos, e uma forma na qual eles são produzidos é no interior de uma cultura epistêmica que lhe proporciona essa qualidade autojustificante. Uma abordagem não-científica, para mim, não é uma abordagem teimosa, que se prende a uma hipótese que foi falsificada, mas, ao contrário, uma abordagem que ignora o fato de que a retenção de uma hipótese falsificada ocorre através desse processo de falsificação. Deveria existir ao menos um ceticismo marginal com relação ao poder das culturas epistêmicas de justificar e confirmar a si mesmas. Isso não é necessariamente uma coisa boa. No caso da feitiçaria Azande, funciona. Evans-Prichard demonstra isso. Ela prediz, e as coisas realmente acontecem. Os Azande reconhecem contradições. Eles são capazes de explicar contradições. Por fim, eles acreditam em feiticeiros e bruxas. Meu argumento é que a diferença entre o Azande e um cientista real é um tipo de ceticismo profissional, uma consciência de que nós estamos lidando com culturas epistêmicas. Não temos algo como um grande tapete embaixo do qual está a realidade e gradualmente enrolamos o tapete e descobrimos essa realidade, uma realidade que existe antes de tentarmos encontrá-la. Na verdade, ela é um produto desse encontro.

David Cayley

A característica distintiva da ciência, para Allan Young, é autoconsciência, o reconhecimento de que todos os objetos do conhecimento são provisórios, pelo simples fato de que são produzidos. A ciência produz conhecimento. Para Allan Young, a ciência não está apenas enrolando o tapete e encontrando inocentemente a realidade esperando por ela. Culturas científicas, diz ele, como todas as culturas epistêmicas, são invariavelmente autojustificantes. Sua coerência depende disso. Ninguém pode eliminar esse atributo, apenas permiti-lo. E aqui chegamos, finalmente, à crítica de Allan Young ao universo da pesquisa do TEPT. Ela se tornou, diz ele, uma comunidade dogmática que se ressente e rejeita críticas. A respeito disso, Allan Young sabe do que está falando, já que ele mesmo algumas vezes foi vítima desse ceticismo.

Allan Young

Quando as pessoas fazem pesquisa, por exemplo, sobre o TEPT, e enviam os artigos resultantes para serem avaliados pelos jornais, e os pareceristas desse artigo são selecionados em uma comunidade super-homogênea com relação a suas percepções, em termos do que eles desejam proteger e preservar do conhecimento convencional, isso não é científico. Na medida em que eles marginalizam e estigmatizam críticas, isso não é científico. O que eu estou querendo dizer, e este é o meu comentário final, é que em muitos aspectos esses dois problemas são endêmicos na linha central de pesquisa sobre a TEPT.

Notas

Allan Young é professor de Antropologia no Departamento de Estudos Sociais da Medicina da Universidade McGill. Endereço: 3647 Peel St., Room 211. Montreal, Quebec, Canadá. Email: allan.young@mcgill.ca

Luciana Vieira Caliman é professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutora em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pós-doutora em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço: Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional/UFES. Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras. CEP 29060-970. Vitória/ES. Email: calimanluciana@gmail.com

Rogério Gomes de Almeida é físico e mestre em Física pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e mestrando em ciências contábeis e finanças pela Faculdade FUCAPE, ES. Endereço para correspondência: Rua Petrolino Cesar de Moraes, 210/ 25. Mata da Praia, Vitoria/ES. CEP 29066-230. Email: rogerio@morar.com.br

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    As entrevistas duram cerca de 40 minutos e podem ser ouvidas na íntegra no site
  • 2
    © Transcrito de programa originalmente veiculado em rádio, na série
    IDEAS, adquirido pela
    Canadian Broadcasting Corporation. Agradecemos a Mark Thompson pelo auxílio na tradução das entrevistas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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